Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2288/08.0TBPTM.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PRESUNÇÃO DE CULPA
CULPA
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA CULPA
Data do Acordão: 11/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR.
Doutrina:
- Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra, 1997, p. 356;
- Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moreira, Anotação ao artigo 799.º do Código Civil, in Comentário ao Código Civil, Direitos das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 1109;
- Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, p. 430, 460-461.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 487.º, N.º 2 E 799.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 15-05-2008, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-12-2009, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-03-2010, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-06-2011, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-09-2012, PROCESSO N.º 4339/07.6TVLSB.L1.S2;
- DE 25-10-2012, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-02-2017, PROCESSO N.º 4444/03.8TBVIS.C1.S1;
- DE 05-07-2017, PROCESSO N.º 4861/11.0TAMTS.P1.S1;
- DE 02-05-2019, PROCESSO N.º 14647/14.4T8LSB.L1.S1.
Sumário :

I. Para decidir se é ou não de atribuir relevância, como causa de exclusão da culpa, ao alegado pelas rés de que agiram na convicção de que o ex-marido da autora tinha poderes para negociar em nome desta, o julgador deve recorrer aos critérios estipulados no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, para os quais remete o artigo 799.º, n.º 2, do mesmo diploma, norma que faz coincidir os critérios de culpa aplicáveis à responsabilidade extracontratual e à responsabilidade contratual.

II. Na densificação do conceito legal do «bom pai de família», temos de ter em conta, em primeiro lugar, a atualização terminológica, valorativa e social deste conceito para o de «pessoa média», que pode ser de ambos os géneros, masculino ou feminino, e o que deve ser a sua conduta, tal como a da generalidade das pessoas, quando participa no tráfico jurídico no contexto em que o faz.

 III. Estando afastado um critério subjetivo e concreto na apreciação da censura dirigida ao devedor ou devedora, ainda assim é forçoso ter em conta as circunstâncias do caso, para apurar a conduta exigível a uma pessoa média, de forma a imputar os danos ao devedor nos casos em que a sua diligência habitual seja inferior à média.

   IV. A circunstância de o ex-marido da autora, no momento da revogação do contrato-promessa, ter expressamente afirmado agir em nome desta, num quadro sociológico em que geralmente os cônjuges estão de acordo e no contexto de uma relação contratual que durava há quase cinco anos, fez com que as rés, tal como sucederia com a generalidade das pessoas medianamente cuidadosas, confiassem nas declarações do ex-marido da autora, não sendo exigível que suspeitassem da falta de honestidade do seu comportamento e lhe pedissem o comprovativo da autorização da autora, agora recorrente.

Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Relatório
1. AA propôs a presente ação declarativa, com processo comum sob a forma ordinária, contra BB, CC e DD, pedindo a condenação das rés a pagarem, aos autores, a quantia de € 94.771,16, nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, a título de restituição em dobro do sinal prestado, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data dos factos até efetivo e integral pagamento. A autora requereu a intervenção principal provocada de EE, como seu associado.
As rés contestaram, pugnando pela improcedência da ação. Contudo, para a hipótese de procedência da ação, as rés deduziram reconvenção, pedindo a condenação dos autores: 1) Como litigantes de má-fé, em multa e indemnização não inferior a € 7.500; 2) A reconhecerem como validamente resolvido pelas rés o contrato-promessa junto à petição inicial e o sinal passado, seja no montante de € 39.903,88, seja no montante de € 47.385,80, pertença delas, rés; 3) A pagarem às rés a quantia de € 40.000, que estas entregaram aos autores em 16.05.2005; 4) A pagarem às rés juros legais sobre a quantia de € 40.000, contados desde 16.05.2005 até integral embolso, sendo os vencidos até 16.05.2008 no montante de € 5.200; 5) A pagarem às rés a quantia de € 12.100 como compensação pelo gozo e fruição do prédio prometido vender no período de Abril de 2001 a Novembro de 2004, acrescido de juros legais desde a notificação da contestação; 6) Subsidiariamente, no caso de se entender que as rés não resolveram validamente, a pagarem a estas as quantias referidas em 1, 3, 4 e 5. As rés pediram ainda que se ordene, em qualquer caso, a compensação, até aos respetivos limites, com o montante que elas forem, eventualmente, condenadas a pagar aos autores.
A autora replicou, respondendo à exceções suscitadas pelas rés e pugnando pela improcedência da reconvenção.
As rés responderam às exceções suscitadas pela autora à matéria da reconvenção.
A intervenção principal provocada de EE, como associado da autora, foi admitida, tendo o interveniente declarado fazer seus os articulados desta última.
Após a realização de audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais, foi admitido o pedido reconvencional com exceção da parte respeitante à condenação dos autores como litigantes de má-fé. Procedeu-se à seleção da matéria de facto assente e à elaboração da base instrutória.
Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando a ação procedente, condenou as rés a pagarem à autora a quantia de € 94.771,16, a título de restituição de sinal em dobro nos termos do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, acrescida de juros de mora contados desde a data da citação até integral pagamento. A reconvenção foi julgada totalmente improcedente.

2. As rés recorreram da sentença, tendo o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão datado de 28 de fevereiro de 2019, decidido o seguinte:


 

«Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso parcialmente procedente, anulando a sentença recorrida nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, e julgando a acção e a reconvenção parcialmente procedentes nos seguintes termos:

A) Condena-se o recorrido EE a pagar a quantia de € 16.307,10 às recorrentes, sendo € 5.435,70 a cada uma delas;

B) Condena-se cada uma das recorrentes a pagar a quantia de € 7.897,63 à recorrida AA;

C) Sobre as quantias referidas em A) e B) são devidos juros de mora, à taxa supletiva legal, desde as datas em que os respectivos devedores foram citados até integral pagamento;

D) No mais, vão as recorrentes e os recorridos absolvidos dos pedidos contra eles formulados.

Custas da acção e da reconvenção, incluindo as do presente recurso, a cargo das recorrentes e dos recorridos, na proporção do respectivo decaimento».

3. Insatisfeita, interpõe recurso de revista, a autora, AA, formulando na sua alegação de recurso as seguintes conclusões:
«1º-A questão principal do presente recurso consiste em saber se do incumprimento do contrato promessa pelas Rés, deriva responsabilidade civil em relação à Recorrente.
2º- No caso concreto, foi celebrada uma revogação entre um dos promitentes compradores e as Rés.
3º- A A, ora Recorrente, não interveio pessoalmente ou através de representante e , por isso, não poderá conforme resulta claro, ser afectada pela revogação .
4º- Tem o direito a que se mantenha inalterada a situação jurídica que para si resultou da celebração do contrato promessa de compra e venda.
5º- Resulta bem explícito, que a Autora foi alheia a revogação efetuada, não teve conhecimento da mesma e nem das cláusulas combinadas entre as Rés e o EE logo não poderá vir a ser prejudicada pela mesma.
6º- Consta da matéria dada como assente que as Rés, depois da morte do marido da R. BB, passou a ser assessorada juridicamente, pelo    que    decorre    da    lógica    comum    que        tenham sido  assessoradas.
7º- Ora, sendo assim, como efetivamente é , para mais encontrando-se devidamente assessoradas por Advogado , deveriam ter adotado todos os cuidados que a situação requeria, o que não fizeram , como é manifesto.
8º- Ainda antes             de    terem    procedido           à    revogação    do    contrato firmado com a A., nestes autos recorrida, venderam o imóvel a terceiros , só depois efetuaram unilateralmente a revogação do contrato com o Interveniente Acidental, o que colide com a conduta que um bom pai de família adotaria .
9º- O procedimento posterior adotado pelas Rés e que consiste na entrega de uma verba a um dos contraentes, in casu, interveniente Acidental, faz com que caia pela base, a tese de que não seria exigível das Rés outra conduta .
10º-Ao longo desse moroso processo sempre a Autora e o Interveniente Processual, enviaram em nome próprio missivas aos mandatários das Rés, o que não é um procedimento usual num casal que viva sem conflitos, pelo que teria sido diligente que as Rés se tivessem certificado que o EE tinha poderes para vincular a A. ou autorização daquela.
11º- Porque durante esses anos todos, ambos, ou seja quer a A., quer o EE, sempre se fizeram representar por si próprios, pelo que o cidadão médio colocado na posição das Rés, teria estranhado quando aquele se apresentou em nome do casal e teria necessariamente sido diligente no sentido de verificar os poderes do EE e se a A. estava devidamente informada.
12º-Se as Rés tivessem sido diligentes teriam feito constar do Acordo de Revogação a assinatura de ambos os promitentes compradores, o que efetivamente não sucedeu.



13º - Pelo que as Rés foram negligentes e não foram diligentes, pelo que o seu comportamento é gerador de   responsabilidade   contratual, aliás o comportamento censurável do EE aliado ao comportamento negligente das Rés, não pode nem deve prejudicar os direitos da A., a não ser assim, estaríamos a premiar quer o EE (que se apresentou em nome de ambos pese embora sem poderes) , quer os das R., que não diligenciaram a verificar se efectivamente aquele tinha ou não poderes de representação da A.
14º - Ao que acresce, por outro lado, que a revogação contratual levada a cabo nos moldes sobreditos, não poderá de em todo, ser entendível como um acto de administração praticado por um dos cônjuges em nome do outro, para mais quando já não eram casados um com o outro.
15º - Se a ora Recorrente foi completamente alheia quer a revogação efectuada pelo EE com as Rés quer ao acordado entre aqueles, nenhuma culpa a Recorrente deverá ser assacada.
16º - Ao invés as Rés deveriam ser diligentes e actuar como um Bom Pai de Família era ter diligenciado pela assinatura do acordo de revogação com as rés ou terem verificado se efectivamene o EE tinha autorização da Recorrente ou se aquele tinha poderes em nome daquela.

17º - O desconhecimento da lei em nada poderá aproveitar às Rés, sendo certo que da matéria dada como provada resulta claro e evidente que em todo este moroso e longo processo aquelas (rés) foram sempre assessoradas por mandatário judicial pelo que decorre do senso comum que para um acordo de revogação com a entrega do montante de € 40 mil euros, o tenham sido.

18º-O acordo da entrega dos 40 mil euros foi feito entre as Rés e o EE e pese embora aquele tenha afirmado agir em nome próprio e da Autora, o certo é que aquele não estava munido de poderes para o fazer, facto que não poderia ser alheio às Rés.

19º- Da matéria dada como provada resulta que a A. tinha informado que o EE não tinha poderes para a representar, então competiria às rés terem sido diligentes  e  terem verificado  junto  da  ora  Recorrente  se  a mesma concordava com os termos do Acordo da Revogação.

20º - Era exigível as Rés terem verificado  se  o  EE dispunha  de poderes para   vincular   a   A.,   o   desconhecimento   da   lei,   reafirma-se,   em nada poderá beneficiá-las .

21º - Contrariamente ao que vem mencionado no Acórdão da Relação de Évora, todo o contexto factual que se encontra largamente descrito nos presentes  autos,   era   propício   para   que   as   Rés   fossem   diligentes   nesse sentido.

22º- Pelo que a conduta das mesmas será de censurar, à luz do critério
de um bom pai de família, tendo em conta as circunstâncias que se
encontram dadas como  provadas,   em que  a Recorrente    já    tinha informado que EE não a representava e onde quer a Recorrente quer o EE, enviavam em nome próprio correspondência às Rés e nunca em representação do outro.

23º- Advogado, primeiro, o Sr. Dr. FF e, depois, o Sr. Dr.
GG, portanto, conhecedores do regime jurídico das
declarações negociais, do mandato sem representação e da representação sem poderes, não há nada que justifique ou que possa aceitar como explicação adequada, aquela que a ré BB de, quando foi ouvida em declarações, na audiência de discussão e julgamento, ou seja, a de que desconhecia que o interveniente principal e autora se tinham divorciado.

24º- É que se o contrato-promessa havia sido celebrado com dois promitentes-compradores, não havia razão alguma para as rés concluírem que, para revogarem tal negócio jurídico, bastaria que apenas um deles o anunciasse, a não ser, talvez, que tivessem pensado que, por terem acertado        a revogação  com o            interveniente principal, eventualmente convencidas de que este ainda era  o   marido   da   autora, representaria    esta,    por    mero    vínculo    conjugal,    o    que    é    destituído    de qualquer fundamento legal.

25º- Seja como for, este comportamento, ainda  que   apenas   na   forma negligente,  é culposo,  porque  as  rés  não  tiveram  o  cuidado  de  negociar também        com a autora qualquer acordo de revogação do contrato-promessa dos autos,   nem de lhe dar pessoalmente conhecimento do teor da carta de 1 de Fevereiro de 2005 a que se refere a   resposta   ao   n.º   4   da   base   instrutória,   pelo   menos,   nada   foi   alegado nesse sentido.

26º - Pelo que face ao exposto será de concluir que as Rés incorreram em responsabilidade civil obrigacional perante a ora Recorrente, por estar patente o pressuposto da culpa.

27º - O contrato-promessa dos   autos   extinguiu-se   por   facto   imputável   às Rés que venderam o imóvel, antes de rescindirem o contrato promessa celebrado entre a A. e o EE.

28º-Pelo que assiste à A o direito de exigir das Rés, ao abrigo do art. 442º/2 do CC, o dobro do sinal prestado.

29º- Por conseguinte, incorreram as Rés na obrigação de indemnizarem a autora, porque não lograram ilidir     a     presunção     de     culpa,  pela  impossibilidade      de      celebração      do      contrato      prometido      em      que      se colocaram,   ao   terem   vendido   a   outra  pessoa,   o   imóvel   objeto   imediato daquela promessa.

30º- Pelo que dúvidas não restam  que  quanto  a essa  temática  deverá ser    de    manter a        douta    sentença    proferida    pelo    Tribunal    de    Primeira Instância, por ter havido o correto entendimento dos artigos    117 , 219, 220, 221 , 236, 237, 238 , 350,  405 , 406 , 410, 412, 442, 473 , 483, 487 ,512,    513,    516, 519 , 524,    528, 533, 534    a 538, 550 , 798, 799, 810, 1082 e seguintes do Código Civil, e 320 do C.P.C.

Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o Recurso, apresentado pela Recorrente, ser considerado procedente por   provado,  mantendo-se    na íntegra a sentença proferida pela 1ª instância.
Com o que se fará JUSTIÇA!!!»

             BB e outras, notificadas das alegações de Revista, apresentadas pela A., ora recorrente, vêm responder, formulando contra-alegações que se consideram aqui integralmente reproduzidas, nas quais concluem que o «Acórdão sob recurso interpretou e aplicou correctamente o direito aos factos dados como provados e nenhuma censura merece» e que manter a sentença é, para a A, ora recorrente, «um indevido enriquecimento».

           4. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Supremo Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na redação emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06, doravante designado apenas por CPC).

Sendo assim, as questões a discutir são as de saber se o incumprimento do contrato promessa foi, ou não culposo, e quais as consequências do incumprimento.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Fundamentação

            A – Matéria de facto dada como provada pelas instâncias:

1 – HH, na qualidade de primeiro outorgante, e a autora e EE, na qualidade de segundos outorgantes, na altura casados no regime de comunhão de adquiridos, celebraram, a 28.07.2000, o acordo escrito junto a fls. 14 (alínea A da matéria assente).

2 – Do acordo escrito em 1 constam as seguintes cláusulas:

Pelo primeiro outorgante “foi dito que é dono e legítimo possuidor de uma moradia em fase de construção, sita na ... no lote … com a área de 255 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... s/o n.º ... de ... e inscrito na matriz s/o n.º ....”

“1.º Nessa qualidade promete vender ao 2.º outorgante e este promete comprar livre de ónus e encargos a dita moradia (…), pelo preço de 34.500.000$00.

2.º No acto deste contrato o 2.º outorgante entregará ao 1.º outorgante a quantia de 8.000.000$00 (…), a título de sinal e princípio de pagamento.

3.º Em fim de dezembro o 2.º outorgante entregará um reforço de mais 3.500.000$00 (…).

4.º No acto da Escritura, a realizar até fins de fevereiro de 2001, o 2.º outorgante pagará o restante que é de vinte e três mil contos (…). (…)” (alínea B da matéria assente).

3 – No ato de assinatura do acordo referido em 1 e 2, a autora e o seu marido entregaram a HH a quantia de 8.000.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento, conforme cláusula 2ª do contrato promessa (alínea C da matéria assente);

4 – HH faleceu no dia 12 de agosto de 2001, tendo deixado como únicas e universais herdeiras as ora rés, BB, sua mulher, e CC e DD, suas filhas (alínea D da matéria assente);

5 – Em 20.06.2002, a autora enviou a missiva junta a fls. 15, dirigido ao Sr. Dr. FF, mandatário das rés à data, constando do mesmo o seguinte:

“(…) Tal como tinha escrito estou e como sempre estive na disposição de cumprir as obrigações decorrentes no contrato promessa supre referido e relativo a moradia sita na urb ..., lote …, Concelho de ....

E estou na disposição e condição de fazer a escritura quando lhe for possível.

Se por acaso da vossa parte não houver interesse de cumprir com o contrato estou disposta a ouvir uma proposta ou alternativa.

O meu marido não tem de modo algum a minha autorização, nem procuração da minha parte de anular o contrato ou alterar ou mesmo de receber o dinheiro da entrada (…).” (alínea E da matéria assente).

6 – Dr. II enviou à autora a missiva junta a fls. 17, datada de 22.06.2004, com o seguinte teor:

“Em 28 de Julho de 2000, outorgou, com HH, contrato promessa respeitante a uma moradia em construção, sita na ..., no Lote …, com a área de 255 m2, descrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º ..., de ..., e inscrito na matriz s/o n.º ....

A referida moradia encontra-se concluída, tendo sido emitida, em 10/10/2002, licença de utilização.

Por várias razões não foi possível efectuar a escritura até fins de Fevereiro de 2001, conforme previsto no referido contrato promessa, como é, aliás, do seu acordo e conhecimento.

Entretanto, em Agosto de 2001 faleceu HH, mas os seus herdeiros estão prontos a querem celebrar a escritura.

Em nome dos herdeiros de HH venho notificá-lo para celebrar até 15/07/2004 a escritura pública a que se refere o contrato promessa de 28 de Julho de 2000. (…)” (alínea F da matéria assente).

7 – A autora enviou ao Dr. II a missiva, junta a fls. 18, datada de 05.07.2004. com o seguinte teor:

“(…) Fiquei muito surpreendida ao receber no dia 04.07.04 uma carta do senhor que me é completamente desconhecido.

Até agora correspondemos com o senhor FF Advogado de Sr. BB.

Peço portanto que mande uma procuração original passada por a vendedora da moradia. (…)

Quero mais uma vez mencionar, que foi a sua cliente, que não cumpriu a promessa do contrato de compra e venda, e agora sem prévio aviso marca a escritura.

Apresente por favor a proposta junta enviada à sua cliente, para se possível, chegarmos a um acordo que seja prestável para ambas as partes (…).” (alínea G da matéria assente).

8 – Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º .../..., da Freguesia de ..., o prédio rústico – ..., composto por lote de terreno para construção urbana, n.º .., com os seguintes Averbamentos:

Av. ... – o lote passou a ter a área de 255 m2; confrontando do norte – lote 93; nascente – lote 99 e poente – caminho público.

Av. 02 – AP. ...– o prédio está inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....

Av. 03 – Ap. ... – foi construído um urbano de rés-do-chão e primeiro andar (alínea H da matéria assente);

9 – A ficha da Conservatória referida em 8 tem as seguintes inscrições:

G-2. Ap. ...– Aquisição – A favor de HH c.c. BB – comunhão de adquiridos, (..) por compra.

G-3 Ap. … – Aquisição – Provisória por natureza – art.º 92º, n.º 1, g) - a favor de AA c.c. EE – comunhão de adquiridos, (..) por compra.

G-3 An. ...– Caducou.

G-4 Ap. … – Aquisição – em comum e sem determinação de parte ou direito - a favor de BB, viúva (…), CC (…) e DD (…), por dissolução por morte da comunhão conjugal e sucessão hereditária.

G-5 Ap. … – Aquisição – Provisória por natureza – art.º 92º, n.º 1, g) - a favor de JJ (…) por compra.

G-5 Av.01- Ap. ... – Convertida (alínea I da matéria assente).

10 – Após a morte de HH, o Sr. Dr. FF passou a assessorar juridicamente as rés (alínea J da matéria assente).

11 – Por escrito particular denominado “contrato promessa de compra e venda”, a ré BB prometeu vender a JJ o prédio referido em 2 e 8 – cfr. documento de fls. 101 e 102 (alínea K da matéria assente).

12 – Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Concelho ..., em 17 de maio de 2005, as rés declararam vender o prédio referido em 2 e 8 a JJ, da mesma constando que a licença de utilização n.º ... foi passada pela Câmara Municipal de ... em 10/10/2002 – cfr. documento de fls. 104 a 110 (alínea L da matéria assente).

13 – O casamento da autora e EE foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 16 de setembro de 2004, transitada em julgado em 28 de outubro de 2004 (alínea M da matéria assente).

14 – Em 6 de novembro de 2000, a autora e o seu marido entregaram a HH a quantia de esc. 1.500.000$00 (resposta ao n.º 1 da base instrutória).

15 – Como reforço da quantia referida em 3 já entregue (resposta ao nº 2 da base instrutória).

16 – A autora e EE receberam a missiva junta a fls. 96, datada de 20/12/2004, subscrita pelo Dr. II, junta a fls. 18, datada de 05.07.2004 com o seguinte teor:

“(…) Por mandato dos herdeiros de HH e na sequência da minha carta de 22/06/2004, da vossa resposta de 29/06/2004, da minha carta de 09/11/2004 endereçada ao Sr. KK e perante o silêncio do Sr. Dr. LL, após a minha carta de 14/12/2004, venho notificá-los de que, não sendo a escritura realizada até ao dia 14 de Janeiro de 2005, o contrato promessa celebrado em 28/07/2000 com o falecido HH será havido como definitivamente incumprido” (resposta ao n.º 3 da base instrutória).

17 – EE subscreveu e enviou às rés a missiva junta a fls. 99, datada de 01.02.2005, com o seguinte teor


 

“(…) em virtude de problemas profissionais, não tenho como continuar com o contrato em vigor, reafirmando, por mim e pela outra outorgante que, como já transmitido por carta nossa e dos nossos advogados aos seus advogados, é nossa vontade rescindir o contrato, esperando que aceite esta nossa rescisão. Para nós desde que nos devolvam o sinal entregue, não queremos mais nada, seja em ao sinal, seja em relação à casa ou aos melhoramentos que vos pedimos para fazerem. Por tudo o exposto, venho por meio desta carta pedir a devolução do sinal, ficando o contrato desde já rescindido.” (resposta ao nº 4 da base instrutória).

18 – As rés e EE acordaram que o valor do sinal a devolver era de € 40.000 (resposta ao nº 5 da base instrutória).

19 – As rés devolveram a EE o valor de € 40.000 em 16.05.2005 (resposta ao nº 6 da base instrutória).

20 – O que este aceitou (resposta ao nº 7 da base instrutória).

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

A) A autora tinha conhecimento do referido em 17 a 20 dos factos provados.

B) A autora e EE habitaram o imóvel referido em 2 e 8 desde 2001 até novembro de 2004.

C) Sendo o valor locativo de tal imóvel de € 500 mensais.

D) À data do referido em 17 a 20 dos factos provados, as rés tinham conhecimento do referido em 13.

            B – Questões de direito

            Caráter culposo, ou não, do incumprimento do contrato-promessa e consequências desse incumprimento

            1. A recorrente invoca que as rés, vendendo a uma terceira pessoa o imóvel objeto da promessa de compra e venda celebrada em 28 de julho de 2000 pelo falecido marido da 1.ª ré e pai das  2.º e 3.ª rés, como promitente-vendedor, e a recorrente e o seu então marido, na qualidade de promitentes-compradores, incumpriram culposamente o contrato-promessa, pelo que lhe devem pagar o dobro do sinal, acrescido de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento, nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.

            A sentença de 1.ª instância deu razão à autora, condenando as rés a entregar à autora o dobro do sinal, 94.771,16 euros, considerando que se verificou uma situação de impossibilidade definitiva do contrato-promessa imputável às rés, que agiram com culpa, sob a forma de negligência, e que o acordo de revogação que estas celebraram com o interveniente principal, EE, ex-marido da autora, padecia de nulidade, por inobservância da forma legal, constituindo, de qualquer modo, res inter alios acta, em relação à autora, que não tomou parte neste acordo revogatório, nem foi nele representado, nem consta dos factos provados que o tenha ratificado.

Já o acórdão recorrido declarou a nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, entendendo o seguinte:

«Quer no julgamento da ação, quer no da reconvenção, a sentença ignorou, pura e simplesmente, a existência do ex-marido da autora, EE, centrando-se exclusivamente nos direitos e deveres da recorrida AA. Nomeadamente, as recorrentes foram condenadas a pagarem a quantia de € 94.771,16, a título de restituição do sinal em dobro, acrescida de juros de mora, apenas à recorrida AA, o mesmo tendo acontecido relativamente à reconvenção, da qual apenas esta recorrida foi absolvida. Num e noutro casos, a sentença recorrida omitiu

qualquer referência aos direitos e deveres do recorrido EE, não obstante este, por efeito da admissão da intervenção principal provocada, também ser autor. Com essa omissão, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 320.º do CPC, o qual dispõe que, nas hipóteses de intervenção principal provocada, a sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado».  

Para além disto, que não impediu o tribunal recorrido de julgar o recurso de apelação por conter o processo todos os elementos necessários para o efeito, entendeu o Tribunal da Relação que o acordo revogatório não vincula a autora, agora recorrente, pois estamos perante uma revogação celebrada entre um dos promitentes-compradores e as sucessoras do primitivo promitente-vendedor, na qual a outra promitente compradora, a agora recorrente, AA, não interveio, pessoalmente ou através de representante, não podendo, portanto, ser afetada pela revogação. Este acordo de revogação seria, portanto, nulo por violação de norma imperativa (artigo 406.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 294.º, ambos do Código Civil). O Tribunal da Relação reconheceu, tal como a sentença de 1.ª instância, que a autora, AA, tem direito a que se mantenha inalterada a situação jurídica que para si resultou da celebração do contrato-promessa de compra e venda, não obstante a aludida revogação. Contudo, entendeu estar ilidida a presunção de culpa das rés consagrada no artigo 799.º, n.º 2, do Código Civil, por terem estas confiado na seriedade do ex-marido da autora, que afirmara atuar em nome da mulher, e assim terem vendido o imóvel a terceiro na convicção de que o contrato promessa ficara revogado. Concluiu assim o acórdão recorrido que o contrato promessa se tinha extinto por impossibilidade superveniente de cumprimento não imputável às rés, nos termos dos artigos 791.º e 795.º do Código Civil, tendo estas apenas de restituir o sinal em singelo aos promitentes compradores, no valor de 47.385,80 euros. Partindo da premissa da divisibilidade desta obrigação e do facto de não vigorar a regra da solidariedade, ativa ou passiva, da obrigação de restituição do sinal em singelo, por falta de norma legal nesse sentido, o tribunal recorrido classificou a obrigação de restituição do sinal em singelo como parciária, ativa e passivamente, decidindo que cada credor tem direito a receber a sua quota-parte do crédito e cada devedor

apenas está adstrito ao cumprimento da sua quota-parte do débito. Sendo assim, condenou as rés, agora recorridas, a restituir à autora, agora recorrente, metade do sinal em singelo, 23.692,90 euros, sendo cada uma das três rés responsável pelo pagamento de € 7.897,63, euros.
Relativamente ao ex-marido da autora, como as rés já lhe entregaram € 40.000, a título de restituição do sinal em singelo, em execução de uma revogação contratual nula, concluiu-se que o ex-marido da autora recebeu mais € 16.307,10 do que aquilo a que tem direito, pelo que está obrigado a restituir esta quantia às recorrentes a título de enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473.º, n.ºs 1 e 2, 476.º e 479.º, n.ºs 1 e 2. O interveniente principal, EE, ex-marido da autora, foi, assim, condenado a entregar a quantia de € 5.435,70 a cada uma das rés.    
            2. A autora, agora recorrente, discorda desta solução e alega que, tendo sido alheia à revogação do contrato-promessa de que era parte, efetuada pelo ex-marido, e às cláusulas da mesma, não poderá vir a ser prejudicada por esse acordo. Invoca a favor da sua tese que as rés estavam assessoradas juridicamente no momento da celebração do acordo revogatório com o seu ex-marido, que este não tinha poderes para a representar, que estas tinham obrigação de saber da falta de legitimidade deste para celebrar o acordo de revogação e que, entregando a este o dinheiro do sinal, agiram com negligência, não tendo conseguido ilidir a presunção de culpa que sobre elas recai como devedoras, nos termos do artigo 799.º, n.º 2, do Código Civil. Mais afirma que sempre a Autora e o Interveniente Processual enviaram em nome próprio missivas aos mandatários das Rés, o que não é um procedimento usual num casal que viva sem conflitos, pelo que teria sido diligente que as Rés se tivessem certificado que o seu ex-marido tinha poderes para a vincular ou autorização para atuar em seu nome, o que não fizeram, incorrendo em responsabilidade contratual. Acresce que o desconhecimento da lei não lhes poderá aproveitar e não havia razão alguma para que acreditassem que o acordo de revogação, subscrito apenas pelo interveniente principal, era válido, quando o contrato promessa foi assinado por dois promitentes-compradores, pelo que assiste à autora o direito de exigir das rés, ao abrigo do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, o

dobro do sinal prestado.
            3. As rés, nas contra-alegações, afirmaram que desconheciam o divórcio e que deram como boas as declarações do ex-marido da ré de que atuava em nome dos dois, defendendo que agiram sem culpa e de acordo com os princípios da boa fé e da confiança cujo conteúdo exato terá de ser determinado em face das várias situações concretas. Entendem as rés, que, na medida em que restituíram, de imediato, o sinal em singelo ao ex-marido da autora, julgando que ele atuava em nome de ambos os cônjuges, revelaram diligência e esforço em cumprir e atuaram com correção e boa vontade, em face das circunstâncias. Pugnam portanto pela manutenção do acórdão recorrido, que entendeu que «Ilide a presunção de culpa estabelecida no n.º l do artigo 799.º do Código Civil o promitente-vendedor que demonstra que apenas vendeu o bem a terceiro porque, mercê da atuação enganosa de um dos promitentes-compradores, que o determinou, nomeadamente, a devolver o sinal em singelo, ficou convencido de que o contrato-promessa fora validamente revogado». Afirmam, ainda, as rés, que a satisfação da pretensão da autora à devolução do sinal em dobro, sem sequer considerar o que foi já entregue ao seu ex-marido, representaria sempre um indevido enriquecimento.  
4. Nos termos da matéria de facto provada, HH (substituído, por via sucessória, pelas suas herdeiras, agora rés), na qualidade de primeiro outorgante, e a autora e EE, na qualidade de segundos outorgantes, na altura casados no regime de comunhão de adquiridos, celebraram, em 28 de julho de 2000, um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel (facto provado n.º 1), referido nos factos n.ºs 2 e 8.
Por escrito particular denominado “contrato promessa de compra e venda”, a ré BB prometeu vender a JJ o citado prédio (facto provado 11) e, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial do Concelho ..., em 17 de maio de 2005, as rés declararam vender o citado prédio a JJ (facto provado n.º 12).

Verificou-se, assim, em 17 de maio de 2005, uma transmissão da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel, um efeito jurídico essencial da compra e venda, a

par das correspetivas obrigações de entrega da coisa, objeto mediato do negócio, a cargo do vendedor, e de pagamento do preço, a que se vincula o comprador, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 874.º e 879.º do Código Civil.

Este imóvel é o mesmo que havia sido prometido vender à autora, agora recorrente.

As rés deixaram, assim, de poder cumprir com a promessa de compra e venda celebrada em 28 de julho de 2000, uma vez que a mesma tinha por objeto mediato um imóvel sobre o qual perderam todos os poderes de disposição e alienação, com a transferência do direito de propriedade sobre o imóvel para a esfera jurídica de uma terceira pessoa, operada por mero efeito da celebração da compra e venda (artigos 408.º, n.º 1 e 879.º, n.º 1, do Código Civil), a que se refere o n.º 12 da matéria de facto provada.

Uma vez que a autora não interveio no acordo de revogação celebrado entre as rés e o seu ex-marido, de quem se divorciou em 2004, nem este apresentou qualquer procuração que o legitimasse a celebrar o referido acordo em nome da autora, ou qualquer autorização desta para o efeito, estamos perante um negócio jurídico ineficaz em relação à autora, por ter sido celebrado por um representante sem poderes, nos termos do artigo 268.º, n.º 1, do Código Civil.

Este regime jurídico implica uma cisão entre as posições dos dois promitentes-compradores, pois, permanecendo o acordo revogatório eficaz nas relações entre o ex-marido da autora e as rés, fica aquele desvinculado do contrato-promessa, verificando-se uma modificação subjetiva do contrato, que passaria a vincular apenas a promitente-compradora com a obrigação de celebrar o contrato-prometido e de pagar a totalidade do preço. Este regime jurídico não é assim o mais adequado a enquadrar juridicamente o caso dos autos, como entendeu o acórdão recorrido.

Na verdade, na presente situação jurídica existe ainda um vício substancial mais grave, que é o da nulidade por violação de normas imperativas (artigos 406.º, n.º 1, e 294.º, ambos do Código Civil), que se sobrepõe ao regime da ineficácia relativa, pelo que o citado negócio não produz, ab initio, nenhum dos efeitos jurídicos a que tendia

nas relações entre as partes e em relação a terceiros (com o limite da proteção do terceiro adquirente de boa fé, para quem aceite a aplicação analógica do artigo 291.º do Código Civil). Tudo se passa, em virtude da eficácia retroativa da declaração de nulidade, como se o negócio revogatório nunca tivesse sido celebrado, mantendo-se assim a força vinculativa do contrato-promessa em relação a todos os outorgantes.

Em virtude da nulidade deste acordo de revogação, a alienação do imóvel a terceiro consistiu num incumprimento definitivo do contrato promessa.

A venda a terceira pessoa do imóvel, que constituiu o seu objeto mediato, corresponde a uma vontade séria, categórica e inequívoca de não outorgar o contrato definitivo, pelo que integra uma das formas de incumprimento definitivo. Com este comportamento as promitentes-vendedoras tornaram patente, certa e segura a sua intenção de não cumprir a promessa e impossibilitaram a realização do contrato prometido pretendida pela autora, sob pena de celebrarem um negócio nulo, por consistir numa venda de um bem alheio (artigo 892.º do Código Civil).

Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de maio de 2008, «A alienação consumada a terceiro do bem objecto mediato do contrato-promessa de compra e venda, na vigência deste, por banda do promitente vendedor, manifestando uma absoluta e inequívoca intenção de o contrato repudiar, deve conduzir a ter-se aquele como definitivamente incumprido pelo predito contratante, sem necessidade de prévia interpelação ou de notificação admonitória, as quais, em tais circunstâncias, não constituiriam, senão, actos inúteis, meras perdas de tempo» - No mesmo sentido, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5.12.2009, de 09.03.2010, de 28.06.2011 e de 25.10.2012, todos disponíveis para consulta in http://www.dgsi.pt).

As instâncias entenderam que as comunicações descritas nos factos provados n.º 6 e 16, em que as rés intimavam a autora e o seu marido a marcar a escritura e a celebrar o contrato prometido, não observaram os requisitos de uma interpelação admonitória, nos termos do artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil, desde logo porque não havia ainda mora, nem se fixou dia, hora e local para a outorga da escritura. Estas declarações não

foram portanto suscetíveis de dar origem a uma situação de incumprimento definitivo por parte dos promitentes-compradores, que legitimasse a atuação das rés, questão que, não tendo sido colocada na presente revista, também não integra o objeto do recurso, mantendo-se este entendimento como pressuposto da decisão a tomar.

5. A questão controversa, no caso vertente, é a de saber se este incumprimento definitivo é culposo, na modalidade de negligência ou violação de regras de cuidado, ou se não é culposo, com a distinta repercussão nas consequências da violação do contrato de promessa: se valorarmos a conduta das rés como culposa, estamos perante uma situação de impossibilidade definitiva de cumprimento do contrato-promessa imputável às recorrentes, geradora de responsabilidade contratual em relação à autora, que dá lugar ao dever de restituição do sinal em dobro, nos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, tal como decidiu o tribunal de 1.ª instância; se entendermos que as rés atuaram sem culpa, porque convencidas da validade e eficácia da revogação do contrato promessa em relação à autora, a obrigação de restituir abrange apenas o sinal singelo, como decidiu o acórdão recorrido.

 

            Quid iuris?

           

            A responsabilidade contratual, embora subordinada aos pressupostos comuns a todas as formas de responsabilidade – ato ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano – resulta da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei. Mas, tal como afirma o Supremo Tribunal de Justiça, nos Acórdãos, de 07-02-2017 (processo nº 4444/03.8TBVIS.C1.S1) e de 02-05-2019 (processo n.º 14647/14.4T8LSB.L1.S1), ao contrário do que acontece com a responsabilidade extracontratual, que é fonte autónoma da obrigação de indemnizar, a responsabilidade contratual é apenas condição modificativa da obrigação de prestar em obrigação de indemnizar, mas a obrigação é a mesma.

De acordo com o disposto no artigo 801.º, n.º1, do Código Civil, sempre recairia sobre o devedor – no caso vertente sobre as rés – o encargo da prova da ausência de culpa, em face da presunção legal estabelecida no artigo 799.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.

Para afastar a presunção de culpa carece o devedor de alegar e demonstrar a existência, no caso concreto, de circunstâncias especiais ou excecionais que eliminem a censurabilidade da sua conduta.

Nos termos de jurisprudência uniforme e sedimentada “Compete ao devedor ilidir a presunção de culpa que sobre si impende no incumprimento contratual, ficando tal presunção ilidida se conseguir provar que actuou com a diligência devida (numa perspectiva de actuação diligente que a boa fé sempre supõe). Sem necessidade de alegação de factos, por banda do credor, que demonstrem a culpa do devedor” (cf. Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 13-09-2012, proc. n.º 4339/07.6TVLSB.L1.S2).

Cabe, pois, ao devedor demonstrar que não teve culpa na violação do vínculo obrigacional, ou seja, que não pode ser pessoalmente censurável o facto de não ter adotado o comportamento devido, o que sucederá, como é tradição jurisprudencial e doutrinal, sempre que esse não cumprimento seja devido a facto do credor, de terceiro, a caso fortuito ou de força maior. Contudo, estas categorias não são as únicas hipóteses em que podemos estar perante uma causa de desculpação do devedor.

O grau de diligência exigido à contraparte do negócio celebrado pelo falso procurador na averiguação dos poderes deste depende das circunstâncias do caso, devendo entender-se que nem sempre a omissão da exigência de justificação dos poderes constituirá a contraparte em culpa, por força, por exemplo, dos usos gerais vigentes num certo domínio.

Embora não exista no nosso ordenamento jurídico qualquer princípio geral de tutela da aparência ou da confiança, aplicável sem a mediação de normas que protejam a confiança ou institutos jurídicos que para ela remetam, nem é nesta sede que será tratada a questão jurídica a dirimir, mas em sede de culpa contratual das promitentes-

‑vendedoras no incumprimento definitivo do contrato-promessa, há que ter em conta na aplicação das normas jurídicas aos factos do caso, e nos juízos de ponderação sempre envolvidos neste processo, não só os interesses do representado na proteção da sua autonomia privada, como também os interesses dos terceiros que de boa fé confiaram na aparência criada pelo falso procurador e fizeram um investimento nessa confiança.

Para decidir se é ou não de atribuir relevância, como causa de exclusão da culpa, ao alegado pelas rés de que agiram na convicção de que o ex-marido da autora tinha poderes para negociar em nome desta, o julgador deve recorrer aos critérios estipulados no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, para os quais remete o artigo 799.º, n.º 2, do mesmo diploma, norma que faz coincidir os critérios de culpa aplicáveis à responsabilidade extracontratual e à responsabilidade contratual.

Nos termos da jurisprudência deste Supremo Tribunal, o critério de apreciação da culpa no contexto da responsabilidade extracontratual reveste-se de uma natureza objetiva e reporta-se a um padrão normativo, que se traduz numa atitude de cautela e de ponderação na gestão da vida social, destinada a evitar a lesão:


«O juízo de culpabilidade gerador de responsabilidade civil assume uma feição objectiva, por referida a um padrão normativo eleito pela ordem jurídica, como mediador ou referência de imputação valorativa ético-normativa. A censura opera-se, para este fim, pela referência prudencial ou avisada que todo o indivíduo deve assumir, na gestão da sua vivência societária, onde o feixe de riscos e de situações passíveis de gerar perigos é constrangedor da assumpção de uma atitude de cautela, ponderação e razoabilidade. A previsão ou prognose de situações potenciadoras de um risco ou de factores exógenos que se perfilam como geradores de perigo devem ser cautelarmente avaliados e prefigurados, intelectivamente, de modo a que o agente assuma perante essa situação concreta um comportamento conducente a evitar a violação de direitos pessoais ou patrimoniais ou regras legais impostas para evitar a consumação de danos na esfera de outrem». (cf. Acórdão de 05-07-2017, proc. n.º 4861/11.0TAMTS.P1.S1).

Na densificação do conceito legal do «bom pai de família», temos de ter em conta, em primeiro lugar, a atualização terminológica, valorativa e social deste conceito para o de «pessoa média», que pode ser de ambos os géneros, masculino ou feminino, e o que deve ser a sua conduta, tal como a da generalidade das pessoas, quando participa no tráfico jurídico no contexto em que o faz.

Em segundo lugar, o critério de apreciação da culpa do devedor é um critério objetivo e abstrato, aferido por referência a um padrão de conduta, ou seja, a uma conduta habitual de uma pessoa média ou normal. Neste sentido, não basta para excluir a culpa das rés a sua convicção ou representação mental subjetiva, sendo necessário indagar qual seria a conduta da generalidade das pessoas colocadas naquela situação.

Estando afastado um critério subjetivo e concreto na apreciação da censura dirigida ao devedor ou devedora, ainda assim é forçoso ter em conta as circunstâncias do caso, para apurar a conduta exigível a uma pessoa média, de forma a imputar os danos ao devedor nos casos em que a sua diligência habitual seja inferior à média.

No caso vertente, as rés já pagaram a um dos promitentes-compradores um valor de 40.000,00 euros, próximo do montante do sinal singelo, e a promitente-compradora, por desconhecer este facto, pede a sanção habitual no incumprimento do contrato-promessa – o dobro do sinal.

Em regra, no regime jurídico do contrato-promessa, o credor tem o direito potestativo de fazer sua a coisa entregue como sinal ou o direito subjetivo de exigir a restituição do sinal em dobro, independentemente de os danos efetivos serem inferiores ou superiores ao sinal.

Um setor da doutrina defende, em sede de responsabilidade contratual, que, nos casos em que da aplicação dos critérios da culpa em abstrato e da culpa como deficiência da conduta resultem consequências injustas e desadequadas para o devedor, p. ex. uma indemnização manifestamente excessiva, o julgador pode corrigir essa injustiça ou desproporção dos resultados, aplicando à responsabilidade contratual o princípio da limitação equitativa da indemnização previsto no artigo 494.º do Código Civil (cfr. Pinto de Oliveira, ob. cit., pp. 460-461), embora esta posição não seja consensual na doutrina e não costume ser seguida pela jurisprudência.

Assim, não sendo possível a redução equitativa da indemnização, deve considerar-se que, por força da remissão do artigo 799.º, n.º, 2 para o artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, são aplicáveis à responsabilidade contratual os graus de culpa oriundos da responsabilidade civil extracontratual: culpa grave, leve e levíssima.

A culpa leve é considerada como o limiar da responsabilidade civil: em regra o agente (o devedor) responde pela culpa leve ou pela culpa grave, mas não responde pela culpa levíssima, porque a culpa levíssima «não é, para a lei, verdadeira culpa e portanto não pode constituir o devedor em responsabilidade civil» (cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra, 1997, p. 356).

Na falta de culpa, o devedor não incorre em responsabilidade contratual, mas cabe-lhe demonstrar a ausência de culpa no incumprimento, por força da presunção de culpa consagrada na lei (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil).

6. No quadro jurídico acima descrito, para apreciar a culpa das rés no incumprimento da obrigação e qual o seu grau de culpa, ou se estas conseguiram ilidir a presunção de culpa, o julgador deve questionar-se qual teria sido a conduta da generalidade das pessoas, medianamente capazes e experientes, no contexto do caso dos autos, sem aceitar desleixos, mas sem ceder ao que seria o padrão de uma pessoa ideal, excecionalmente cuidadosa.

Da matéria de facto (facto provado n.º 17) resulta que o ex-marido da autora se apresentou perante as rés, promitentes-vendedoras, como representante da autora, afirmando que “(…) em virtude de problemas profissionais, não tenho como continuar com o contrato em vigor, reafirmando, por mim e pela outra outorgante que, como já transmitido por carta nossa e dos nossos advogados aos seus advogados, é nossa vontade rescindir o contrato, esperando que aceite esta nossa rescisão. Para nós desde que nos devolvam o sinal entregue, não queremos mais nada, seja em ao sinal, seja em relação à casa ou aos melhoramentos que vos pedimos para fazerem” (realce nosso).

Ora, o acordo de revogação do contrato-promessa, que teve origem na declaração do ex-marido da autora datada de 1 de fevereiro de 2005 (em data anterior à venda do imóvel, em 17 de maio do mesmo ano), apesar de nulo, existiu no plano dos factos e por causa desse acordo, em cuja validade e eficácia as rés confiaram, estas

entregaram ao ex-marido da autora 40.000,00 euros e convenceram-se que ficaram desoneradas do dever de celebrar o contrato prometido.

Neste circunstancialismo factual, que induziu e fundamentou a confiança das rés, é compreensível que estas tenham agido na convicção de que o falso representante agia em nome da autora, sem equacionar mentalmente sequer a possibilidade de, com a celebração do contrato definitivo com um terceiro, lesarem os interesses e direitos da autora. É certo que, conforme afirma a recorrente, da matéria de facto resulta que as rés dispunham de mandatários que enviavam cartas aos promitentes-compradores em nome delas, ou que respondiam às cartas da recorrente (factos provados n.ºs 6 e 16), deduzindo-se, portanto, que estas beneficiavam de assessoria jurídica, como também decorre do facto provado n.º 10. Contudo, a carta enviada pelo ex-marido da autora (facto n.º 17), datada de 1-02-2005, não foi dirigida ao mandatário das rés, mas diretamente a estas, que acordaram com aquele o valor do sinal e lho entregaram em 16-05-2005 (factos n.ºs 18 e 19), não decorrendo da matéria de facto, relativa ao acordo de revogação e à entrega do sinal, que tivesse havido intervenção do advogado das rés nesta fase.

Mas é importante ponderar ainda outro argumento da recorrente: a carta referida no facto provado n.º 5, datada de 20-06-2002, enviada pela autora ao mandatário das rés, na qual a autora afirma que “O meu marido não tem de modo algum a minha autorização, nem procuração da minha parte de anular o contrato ou alterar ou mesmo de receber o dinheiro da entrada (…).”

 Este argumento enfraquece a tese das rés.

Contudo, esta carta data de 20-06-2002 (mais de três anos antes da carta em que o ex-marido da autora se apresentou como procurador desta) e não foi dirigida às rés, mas ao mandatário destas, Dr. FF (facto provado n.º 5), desconhecendo-se se as rés tiveram acesso a esta carta e se estavam conscientes do seu conteúdo no momento em que acordaram a revogação do contrato promessa. Dispondo estas, após a morte do marido da 1.ª ré, da assessoria jurídica de um mandatário que comunicava com

a autora e seu marido (facto provado n.º 10), podem não ter acompanhado a troca de cartas entre estes, nem tomado conhecimento do seu conteúdo.

É fundamental, para aferir da culpa das rés, por um lado, ter em conta a distinção entre ilicitude e culpa, que, apesar de não ser consensual na doutrina, consiste na conceção dominante à qual agora aderimos, rejeitando assim o conceito amplo da faute no direito francês, que abrange ilicitude e culpa na mesma categoria conceitual. 

No domínio da ilicitude tem que se entender que sendo o acordo de revogação do contrato-promessa nulo, a venda do imóvel a um terceiro consiste num ato ilícito, na medida em que as rés estavam vinculadas ao contrato-promessa. Mas daí não decorre necessariamente, num sistema em que ilicitude e culpa são categorias autónomas, que a conduta das rés seja culposa.

A questão coloca-se de forma distinta no plano da culpa, em que assumem um papel decisivo as circunstâncias e contextos específicos do caso concreto. Assim, assume uma relevância decisiva a compreensão do contexto em que se encontravam as rés em relação ao promitente-comprador (ex-marido da autora) e a crença daquelas, por este suscitada, de que atuava em nome da autora.

A modalidade de culpa invocada pela autora, agora recorrente, é a da negligência, em que está em causa um resultado que não foi querido, mas o agente responde por não ter adotado o cuidado ou a diligência exigível para o evitar.

O cuidado exigível deve analisar-se, segundo a doutrina, em dois: em cuidado interior e em cuidado exterior (cf. Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, p. 430; Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moreira, “Anotação ao artigo 799.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Direitos das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p.1109)

Esta distinção assume relevo para compreender o caso concreto e consiste no seguinte: O cuidado exterior refere-se à adoção de uma conduta conforme aos deveres decorrentes das normas jurídicas, escritas ou não escritas, que se destinam a conformar a atividade do devedor dentro de padrões qualitativos determinados vigentes para esse mesmo setor ou tipo de atividade (cfr. Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, ob. cit.,

p. 1109) ou através das quais se exige que o agente atue de forma a evitar a concretização de riscos para os bens jurídicos, para os direitos ou para os interesses do lesado (Pinto de Oliveira, ob. cit., p. 430).  

O cuidador interior engloba, segundo Pinto Oliveira e os autores alemães citados (Pinto Oliveira, ob. cit., p. 430, nota 514) duas componentes: 1) a componente intelectual, que se reporta ao conhecimento das normas; 2) a componente emocional e volitiva que diz respeito à conformação do espírito e da vontade em termos suscetíveis de conduzir a uma conduta consonante com as normas.

A ilicitude consiste na desconformidade com o cuidado exterior, isto é, na violação dos deveres que o constituem.

Quem age com o cuidado exterior não deve responder pelos danos por si provocados – a sua conduta não é ilícita; quem age sem cuidado exterior, mas com cuidado interior, também não – a conduta é ilícita, mas não é culposa.

A culpa integra, assim, o cuidado interior, e está em causa a apreciação da diligência adotada na atitude, orientada para os deveres de cuidado, impostos ao devedor. A violação do cuidado interior presume-se e é ao devedor que cabe provar que teve uma atitude diligente ou que se verificou uma causa de exclusão da culpa.

No caso presente, está demonstrada a falta de cuidado exterior (no plano da ilicitude), na medida em que as rés não exigiram ao promitente-comprador uma procuração ou uma autorização que lhes permitisse atuar em nome da autora, à data da celebração do acordo de revogação já divorciada daquele. O facto de as rés não conhecerem o divórcio não importa para este efeito, pois mesmo que os promitentes-compradores estivessem ainda casados, seria de qualquer forma necessária, do ponto de vista legal, a apresentação, pelo marido, de uma procuração da mulher a conferir-lhe poderes para revogar o contrato-promessa. A lei não concebe o vínculo matrimonial como uma relação jurídica, suscetível de conferir a um dos cônjuges o poder de representar o outro, nem uma errada convicção das rés a este propósito exclui a ilicitude ou a culpa.

Contudo, no plano da culpa, tem relevância a convicção das rés de que a autora tinha consentido na revogação do contrato promessa, convicção decorrente da circunstância de os promitentes-compradores serem casados entre si no momento das negociações e da celebração do contrato promessa, bem como nos momentos subsequentes ligados à execução do contrato, e, sobretudo, da afirmação expressa feita pelo ex-marido da autora de que atuava em nome da mulher, desconhecendo as rés o divórcio entretanto verificado (setembro de 2004). Na verdade, o que se verificou, conforme entendeu o acórdão recorrido, foi que o ex-marido da autora atuou à revelia desta e, dolosamente, enganou as rés, de forma a que estas lhe entregassem uma quantia a que não tinha direito e a seguir praticassem um ato que as prejudicava, na medida em que as fez incorrer em responsabilidade civil, sem que disso tivessem consciência.  

 Sendo assim, a circunstância de o ex-marido da autora ter expressamente afirmado agir em representação desta, num quadro sociológico em que geralmente os cônjuges estão de acordo nestas questões e no contexto de uma relação contratual que durava há quase cinco anos, fez com que as rés, tal como sucederia com a generalidade das pessoas medianamente cuidadosas, confiassem nas declarações do ex-marido da autora, não sendo exigível que suspeitassem da falta de honestidade do seu comportamento e lhe pedissem o comprovativo da autorização da autora, agora recorrente.

 Estas circunstâncias, no seu conjunto, apontam para a desculpabilização do comportamento das rés.

Sendo assim, decide-se que, no quadro factual dos autos, ficou ilidida a presunção de culpa decorrente do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, não incorrendo as rés em responsabilidade contratual perante a autora, por faltar o pressuposto da culpa.

  Confirma-se, portanto, o decidido no acórdão recorrido, e declara-se que o contrato promessa dos autos se extinguiu por impossibilidade superveniente de cumprimento não imputável às rés, nos termos dos artigos 791.º e 795.º do Código Civil.

 

7. Relativamente às consequências indemnizatórias decorrentes da impossibilidade superveniente de cumprimento não imputável às rés, agora recorridas, confirma-se também o acórdão da Relação, por traduzir uma solução decorrente da lei e da ideia de justiça como equilíbrio e concordância prática entre interesses opostos.

 Condena-se, portanto, as rés a pagar à autora e ao interveniente principal, promitentes-compradores, o sinal singelo, no valor de 47. 385, 80 euros, acrescido de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento, e o interveniente principal, por sua vez, a restituir às rés a quantia de 40.000,00 euros, que este indevidamente recebeu em execução do acordo revogatório nulo, aceitando-se entre as rés e o interveniente principal a compensação das obrigações respetivas.

Conforme entendeu o acórdão recorrido, atenta a pluralidade de credores e de devedores da obrigação de restituição do sinal singelo, e tendo em consideração a natureza divisível desta obrigação, o tribunal recorrido classificou-a como parciária, pois, por força do artigo 513.º do Código Civil, inexistindo norma legal ou estipulação das partes que estabeleça a solidariedade, ativa ou passiva, da obrigação de restituição do sinal em singelo, impõe-se concluir que esta obrigação é parciária, ativa e passivamente, o que significa que cada credor apenas tem direito a receber a sua quota-parte do crédito e cada devedor apenas está adstrito ao cumprimento da sua quota-parte do débito. A determinação da quota-parte de cada devedor e de cada credor faz-se de acordo com o disposto na primeira parte do artigo 534.º do Código Civil: são iguais as partes que têm na obrigação divisível os vários credores ou devedores, pois inexiste lei ou  convenção das partes de que resulte proporção diversa.   

Aceita-se, assim, que o pagamento que as rés fizeram ao interveniente principal na sequência do acordo revogatório nulo não tem eficácia liberatória em relação à autora, e que as rés devem pagar diretamente à autora o valor de € 23.692,90, equivalente a metade do sinal singelo, sendo cada uma delas responsável por um terço desse valor, € 7.897,63.

 O interveniente principal, ex-marido da autora, também tem direito a metade do sinal singelo, contudo, como as rés já lhe entregaram € 40.000, a título de restituição do

sinal em singelo, em execução de uma revogação contratual nula, este valor será imputado na dívida das rés de restituição de metade do sinal singelo. Atenta essa imputação, conclui-se que o ex-marido da autora recebeu mais € 16.307,10 do que que aquilo a que tem direito, pelo que está obrigado a restituir esta quantia às rés a título de enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473.º, n.ºs 1 e 2, 476.º e 479.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, conforme peticionado na reconvenção pelas rés. O ex-marido da autora deverá, assim, ser condenado, tal como decidiu o acórdão recorrido, a entregar a quantia de € 5.435,70 a cada uma das três rés. 

Sobre todas as quantias em dívida, as rés e o interveniente principal são devedores de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde as datas em que foram citados, nos termos dos artigos 805.º, n.º 1, e 806.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, até efetivo e integral pagamento.

III – Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 26 de novembro de 2019


Maria Clara Sottomayor (Relatora)


Alexandre Reis


Pedro de Lima Gonçalves