Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
898/19.9T8PTL.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO FACULTATIVO
NEGÓCIO FORMAL
LIBERDADE CONTRATUAL
APÓLICE DE SEGURO
FORMALIDADE AD PROBATIONEM
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
INTEGRAÇÃO DO NEGÓCIO
ÓNUS DA PROVA
SEGURADORA
NEXO DE CAUSALIDADE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Tratando-se de um seguro facultativo, ramo vida, cabe na autonomia contratual das partes a liberdade de o celebrar ou não, bem como, ressalvadas eventuais normas imperativas, de definir, nomeadamente, o respectivo âmbito de cobertura.

II. Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, o contrato de seguro deixou de ser qualificado como um contrato formal, no sentido de ser condição de validade a adopção de determinada forma (artigo 220,º do Código Civil); a formalização na apólice que o n.º 2 do artigo 32.º do RJCS impõe ao segurador passou antes a ser considerada como requisito de prova.

III. À interpretação de uma cláusula de exclusão que figura nas condições gerais, sem haver prova de que tenha sido resultado de negociação individualizada, aplicam-se as normas definidas pelo Código Civil para a interpretação dos negócios jurídicos em geral (artigo 236.º e segs) e as normas sobre interpretação de cláusulas contratuais gerais, constantes do Decreto-Lei n.º 446/85, de 15 de Outubro.

IV. O artigo 10.º da LCCG obriga a interpretar tais cláusulas no contexto do contrato concreto em que se incluam; sendo ambíguo o seu sentido, prevalece o que for favorável ao aderente (artigo 11.º).

V. Devendo ser interpretada a referida cláusula no sentido de que apenas se exclui da cobertura do contrato a morte resultante de acidente causado por excesso de álcool, não bastando a prova da mera coincidência temporal entre a causa do sinistro e esse excesso para afastar os efeitos do contrato de seguro, a falta de prova do nexo de causalidade implica que a acção seja julgada contra a seguradora, a quem incumbia o ónus da prova.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA e seu filho menor BB, representado por sua Mãe, instauraram uma acção contra Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. pedindo que a ré fosse condenada no pagamento do “capital seguro contratado, de 50 000,00 €” com CC, falecido num acidente de viação. Para o efeito, e em síntese, alegaram ser beneficiários do contrato de seguro e dever ser excluída do contrato a cláusula invocada pela ré para não proceder ao pagamento requerido – exclusão da cobertura de “qualquer acção ou omissão em que – coincidentemente – o segurado acuse taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/litro” –, seja por não ter sido comunicada ao segurado, seja por se tratar de uma cláusula abusiva.

A ré contestou, sustentando, por entre o mais, que o acidente “ficou a dever-se ao facto de o infeliz CC conduzir sob o efeito do álcool”, ter a autópsia revelado uma taxa de 0,78 g por litro de sangue, ter sido comunicada e explicada a cláusula de exclusão e constar do boletim de adesão, assinado pelo segurado, a comunicação e a prestação de todos os esclarecimentos devidos, nomeadamente as cláusulas de exclusão da “garantia da apólice”.

A acção foi julgada improcedente pela sentença de fls. 66:

“In casu, está em causa a comunicação para efeitos de eficácia ou validade do comportamento contratual; não está em causa a comunicação para efeitos de boa-fé ou licitude do mesmo comportamento.

No caso dos autos sabemos que a cláusula de exclusão existia, e apurou-se que foi comunicada, tanto mais que inclusive o segurado ainda quis incluir nas cláusulas do contrato a situação de condução de veículo em 2 rodas.

A tal acresce, a nosso ver, a circunstância de tal cláusula de exclusão aplicável a todas as coberturas (cláusula 5.1 b) não ser de afastar por a lei não admitir contratos de seguro que garantam responsabilidade contraordenacional, ou seja, incorre em responsabilidade contraordenacional a condução na via pública de veículo a motor, acusando uma TAS pelo menos superior a 0,5 g/l. (artigo 81º, do Código da Estrada).

Face a tudo isto, concluímos que não cabe à ré seguradora satisfazer a indemnização solicitada nos autos, porquanto falecem os pedidos formulados pelos AA na PI.”.

A sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação ... de fls. 102, que negou as alterações da decisão sobre a matéria de facto pretendidas pelos recorrentes e, quanto à solução de direito, entendeu que “No presente caso, relativamente à existência de nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia que apresentava o sinistrado (de 0,78g/l) e o desencadear do evento, nenhuma das partes, e em especial a ré, provou materialidade fáctica relevante para expressamente se poder reconhecer a existência de tal nexo. Ou seja, não se provaram factos que permitissem estabelecer que a morte foi causada pelo álcool encontrado na autópsia (por ter sido causa do acidente do qual sobreveio a morte).

Deste modo, conclui-se que a Ré não beneficia das exclusões por si invocadas relativamente ao risco morte, consignadas na apólice de seguro accionada pelos autores em causa nesta acção”.


2. A ré interpôs recurso de revista. Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:

«1º. – porque está provado que o falecimento de CC ocorreu na sequência de acidente de viação, que tinha ingerido ao jantar, bebidas alcoólicas, e apresentou, uma taxa de 0,78g/l (0,78 gramas por litro de sangue), com margem de erro correspondente a 0,10 gramas de álcool por litro de sangue, ou seja, uma taxa de álcool no sangue compreendida entre o intervalo de 0,68 g/l e 0,88g/l (gramas de álcool por litro de sangue) e ainda que no seu estômago existiam restos de comida de cor escura e cheiro intenso a vinho,

2º. – porque também está provado que o ora falecido efectuava manobra de ultrapassagem pela faixa esquerda, e quando retornava à faixa direita, perdeu o controlo do veículo, entrou em despiste pelo lado direito, embateu no talude, capotando até ficar imobilizado por cima das chapas de protecção lateral.

3º. - o facto de conduzir sob o efeito do álcool é causal do acidente por perder o controlo do veículo que o sinistrado e se despistar.

4º. – sendo a referida matéria dada como provada suficiente para estabelecer o nexo causal pois o facto de conduzir sob o efeito do álcool é causal do acidente por o sinistrado perder o controlo do veículo que conduzia e se despistar.

5º. - porque consta das condições gerais do seguro de vida em causa, e como exclusões aplicáveis a todas as coberturas, na cláusula 5.1 b) “acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acusa consumo de produtos tóxicos estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas por litro”.

6º. – A redacção dessa cláusula, prevendo a exclusão da cobertura do seguro mediante “acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acuse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora da prescrição médica, bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro” demonstra que a intenção das partes foi, através de acções ou omissões, definir o âmbito da exclusão da cobertura contratual por referência ao volume de alcoolemia legalmente consentido na lei portuguesa a quem conduzir veículos automóveis, independentemente da prova do nexo causal entre essa TAS e o acidente.

7ª. – está assim afastada, no plano da liberdade contratual, a exigência do ónus de prova da necessidade da verificação de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e a ação ou omissão que determinou a morte da pessoa segura

8ª. - Está, essencialmente, em causa a liberdade contratual das partes e, por esse motivo, poderão no mesmo fazer incluir as cláusulas que lhes aprouver, nomeadamente da limitação do risco assumido pela seguradora.

9ª. - E a cláusula de exclusão não exige a prova do nexo de causalidade entre o acidente mortal e o consumo de álcool, bastando que estes dois factos estejam associados em termos de coincidência temporal, o que se demonstrou, e não que o acidente tenha a sua causa naturalística, ou em termos de adequação ou de probabilidade, para o efeito do art. 563.º do CC, no consumo de álcool, o que também vem demonstrado.

10ª. – sendo, aliás, também essa a situação que na revisão do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel instituído pelo DL 291/07, se consagrou.»


Os autores contra-alegaram, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Concluíram desta forma a alegação:

I. A recorrente funda a sua revista em dois motivos: (i) entende que a Relação ... interpretou erradamente a matéria provada e aplicou deficientemente o direito e que (ii) não é aceitável o entendimento sufragado no aresto recorrido pelo qual cabe à seguradora a prova de que o sinistro resultou do consumo excessivo de álcool a fim de justificar a aplicação da cláusula excludente da cobertura.

II. No modesto entender dos respondentes, ambos os fundamentos deverão improceder, já que, quanto ao primeiro, a questão da (ausência de) prova do nexo de causalidade entre o consumo excessivo de álcool e a produção do sinistro constitui matéria de facto, o que extravasa os poderes de cognição do Supremo Tribunal (arts. 674º, nº 3 e 682º, nº 2 CPC), impedindo o conhecimento do recurso, nesta parte.

III.     Mesmo que o fundamento seja de apreciar, do elenco da matéria dada como provada não se vislumbra a dita relação naturalística de causa-efeito entre o consumo de álcool e a produção do evento, já que, sendo notório que o dito consumo em excessonão é necessariamentecausadorde todososacidentes em que intervém alguém em estado de embriaguez.

IV.     Quanto ao segundo fundamento recursivo, só o entendimento perfilhado pela Relação a quo relativamente à interpretação a conferir à cláusula excludente em apreço permite que essa mesma cláusula seja válida, porque só esse entendimento – que exige a verificação da causalidade entre o consumo de álcool e a produção da acção ouomissão do segurado que se temporexcluída da cobertura –éconsentâneo com as regras interpretativas legalmente impostas.

V.     A mencionada cláusula excludente da cobertura do seguro foi elaborada pela ré como bem quis, sem que o segurado pudesse influenciar o respectivo teor e se interpretada como pretende a recorrente, conduziria a situações absurdas: qualquer acção ou omissão, lícita ou ilícita, em que, concomitantemente, se comprove uma taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/litro, exoneraria sempre a Seguradora das suas responsabilidades, mesmo inexistindo nexo causal entre o consumo e a produção do sinistro.

VI.     Contrariamente ao vertido nas 6ª, 7ª, 8ª e 9ª conclusões da recorrente, não vigora aqui plenamente a liberdade contratual, já que se aplica ao contrato em apreço – que não é de seguro de grupo (v. art. 76º R.J.C.S.) – o regime das cláusulas contratuais gerais, pois que a segunda vertente da liberdade contratual (de conformação do conteúdo contratual) não existiu, pois, que o segurado não pode influenciar o respectivo conteúdo – art. 1º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.

VII.     O referido diploma proíbe cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé (art. 15º) e, havendo dúvidas na interpretação das cláusulas, prevalecerá o sentido que o contraente normal, leigo em direito, lhe atribuiria e que conduza a um maior equilíbrio prestacional (arts. 10º, 11º, nº 1 D.L. 446/85 de 25/10 e 237º in fine do Código Civil) – e da cláusula excludente em apreço não se retira a desnecessidade de verificação do nexo de causalidade para que seja invocável.

VIII.    Ademais, deve prevalecer a interpretação mais favorável ao aderente-segurado (v. art. 11º, nº 2 do D.L. 446/85 de 25/10), justamente porque este não conformou o clausulado contratual.

IX.    Ora, foi exatamente esse entendimento - o único aceitável à luz das regras apontadas – que a Relação a quo fez, no sentido de exigir a alegação e prova (pela Ré seguradora – art. 342º, nº 2 do Código Civil) de que foi o consumo excessivo de álcool que levou à produção do evento danoso, o que não se verificou, daí que o Acórdão revidendo não merece censura alguma, devendo ser confirmado.

X. Subsidiariamente sempre se invoca – repristinando as questões de direito suscitadas em sede de apelação, cujo conhecimento ficou prejudicado – que, acaso se entenda que a ditacláusula prescinde do referido nexo causal, esta será nula, por abusiva e à boa-fé, devendo ser excluída do contrato singular em causa (arts. 15º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10 e 3º, nº 1 da Diretiva nº 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993).

XI.     E nem se afirme, como se fez na decisão de primeira instância, que não é possível excluir a cláusula porque o art. 81º do Código da Estrada pune a condução sob o efeito de álcool.

XII.    Apesar de a regra do art. 14º, nº 1, alínea a) do R.J.C.S. proibir segurar a responsabilidade sancionatória, o certo é que o 2 da mesma norma ressalva e admite, expressamente, a transmissão da responsabilidade civil daí decorrente, como acontece no caso, pelo que é lícita a não aplicação ao contrato vertente da dita cláusula excludente da cobertura (neste sentido v., inter alia, o Acórdão da Relação de Guimarães de 04/03/2021, processo nº 5924/19.9T8GMR.G1 (Helena Melo), disponível em www.dgsi.pt).

XIII.   Em suma, seja pela inobservância do ónus probatório que impendia sobre a recorrente, de acordo com a interpretação mais correta a dar à cláusula em apreço, seja pelo carácter abusivo da cláusula excludente da cobertura, que determina a respectiva nulidade e exclusão do contrato, deverá sempre o douto Acórdão recorrido ser confirmado integralmente, mantendo-se a condenação da ré no cumprimento do contrato.

2. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

“1.º. No dia ... de Dezembro de 2018, pelas 22h45m, faleceu CC, com 27 anos de idade (nascido a .../.../1991), no estado de solteiro.

2.º. Na sequência de relação amorosa com a A., nasceu a .../.../2017, o 2.º A – BB.

3.º O falecimento de CC ocorreu na sequência de acidente de viação, ocorrido ao km 18,400 da auto-estrada ..., no sentido ... –... na União de Freguesias ... e ..., concelho ..., na qual circulava o dito CC, no seu veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-DQ.

4.º O ora falecido efectuava manobra de ultrapassagem pela faixa esquerda, e quando retornava à faixa direita, perdeu o controlo do veículo, entrou em despiste pelo lado direito, embateu no talude, capotando até ficar imobilizado por cima das chapas de protecção lateral.

5.º O acidente ocorreu após o sinistrado ter jantado com seus pais e sua irmã, na residência daqueles, em ..., ....

6.º Após o jantar, o sinistrado foi à residência dos pais da autora, na freguesia ..., ..., deixar o filho de ambos (o ora autor BB) aos cuidados de sua mãe, posto o que voltava para ..., quando ocorreu o acidente.

7.º O sinistrado tinha ingerido ao jantar, bebidas alcoólicas, e apresentou, uma taxa de 0,78g/l (0,78 gramas por litro de sangue), com margem de erro correspondente a 0,10 gramas de álcool por litro de sangue, ou seja, uma taxa de álcool no sangue compreendida entre o intervalo de 0,68 g/l e 0,88g/l (gramas de álcool por litro de sangue) e ainda que no seu estômago existiam restos de comida de cor escura e cheiro intenso a vinho.

8.º A 12 de Janeiro de 2012, por intermédio do mediador DD, CC subscreveu proposta de adesão a seguro de vida e respectivo questionário clínico.

9º) Nessa sequência, a 20 de Abril de 2012, o falecido CC e a então “Império Bonança – Companhia de Seguros, S.A.” (entretanto adquirida por fusão pela ora ré) celebraram um Contrato de Seguro de Vida, titulado pela apólice nº ...71, no âmbito do qual aquele transferiu para a ré o risco infortunístico de morte, morte por acidente e invalidez total e permanente superior a 66%.

10º) O contrato de seguro conheceu o seu início de vigência às 00 horas do dia 20 de Abril de 2012, apresentando nomeadamente as seguintes características:

1) Prazo de vigência: 45 (quarenta e cinco) anos;

2) Renovação; tácita, anual, na data aniversária, de 20 de Abril;

3) Tomador e pessoa segura: CC;

4) Capital seguro: 50 000,00 € (cinquenta mil euros), devido ao(s) beneficiário(s) indicado(s) pelo malogrado CC, a que corresponde o n.º da apólice ...71;

5) Beneficiários em caso de morte: os ora autores, BB e AA;

6) Coberturas: morte, morte por acidente, invalidez total e permanente de grau igual ou superior a 66% – no máximo até ao fim do ano civil em que a pessoa segura complete 65 (sessenta e cinco) anos, garantindo o pagamento ao(s) beneficiário(s) designado(s) do capital seguro em caso de morte;

11º) O falecido liquidou os prémios mensais, por débito directo da sua conta da Caixa Geral de Depósitos, S.A., com o NIB ....

12º) Aquando da contratação, o segurado não indicou quaisquer beneficiários em caso de morte, sendo estes os respectivos herdeiros legais.

13º) A 19 de Dezembro de 2017, o falecido inscreveu como beneficiários os aqui autores.

14º) Consta das condições gerais do seguro de vida em causa, e como exclusões aplicáveis a todas as coberturas, na cláusula 5.1 b) “acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acusa consumo de produtos tóxicos estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas por litro.”

15º) Consta na proposta de seguro/seguro vida, apólice n.º ...71, em observações/declarações, sob o ponto “1. Declaro que me foram prestadas as informações pré-contratuais legalmente previstas, tendo-me sido entregue, para o efeito, o documento respectivo, para delas tomar integral conhecimento, e bem assim que me foram prestados todas os esclarecimentos de que necessitava para a compreensão do contrato, nomeadamente sobre as garantias e exclusões sobre cujo âmbito e conteúdo fiquei esclarecido.

16º) Mais conta sob o ponto “4. Declaro também que dou o meu acordo a que as condições gerais e especiais, se as houver, aplicáveis ao contrato me sejam entregues no sitio da internet indicado nas condições particulares”.

17º) O falecido, apôs a sua assinatura e datou a apólice referida em 15º e 16º, após os referidos pontos 1 e 4 aí referidos.

18º) Dias após o acidente, a 27/12/2018, a autora AA participou o sinistro, mediante o preenchimento e entrega de formulário próprio na agência da ré em ..., que originou o processo de sinistro nº ...71.

19º) A 10/07/2019, foi a autora notificada da resposta da ré a negar o pagamento do capital seguro, nos seguintes termos: “Reportando-nos ao processo em referência, informamos que não nos é possível proceder ao pagamento da indemnização solicitada, uma vez que não estão reunidas as condições de acionamento do Seguro de Vida. De facto, estão excluídas do âmbito de todas as Coberturas do Seguro as “ações ou omissões praticadas pela Pessoa Segura quando acuse consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detetado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas por litro”. Para melhor esclarecimento, por favor consulte o artigo 2º, nº 5.1, alínea b, das Condições Gerais do Seguro Vida, disponíveis em www.fidelidade.pt”.

20º) Consta da apólice como agravamento do prémio e cobertura a seguinte situação, que o segurado subscreveu:

- Agravamentos do Prémio das Coberturas

- Inclusão 2/3 rodas MA 50,0% Prémio

- Inclusão 2/3 rodas ITP 75,0% Prémio

Inclusão 2/3 rodas ITPA 75,0% Prémio


Factos julgados Não Provados

Não se provou que:

a) A cláusula de exclusão de cobertura referida em 14º) nunca foi dada a conhecer ao segurado, nem este a aceitou especificamente.

b) Que o falecido desconhecia em absoluto a cláusula de exclusão da cobertura invocada pela ré para se eximir à sua responsabilidade, pois que esta nunca foi comunicada nem aceite pelo segurado.

c) Que as únicas informações prestadas pela ré seguradora ao falecido CC circunscreveram-se ao habitual nestes casos: montante mensal do prémio a pagar, valor do capital seguro e que este seria pago em caso de morte ou invalidez permanente do segurado.

 d) Que aquando do acidente, o malogrado CC circulava dentro da velocidade permitida naquele troço.

e) Que a circunstância de o falecido CC acusar grau de alcoolemia superior a 0,50 g/litro foi indiferente ao acidente”.


4. Sendo o respectivo objecto delimitado pelo recorrente nas conclusões da alegação (cfr. n.º 4 do artigo 635.º do Código de Processo Civil), está apenas em causa neste recurso a questão de saber se a morte do segurado se encontra ou não excluída do âmbito do seguro dos autos, por não estar provado o nexo de causalidade entre o excesso de álcool do sangue (por referência ao limite legal de 0,5 g por litro de sangue) e o acidente de que resultou a sua morte, questão sobre a qual divergem as partes e discordaram as instâncias.

Trata-se de um seguro facultativo, ramo vida, cabendo na autonomia contratual das partes a liberdade de o celebrar ou não, bem como, ressalvadas eventuais normas imperativas, de definir, nomeadamente, o respectivo âmbito de cobertura (cfr. acórdão de 14 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 2342/15.1T8CBR.C1.S1: “Porque se trata de um seguro facultativo vigora o princípio da liberdade contratual, e, assim, desde que se contenham nos limites legais podem ser introduzidas no contrato quaisquer cláusulas”).

Uma vez que foi celebrado já na vigência do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, é-lhe aplicável o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) aprovado por este diploma. É-lhe igualmente aplicável, na medida em que não o contrarie, o regime definido pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 15 de Outubro (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, LCCG), como aliás se diz expressamente no artigo 3.º do referido Regime Jurídico.

Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 72/2008, o contrato de seguro deixou de ser qualificado como um contrato formal, no sentido de ser condição de validade a adopção de determinada forma (artigo 220,º do Código Civil) – escrita, de acordo com o artigo 426.º do Código Comercial (cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de 30 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 414/06.2TBPBL.C1.S1, de 4 de Dezembro de 2014. www.dgsi.pt, proc. n.º 23/12.7TBESP.P1.S1 ou de 18 de Março de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 2402/19.0T8PNF.P1.S1 ); a formalização na apólice que o n.º 2 do artigo 32.º do RJCS impõe ao segurador passou antes a ser considerada como requisito de prova.

Da apólice, necessariamente um “instrumento escrito” (n.º 2 do citado artigo 32.º), deve constar “todo o conteúdo acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis” (n.º 1 do artigo 37.º); “no mínimo”, têm de constar os dados enumerados no n.º 2, entre os quais figuram, naturalmente, “os riscos cobertos”, fundamento último da celebração do contrato e, “escritas em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes” (n.º 3), “b) As cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação”.

Está em causa a interpretação de uma cláusula de exclusão que figura nas condições gerais, nº 5.1.a), cujo texto é o seguinte: “5.1. Estão sempre excluídas do âmbito de todas as coberturas do seguro as seguintes situações: B) Acções ou omissões praticadas pela pessoa segura quando acuse (…) bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolémia no sangue superior a 0,5 gramas por litro”.

Não há prova de que esta cláusula tenha sido o resultado de negociação individualizada; não figura, aliás, nas exclusões expressamente indicadas na apólice junta a fls. 23, mas só nas condições gerais. No entanto, importa ter presente que, na motivação da decisão de facto, a sentença esclarece que do depoimento de determinadas testemunhas concluiu que «(o “cliente” conhecia as exclusões ao contrato (…)».

Aplicam-se assim à sua interpretação as normas definidas pelo Código Civil para a interpretação dos negócios jurídicos em geral (artigo 236.º e segs), para as quais, aliás, remete o artigo 10.º da LCCG, que, todavia, esclarece que essa interpretação deve ter sempre em conta “o contexto de cada contrato singular em que se incluam”. Esta exigência tem particular relevância quando está em causa a interpretação de cláusulas predispostas pelo contraente que as definiu e às quais o outro contraente se limita a aderir, pois obriga a uma sua interpretação singular, no sentido de uma “interpretação individual e concreta” (Evaristo Mendes/Fernando Sá, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, comentário ao artigo 236.º, pág. 535). Tem particular significado num contexto em que vale um maior objectivismo interpretativo (Pedro Pais de Vasconcelos/Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª ed., Almedina, pág. 558).

Esta “interpretação individual e concreta” torna menos significativo o sentido com que em vários acórdãos deste Supremo Tribunal se tem interpretado a al. c) do n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que, no âmbito do seguro automóvel obrigatório, confere à seguradora que tiver pago a indemnização a terceiro lesado o direito de regresso “c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”, nomeadamente quanto a saber se este diploma veio alterar o sentido fixado para a norma correspondente do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, pelo assento n.º 6/2002: c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;”. A doutrina fixada pelo referido assento foi a de que “A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”

Merecem especial referência as regras relativas à interpretação das “cláusulas contratuais gerais ambíguas” (artigo 11.º), porque, nesse caso, o padrão relevante para a interpretação é o do “contraente indeterminado normal que se limitasse a” subscrever as cláusulas (n.º 1) e, na dúvida, “prevalece o sentido mais favorável ao aderente” (n.º 2) – regra diferente da que o artigo 237.º do Código Civil fixa para a resolução de dúvidas de interpretação nos contratos onerosos, e que é a de que deve prevalecer o sentido “que conduzir ao maior equilíbrio das prestações” – e que facilmente se explica pelo desequilíbrio que em regra existe entre o predisponente das cláusulas e o aderente.


5. Na 1.º Instância considerou-se que a cláusula de exclusão de que agora se trata foi comunicada ao segurado e que “a tal acresce, a nosso ver, a circunstância de tal cláusula de exclusão aplicável a todas as coberturas (cláusula 5.1.b)) não ser de afastar por a lei não admitir contratos de seguro que garantam responsabilidade contraordenacional, ou seja, incorre em responsabilidade contraordenacional a condução na via pública de veículo a motor, acusando uma TAS pelo menos superior a 0,5 g/l. (artigo 81.º do Código da Estrada”.

A Relação, todavia, considerou que, “no caso vertente, para que haja exclusão da cobertura do seguro, qualquer que ele seja, é necessário que a condução sob o efeito do ´álcool possa ser considerada uma das condições concretas do acidente e que, segundo as regras da experiência comum, seja adequada ou apropriada ao seu desencadeamento”

O Supremo Tribunal de Justiça tem consistentemente traçado os limites em que pode intervir na interpretação das declarações negociais, quer se insiram num contrato – em que as partes são simultaneamente declarante e declaratário, – quer não. A título de mero exemplo, cita-se o já referido acórdão de 30 de Setembro de 2010: a possibilidade de intervenção do Supremo Tribunal da Justiça no controlo da interpretação de declarações negociais (…) limita[-se] à apreciação da observância dos critérios legalmente definidos para o efeito, já que a averiguação da vontade real dos declarantes se situa no domínio da matéria de facto, fora portanto do âmbito do recurso de revista (assim, por exemplo, acórdãos deste Supremo Tribunal de 23 de Setembro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2346 ou de 16 de Abril de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 77/07.8TBCTB.C1.S1)”.


6. Perante uma cláusula idêntica, entendeu-se, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Março de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º907/15.0T8PTG.E1.S2, que “se tem por excluída a cobertura do seguro nos casos em que a pessoa segura pratique ação ou omissão causadora do sinistro, encontrando-se em estado de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas por litro. (…) Trata-se, por conseguinte, de uma cláusula que, nos limites da liberdade contratual, densifica, em termos razoáveis, o ónus probatório que incumbe à seguradora sobre a verificação da causa de exclusão da cobertura do seguro ali prevista.”

Entende-se, todavia, que a alternativa de sentido que se encontra em causa consiste em se dispensar ou não o nexo de causalidade entre o excesso de álcool e o acidente concreto de que resultou a morte do segurado; ou seja, interpretando a cláusula de exclusão constante das condições gerais do contrato no sentido de que dispensa esse nexo, será irrelevante, por exemplo, a prova de que o concreto acidente que estiver em causa não foi causado por esse excesso.

E reconhece-se que os textos correspondentes considerados, por ex., nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 2012, www.dgsi.pt, proc. n.º 723/08.6TBSCD.C1.S1, de 23 de Setembro, www.dgsi.pt, proc. n.º 08B2346  ou de 28 de Abril de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 1479/17.7T8BJA.E1.S1, traduziam de forma literal a exigência de nexo de causalidade entre o excesso de álcool do sangue e o sinistro, para que se pudesse ter por excluído da cobertura do sinistro.

No entanto, entende-se, por um lado, que um contraente “medianamente cuidadoso, diligente e informado” (acórdão de 23 de Setembro de 2008, atrás citado), que pretende segurar o risco da sua morte nomeadamente em consequência de acidente de viação não causado por terceiro, interpretaria a cláusula de exclusão no sentido de apenas excluir da cobertura do contrato a morte resultante de acidente concretamente causado pelo excesso de álcool, não sendo facilmente apreensível o sentido oposto – que se baste com a prova da mera coincidência temporal entre a causa do sinistro e o excesso de álcool para afastar os efeitos do contrato de seguro. Note-se que a sentença concluiu ter sido cumprido o dever de informação da existência da cláusula, mas não com que sentido; e que é este sentido que se afigura conduzir a um maior equilíbrio entre as partes.

Acresce que, sendo controvertido esse sentido – como se vê com a divergência entre as instâncias, relativamente a este concreto contrato –, sempre se poderia recorrer ao disposto no artigo 11.º da LCCG e chegar à regra de que “na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente”.

Entende-se, assim, que a al. b) da cláusula n.º 5.1.a) das condições gerais deve ser interpretada no sentido de que a exclusão do sinistro resultante de acto ou omissão praticado pela pessoa segura que se encontrasse com um grau de alcoolémia superior a 0,5 gramas de álcool por litro de sangue exige que o excesso de álcool tenha causado o acidente em causa.

Sucede que, não obstante a seguradora ter alegado, na contestação, que “o referido acidente ficou a dever-se ao facto de o infeliz CC conduzir sob a influência do álcool (…)” (artigo 10.º), e voltar a esta ideia nas alegações de revista, a prova não estabeleceu essa causalidade naturalística entre o excesso de álcool e o acidente de que veio a resultar a sua morte. Cabendo à ré o correspondente ónus da prova, porque se trata de um facto impeditivo do direito exercido nesta acção (n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil), a acção procede.

Resta recordar que a circunstância de constituir contraordenação a condução na via pública com uma TAS superior a 0,5 d/l (artigo 81.º do Código da Estrada) apenas impede a celebração de contrato de seguro de responsabilidade contraordenacional (a. a) do n.º 1 do artigo 14.º do Regime Jurídico do Contrato de seguro), mas não da “responsabilidade civil eventualmente associada” (n.º 2). Interpreta-se este artigo como não impedindo que um seguro de vida abranja o sinistro morte, mesmo quando a morte tenha ocorrido quando o condutor que causou o acidente se encontrasse com excesso de álcool.


7. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 31 de Março de 2022


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora)

Fátima Gomes

António Oliveira Abreu