Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
417/18.4T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- As coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à interpretação do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil, referente ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido.

II- A verificação do cumprimento dos ónus de alegação, previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteada pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo em conta o caso concreto, o número de factos impugnados e o número de meios de prova, nomeadamente depoimentos, devendo evitar-se formalismos excessivos.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 417/18.4T8PNF.P1. S1 (Revista) - 4ª Secção

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. AA, por si e em representação dos seus filhos menores BB e CC, e DD intentaram ação com processo especial por acidente de trabalho contra Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A., e Construções Pardais, Irmãos Monteiros, Lda., pedindo a condenação destas, na medida das suas responsabilidades, a pagarem-lhes:

1) Para a Autora AA, a pensão anual, vitalícia e atualizável de € 4.470,00;

2) Para a Autora BB e para o Autor CC a pensão anual de € 5.960,20;

3) A quantia de € 5.661,48 relativa a subsídio por morte;

4) Para a 4.ª Autora a quantia de €1.212,95 relativa ao capital de remição;

5) € 20,00 relativos a despesas de deslocação, a pagar à 1.ª e à 4.ª Autoras;

6) Juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, sobre todas as prestações e até integral e definitivo pagamento;

7) Os valores peticionados deverão ser objeto do agravamento legal estipulado, caso se venha a provar que o acidente se ficou a dever a violação das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho, por parte da Ré entidade patronal;

8) Na hipótese de se vir a provar a violação de regras de segurança, deverá a Ré Patronal, a acrescer às quantias acima peticionadas, ser condenada a pagar aos Autores prestações por morte com o legal agravamento e ainda o montante global de €195.000,00, devido a título de perda do direito à vida, de privação sexual, de danos morais e de danos da própria vítima.

Para tanto, alegaram em síntese:

 A 1.ª Autora é viúva de EE, falecido no dia 9 de fevereiro de 2018, vítima de um acidente ocorrido nesse mesmo dia, sendo os 2.º e 3.º Autores filhos do Sinistrado e da 1.ª Autora e a 4.ª Autora mãe do Sinistrado;

A vítima trabalhava então sob as ordens, direção e fiscalização de Construções Pardais, Irmãos Monteiros, Lda., aqui 2.ª Ré, sua entidade empregadora, exercendo as funções de ..., auferindo a retribuição anual ilíquida de €767,00 x 14 + €5,75 x 22 x 11;

 Em consequência de tal acidente, o Sinistrado sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia junto aos autos, que lhe determinaram, como consequência direta e necessária, a morte;

 O referido acidente ocorreu em circunstâncias fácticas que consubstanciarão a violação de regras de segurança na realização dos trabalhos que decorriam no local de trabalho e que foi causa direta e adequada da morte do Sinistrado;

 À data do sinistro a entidade empregadora havia transferido para a Ré a sua responsabilidade por acidentes de trabalho, relativamente ao Sinistrado pela totalidade da retribuição, ou seja, €767,00 x 14 + €5,75 x 22 x 11;

Realizada a tentativa de conciliação, a 1.ª Ré / Seguradora aceitou a transferência salarial de €767,00 x 14 + €5,75 x 22 x 11, mas, todavia, não aceitou qualquer responsabilidade por entender que o sinistro ocorreu devido a incumprimento de regras de segurança no trabalho por parte da 2.ª Ré; por seu lado, a Ré empregadora nada aceitou indemnizar, uma vez que considerou ter toda a responsabilidade infortunística transferida para a P Ré;

 Já depois de ter subscrito o auto de não conciliação, a 1.ª Autora obteve informação que o Sinistrado, seu marido, auferia regularmente uma retribuição mensal líquida de €1.125,00 por mês, 12 vezes por ano, a que acrescia a quantia de €1.400,00 a pagar em duas prestações de €700 - nos meses de agosto e de dezembro de cada ano;

A ter ocorrido violação de regras de segurança na execução dos trabalhos a 1.ª, 2.ª e o 3.º Autores peticionam ainda o valor global de € 75.000,00, a repartir na proporção de 1/3, pela perda do direito à vida do Sinistrado e a título de danos morais que sofreram com a morte do Sinistrado a 1.ª Autora reclama a quantia de € 40.000,00 e a 2.ª e o 3.º Autores reclamam cada um a quantia de € 25.000,00;

A 1.ª Autora reclama também a quantia de € 25.000,00 a título de privação da sua vida sexual;

Por último, tendo em conta que o Sinistrado não faleceu instantaneamente e que sofreu intensamente até à consumação da morte, a título de danos da própria vítima os Autores reclamam o pagamento da quantia de € 5.000,00.

2. Regularmente citadas, as Rés contestaram.

Na contestação que apresentou, a Ré Seguradora aceitou, em parte, a descrição do acidente constante da petição inicial, as lesões sofridas pelo sinistrado, descritas no relatório de autópsia, bem como o nexo de causalidade entre o acidente e a morte do sinistrado. No entanto: Considera que o acidente descrito teve como causa direta, necessária e exclusiva a falta de observação por parte da ré empregadora das regras sobre segurança e saúde no trabalho que no caso se impunham, porquanto a causa única do sinistro foi a movimentação descontrolada das terras que estavam acumuladas à margem da vala onde o Sinistrado se encontrava, do que resultou o aluimento das mesmas e o soterramento do corpo da infeliz vítima; Que essa causa única foi exclusivamente resultante da conjugação das seguintes circunstâncias: a inexistência de estudo geotécnico e geológico ao terreno onde decorria a obra; a pouca consistência das terras por efeito da sua composição arenosa dos solos no local da obra e da trepidação provocada pela constante movimentação de máquinas industriais usadas na empreitada pela Ré empregadora e a total ausência de entivação na zona da vala onde se encontrava o Sinistrado; Que tal factualidade é demonstrativa do grosseiro incumprimento das obrigações genéricas enunciadas nos artigos 127.º, n.º 1, h) e 281.º, n.º 1, 2 e 3 do Código do Trabalho, bem como nos artigos 66.º, 67.º, 68.º, 69.º e ss. do Decreto n.º 41821, no artigo 22.º, n.º 1, alínea m) do Decreto-lei n° 273/03 e no artigo 13.º da Portaria n.º 101/96.

Conclui pelo julgamento da ação em conformidade com o que resultar da prova, com todas as consequências legais.

Por seu turno, a 2.ª Ré, na sua contestação, começou por invocar a ilegitimidade ativa da 4.ª Autora, em virtude de esta não ter junto qualquer prova documental dos seus rendimentos. No que concerne às circunstâncias em que ocorreu o sinistro alega que foi o próprio Sinistrado que violou grosseiramente as regras de segurança em obra, as quais bem conhecia e não tinha como ignorar, motivo pelo qual, atento o disposto nas alíneas a) e b) do n. º 1 do artigo 14.º da LAT, considera que não recai sobre si, enquanto empregadora, qualquer obrigação de reparar os danos decorrentes do acidente.

Concluiu pela improcedência, por não provada, da ação relativamente aos pedidos deduzidos pela Autora DD, por não se mostrar verificado o pressuposto da sua legitimidade, bem como pela improcedência, por não provados, dos demais pedidos contra si formulados, com as legais consequências.

3. A Ré / Empregadora, apresentou resposta à contestação da Seguradora, alegando que o sinistro não se ficou a dever a nenhuma violação das normas e procedimentos de segurança em obra da sua responsabilidade, mas antes apenas à conduta imprudente e descuidada por parte do Sinistrado, que desceu à vala em circunstâncias que sabia não poder fazer.

Concluiu como na sua contestação.

4. Os Autores responderam às contestações das Rés, pugnando pela improcedência das exceções alegadas e concluindo, quanto ao demais, como alegado na petição inicial.

5. Foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento, através do qual os Autores foram convidados a alegar os rendimentos auferidos pela 4.ª Autora à data da morte do Sinistrado, atento o disposto no artigo 57°, n° 1, alínea d) e 49°, n° 1, alínea d), da Lei n° 98/2009, de 4 de Setembro, convite ao qual os Autores responderam, apresentando a fls. 210 a 217 petição inicial devidamente aperfeiçoada, tendo ainda, a fls. 231, esclarecido que a remuneração auferida pelo Sinistrado era de €1.125,00 por mês, 12 vezes por ano, a que acrescia a quantia de €1.400,00 a pagar em duas prestações de €700,00 - nos meses de Agosto e Dezembro de cada ano.

6. Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade da 4.ª Autora invocada pela 2.ª Ré.

7. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

«Nesta conformidade, julgo a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e em consequência:

I - Condeno a 1.ª Ré, Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A., a pagar:

A) À Autora AA a pensão de € 3.639,03 (três mil, seiscentos e trinta e nove euros e três cêntimos), devida a partir de 10 de fevereiro de 2018, vitalícia e atualizável, alterável a partir da idade da reforma, a ser paga mensalmente e no seu domicílio, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, no valor de 1/14 da pensão anual cada, a serem pagos nos meses de junho e novembro de cada ano, respetivamente.

Esta pensão é atualizada nos seguintes termos:

- A partir de 1 de janeiro de 2019 para o montante de €3.697,25 (três mil, seiscentos e noventa e sete euros e vinte e cinco cêntimos),

- A partir de 1 de janeiro de 2020 para o montante de €3.723,13 (três mil, setecentos e vinte e três euros e treze cêntimos).

- Às pensões em dívida haverá que deduzir as pensões provisórias entretanto pagas pela Ré Seguradora à 1.ª Autora.

B) Juros de mora a calcular sobre o valor mensal de cada uma das prestações aludidas na alínea anterior, já vencidas, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma dessas prestações e até integral e efetivo pagamento.

C) Aos 2.º e 3.º Autores filhos, BB e CC, a pensão anual global de € 4.852,04 (quatro mil, oitocentos e cinquenta e dois euros e quatro cêntimos), devida desde o dia 10 de fevereiro de 2018 até perfazerem a idade de 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentarem, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou curso de nível superior ou equiparado, a ser paga mensalmente e no seu domicílio, até ao 3° dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, igualmente no valor de 1/14 da pensão anual cada, a serem pagos nos meses de junho e novembro de cada ano, respetivamente.

Esta pensão é atualizada nos seguintes termos:

- A partir de 1 de janeiro de 2019 para o montante de €4.929,67 (quatro mil, novecentos e vinte e nove euros e sessenta e sete cêntimos)

- A partir de 1 de janeiro de 2020 para o montante de €4.964,18 (quatro mil, novecentos e sessenta e quatro euros e dezoito cêntimos).

- Às pensões em dívida haverá que deduzir as pensões provisórias entretanto pagas pela Ré Seguradora aos 2.º e 3.º Autores.

D) Juros de mora a calcular sobre o valor mensal de cada uma das prestações aludidas na alínea anterior, já vencidas, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma dessas prestações e até integral e efetivo pagamento.

E) A quantia de € 5.661,48 (cinco mil, seiscentos e sessenta e um euros e quarenta e oito cêntimos), a título de subsídio por morte, cabendo metade deste subsídio à 1.ª Autora, viúva, e metade aos 2.ª e 3.ª Autores, filhos do Sinistrado, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde o dia 10 de fevereiro de 2018 até efetivo e integral pagamento.

F) À Autora DD, mãe do Sinistrado, a pensão no montante de €1.213,00 (mil, duzentos e treze euros), devida a partir de 10 de fevereiro de 2018, obrigatoriamente remível, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde o dia 10 de fevereiro de 2018 até efetivo e integral pagamento.

II - Condeno a 2.ª Ré, Construções Pardais, Irmãos Monteiros, Lda, a pagar:

A) À Autora AA a pensão de € 830,97 (oitocentos e trinta euros e noventa e sete cêntimos), devida a partir de 10 de fevereiro de 2018, vitalícia e atualizável, alterável a partir da idade da reforma, a ser paga mensalmente e no seu domicílio, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, no valor de 1/14 da pensão anual cada, a serem pagos nos meses de junho e novembro de cada ano, respetivamente.

Esta pensão é atualizada nos seguintes termos:

- A partir de 1 de janeiro de 2019 para o montante de €844,26 (oitocentos e quarenta e quatro euros e vinte e seis cêntimos),

- A partir de 1 de janeiro de 2020 para o montante de €850,17 (oitocentos e cinquenta euros e dezassete cêntimos).

B) Juros de mora a calcular sobre o valor mensal de cada uma das prestações aludidas na alínea anterior, já vencidas, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma dessas prestações e até integral e efetivo pagamento.

C) Aos 2.º e 3.º Autores filhos, BB e CC, a pensão anual global de €1.107,96 (mil cento e sete euros e noventa e seis cêntimos), devida desde o dia 10 de Fevereiro de 2018 até perfazerem a idade de 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentarem, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou curso de nível superior ou equiparado, a ser paga mensalmente e no seu domicílio, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, igualmente no valor de 1/14 da pensão anual cada, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano, respetivamente.

Esta pensão é atualizada nos seguintes termos:

- A partir de 1 de janeiro de 2019 para o montante de €1.125,69 (mil cento e vinte e cinco euros e sessenta e nove cêntimos)

- A partir de 1 de janeiro de 2020 para o montante de €1.133,57 (mil cento e trinta e três euros e cinquenta e sete cêntimos).

D) Juros de mora a calcular sobre o valor mensal de cada uma das prestações aludidas na alínea anterior, já vencidas, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma dessas prestações e até integral e efetivo pagamento.

E) À Autora DD, mãe do Sinistrado, a pensão no montante de € 277,00 (duzentos e setenta e sete euros), devida a partir de 10 de fevereiro de 2018, obrigatoriamente remível, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde o dia 10 de fevereiro de 2018 até efetivo e integral pagamento.

III) Absolvo as Rés dos demais pedidos contra elas formulados.»

8. Os Autores interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido rejeitar a apreciação na parte dirigida à impugnação da matéria de facto e em julgar, no mais, improcedente o recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

9. Os Autores interpuseram recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O acórdão em crise rejeita apreciar a impugnação da matéria de facto com o fundamento de que os R.tes não cumpriram o ónus de impugnação previsto no art. 640º, nº 1, do CPC.

2. O Tribunal entendeu que os R.tes fizeram uma “impugnação em bloco de factos ou temas” fazendo uma “mera indicação genérica”.

3. Não houve omissão! Para se concluir neste sentido basta ler o teor da alegação. O texto fala por si! Uma coisa é o Tribunal entender que o recurso, em termos estruturais, designadamente de exposição, podia ter tido uma organização algo diversa, outra é concluir que há omissão. Não há omissão - os elementos necessários à apreciação da matéria de facto estão efetivamente explícitos nas alegações de recurso.

4. Os R.tes começam, ab initio, por indicar os concretos pontos de facto que devem ser alterados. E fizeram mais ainda – indicaram aí, desde logo, o que, naquele facto, em concreto, deve ser alterado. Por outro lado, pelo facto de algumas questões serem absolutamente objetivas e de compreensão imediata, não só cumprem com a al. a) do nº 1 do 640º do CPC como, de imediato, dão cumprimento à al. c) do mesmo artigo, ao referirem qual a alteração que deve ser introduzida – desenvolvendo, posteriormente, tais questões após indicação das concretas passagens dos depoimentos das testemunhas e na análise dos mesmos.

5. Poder-se-á dizer que, por uma questão de organização, se deveria, primeiro de forma “seca”, indicar os factos incorretamente dados como provados e como não provados (al. a), de seguida indicar os concretos meios probatórios (al. b) e, no final, a decisão que deveria ser dada (al. c)). Todavia, alguma imprecisão na “arrumação” da argumentação recursiva, em termos de cumprimento do ónus de alegação prescrito no 640º, nº 1, do CPC, deve, necessariamente, ser enquadrada em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” – cfr. Acórdãos do STJ – de 28.04.2016 – Proc. 1006/12.2TBPRD.P1. S1 e de 08.11.2016 – Proc. 2002/12.5TB BCL.G1. S1 – ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

6. Apenas violações grosseiras, mormente quanto ocorre omissão absoluta e indesculpável do cumprimento do ónus em apreço que comprometam decisivamente a possibilidade de o Tribunal proceder à reapreciação da matéria de facto, podem e devem conduzir à rejeição liminar, imediata do recurso – a este propósito veja-se o douto Ac. do STJ, Ac. do STJ, de 08.11.2016 – Proc. 2002/12.5TBBCL.G1. S1, disponível em www.dgsi.pt., disponível em www.dgsi.pt.

7. Na situação dos autos, os R.tes não só se cumpriram com os ónus impostos pelo art. 640º do CPC, como, da leitura do recurso, se percebe imediatamente quais os factos impugnados e quais os elementos probatórios e decisão que deveria ser proferida.

Não há como “fugir” à constatação de que há questões relativamente às quais a impugnação tem por base fotografias! – Veja-se, a título de exemplo, o supra alegado quanto ao facto 20.

8. A apreciação da matéria de facto era, sem margem para dúvidas, a questão central no presente recurso. Ora, se o Tribunal discordasse da argumentação dos R.tes, fundando tal discórdia, haveria pelo menos a sensação de terem sido ponderadas as questões suscitadas. A opção por não apreciar, tendo por base um formalismo exagerado e incompreensível, é, salvo melhor opinião, impedir a tutela jurisdicional efetiva em clara violação, desde logo, do disposto no art. 20º da Constituição da República Portuguesa.

8. A Ré empregadora contra-alegou, tendo concluído:

A - Tendo sempre presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, afigura-se-nos que no presente caso o mesmo apenas tem por base a discordância da Recorrente quanto à qualificação jurídica dos factos julgados por provados, quer relativamente à sua valoração, quer na formulação em que assenta a decisão da factualidade tida por provada pelo tribunal “ad quo” como pressuposto da condenação das Rés.

B - Os Recorrentes limitam-se a discordar do entendimento do Mmº Julgador sustentando que, na sua ótica, as razões que aduzem serão suscetíveis por si só de conduzir à modificação da decisão condenatória e consequente revogação da sentença.

C - Com o devido respeito, que é todo, a verdade é que os Recorrentes, pelo presente recurso, o que pretendem é fazer substituir a livre apreciação da prova por parte do Mmº Julgador, pela imposição da sua própria perspetiva dos factos, vergando-os conforme o sentido e a interpretação que mais lhes interessa e convém.

D - De facto, não existe qualquer contradição entre a prova produzida e a decisão proferida sobre a matéria de facto.

E - E tão pouco a matéria de facto assente por provada conduz a uma qualificação jurídica diversa daquela que foi efetuada pelo Tribunal “ad quo”.

F - No caso dos autos, os Recorrentes mais não pretendem do que fazer substituir a segurança e certeza da sentença pela incongruência dos argumentos da sua alegação, designadamente no que se refere à interpretação que fazem da prova produzida quanto a uma putativa violação das regras de segurança em obra por parte da aqui Recorrida, para daí tentarem colher o benefício de um agravamento do quantum indemnizatório que reclamam.

G – Em face de tudo quanto veio de se alegar, entendemos que dos fundamentos de recurso dos Recorrentes não se vislumbram argumentos ou razões que justifiquem uma valoração e sentido diferente do vertido na decisão recorrida.

H – Em suma, a decisão proferida, pelos fundamentos invocados pelos Recorrentes não é merecedora de qualquer juízo ou reparo ou censura, tal qual os Recorrentes pretendem ver declarado, não se verificando, por conseguinte, qualquer violação dos dispositivos legais aplicáveis, à luz dessas mesmas razões tal qual vêm formuladas as conclusões dos Recorrentes.

I - Devendo, nessa, medida, o presente recurso improceder in totum, pois não se verificam os fundamentos necessários ao seu mérito.

 

9. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedida a revista.

10. Nas suas conclusões, os recorrentes suscitam as seguintes questões que cumpre solucionar:

1. Se o Tribunal da Relação decidiu bem ao ter rejeitado a reapreciação da matéria de facto, por ter considerado que os recorrentes não cumpriram os ónus a que estavam obrigados pelo artigo 640.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil;

2. Se a interpretação dada pelo Tribunal da Relação ao artigo 640.º do Código de Processo Civil é inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição.

II


A) Fundamentação de facto:

O Tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1) "EE nasceu no dia .. de ... de 1973 (alínea A) dos factos assentes).

2) É filho de FF e de DD, aqui 4ª Autora (alínea B) dos factos assentes).

3) DD, aqui 4.ª Autora, nasceu no dia .. de ... de 1952, casou com FF em 16 de setembro de 1972 e o seu casamento foi dissolvido por óbito do cônjuge marido em .. de ... de 1995 (alínea C) dos factos assentes).

4) EE faleceu no dia 9 de fevereiro de 2018, no estado de casado com AA, aqui 1a Autora (alínea D) dos factos assentes).

5) AA, aqui 1a Autora, nasceu no dia .. de ... de 1980 (alínea E) dos factos assentes).

6) BB, aqui 2.ª Autora, nasceu no dia .. de ... de 2007, e é filha de EE e de AA (alínea F) dos factos assentes).

7) CC, aqui 3.º Autor, nasceu no dia .. de ... de 2015 e é filho de EE e de AA (alínea G) dos factos assentes).

8) No dia 9 de fevereiro de 2018, entre as 13.00 horas e as 13.20 horas, EE sofreu um acidente em ... (alínea H) dos factos assentes).

9) À data do acidente o Sinistrado EE exercia as funções de encarregado, sob as ordens, direção e fiscalização da aqui 2a Ré Construções Pardais, Irmãos Monteiros, Lda, mediante a retribuição de €1.125,00 x 12 + €700,00 x 2 (total anual de €14.900,00) (alínea I) dos factos assentes e resposta ao artigo 1° dos temas da prova).

10) Em consequência do acidente o Sinistrado EE sofreu asfixia por sufocação devido ao soterramento e as lesões traumáticas descritas no relatório de autópsia de fls. 42 a 45, o que lhe determinou, como consequência direta e necessária, a morte no dia 9 de fevereiro de 2018 (alínea J) dos factos assentes).

11) O Sinistrado EE foi a sepultar no cemitério de ..., concelho ... (alínea L) dos factos assentes).

12) A 2.ª Ré dedica-se à atividade de construção civil e obras públicas (alínea M) dos factos assentes).

13) À data de 9 de fevereiro de 2018 encontrava-se transferida da 2.ª Ré para a Ré seguradora a responsabilidade por acidentes de trabalho do conjunto dos trabalhadores daquela, sofridos quando ao serviço ou por conta da sociedade aqui 2a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n° ...40, válido quanto ao Sinistrado EE com base na retribuição de €767,00 x 14 meses + €126,50 x 11 (total anual de €12.129,50) (alínea N) dos factos assentes).

14) No dia 9 de fevereiro de 2018 a 2.ª Ré, no exercício da sua atividade e numa empreitada que lhe havia sido adjudicada, assumia uma obra de construção civil que consistia na execução de trabalhos de drenagem e construção de infraestruturas numa rede pública de saneamento e abastecimentos de águas, que decorria na Rua ..., sita em ..., ... (alínea O) dos factos assentes).

15) Para a execução dessa empreitada, a 2.ª Ré destacou para aquele local uma equipa de trabalhadores seus, onde se incluía o Sinistrado EE (alínea P) dos factos assentes).

16) Para cumprimento do plano de boa execução dessa obra a 2.ª Ré ali utilizou, pelo menos, uma máquina industrial e com esse meio mecânico ordenou aos seus trabalhadores que procedessem à abertura de uma vala (alínea Q) dos factos assentes).

17) Nos momentos que antecederam o acidente essa vala já tinha cerca de 25 metros de comprimento por 4 metros de altura (alínea R) dos factos assentes).

18) Desde o início da jornada desse dia 9 de fevereiro de 2018 até ao final da manhã, por ordens e instruções da 2.ª Ré, procedeu-se à colocação de uma caixa de saneamento/visita para, posteriormente a isso, efetuar-se o aterro da dita vala (alínea S) dos factos assentes).

19) Ainda na parte da manhã desse dia 9 de fevereiro de 2021, por ordens e instruções da 2.ª Ré, parte da entivação que antes estivera colocada a montante da caixa de saneamento/visita visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso foi retirada e procedeu-se ao aterro parcial dessa parte da vala (resposta ao artigo 2°, 2.2, dos temas da prova, artigo 11° da contestação da Ré Seguradora).

20) Logo após a paragem para o intervalo de almoço desse dia 9 de fevereiro de 2018, quando os trabalhadores GG, HH e II se preparavam para retomar os trabalhos no local da obra, deu-se um desprendimento das terras do talude da vala, a jusante da caixa de saneamento visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso, soterrando o Sinistrado EE no interior da vala e causando-lhe a morte, não tendo sido possível apurar em que circunstâncias e de que modo o sinistrado foi parar ao interior da vala. (resposta ao artigo 2°, 2.2, dos temas da prova, artigo 12° da contestação da Ré Seguradora).

21) O sinistro ocorreu quando o Sinistrado EE ficou soterrado, a jusante da caixa de saneamento/visita visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso, devido ao desprendimento das terras do talude da vala desse lado jusante (resposta ao artigo 2°, 2.1, dos temas de prova, artigo 9° da petição inicial).

22) Na manhã desse dia 9 de fevereiro de 2018, a mando e no interesse da 2.ª Ré, naquela obra estiveram em funcionamento e em movimentação duas máquinas, sendo uma a retroescavadora que havia sido usada para a abertura da dita vala e a outra uma escavadora (resposta ao artigo 2.º, 2.2, dos temas de prova, artigo 13.º da contestação da Ré Seguradora).

23) Durante e no decurso dessa empreitada essas máquinas, incluindo a retroescavadora que a 2.ª Ré usou para abrir a vala, na sua movimentação provocavam trepidações e vibrações no solo (resposta ao artigo 2°, 2.2, dos temas de prova, artigo 16° da contestação da Ré Seguradora).

24) A 2.ª Ré não efetuou qualquer estudo geotécnico e/ou geológico dos solos, de forma a conhecer a qualidade e as características do terreno no local onde iria efetuar os trabalhos nem mandou fazer tais estudos (resposta ao artigo 2°, 2.2, dos temas de prova, artigo 15° da contestação da Ré Seguradora).

25) O acidente ocorreu após a paragem para o intervalo da hora do almoço, quando os trabalhadores GG, HH e II se preparavam para retomar os trabalhos no local da obra (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigo 12.º da contestação da 2.ª Ré).

26) Aquando do sinistro não se encontrava a decorrer a execução de nenhuma tarefa específica, encontrando-se os trabalhadores GG, HH e II ainda a prepararem-se para retomar os trabalhos no local da obra, não tendo sido possível apurar em que circunstâncias e de que modo o sinistrado foi parar ao interior da vala (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigos 14° e 29° da contestação da 2.ª Ré).

27) O Sinistrado era o encarregado da frente de obra onde ocorreu o sinistro e sabia que a vala, a jusante da caixa de saneamento/visita, visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso, ainda estava a ser entivada (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 15.º da contestação da 2.ª Ré).

28) A jusante da caixa de saneamento/visita, visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso, de cada um dos lados da vala encontravam-se as entivas que iriam ser colocadas na vala, encontrando-se no seu interior já colocada uma entiva, visível na fotografia de fls. 17 (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 16.º da contestação da 2.ª Ré).

29) O trabalho de entivação da vala a jusante da caixa de saneamento/visita, de acordo com o cronograma da obra, iria ser finalizado ao longo desse dia 9 de fevereiro de 2018, tendo sido interrompido para a pausa do almoço (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigo 17.º e 34.º da contestação da 2.ª Ré).

30) Por isso, nenhum trabalhador estava autorizado ou recebeu ordens para descer à vala a jusante da caixa de saneamento/visita e realizar lá qualquer tipo de trabalhos, na medida em que a mesma ainda não estava entivada na sua totalidade (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 18.º e 47.º da contestação da 2.ª Ré).

31) Muito menos para o fazer desacompanhado (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 19° da contestação da 2.ª Ré).

32) O Sinistrado era um trabalhador experiente neste tipo de trabalho, conhecedor dos riscos inerentes, e sabia que a vala, a jusante da caixa de saneamento/visita, visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso, ainda estava a ser entivada (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 20.º da contestação da 2.ª Ré).

33) O Sinistrado tinha recebido formação de segurança, ministrada de acordo com o plano de segurança de obra (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 23.º da contestação da 2.ª Ré).

34) O Sinistrado, antes do início das funções para que estava habilitado, participou na formação relativa a procedimentos de segurança a adotar na entrada em obra, incluindo nos casos de execução de trabalhos de escavação (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 24.º da contestação da 2.ª Ré).

35) O Sinistrado estava envolvido no projeto desde o seu início, tendo à data do acidente já decorrido mais de 6 meses de trabalhos, encontrando-se já executados cerca de 8 Km de vala para colocação das condutas, estando os trabalhos a decorrer na sua fase final numa frente de cerca de 100 metros para conclusão da obra (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 26.º da contestação da 2.ª Ré).

36) Conhecendo os procedimentos de segurança (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 27° e 45° da contestação da 2.ª Ré).

37) Os trabalhadores sabiam que, de acordo com os procedimentos e regras de segurança nos trabalhos que estavam a ser executados, e até que a vala estivesse completamente entivada, era proibido o acesso à mesma (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigos 28° e 48° da contestação da 2.ª Ré).

38) O Sinistrado estava apetrechado, pelo menos, com capacete de proteção e botas de proteção. (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 30.º da contestação da 2.ª Ré).

39) As máquinas destinadas à escavação e aterro da vala, na altura do acidente não se encontravam em funcionamento nem a manobrar, tendo sido parqueadas no final do período da manhã, não tendo ainda retomado o funcionamento quando ocorreu o acidente. (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigo 31° da contestação da 2.ª Ré).

40) À data do acidente o Sinistrado era estimado por familiares, amigos e colegas de trabalho (resposta ao artigo 5.º dos temas de prova, artigo 24.º da petição inicial).

41) Devotava a sua esposa, a seus filhos e a sua mãe muita estima, amizade e carinho (resposta ao artigo 5° dos temas de prova, artigo 25° da petição inicial).

42) Os Autores sofreram profundamente quando lhes chegou a notícia de que o Sinistrado havia sofrido um acidente (resposta ao artigo 5° dos temas de prova, artigo 26.º da petição inicial).

43) Dor que se manteve intensa até à data do seu funeral e nos dias seguintes (resposta ao artigo 5.º dos temas de prova, artigo 27.º da petição inicial).

44) Os Autores ainda hoje mantém e vão continuar a manter, por muito mais tempo, profundo desgosto e pesar (resposta ao artigo 5.º dos temas de prova, artigo 28.º da petição inicial).

45) Sofrimento e pesar que se acentua nas datas festivas, como aniversários, Páscoa e Natal (resposta ao artigo 5.º dos temas de prova, artigo 29.º da petição inicial).

46) A morte do Sinistrado, com quem a 1.ª Autora mantinha uma muito boa relação conjugal, deixou-a numa situação de privação de vida sexual, uma vez que a 1.ª Autora, pela sua formação cívica e religiosa, se sente incapaz de reatar a sua vida sexual, situação que a deprime e angustia (resposta ao artigo 5.º dos temas de prova, artigo 32.º da petição inicial).

47) A 4.ª Autora, à data do acidente, apenas auferia como rendimento a pensão de sobrevivência no valor de €175,80 (resposta ao artigo 6° dos temas de prova, artigo 33° da petição inicial).

*

Mais se fez constar, como «factos não provados», o seguinte:

- A morte do Sinistrado EE ficou a dever-se à inexistência de estudos geotécnicos e geológicos que permitissem o conhecimento das características do solo e do seu comportamento face aos cortes e escavações efetuadas; ao facto de o local ser composto de solo arenoso e não consistente; às vibrações junto do talude devido à movimentação das máquinas na sua proximidade e à ausência de entivação da escavação na zona da vala / trincheira onde o Sinistrado se encontrava, que não permitiu a contenção de terras (resposta ao artigo 2°, 2.1, dos temas de prova, artigo 10° da petição inicial).

- Os terrenos onde a 2a Ré decidiu abrir a vala eram de composição arenosa, sem consistência desses solos (resposta ao artigo 2°, 2.2, dos temas de prova, artigo 14° da contestação da Ré Seguradora).

- A causa única do acidente que vitimou o Sinistrado EE foi a movimentação descontrolada das terras que estavam acumuladas à margem da vala onde se encontrava (resposta ao artigo 2°, 2.2, dos temas de prova, artigo 17° da contestação da Ré Seguradora).

- E essa causa única foi exclusivamente resultante da inexistência de estudo geotécnico e geológico ao terreno onde decorria a obra aliado à pouca consistência das terras por efeito da sua composição arenosa dos solos no local da obra e da trepidação provocada pela constante movimentação de máquinas industriais usadas na empreitada pela 2a Ré e ainda aliado à total ausência de entivação na zona da vala onde se encontrava o Sinistrado no exercício das funções que ali prestava ao seu empregador (resposta ao artigo 2°, 2.2, dos temas de prova, artigo 18°, 19° e 20° da contestação da Ré Seguradora).

- Nenhum dos trabalhadores da 2a Ré que se encontravam no local e afetos à obra se apercebeu ou viu o trabalhador vitimado descer à vala (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigo 13° da contestação da 2.ª Ré).

- Ao Sinistrado estavam-lhe acometidas as responsabilidades de chefia de obra quando não se encontrava na mesma o Encarregado Geral da Obra (resposta ao artigo 2°, 2.3 dos temas de prova, artigo 25° da contestação da 2.ª Ré).

- O acidente ficou a dever-se, única a exclusivamente, à conduta temerária e negligente do Sinistrado, que violou grosseiramente as regras de segurança em obra. (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigo 32° da contestação da 2.ª Ré).

- Ao descer à vala sem avisar ninguém, sem a supervisão ou acompanhamento de outros colegas de trabalho (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 33.º da contestação da 2.ª Ré).

- O Sinistrado desrespeitou os procedimentos de segurança implementados na obra (resposta ao artigo 2.º, 2.3, dos temas de prova, artigo 43.º da contestação da 2.ª Ré).

- O que fez sem qualquer causa justificativa (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigo 44° da contestação da 2a Ré).

- O Sinistrado atuou sem a observância das normas e dos procedimentos de segurança na obra (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigo 46.º da contestação da 2.ª Ré).

- A 1.ª Autora despendeu a quantia de €10 em deslocações a Tribunal (resposta ao artigo 3° dos temas de prova).

- A 4.ª Autora despendeu a quantia de €10 em deslocações a Tribunal (resposta ao artigo 4° dos temas de prova).

- O Sinistrado não faleceu instantaneamente, tendo decorrido alguns instantes entre o momento das lesões e o da morte (resposta ao artigo 5.º dos temas de prova, artigo 33.º da petição inicial).

B) Fundamentação de Direito:

Os recorrentes questionam a decisão do Tribunal da Relação que rejeitou a reapreciação da matéria de facto, por ter considerado que aqueles não cumpriram os ónus a que estavam obrigados pelo artigo 640.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.

Sustentam que a interpretação dada pelo Tribunal da Relação ao artigo 640.º do Código de Processo Civil é inconstitucional por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos a parte do acórdão do Tribunal da Relação que se debruçou sobre a questão:

«Dirigem os Recorrentes o recurso também à reapreciação da matéria de facto.

Nas contra-alegações defende a Apelada / empregadora que o recurso deve ser rejeitado, por falta de cumprimento pelos Recorrentes dos ónus legais.

Cumprindo-nos apreciar, diremos o seguinte:

Dispõe o n.° 1 do artigo 662. ° do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.

O recorrente deve, porém, nestes casos, observar os ónus de impugnação previstos no artigo 640. °, no qual se dispõe:

"1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.°s 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.° 2 do artigo 636.°.".

Nas palavras de Abrantes Geraldes, "(...) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.a instância”. Contudo, como também sublinha, "(..) a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662. ° não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter”.

Tendo por base os supra citados dispositivos legais, teremos de considerar que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância - pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição  -, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão dada, exigindo antes da parte que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos, sem limitar porém o segundo grau de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção - não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.°, n° 5 do CPCivil .

Do exposto resulta, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação que se analisa, não se satisfazendo como se disse com a mera indicação genérica da prova que na perspetiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, impõe ao recorrente que concretize quer os pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância quer, ainda, que especifique quais as provas produzidas que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, sendo que, quando esse for o meio de prova, se torna também necessário que indique "com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição".

Discorrendo sobre a matéria, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2016 que, "Como resulta claro do art. 640° n° 1 do CPCivil, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto." Observa-se também no Acórdão do mesmo Tribunal de 7 de julho de 2016 que, "para que a Relação possa apreciar a decisão da 1a instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640°, n° 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c)" Ainda, no mesmo sentido, conclui-se no Acórdão do mesmo Tribunal de 27 de outubro de 2016  - proferido num caso em que o Tribunal da Relação não conheceu do recurso relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto não pelo incumprimento pela recorrente no corpo das alegações, dos ónus impostos pelos n.ºs 1 e 2, al. a) do art. 640° e sim pelo facto de se terem omitido nas conclusões a indicação de quais as alíneas da matéria de facto provada e/ou quais os números da matéria de facto não provada que se impugnam, bem como a decisão, que no entender do recorrente, deveria ser proferida sobre esses concretos pontos da factualidade provada e/ou não provada -, que o "Supremo Tribunal já por variadas vezes se pronunciou sobre a questão, tendo, de forma reiterada, decidido que, para cumprimento dos ónus impostos pelo art. 640° do CPC, o recorrente terá que indicar nas conclusões, com precisão, os pontos da matéria de facto que pretende que sejam alterados pelo tribunal de recurso e a decisão alternativa que propõe." . Em conformidade com esse entendimento, aí se conclui, também, que "perante a sobredita omissão, não havia lugar ao convite ao aperfeiçoamento, mas à rejeição do recurso no tocante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto." Ainda, por último, mais recentemente, resulta do Acórdão do mesmo Tribunal de 5 de Setembro de 2018  que a "alínea b), do n° 1, do art. 640° do CPC, ao exigir que o recorrente especifique "os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida", impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos", sendo que "não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três "blocos distintos de factos" e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna".

Sendo o anteriormente afirmado o regime legal, importando verificar se a esse se deu cumprimento no caso, a conclusão a que chegamos é negativa, como aliás se sustenta nas contra-alegações.

É que, sendo verdade que os Recorrentes indicam nas conclusões pontos de facto provados e não provados a que dizem estar a dirigir o recurso, para além de sequer indicarem expressamente com um mínimo de rigor a redação dos pontos provados que pretendem que sejam alterados e dos não provados que pretendem ver provados, acabam também por fazer em grande parte uma impugnação em bloco e dirigida a temas, assim nomeadamente quanto ao cumprimento das normas de segurança, como ainda, por último, indicando a prova mais uma vez em bloco, ou seja para o conjunto de factos / ou temas.

O que referimos anteriormente, assim em particular sobre o modo de impugnação em bloco de factos ou temas, é desde logo percetível em face do que é mencionado logo inicialmente e de modo expresso nas alegações - quando se diz: "Tentaremos, abaixo, indicar os factos provados que mesmo assim deveriam ter outra formulação e os factos não provados que deveriam ter sido considerados provados tendo por base os depoimentos das testemunhas e os demais elementos objetivos constantes dos autos "-, fazendo-se de seguida uma transcrição dos pontos provados e não provados, assinalando-se a negrito e ou sublinhado algumas passagens desses - referindo-se que tal se iria realizar: "Iremos transcrever a factualidade provada e não provada, colocando a negrito os factos sobre os quais iremos desenvolver a nossa alegação" -, após o que se fez constar (pág. 9 e seguintes) a expressão "Concretos pontos de facto consideram incorretamente julgados", seguida do seguinte: «Factos provados que devem ser alterados:

Facto 20 - Aqui refere-se que: "...deu-se um desprendimento das terras do talude da vala, a jusante da caixa de saneamento visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso, soterrando o Sinistrado EE no interior da vala e causando-lhe a morte, não tendo sido possível apurar em que circunstâncias e de que modo o sinistrado foi parar ao interior da vala.

Observação: O desprendimento de terras ocorrido foi a montante da caixa de visita e não a jusante, ou seja, foi na zona que não se encontrava entivada. Logo, dever-se-á alterar a palavra a "jusante" pela expressão "a montante" [como veremos infra com os depoimentos, mas acima de tudo com as fotografias].

Facto 21 - O sinistro ocorreu quando o Sinistrado EE ficou soterrado, a jusante da caixa de saneamento/visita visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso, devido ao desprendimento das terras do talude da vala desse lado jusante" Observação: tal como se referiu no facto acima, o desprendimento de terras que se deu foi a montante e não a jusante, ou seja, foi na zona que não se encontrava entivada. Logo, dever-se-á alterar a expressão "a jusante" pela expressão "a montante" [como veremos infra].

Facto 25 - O acidente ocorreu após a paragem para o intervalo da hora do almoço, quando os trabalhadores GG, HH e II se preparavam para retomar os trabalhos no local da obra.

Observação: Apesar de tal facto ter sido parcialmente provado, a testemunha II referiu que tinha ido ao interior da caixa de visita [o que implicou descer à vala, colocar uma escada na parte de fora e outra no interior, como explicou], logo, quanto à testemunha II, a mesma já tinha dado início aos trabalhos. Facto 26: Aquando do sinistro não se encontrava a decorrer a execução de nenhuma tarefa específica, encontrando-se os trabalhadores GG, HH e II ainda a prepararem-se para retomar os trabalhos no local da obra, não tendo sido possível apurar em que circunstâncias e de que modo o sinistrado foi parar ao interior da vala, devido ao desprendimento das terras do talude da vala desse lado jusante. (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigos 14° e 29° da contestação da 2a Ré).

Observação: De acordo o depoimento da testemunha II, este já estava a desempenhar uma tarefa especifica sendo por isso falso que se não estivesse a desempenhar qualquer tarefa especifica.

Por outro lado, volta-se a dizer-se que o desprendimento de terras do talude foi "a jusante" quando ele ocorreu "a montante" [na zona entivada não houve desprendimento de terras, exatamente porque já se encontrava entivada]. Logo, deverá assentar-se que:

Aquando do sinistro o trabalhador II encontrava-se no interior da caixa de visita, estando os demais a preparar-se para retomar os trabalhos no local da obra, não tendo sido possível apurar em que circunstâncias e de que modo o sinistrado foi parar ao interior da vala, devido ao desprendimento das terras do talude a montante da mesma.

Factos indevidamente considerados como não provados:

- A morte do Sinistrado EE ficou a dever-se:

- À ausência de entivação da escavação na zona da vala/trincheira onde o Sinistrado se encontrava, que não permitiu a contenção de terras (resposta ao artigo 2°, 2.1, dos temas de prova, artigo 10° da petição inicial).

Observação: Resulta da observação das fotos, designadamente das de fls. 17, 17v, entre outras. Resulta também do depoimento do inspetor do ACT e, bem assim, das demais testemunhas [como veremos infra]. E bem assim,

- À inexistência de estudos geotécnicos e geológicos que permitissem o conhecimento das características do solo e do seu comportamento face aos cortes e escavações efetuadas e ao facto de o local ser composto de solo arenoso e não consistente; Observação: a própria Ré admitiu não ter realizado tais estudos; resulta do depoimento do inspetor da ACT a sua importância e o tipo de solo existente no local [como veremos infra].

- Os terrenos onde a 2.ª Ré decidiu abrir a vala eram de composição arenosa, sem consistência desses solos (resposta ao artigo 2°, 2.2, dos temas de prova, artigo 14° da contestação da Ré Seguradora).

Observação: Resulta do depoimento do inspetor da ACT - JJ [como veremos infra].

- Nenhum dos trabalhadores da 2.ª Ré que se encontravam no local e afetos à obra se apercebeu ou viu o trabalhador vitimado descer à vala (resposta ao artigo 2°, 2.3, dos temas de prova, artigo 13° da contestação da 2a Ré).

Observação: da audição dos vários trabalhadores presentes, nenhum referiu que se tenha apercebido do trabalhador vitimado a descer à vala. Logo, tal facto tem de ser dado como provado.»

Do que antes se transcreveu resulta uma mera indicação dos pontos que se diz que se pretendem impugnar, seguida quanto a cada um desses de meras observações dos Recorrentes sobre o que porventura resultaria da prova produzida, mas com mera indicação, aliás nem sempre, "como veremos infra".

Ora, em face das alegações, após a inclusão da expressão «Concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados», os Recorrentes limitam-se, depois de referirem "Existem elementos de prova que permitem, não só corrigir os factos dados como provados da forma supra enunciada, como dar como provados os factos dados como não provados acima identificados, nomeadamente através do depoimento das testemunhas e da prova documental juntas aos autos", a referir "passaremos, abaixo, a analisar os depoimentos das testemunhas que entendemos ser relevantes para dar como provados os factos acima enunciados como não provados", como ainda "indicaremos as concretas passagens da gravação com referência ao dia, hora, minuto e segundo, separados por dois pontos e efetuaremos resumo do que é dito pela testemunha e, por vezes, teceremos alguns comentários", sendo que, em concretização desse modo indicado de atuar, se referem seguidamente a vários depoimentos de testemunhas, assim KK, II e JJ, indicando, quanto a cada uma dessas, várias referências a minutos e segundos do registo da gravação, seguidas do que parece ser a conclusão que retiram de cada uma dessas passagens e de observações que tecem a seu respeito, sem que, porém, sequer, importa dizê-lo, associem expressamente a qualquer dos pontos de facto que pretendem impugnar, assim os que antes mencionaram, qualquer dessas indicadas passagens dos depoimentos.

Ou seja, a indicação da referida prova não é realizada, como se imporia, em cumprimento dos ónus legais que antes mencionámos, em relação a cada um dos factos impugnados, o que aliás é mais uma vez evidenciado nas alegações quando seguidamente se passou à «ANÁLISE DOS DEPOIMENTOS», fazendo-se constar o seguinte: "Este é daqueles acidentes em que até podíamos não ter testemunhas. As fotografias são de tal maneira demonstrativas da violação grosseira das regras de segurança que não precisaríamos de ouvir ninguém. Ouvindo os vários intervenientes, à exceção do inspetor da ACT, todos tentam encobrir alguns factos, todos tentam proteger a entidade empregadora. Todavia, como já dissemos acima, o indefensável não tem defesa possível, e, por isso, todos eles acabam por admitir que se existisse entivação as terras não se tinham desprendido e a malograda vítima não teria falecido. Veja-se a seguinte foto que faz parte integrante do relatório fotográfico da própria entidade patronal e que se encontra nos autos (...) Aqui percebe-se que esta era a única, repita-se, única placa de entivação ao longo dos 25 metros de vala (com 4 metros de profundidade). Nesta foto também se percebe que na zona onde a placa se encontra não houve desprendimento de terras, ou seja, se a montante da caixa de visita estivessem colocadas as entivações as terras que se soltaram e que tiraram a vida à infeliz vítima nunca se teriam desprendido. É facto notório! Veja-se também a seguinte foto (que consta dos autos): (...) Aqui também se consegue perceber a extensão e profundidade da vala e bem assim que a terra era arenosa, mole. Digamos que as presentes fotografias na nossa modesta opinião são suficientes para se dar como provada a violação das regras de segurança, sem mais. Quanto ao nexo causal, também nos parece notório, foi a falta de entivação que provocou que o sinistrado fosse soterrado e consequentemente viesse a falecer. Salvo o devido respeito, que é muito, não interessa se a vítima estava em baixo na vala, se estava em cima, tropeçou e caiu, se foi levada pelas terras entre muitas outras hipóteses, em qualquer das situações a causa da morte foi apenas uma: falta de entivação! Falta de entivação foi a principal causa que obviamente foi agravada por outras causas concorrentes, a saber: máquinas a trabalhar na vala (pelo menos durante a manhã) sem entivação e o total desconhecimento do tipo de solo (devido à inexistência de estudos geológicos e geotécnicos). Tentar, como tentou (numa fase posterior) sacudir as responsabilidades para o malogrado sinistrado não só consubstancia má-fé, como desconhecimento, pois tal nunca iriam afastar a responsabilidade da entidade empregadora uma vez que o comportamento nunca seria causa única e exclusiva do acidente. Pese embora as testemunhas por vezes se refiram à vítima como sendo "o chefe" o "cérebro", como é óbvio não era este que decidia quando e como era feita a entivação. Para isso existia uma equipa de segurança que estava permanentemente em obra, com escritórios a cerca de 300 metros do local do acidente e que fiscalizava permanentemente a obra. Assim, nada se provou relativamente ao malogrado sinistrado e, em sentido oposto, demonstrou-se, à saciedade, que houve violação clara das regras de segurança. Basta ler as acima indicadas passagens (e os comentários) para se constatar o óbvio - violação grosseira das regras de segurança - falta de entivação, e que foi essa falta de entivação que deu causa à morte da infeliz vítima."

Porque assim se conclui, não se configurando o caso como enquadrável no conceito de deficiência das conclusões que possa fundar convite ao aperfeiçoamento de acordo com o n.° 3 do artigo 639.° CPC, e sim, diversamente, de omissão de um requisito legal que conduz à rejeição do recurso nessa parte, como se prescreve no artigo 640.°, n.° 1, do mesmo Código, perante as sobreditas omissões de cumprimento dos ónus legais, impõe-se rejeitar o recurso no que se refere à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Por decorrência do exposto, rejeita-se o recurso na parte dirigida à reapreciação da matéria de facto.»

(fim da transcrição parcial do Acórdão do Tribunal da Relação)

*

Tendo presente as conclusões do recorrente, acima transcritas, vejamos de lhe assiste razão.

O artigo 640.º do Código de Processo Civil, com a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto» estatui o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

A atual redação desta disposição legal foi introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e encontra correspondência, embora com algumas alterações, no art.º 685.º do anterior Código de Processo Civil, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/8.

António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016 – 3.ª Edição, Almedina, pág. 136 e seguintes) refere que as alterações mais salientes introduzidas na nova redação caracterizam-se pelo reforço do ónus de alegação, devendo o recorrente, sob pena de rejeição, indicar a resposta que, no seu entender, deve ser dada às questões de facto impugnadas, e relativamente a provas gravadas basta ao recorrente a indicação exata das passagens da gravação, não sendo obrigatória em caso algum a sua transcrição.

O citado autor, numa apreciação da evolução histórica do instituto da «Modificabilidade da decisão de facto», sublinha que a possibilidade de alteração da matéria de facto deixou de ter carácter excecional para se assumir como uma função normal do Tribunal da Relação, verificados que estejam os requisitos impostos pela lei. No entanto, adverte que «Nesta operação foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente».

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se, em diversos acórdãos, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, firmando uma linha jurisprudencial que iremos procurar sintetizar.

No que diz respeito ao enquadramento processual da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou no acórdão de 3/12/2015, proferido no processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1.S1 (Revista-4.ª Secção), que se o Tribunal da Relação decide não conhecer da reapreciação da matéria de facto fixada na 1.ª instância, invocando o incumprimento das exigências de natureza formal decorrentes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, tal procedimento não configura uma situação de omissão de pronúncia.

No mesmo acórdão refere-se que o art.º 640.º, do Código de Processo Civil exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.

Acrescenta-se que este conjunto de exigências se reporta especificamente à fundamentação do recurso não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1e 2 do CPC.

Por fim, conclui-se que versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados.

A propósito do conteúdo das conclusões, o acórdão de 11-02-2016, proferido no processo n.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1 (Revista) – 4.ª Secção, refere que tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna (Cfr. no mesmo sentido acórdãos de 18/02/2016, proferido no processo n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03/03/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12/05/2016, proferido no processo n.º 324/10.9TTALM.L1.S1 e de 13/10/2016, proferido no processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, todos da 4.ª Secção).

No que diz respeito à exigência prevista na alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o acórdão de 20-12-2017, proferido no processo n.º 299/13.2TTVRL.C1.S2 (Revista) - 4ª Secção, afirma com muita clareza que quando se exige que o recorrente especifique «os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», impõe-se que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

Quanto ao caso em análise no aludido acórdão referiu-se que não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três «blocos distintos de factos» e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.

Acerca da natureza do ónus de alegação, quando se pretenda impugnar a matéria de facto, o acórdão de 09-02-2017, proferido no processo n.º 471/10.7 TTCSC.L1.S1 (Revista – 4.ª Secção), sublinhou que «Ao impor um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância, daí que o prazo acrescido de 10 dias só seja aplicável quando o recorrente o use efetivamente para impugnar a matéria de facto».

Finalmente, na linha da doutrina (Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016-3.ª Edição, Almedina, pág. 142), o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito (Cfr. acórdãos de 7/7/2016, proferido no processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1 e de 27/10/2016, proferido no processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, ambos da 4.ª Secção).

Mais recentemente, a propósito desta problemática, a Secção Social deste Supremo Tribunal voltou a sublinhar:

- A alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

- Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna. (Acórdão de 19-12-2018, proferido no Proc. n.º 271/14.5TTMTS.P1. S1 e Acórdão de 05-09-2018, proferido no Proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1. S2.)

- Da conjugação do art.º 640.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Civil, com o disposto no art.º 639.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, resulta que o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto tem de fazer consignar nas suas conclusões os concretos pontos de facto que pretende impugnar e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida. (Acórdão de 31-10-2018, proferido no Proc. n.º 2820/15.2T8LRS.L1. S1.)

- Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

- Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1, do artigo 640.º, do Código de Processo Civil. (Acórdão de 06-06-2018, proferido no Proc. n.º 1474/16.3T8CLD.C1. S1.)

- Não cumpre o ónus imposto pelo n.º 2, al. a), do artigo 640.º do Código de Processo Civil - indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância - o recorrente que nem indicou as passagens da gravação, nem procedeu à respetiva transcrição e se limitou a fazer um resumo, das partes pertinentes desses depoimentos. (Acórdão de 06-06-2018, proferido no Proc. n.º 125/11.7TTVRL.G1. S1.)

 

- Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração.

- Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art.º 640.º do Código de Processo Civil e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do n.º 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso.

- Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada, mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art.º 640.º, n.º 1, als. a) e c) do Código de Processo Civil, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte. (Acórdão de 16-05-2018, proferido no Proc. n.º 2833/16.7T8VFX.L1. S1.)

- A exigência, imposta pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.

- Não cumpre aqueles ónus o apelante que, nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando-se a transcrever as declarações, a mencionar documentos, tomando como referência determinados tópicos que elencou. (Acórdão de 11-04-2018, proferido no Proc. n.º 789/16.5T8VRL.G1. S1.)

̶  As coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à interpretação do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil, referente ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido.

̶ A verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteada pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

̶ Não cumprem o ónus imposto pelo art.º 640.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil os recorrentes que não concretizaram, por referência a cada um dos mencionados factos que impugnaram, quais os meios probatórios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1.ª Instância, não indicando também a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre a matéria de facto, relativamente a determinados factos impugnados (Acórdão do STJ de 6/11/2019, Processo n.º 1092/08.0TTBRG.G1.S1).

̶ A exigência, imposta pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.

̶ Quando o conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente sejam comuns a esses factos, a impugnação dos mesmos em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar, pelo que deve ser admitida a impugnação (Acórdão do STJ de 19/5/2021, Processo 4925/17. 6T80AZ.P1. S1)

̶ É excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em “blocos” quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado com precisão os meios de prova e as formulações alternativas que pretendia ver adotadas. (Acórdão de 14-07-2021, Proc. n.º 19035/17.8T8PRT.P1. S1)

Toda a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre a problemática em causa é norteada pelo princípio da proporcionalidade, havendo sempre a preocupação de efetuar uma análise rigorosa em face de cada caso concreto.

Nessa linha, as coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido.

Atenta a doutrina e jurisprudência que foram sendo firmadas, podemos concluir que o recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, deve:

– Concretizar cada um dos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

– Especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que essa concretização deve ser feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos;

– Enunciar a decisão alternativa que propõe; 

– Indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância com o decidido (tratando-se de prova gravada).

No caso concreto, analisando as conclusões do recurso de apelação, verificamos que nas 6.ª e 7.ª conclusões, os recorrentes indicam os pontos de facto que consideram incorretamente julgados (factos assentes n.ºs 16, 20, 21, 22, 26 e 27 e os primeiro, segundo, quarto e quinto factos não provados, correspondentes às alíneas a), b), d) e e)).

Nas 8.ª, 9.ª e 10.ª conclusões, os recorrentes indicam o sentido das alterações pretendidas. É certo que não transcrevem a redação que pretendem que seja dada a cada um dos factos. Todavia, a lei não impõe essa transcrição, mas apenas a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida.

As alterações são indicadas em três blocos: para os factos n.ºs 20 e 21, para os factos n.ºs 25 e 26 e para os factos não provados.

Uma vez que a alteração pretendida pelos recorrentes quanto os factos assentes em cada um dos blocos é a mesma (a localização do acidente a montante da caixa de saneamento/visita e o facto de, no momento do acidente, o trabalhador II já ter dado início aos trabalhos, respetivamente), nada obsta à sua indicação conjunta (sendo que no corpo das alegações a alteração é indicada individualmente para cada um dos factos).

Contudo, ainda quanto aos factos assentes, não há uma coincidência entre os factos indicados na 6.ª conclusão e nas 8.ª e 9.ª conclusões[1].

Com efeito, quanto aos factos n.ºs 16 e 22 não é indicado o sentido da alteração pretendida (nem os concretos meios de prova que imporiam decisão distinta), sendo que o mesmo também não consta do corpo das alegações.

Aliás, a leitura das alegações suscita a dúvida sobre se os recorrentes pretendiam efetivamente impugnar estes dois factos (em momento algum, contestam o facto de terem andado máquinas a trabalhar no local), ou se pretendiam apenas chamar a atenção para o facto de as máquinas terem andado na obra e terem contribuído para a instabilidade do solo e consequentemente terem concorrido para a causa do acidente.

Porém, tendo sido indicados nas conclusões como incorretamente julgados, teremos que concluir que quanto a estes factos os recorrentes não deram cumprimento à alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil. Nessa medida bem andou o Tribunal da Relação ao recusar conhecer, nesta parte, o pedido de impugnação.

Também o facto n.º 27 não consta indicado nas conclusões 8.ª e 9.ª. Todavia, quando identificam o facto, os recorrentes realçam a negrito a parte relativa ao local onde o acidente ocorreu.

A localização do acidente é igualmente suscitada a propósito dos factos n.ºs 20 e 21. Quanto as estes, os recorrentes pretendem que se corrija o local onde o acidente ocorreu, i. e. a montante da caixa de saneamento/visita e não a jusante da referida caixa como consta assente (8.ª conclusão).

Dado que os três factos se reportam, além do mais, ao local da obra onde ocorreu o acidente, uma eventual alteração dos factos n.ºs 20 e 21 implica necessariamente a alteração do facto n.º 27 (bem como dos restantes factos que se reportam à zona a jusante da caixa de saneamento/visita), sob pena de contradição na matéria de facto. Por conseguinte, apesar desta omissão, entendemos que o alegado quanto aos factos n.ºs 20 e 21 se deverá considerar extensível ao facto n.º 27.

Por outro lado, na 9.ª conclusão é indicado o facto n.º 25 que não constava do elenco dos factos indicado na 6.ª conclusão. A alteração pretendida quanto a este facto é a mesma do facto n.º 26 (que o trabalhador II já tinha dado início aos trabalhos), pelo que importará considerar que a impugnação abrange também o facto n.º 25.

No que concerne aos factos não provados (alíneas a), b), d) e e)), na 10.ª conclusão, os recorrentes referem pretender que se considere provado que a falta de entivação foi a causa do soterramento. Contudo, este facto consta apenas nas alíneas a) e d)[2].

Com efeito, na alínea b) está em causa a natureza do terreno onde estava a ser realizada a obra, enquanto na alínea e) está em causa o facto do sinistrado não ter sido visto pelos restantes trabalhadores a descer à vala.

Contudo, da leitura do corpo das alegações resulta que os recorrentes consideram também estes dois factos incorretamente julgados, pretendendo que sejam julgados provados sem alteração da respetiva redação.

Por outro lado, nas alíneas a) e d) estão alegadas diversas causas do deslizamento de terras que provocou o soterramento do sinistrado. Embora nas conclusões os recorrentes apenas refiram a questão da falta da entivação, do corpo das alegações resulta que consideram dever ser igualmente julgado provado que o soterramento ocorreu devido à inexistência de estudos geotécnicos e geológicos que permitissem o conhecimento das características do solo e do seu comportamento face aos cortes e escavações efetuadas e o facto de o local ser composto de solo arenoso e não consistente.

Assim, com exceção da impugnação dos factos n.ºs 16 e 22, conjugando as conclusões com o corpo das alegações e apesar da formulação e da sistematização adotada, entendemos que os recorrentes deram minimamente cumprimento ao disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.

Quanto à indicação dos meios de prova e à invocação das razões que justificam a pretendia alteração (alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil), nas suas conclusões os recorrentes limitam-se a transcrever parcialmente os vários depoimentos e a retirar conclusões desses depoimentos, sem indicar os factos concretos que entendem dever ser alterados com base nestes.

Face às conclusões é manifesto que os recorrentes não deram cumprimento ao ónus previsto na referida alínea b).

Todavia as conclusões devem ser conjugadas com o corpo das alegações, uma vez que, conforme referido, não se impõe ao recorrente que, nas conclusões, reproduza tudo o que alegou na fundamentação quanto aos pressupostos da impugnação da matéria de facto.

Ora, nas alegações, relativamente a cada um dos factos n.ºs 20, 21, 25 e 26 e aos factos não provados, os recorrentes explicitam as razões da alteração pretendida e indicam sumariamente os meios de prova.

Após a justificação de todas as alterações, os recorrentes indicam para cada uma das testemunhas as passagens relevantes do seu depoimento (indicando o início e o termo da gravação das passagens), sem, contudo, especificar que passagens são relativas a que factos.

Concretizando.

Quanto aos factos n.ºs 20 e 21, os recorrentes referem que o acidente ocorreu a montante da caixa de saneamento/visita e indicam que tal resulta dos depoimentos, mas acima de tudo das fotografias.

Quanto à prova testemunhal, ao indicarem genericamente os depoimentos sem identificarem qualquer testemunha em concreto, os recorrentes não cumpriram o ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º.

No entanto, o mesmo não acontece com a prova documental. Embora os recorrentes não identifiquem as fotos, nos próprios factos se refere a “caixa de saneamento visível nas fotografias de fls. 17 e 17 verso”. Serão estas as fotografias em causa.

O facto de um dos meios de prova ter sido indicado de forma genérica não é de molde a impedir a apreciação da impugnação, em especial, quando o cerne dessa impugnação assenta noutro meio probatório (no caso a prova documental) e quanto a este o ónus se mostra cumprido.

No que concerne aos factos n.ºs 25 e 26, os recorrentes referem que a testemunha II referiu que tinha ido ao interior da caixa de visita, pretendendo com base neste depoimento que se considere provado que, aquando do acidente, este trabalhador já tinha dado início aos trabalhos.

Quanto à inexistência de estudos geotécnicos e geológicos que permitissem o conhecimento das características do solo e do seu comportamento face aos cortes e escavações efetuadas (alíneas a) e d)), os recorrentes indicam que a própria Ré admitiu não ter realizado tais estudos, bem como o depoimento do inspetor do ACT no mesmo sentido.

Relativamente à natureza do terreno (alíneas a), b) e d)), indicam igualmente o depoimento do inspetor do ACT.

Deste modo, quanto a estes factos os recorrentes indicaram os meios probatórios que no seu entender impunham decisão diversa.

Quanto à ausência de entivação da escavação na zona da vala/trincheira onde o Sinistrado se encontrava (alíneas a) e d)), os recorrentes indicaram como meios de prova as fotos de fls. 17 e 17v, o depoimento do inspetor do ACT e das demais testemunhas.

Considerando que, a propósito de todos os depoimentos, os recorrentes indicaram passagens relativas à questão da entivação (aliás é a principal questão suscitada pelos recorrentes), entendemos que esta referência genérica deve ser conjugada com a subsequente discriminação dos depoimentos no sentido de serem todos os aí indicados.

Por último, quanto à alínea e), os recorrentes indicam os depoimentos dos trabalhadores, sem os identificarem. Contudo, com exceção da testemunha JJ, que é expressamente identificado como inspetor do ACT, as restantes testemunhas são trabalhadores. São estas as testemunhas cujos depoimentos os recorrentes pretendem sejam apreciados.

Deste modo, os recorrentes indicaram os meios de prova que, no seu entender, impunham decisão diversa das recorrida.

Porém o artigo 640.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil impõe ainda que o recorrente indique “com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Conforme referido, os recorrentes optaram por indicar as passagens dos depoimentos de todas as testemunhas no final. A indicação dos depoimentos foi assim efetuada em bloco, sem discriminação em cada um dos depoimentos da parte relativa a cada facto impugnado.

A Secção Social deste Supremo Tribunal tem, contudo, entendido que “o incumprimento ou o cumprimento deficiente da segunda (art.º 640.º, n.º 2, al. a)) apenas acarreta a rejeição nos casos em que dificultem, gravemente, a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte” (acórdão de 24-03-2021, proferido no processo n.º 7430/17.7T8LRS.L1. S1).

No caso vertente, a factualidade impugnada é relativamente diminuta e apresenta um elevado grau de conexão. Acresce que, na indicação das passagens, os recorrentes indicam a que se refere, permitindo desse modo identificar sem grande dificuldade as passagens relevantes para cada facto.

Apesar da técnica adotada, entendemos que os termos da impugnação não configuram um mero ataque de forma genérica e global à decisão de facto, não dificultam de forma excessiva o trabalho da Relação, nem prejudicam o contraditório.

Por conseguinte, atento os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, consideramos que os recorrentes cumpriram minimamente o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º, pelo que o Tribunal da Relação deveria ter conhecido a impugnação.

Quanto à segunda questão suscitada pelos recorrentes: a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição.

Atenta a posição supra assumida quanto ao cumprimento do ónus de impugnação pelos recorrentes, a questão colocar-se-á apenas face à impugnação dos factos n.ºs 16 e 22.

Conforme decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu recente acórdão de 14.10.2020, “Pretendendo o recorrente impugnar a decisão do tribunal de 1ª instância proferida sobre a matéria de facto perante um tribunal de 2.ª instância, que não intermediou a produção da prova, é razoável que se exija ao recorrente que identifique os pontos de facto que impugna por referência aos articulados, aos temas da prova ou aos factos julgados não provados na sentença, sob pena de não se conhecer do recurso nessa parte.

Esta exigência funda-se nos princípios do dispositivo e da cooperação, tendo por objetivo a justa composição do litígio, não se vislumbrando que a mesma seja excessiva e viole o princípio da proporcionalidade, razão pela qual o art.º 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não é inconstitucional por violação da garantia constitucional do acesso à justiça, consagrada no art.º 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e do dever de administração da justiça imposto aos Tribunais no art.º 202.º, n.º 1, do mesmo diploma”. (acórdão proferido no Proc. n.º 283/08.8TTBGC-B. G1.S1 (Revista– 4.ª Secção).

O entendimento do Tribunal quanto ao ónus de impugnação tem assim subjacente os princípios do dispositivo e da cooperação. O ónus imposto às partes é proporcional e razoável, não pondo em causa o seu direito ao acesso à justiça. Não há, por isso, qualquer violação da Constituição.

Sublinhe-se que, quanto aos factos n.ºs 16 e 22, não está em causa o cumprimento deficiente das indicações legais, mas a sua total omissão. Com efeito, os recorrentes não indicaram o sentido da alteração pretendida, nem os concretos meios de prova que imporiam decisão distinta.  Sem estes elementos mínimos, o Tribunal da Relação não poderia apreciar da correção da decisão sobre a matéria de facto.

Concluindo, consideramos que, com exceção da impugnação dos factos n.ºs 16 e 22, os recorrentes cumpriram os ónus previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, inexistindo fundamento para a recusa da apreciação da impugnação da matéria de facto.

III

Decisão:

Face ao exposto acorda-se em conceder parcialmente a revista, para que seja apreciada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com exceção da impugnação dos factos n.ºs 16 e 22.

Custas:

Um terço das custas serão a cargo da recorrente e a parte restante a cargo da parte vencida a final.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 13 de janeiro de 2022

Chambel Mourisco (Relator)

Maria Paula Moreira Sá Fernandes

Leonor Maria da Conceição Cruz Rodrigues

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[1] As 7.ª a 10.ª conclusões reportam-se aos factos não provados
[2] Os factos indicados nestas duas alíneas são no essencial os mesmos.