Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11733/19.8T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PERDA DE CHANCE
DANO
PRESSUPOSTOS
CONTRATO DE MANDATO
MANDATO FORENSE
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
ADVOGADO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 07/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :

I- Indicam-se como pressupostos do dano de perda de chance, a demonstração da consistência e seriedade da perda da oportunidade de obter uma vantagem, ou de evitar um prejuízo, bem como um juízo de probabilidade, tido por suficiente, independentemente do resultado final frustrado, que deverá ser aferido casuisticamente, em função dos indícios factualmente provados, não visando o respetivo ressarcimento indemnizar a perda do resultado querido, antes e apenas a oportunidade perdida, no atendimento de um direito violado com uma conduta ilícita.

II- Entre os pressupostos da admissibilidade da reparação na base da doutrina da perda de chance, está também que o comportamento de terceiro seja suscetível de gerar a sua responsabilidade, elimine, de forma definitiva, as possibilidades do resultado vantajoso se vir a produzir.

III- Não está vedado ao devedor que tenha visto ser-lhe indeferido o pedido de exoneração do passivo restante, poder depois de nova apresentação à insolvência, deduzir novo pedido de exoneração do passivo restante.

Decisão Texto Integral:


REVISTA n.º 11733/19.8T8LSB.L1.S1

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

           

I - Relatório

1. AA e BB vieram propor ação com processo comum contra MAFRE-SEGUROS GERAIS, SA., pedindo que a Ré seja condenada:

a) Reconhecer que celebrou com o CC seguro de responsabilidade civil profissional de advogado, através das apólices n.ºs ...58 e ...4, que cobrem a responsabilidade profissional deste no período de 1.01.2017 a 1.01.2018, decorrente de dolo, erro, omissão ou negligência profissional até ao limite do capital de 250.000,00€ sem franquia, com retroatividade ilimitada, com âmbito territorial contratado base “claims made” isto é a data do sinistro é a data da primeira reclamação;

b) Reconhecer que no período da vigência do seguro o AA comunicou/reclamou a ocorrência do sinistro, decorrente de falha profissional cometida no processo de insolvência n.º 3575/16.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., juízo de comércio, Juiz ..., em que foi mandatário da Autora;

c) Reconhecer que o indeferimento da concessão da exoneração do passivo restante à Autora no processo de insolvência n.º 3575/16.... do Juízo do Comércio do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juiz ..., ocorreu por falta de indicação do património desta, da responsabilidade do seu mandatário/advogado, Dr. CC, que tinha conhecimento da sua existência, omissão essa que determinou que aquela tenha de pagar aos credores reconhecidos no processo de insolvência os créditos por estes reclamados com o património de que seja proprietária ou rendimentos auferidos, que não sejam impenhoráveis nos termos da legislação processual civil, decorridos cinco anos sobre o despacho de exoneração o que não ocorreria se tivesse deferido tal pretensão;

d) Reconhecer que a sobredita conduta do Dr. CC se encontra/incluída nos contratos de seguro titulados pelas apólices supra identificadas e, consequentemente, assumir a responsabilidade civil pelo ressarcimento dos danos patrimoniais decorrentes da sobredita falha profissional até ao limite do capital da apólice de 250.000,00€;

e) Condenada a reembolsar a Autora de todos os montantes que esta liquide aos credores com créditos reconhecidos no processo de insolvência n.º 3575/16.... do Tribunal da Comarca da Comarca ..., juízo de comércio, após o termo do período de exoneração do passivo restante, que ocorreria em 6.12.2022, se tivesse sido concedida, a liquidar em execução de sentença até ao limite do capital da apólice contratada de 250.000,00€.

1.1. Alegam para tanto que o Autor enquanto advogado e mandatário da Autora, por instruções desta, instaurou no Juízo de Comércio do Tribunal da Comarca ... o processo de insolvência daquela, processo n.º 3575/16...., no qual foi pedido a exoneração do passivo restante, invocando, nomeadamente, que a mesma não tinha rendimentos nem património que lhe permitissem liquidar os créditos identificados, auferindo a remuneração mensal ilíquida de 530,00€, não tendo quaisquer outros rendimentos, só com o apoio financeiro do cônjuge conseguindo suportar os encargos pessoais.

No processo de insolvência foram apreendidos ½ indiviso de duas frações autónomas, de que a Autora era proprietária conjuntamente com o seu cônjuge.

Em sede do processo de insolvência foi proferido despacho a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo de restante, com fundamento, para além do mais, não ter a insolvente declarado a existência de bens de cujos direitos de propriedade ou copropriedade era titular no requerimento inicial, procedendo nessa omissão até à assembleia de credores, tendo sido um deles a chamar a atenção do facto de existir património que devia integrar a massa insolvente, verificando-se a violação do dever de apresentação, com pelo menos culpa grave, porque não podia desconhecer a existência desse património na sua esfera jurídica, decisão que foi confirmada por Acórdão da Relação de Coimbra.

Face ao regime de bens do casamento, era património comum da Autora e do seu marido ½ das aludidas frações, que tinham sido penhoradas em execução movida contra a Autora e o seu cônjuge, sendo o Autor notificado da penhora e efetuado o registo, enquanto seu mandatário, também o sendo nas execuções indicadas, tendo conhecimento que a Autora era proprietária de ½ das frações através de certidões da Administração Tributária e da Conservatória do Registo Predial, por ele obtidas.

Na data do indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, o Autor beneficiava de seguro de responsabilidade civil profissional contratado pela Ordem dos Advogados, tendo celebrado com a Ré um contrato de seguro de reforço de responsabilidade civil profissional de advogado.

O Autor, reconhecendo a sua falha fez a participação junto da Ré, que lhe comunicou que não tinha apurado factos que permitissem acionar as coberturas, pois não fora possível confirmar o nexo causal, nem o dano decorrente da omissão da indicação dos dois imóveis em causa.

Solicitada a reapreciação junto da Ré, a mesma manteve a sua posição, mais aludindo que o pretendo dano a existir apenas se verificaria em 6.12.2022, reportando a factos de 2017.

O processo de insolvência foi instaurado com o objetivo principal de à Autora ser concedida a exoneração do passivo restante, por decorridos cinco anos após a decisão não ter que efetuar pagamentos a credores, nem ficar sujeita a penhora do seu património e rendimentos, nomeadamente a pensão de reforma.

No processo de insolvência da Autora dos créditos reconhecidos nenhum deles recebeu qualquer quantia, não tendo a mesma, para além das frações vendidas, com valor manifestamente insuficiente para liquidar os créditos reclamados, património suficiente para tanto, não tendo a oportunidade de decorridos cinco anos ficar exonerada/dispensada de pagar os créditos em causa.

2. Citada veio a Ré contestar, suscitando a ineptidão da petição inicial, a ilegitimidade do Autor, por falta de interesse em demandar, requerer a intervenção principal provocado do advogado, o Autor, como associado da Ré, ou pelo menos a intervenção acessória, mais realizando a impugnação do factualismo aduzido.

3. Foi diferida a intervenção principal provocada do Dr. AA, que se apresentou na petição inicial como Autor e ordenada a sua citação, não tendo o mesmo apresentado contestação.

4. No despacho saneador foi julgada improcedente a ineptidão da petição inicial e determinada a ilegitimidade ativa do Autor, por falta de interesse em demandar, continuando na ação como interveniente ao lado da Ré seguradora.

5. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, que tendo em conta os termos corrigidos no decurso dos autos, julgou procedente a ação intentada pela Autora, BB contra Mapfre – Seguros Gerais, SA, na qual é interveniente principal passivo AA, reconhecendo o direito da Autora a ser restituída de todos os montantes que liquide aos credores com créditos reconhecidos no processo de insolvência n.º 3575/16.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio – 1, após 13.12.2022, a calcular em execução de sentença, com a obrigação da Ré Seguradora de proceder ao respetivo pagamento desses valores à Autora até ao limite de 250.000,00€.

6. Inconformada veio a Ré Seguradora interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido Acórdão que julgou procedente o recurso, revogando a decisão recorrida que substituiu por outra a julgar improcedente a ação.

7. Ora inconformada a Autora, veio interpor recurso para este Tribunal, processado como revista, formulando nas suas alegações, as seguintes conclusões: (transcritas)

 a) Conforme bem consta do acórdão proferido, não existiram no processo de insolvência n.º 3575/16.... outras razões (a não ser a violação do dever de informação - omissão da indicação do património) para que a exoneração do passivo restante não fosse concedida à recorrente.

b) A recorrente alegou, demonstrou e comprovou nos autos a alegada “perda de chance” / perda de oportunidade e o respetivo dano patrimonial, designadamente, o indeferimento da concessão da exoneração do passivo restante com fundamento no facto de, no requerimento de insolvência não ter sido indicado o património existente, isto é, na omissão da indicação dos imóveis no requerimento de insolvência propriedade da recorrente bem como, as consequências / danos de não ter sido deferido o pedido de exoneração  do passivo restante para a recorrente relativamente aos seus credores.

c) Ficou também provado nos autos de que a própria recorrente não teve conhecimento do requerimento de insolvência antes da sua submissão a juízo.

d) Mais ficou também provado nos autos que o processo de insolvência supra identificado foi única e exclusivamente instaurado com o objetivo principal de à Autora, ora recorrente, ser concedida a exoneração do passivo restante em virtude de este se apresentar como o único meio que a mesma tinha de poder eximir-se às avultadas dívidas que tinha e poder refazer a sua vida sendo que, assim decorridos cinco anos após a decisão, não teria que efetuar quaisquer pagamentos a credores e nem ficaria sujeita a penhora do seu património, e rendimentos, nomeadamente, pensão de reforma, pensão essa que passou a auferir a partir do ano de 2022 no valor de €1.740,00.

e) Bem como que, caso lhe tivesse sido concedida exoneração do passivo restante, a qual lhe seria deferida naquele processo se não tivesse ocorrido a omissão da referência ao património existente por não ter existido outro fundamento válido, o período de cessão do rendimento disponível teria início em 06.12.2017, vigorando pelo prazo de cinco anos. – Artigos 6.º, n.º 6 do DL n.º 79/2017 de 30 de junho e 239.º, n.º 2 do CIRE.

f) Se não se tivesse verificada a violação do dever de informação, não existiriam fundamentos para, no âmbito do processo de insolvência supra identificado, lhe ser indeferida liminarmente a exoneração do passivo restante sendo que, com elevada probabilidade, viria a recorrida a beneficiar no final do período de cinco anos, da concessão do benefício da exoneração do passivo restante com efeitos a partir de 13.12.2022, como bem consta do acórdão a quo.

g) Foram, assim, alegados, demonstrados e comprovados, nos autos factos bastantes e suficientes (quer documental, quer através de declarações de parte e depoimentos testemunhais) que permitiram ao tribunal de primeira instância concluir pela consistência e seriedade do dano patrimonial peticionado, determinada num “julgamento dentro  do julgamento” através do qual se apurou da séria probabilidade de obtenção de ganho na ação frustrada:

Se não se tivesse verificado a omissão do dever de informação, a pretensão da recorrente (exoneração do passivo restante) teria tido outro desfecho, teria esta tido uma “chance” / oportunidade consistente e real de satisfação.

h) Ficou provado o dano e o nexo de causalidade adequada entre a omissão de informações no processo de insolvência e o dano invocado (o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante) uma vez que, foi aquele que violou os seus deveres profissionais, porque não foi diligente, nem atuou de acordo com as leges artis, ao ter omitido o património da Autora, violando assim o dever de informação, imprescindível para deferir a exoneração do passivo restante da recorrida, sua cliente, que para tanto o havia mandatado, no processo de insolvência.

i) O dano de “perda de chance” reporta-se ao valor da oportunidade perdida e não ao benefício esperado, e houve de facto uma oportunidade perdida da exclusiva responsabilidade do então mandatário da recorrente.

j) O advogado não está obrigado à produção de um resultado, mas está obrigado ao cumprimento da obrigação de meios a que está adstrito por via do contrato de mandato.

k) O dano a considerar é um dano autónomo de perda de oportunidade de obter o resultado pretendido (o despacho inicial de exoneração do passivo restante), a avaliar de acordo com a probabilidade de obtenção do resultado que, no caso em apreço, era altíssima, muito provável.

l) Existia a probabilidade séria e real do pedido de exoneração do passivo restante vir a ser liminarmente concedido pelo juiz do processo de insolvência.

Nessa medida existiu indiscutivelmente, por essa concreta razão, uma perda de oportunidade, de a ora recorrente vir a obter tal benefício no processo de insolvência, com efeitos vantajosos no futuro.

m) O pedido de exoneração do passivo restante está sempre dependente da existência de um processo de insolvência, não sendo concebível que tal pedido seja formulado de forma autónoma sem ser na dependência de um processo de insolvência.

o) Ora, mantendo-se os mesmos credores / créditos existentes naquele processo cujo fundamento é anterior à data dessa declaração, não poderá a recorrente requerer sequer nova insolvência e, consequentemente, ver apreciado pedido de  exoneração do passivo restante, por se verificar a exceção de caso julgado que constitui uma exceção dilatória que, como tal, obsta a que incida nova decisão sobre a mesma relação material controvertida.

São considerados créditos sobre a insolvência aqueles cujo fundamento é anterior à data dessa declaração nos termos do artigo 47.º do CIRE.

p) Pelo que, em relação aos credores e créditos todos anteriores ao processo de insolvência em causa e neste relacionados / reconhecidos, ocorreria a identidade dos sujeitos e, bem assim, a identidade do pedido em relação à declaração de insolvência, o que levaria ao indeferimento liminar de novo pedido de declaração de insolvência não podendo, consequentemente, sequer ser apreciado novo        pedido de exoneração do passivo restante.

q) Resulta do exposto que, para instauração de novo processo de insolvência com novo pedido de exoneração do passivo restante, teria forçosamente a recorrente de “criar” um novo passivo, constituído já após a declaração de insolvência em causa, uma dívida autónoma / nova o que, de per si, conduziria inevitavelmente a novo indeferimento da exoneração do passivo restante por “agravamento” da sua situação de insolvência nos termos do artigo 186.º do CIRE, e violação dos deveres de cuidado exigidos nas circunstâncias em que a recorrente se encontra e que seria adotada por uma pessoa normalmente diligente. – Vd. nesse sentido Ac. TR Coimbra de 09.07.2021, processo 4401/20.0T8VIS.C1 (doc. ora junto).

r) É certo que uma pessoa pode ser declarada insolvente mais do que uma vez, não pode é sê-lo com base nos mesmos factos, com base na mesma realidade.

s) Isto é, mantendo-se os mesmos credores / créditos constantes e relacionados /reconhecidos no processo de insolvência 3575/16...., a recorrente não poderá requerer nova insolvência e, consequentemente, ver apreciado novo pedido de exoneração do passivo restante.

t) Pelo que, nesta conformidade e, contrariamente ao constante do acórdão a quo, o resultado visado pela recorrente ao peticionar a exoneração do passivo restante no processo de insolvência 3575/16.... está definitivamente impossibilitado, existindo, assim, o alegado dano de perda de chance.

u) Ao decidir-se pela forma constante do acórdão “a quo” violaram-se, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 27.º n.º 1 al a), 47.º, 186.º e 236.º e ss do CIRE e 581.º do CPC.

            8. A Ré veio apresentar contra-alegações e ampliar o objeto do recurso, formulando as seguintes conclusões: (transcritas)

I . A Decisão recorrida não é passível de qualquer censura, tão-pouco violadora das normas legais invocadas pela Recorrente, devendo a Decisão recorrida manter-se na sua íntegra, pelo que o Recurso interposto carece de fundamento factual e legal cabal.

II. «O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.», como Concluiu o douto Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2022, de 26 de janeiro.

III. A obrigação de indemnizar por “perda da chance”, como tal, só existe se a perda for irreversível e irremediável, e é neste ponto que a Recorrente “falha” em sede de Alegação e Conclusões, desconsiderando – o.

IV. O resultado pretendido pela Recorrente com a exoneração do passivo restante não se encontra definitivamente impossibilitado de vir a ocorrer.

V. O facto de a exoneração do passivo restante ter sido liminarmente indeferida à Recorrente não determina que esta não requeira novamente essa exoneração, porquanto, a Decisão de indeferimento do passivo restante não constitui caso julgado quanto à mesma, facto que a Recorrente bem sabe porquanto veio a requerer novamente a sua insolvência e exoneração do passivo restante no dia 09.11.2020, no âmbito do processo judicial n.º 4401/20.... que correu termos no Juiz ... do Juízo de Comércio ....

VI. Factos que a Recorrente omitiu nos presentes Autos, mas que são a prova cabal da inexistência de dano de perda de chance no caso dos Autos, uma vez que a Recorrente não só requereu nova exoneração como podia esta ter-lhe sido deferida, não fosse os demais condicionalismos, diversos dos que levaram ao indeferimento liminar da exoneração do passivo restante no âmbito do processo judicial subjacente aos presentes Autos.

VII. A Recorrente não ficou irremediavelmente impedida de apresentar-se novamente à insolvência, como requerer a exoneração do passivo restante, o que determina a impossibilidade de verificação de qualquer dano de perda de chance.

VIII. Foi a Recorrente que impossibilitou que lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante em novo processo judicial, sendo que, para o efeito, bastaria a existência dos credores e das dívidas já existentes aquando da primeira ação judicial de insolvência.

IX. Improcedem, por isso, as Conclusões da Recorrente, no limite, por inexistência da exigida impossibilidade definitiva de a Recorrente vir a beneficiar da exoneração do passivo restante.

Por outro lado,

Da Ampliação do Objeto do Recurso

X. A Recorrente não logrou alegar e provar factos bastantes que permitam concluir pela “consistência e seriedade” do dano que peticiona nos presentes Autos e, como tal, não cumpriu o ónus da prova que sobre se pendia, como seria desejável, nos termos em que Concluiu o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2022.

XI. Dos Autos, resulta, antes, que o direito que a Recorrente se arroga titular não tem a “consistência e seriedade” que permita concluir pela verificação de dano de perda de chance que alega.

XII. Dos factos provados resulta que a Recorrente não se apresentou à insolvência nos 6 meses subsequentes à sua situação de insolvência, atentas as diversas ações executivas que contra si decorriam desde o ano de 2007, só se tendo apresentado à insolvência no dia 05.07.2016.

XIII. Não obstante, como confessa a Recorrente “o processo de insolvência supra identificado foi única e exclusivamente instaurado com o objetivo principal de à Autora, ora recorrente, ser concedida a exoneração do passivo restante em virtude de este se apresentar como o único meio que a mesma tinha de poder eximir-se às avultadas dívidas que tinha e poder refazer a sua vida (…).”

XIV. Em momento algum a Recorrente se preocupou, também, com os seus credores, cujo processo de insolvência visa acautelar em primeira linha.

XV. Os 9 anos que mediaram entre a situação de insolvência da Recorrente e a sua apresentação à insolvência determinaram, necessariamente, a verificação de um prejuízo sério para os seus credores, como é evidente e resulta das regras da experiência comum.

XVI. A Recorrente não podia ignorar, sem culta grave, não haver uma perspetiva séria de melhoria da sua condição económica aquando da pendência de tais processos executivos.

XVII. Incumbia à Recorrente alegar e provar factos que permitissem ao Tribunal concluir que, não fosse o facto de o seu mandatário ter ocultado a existência de património no requerimento de exoneração do passivo restante, lhe teria sido concedida a exoneração do passivo restante, o que não ocorreu.

XVIII. Os requisitos para que seja proferido despacho liminar favorável à futura exoneração do passivo restante são diversos (artigo 238.º, n.º 1, al d) do CIRE) e, entre eles, consta um requisito negativo de relevo primordial - o de o devedor não se ter apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação dessa situação de insolvência, com prejuízo para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.

XIX. O longo do período de pendência das referidas ações executivas (de 2007 a 2016) evidencia a incapacidade prolongada da Recorrente em solver as dívidas contraídas, e, como tal, a falta de perspetiva séria de melhoria da sua condição económica, o que a mesma não podia desconhecer e que, inevitavelmente, se agravou com o decurso do tempo, nomeadamente em função da degradação do seu património e dos juros que se foram vencendo, e assim agravando a insolvabilidade da Recorrente e, concomitantemente, os prejuízos dos seus credores.

XX. O credor Caixa Geral de Depósitos, na Assembleia de Credores, invocou, entre outros, a violação, evidente, por parte da Apelada do dever de apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência”, previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

XXI. O Tribunal que indeferiu preliminarmente a exoneração do passivo restante sempre teria de Concluir pela violação, por parte da Recorrente, do dever de apresentação à insolvência no prazo de 6 meses previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

XXII. Resulta dos factos provados e da documentação carreada para os mesmos que a Apelada sempre veria a exoneração do passivo restante ser-lhe liminarmente indeferida por não preencher os demais requisitos legais previstos para o efeito, o que efetivamente veio a ocorrer.

XXIII. A alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE também se aplica à violação do dever de apresentação à insolvência no prazo de 6 meses, incumprido pela Recorrente.

XXIV.O Despacho que indeferiu liminarmente a exoneração do passivo restante conclui pela verificação da violação tanto de dever de apresentação à insolvência, como do dever de informação a que o insolvente se encontra vinculado.

XXV. Se o Tribunal que indeferiu liminarmente a exoneração do passivo restante que se discute nos Autos não tivesse, em sede de fundamentação, realçado o facto de a Apelada ter ocultado bens de que era proprietária, até pela sua gravidade e objetividade, ou, até, por o mesmo não se verificar, teria de se pronunciar sobre os demais requisitos exigíveis e previstos nas demais alíneas desse dispositivo legal, também elas integradas nessa mesma alínea g) do artigo 238.º do CIRE.

XXVI. A Recorrente jamais lograria alcançar o objetivo de ver deferida liminarmente – e, posteriormente, deferida definitivamente – a exoneração do passivo restante.

XXVII. Independentemente de qualquer conduta do mandatário da Recorrente, o certo é que esta não sofreu o dano que peticiona nos presentes Autos, atentos os factos que logrou alegar e provar nos presentes Autos.

XXVIII. Face à ausência de alegação e prova de factos que consubstanciem a seriedade da chance perdida pela Recorrente, bem como de demonstração da probabilidade elevada de ver deferida a exoneração do passivo restante no processo de insolvência subjacente aos presentes autos, sempre a presente ação judicial teria de ser julgada totalmente improcedente.

XXIX. Inexistindo nexo de causalidade entre o dano que a Recorrente reclama nos presentes autos e qualquer conduta do seu advogado, “fica afastada a obrigação de o Réu indemnizar o autor”, sob pena de violação do disposto nos artigos 238.º do CIRE, 342.º, 483.º, n.º 1 e 563.º do Código Civil.

Nestes termos e nos mais de direito:

A) Deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se na íntegra a Decisão recorrida, com as consequências legais daí advenientes;

Subsidiariamente, procedendo o recurso interposto pela Recorrente, ainda que apenas parcialmente,

B) Deve a ampliação do objeto do recurso ser julgada procedente, por provada, e, em conformidade, a Recorrida absolvida do pedido, com as consequências legais daí advenientes.

 9. Cumpre apreciar e decidir.

*

II – Enquadramento facto-jurídico

A - Dos factos

No Acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

1. O interveniente principal passivo AA, que usa o nome profissional Dr. AA, é advogado com escritório no Largo ..., ..., em ..., e titular da cédula profissional nº ...49 do Conselho Distrital ..., com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados.

2. Por instruções transmitidas pela Autora BB e, ao abrigo de mandato conferido por procuração emitida em 20-06-2016, em 05-07-2016, o Dr. AA instaurou no Juízo do Comércio do Tribunal Judicial da Comarca ... processo de insolvência da Autora, no qual foi requerida a exoneração do passivo restante, tendo dado origem ao processo de insolvência nº 3575/16.....

3. No requerimento inicial de insolvência, para fundamentar o pedido de exoneração do passivo restante foram, além do mais, alegados os seguintes factos:

«13.º

A requerente não tem rendimentos, nem património que lhe permitam liquidar os créditos supra identificados. (…)

19.º

A situação de insolvência da requerente provém da prestação de garantias pessoais à sociedade de que foi administradora, situação da qual não obteve qualquer proveito pessoal. – Doc. nº ...7.

20.º

A situação financeira da requerente não foi criada ou agravada em consequência de atuação, dolosa ou com culpa grave, da requerente.

25.º

A requerente aufere a remuneração mensal ilíquida de €530,00, não tendo quaisquer outros rendimentos.

26.º

Reside com o seu cônjuge em apartamento ao abrigo de contrato de comodato, suportando mensalmente as seguintes despesas: (…)

27.º

Somente com o apoio financeiro do seu cônjuge consegue suportar os encargos pessoais.

28.º

O seu cônjuge encontra-se reformado, encontrando-se 1/3 da sua pensão de reforma penhorado à ordem do processo nº 277/07...., no qual é exequente Novo Banco, SA. – Doc. n.º ...3.

29.º

Considerando as despesas pessoais que tem de suportar, indicadas no anterior artigo, a necessidade de o rendimento disponível permitir razoavelmente o sustento minimamente digno do devedor e os critérios orientadores da jurisprudência, deverá o rendimento disponível ser fixado em uma vez e meia o valor do salário mínimo nacional, presentemente no valor de €795,00. – Artigo 239º CIRE.

30.º

O montante que exceder uma vez e meia o salário mínimo nacional deverá ser entregue pela requerente ao fiduciário que venha a ser designado para pagamento aos credores.»

4. No processo de insolvência foram apreendidos os seguintes bens de que a Autora é proprietária, conjuntamente com o seu cônjuge:

«Verba 1

1/2 indivisa da Fração autónoma designada pela letra “BI” do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho e distrito ..., referente a estacionamento coberto fechado, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...04 e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...96... da freguesia ....

(…)

Verba 2

1/2 indivisa da Fração autónoma designada pela letra “BJ” do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho e distrito ..., referente a estacionamento coberto fechado, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...04 e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...96... da freguesia ...».

5. Nesse processo de insolvência foi, em 13-12-2017, proferido despacho a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento, além do mais, no seguinte:

«(…) No caso dos autos, a insolvente não declarou a existência de bens de que cujos direitos de propriedade ou copropriedade era titular. Ao contrário, e de forma particularmente assertiva, declarou na petição inicial não ser proprietária de quaisquer bens móveis ou imóveis. A verdade é que, pese embora se terem apreendidos bens que eram próprios do seu marido, a verdade é que também se apreenderam imóveis de que ela era cotitular do direito de propriedade respetivo. (pontos 3 e 7 dos factos provados). A devedora omitiu a existência dos direitos que deveriam integrar a massa insolvente e persistiu na omissão até à assembleia de credores, tendo sido um dos credores a chamar a atenção para o facto de existir património que deveria integrar a massa insolvente.

A violação deste dever de apresentação é manifesta, sendo que a devedora o fez, pelo menos com culpa grave já que não podia desconhecer a existência de património na sua esfera jurídica, nem o dever de o declarar no seu requerimento inicial de apresentação à insolvência.

(…)

Todavia, e pelos motivos primeiramente expostos, não estão reunidas as condições para admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, na medida em que se demonstra que, no decurso do processo de insolvência, incumpriu os seus deveres de informação, apresentação e colaboração, com culpa grave. – art. 238º, nº 1, al. g) do CIRE.

Nesta conformidade, e pelo exposto, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado por BB»

6. A Autora, representada pelo Dr. AA, interpôs recurso deste despacho em 02-01-2018, por não subscrever o entendimento vertido no mesmo.

7. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 08-05-2018 no processo de apelação n.º 3575/16...., transitado em julgado, foi julgado improcedente o recurso e, consequentemente, mantida a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado.

8. Atento o regime de bens de casamento, era património comum da Autora e de seu marido DD 1/2 das frações BI (garagem com 11,50 m2) e BJ (garagem com 13,63 m2), do prédio urbano da freguesia ..., concelho ..., descritas na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...04 da freguesia ..., encontrando-se inscritos na matriz em nome de DD (1/2) e EE (1/2).

9. As identificadas frações foram penhoradas em 10-10-2012 na execução comum nº 316/07.... da Comarca ... - Instância Central - Secção execução - J... em que é exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A. e executados a Autora e DD, tendo o Dr. AA sido notificado da penhora por ofício de 24-10-2012 e efetuado o registo da penhora através da Ap. ...8 de 2007/12/06.

10. O Dr. AA é também mandatário da Autora nos seguintes processos de execução:

- Execução nº 316/07.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., juízo de execução, movido por Caixa Geral de Depósitos, S.A.;

- Execução nº 277/07.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., juízo de execução, movido por Banco Espírito Santo, S.A.;

- Execução nº 299/07.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., juízo de execução, movido por Banco BPI, S.A.;

- Execução nº 308/07.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., juízo de execução, movido por Banco Comercial Português, S.A..

11. O Dr. AA, tinha, igualmente, conhecimento que a Autora era proprietária de 1/2 das identificadas frações através de certidões da Administração Tributária por ele próprio obtidas em 26-03-2013 e da Conservatória do Registo Predial obtidas em 23-10-2012.

12. Na data de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, o Autor beneficiava de seguro de responsabilidade civil profissional contratado pela Ordem dos Advogados na Ré Mapfre – Seguros Gerais, S.A., através da apólice nº ...58, válido no período de 01-01-2017 a 31-12-2017, seguro esse de natureza imperativa/obrigatória nos termos do nº 1 do art. 104º do EOA, tendo por objeto o risco decorrente de ação ou omissão dos atos e omissões praticados pelos advogados, com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, no exercício da sua profissão.

13. O capital por advogado segurado / sinistro é no montante de €150.000,00, o limite do agregado anual da apólice é ilimitado, a franquia contratada é de €5.000,00, a retroatividade é ilimitada e o âmbito territorial contratado é base “claims made”, isto é, a data do sinistro é a data da primeira reclamação.

14. O autor celebrou ainda com a Ré, no período de 01-01-2017 a 31-12-2017, contrato de seguro de reforço de responsabilidade civil profissional de advogado, com o nº de apólice ...50, através do qual aumentou o capital coberto pela apólice em € 100.000,00, para o montante total de € 250.000,00, e eliminou a exigência de franquia.

15. Por mail remetido com MDDE e carta registada com aviso de receção, datados de 27-12-2017, e rececionada pela Ré em 28-12-2017, o Dr. AA, invocando ter ocorrido uma falha processual sua, participou à Ré o sinistro.

16. Tal participação/reclamação deu origem ao processo da Ré com o nº ...82 e, tendo sido solicitado ao Dr. AA a junção de documentos e a prestação de esclarecimentos, este sempre o fez.

17. Por carta datada de 27-12-2018 dirigida ao Dr. AA, a Ré recusou assumir o pagamento de qualquer indemnização, tendo, após insistência deste para que revisse a sua situação, mantido a Ré a mesma posição.

18. A elaboração do requerimento inicial de insolvência foi da responsabilidade do Dr. AA, que o subscreveu enquanto advogado e no exercício do mandato conferido pela Autora, não tendo este indicado o património da Autora, no caso a existência das frações BI e BJ, por erro/lapso da sua parte, quando tal era do seu conhecimento em função do exercício das funções de advogado e do acompanhamento jurídico da Autora que exerceu noutros processos.

19. Em consequência do Dr. AA não ter feito referência a esse património no requerimento inicial do processo de insolvência, não foi concedido à Autora a exoneração do passivo restante, que havia sido uma das razões para ter sido mandatado pela Autora para proceder à sua apresentação de insolvência, e, assim, decorridos cinco anos após a decisão, não ter que efetuar pagamentos a credores, nem ficar sujeita a penhora do seu património, e rendimentos nomeadamente, da sua pensão de reforma que iria previsivelmente passar a auferir a partir de 2022.

20. Caso não tivesse sido indeferida liminarmente a exoneração do passivo restante, com elevada probabilidade, viria a Autora a beneficiar, no final do período de cinco anos, da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, com efeitos a partir de 13.12.2022[1].

21. No processo de insolvência da Autora nº 3575/16...., foi reconhecida a existência das seguintes dívidas desta:

- Banco BPI, S.A., no valor de €19.244,28, crédito comum;

- Caixa Geral de Depósitos, S.A., no valor de €368.178,17, crédito comum;

- Caixa Geral de Depósitos, S.A., no valor de €7.716,70, crédito subordinado;

- Intrum Justitia Portugal Unipessoal, Lda., no valor de €216.448,38, crédito comum;

- Novo Banco, S.A., no valor de €314.037,71, crédito comum;

- SPGM – Sociedade de Investimento, S.A., no valor de €56.927,18, crédito comum.

22. Pelo menos até 21-05-2019 nenhum dos credores recebeu qualquer quantia no processo de insolvência.

23. A venda das referidas frações “BI” e “BJ” foi publicitada através de leilão eletrónico pelo valor de €7.700,00 cada.

24. Além das referidas frações vendidas inexistem outros bens para venda no processo de insolvência, sendo o valor destas insuficiente para liquidação dos créditos reclamados, sem que a Autora tenha bens ou rendimentos suficientes a liquidar as suas dívidas.

25. Por não ter sido concedido à Autora o benefício da exoneração do passivo restante, esta, mesmo depois do prazo de 5 anos, terá de pagar aos referidos credores através dos bens de que for proprietária e rendimentos que auferir, que não sejam impenhoráveis, o valor dos seus créditos, nomeadamente, através da parte penhorável da sua pensão de velhice que irá passou a auferir a partir deste ano de 2022 no valor de €1.470,00.

26. Com o requerimento inicial do processo de insolvência foi junto pela Autora, representada pelo Dr. AA, uma certidão emitida pela Autoridade Tributária em 29-06-2016 na qual constava que de acordo com os elementos existentes no serviço de finanças de ... em nome da Autora não existiam bens rústicos ou urbanos.

27. No processo de insolvência a que se alude em 2., realizou-se, no dia 6.9.2016, assembleia de credores, de cuja ata consta: “… Após, o Mmº Juiz deu a palavra ao ilustre mandatário da Caixa Geral de Depósitos, o qual, no seu uso disse: Quanto à exoneração do passivo restante formulada na Petição Inicial, a Caixa Geral de Depósitos pronuncia-se pelo indeferimento liminar, nos termos do disposto nas alíneas b), d) e e) do nº 1 do art. 238º do CIRE pela seguinte ordem de razões: Como resulta confessado pelo ilustre mandatário da insolvente na presente assembleia, era do conhecimento da insolvente ab inicio a existência de património na sua esfera jurídica. Mais notório se torna esse conhecimento quando são indicadas na petição inicial as execuções que contra a insolvente correm no âmbito das quais se encontram penhoradas as frações BI e BJ da descrição predial ...96, freguesia de ..., concelho ..., … Entende o credor que é dever, e, assim, o contempla a alínea b) nº 1 art. 238º do CIRE, que a insolvente não deve ocultar quaisquer informações essenciais para o justo e correto procedimento do processo por si requerido. Não fosse, salvo o devido respeito, as diligências efetuadas pelo ora expoente, certamente, e atenta a justificação dada pela excelentíssima Sra. Administradora da insolvência, seria votado o encerramento por insuficiência de bens, sem que a insolvente tivesse, dolosamente, esclarecido a Sra. Administradora da insolvência da existência de bens suscetíveis de apreensão. Ainda, releva-se, ao contrário do que foi expresso na presente assembleia, as duas frações autónomas sitas em ... vieram ao património da insolvente por compra, e não por herança. Por último, e também corroborando o já expresso pela Sra. Administradora da insolvência no seu relatório, afigura-se ser patente e notório a falta de colaboração com a Sra. Administradora da insolvência, o que no caso não existisse podia evitar-se a apresentação de um relatório desfasado da realidade. Acresce, ainda, que verificam-se os pressupostos da alínea d) do nº 1 do art. 238º atenta a antiguidade dos créditos e a data da apresentação da insolvência. …”.

28. No processo a que se alude em 2. foi proferido despacho, em 6.7.2020, que declarou encerrado o processo, e “o carácter fortuito da presente insolvência para os efeitos do disposto no nº 6 do art. 233º do CIRE.”.

29. O teor integral “Do enquadramento jurídico” do despacho a que se alude em 5. é o seguinte: “… Na exoneração do passivo restante “O objetivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor para que “aprendida a lição”, este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica” – Catarina Serra, in O Novo Regime da Insolvência – Uma Introdução, pág. 102 e 103. A decisão que permite que o insolvente passe ao período de cessão e obtenha, a final, o benefício de exoneração do passivo, depende da verificação dos requisitos previstos no art. 238º do CIRE. A alínea g) diz respeito à inobservância, no decurso do processo de insolvência, do dever de informação, apresentação e colaboração que para o devedor resultam do CIRE. A relevância da omissão destes deveres para o indeferimento liminar implica que se demonstre que o devedor atuou com culpa grave ou com dolo. O devedor que se apresenta à insolvência encontra-se, desde logo, obrigado a presentar os documentos elencados no artigo 24º do CIRE. Um destes documentos consiste numa “Relação de bens que o devedor detenha em regime de arrendamento, aluguer ou locação financeira ou venda com reserva de propriedade, e de todos os demais bens e direitos de que seja titular, com indicação da sua natureza, lugar em que se encontrem, dados de identificação registral, se for o caso, valor de aquisição e estimativa do seu valor atual.” – art. 24º, nº 1, al. e) do CIRE. Já o artigo 83º do CIRE sob a epígrafe “Dever de apresentação e colaboração” elenca as obrigações a que o devedor fica adstrito nesta matéria pelo facto de ter sido declarado insolvente. Assim, fica obrigado a “a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador de insolvência, pela assembleia de credores ou pelo tribunal; b) Apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário; c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador de insolvência para efeitos de desempenho das suas funções.” No caso dos autos, a insolvente não declarou a existência de bens de que cujos direitos de propriedade ou copropriedade era titular. Ao contrário, e de forma particularmente assertiva, declarou na petição inicial não ser proprietária de quaisquer bens móveis ou imóveis. A verdade é que, pese embora se terem apreendido bens que eram próprios do seu marido, a verdade é que também se apreenderam imóveis de que ela era cotitular do direito de propriedade respetivo. (pontos 3 e 7 dos factos provados). A devedora omitiu a existência dos direitos que deveriam integrar a massa insolvente e persistiu na omissão até à assembleia de credores, tendo sido um dos credores a chamar a atenção para o facto de existir património que deveria integrar a massa insolvente. A violação deste dever de apresentação é manifesta, sendo que a devedora o fez, pelo menos com culpa grave já que não podia desconhecer a existência de património na sua esfera jurídica, nem o dever de o declarar no seu requerimento inicial de apresentação à insolvência. … Já quanto à falta de colaboração com a Sra. Administradora da Insolvência, trata-se, por regra, de um dever pessoal do insolvente. Assim, não obstante estar patrocinado por advogado, não se pode escusar a cumpri-lo pessoalmente, quando tal se revele necessário. Se a colaboração pedida se resume a enviar documentos não há razão para que seja o devedor a fazê-lo pessoalmente. Mas se se tratar de uma entrevista sobre a situação causadora da insolvência já não parece aceitável que o faça por intermédio de um representante. No caso em apreço, a Sra. Administradora da Insolvência não se dirigiu à insolvente pelo que não se poderá dizer que esta recusou colaborar com a Sra. Administradora da Insolvência. Todavia, e pelos motivos primeiramente expostos, não estão reunidas as condições para admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, na medida em que se demonstra que, no decurso do processo de insolvência, incumpriu os seus deveres de informação, apresentação e colaboração, com culpa grave. – art. 238º, nº 1, al. g) do CIRE. Nesta conformidade, e pelo exposto, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado por BB.”.

30. No acórdão referido em 7. fundamentou-se a improcedência do recurso com base no disposto no art. 238º, nº 1, al. g), conjugado com o disposto no art. 24º, nº 1, al. e), ambos do CIRE, nos seguintes termos, em síntese: “… Apesar de a decisão sob recurso ter invocado, em matéria de deveres de informação, apresentação e colaboração, o disposto no nº 1 do artigo 83º do CIRE, a situação que motivou o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante não tem a ver com tais deveres, tal como eles são configurados no citado preceito. Vejamos. Nele, o dever de informação que é tido em vista é o que nasce por solicitação do administrador de insolvência, da assembleia de credores, da comissão de credores ou do tribunal (alínea a) do nº 1). Quanto ao dever de apresentação, está em causa o dever de o devedor se apresentar pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador de insolvência (alínea b) do mesmo preceito). Por último, em matéria do dever de colaboração, está em causa a colaboração que seja requerida pelo administrador da insolvência para efeito do desempenho das suas funções. Ora, a decisão sob recurso não censurou a devedora, ora insolvente, por ter negado informações solicitadas por alguma das entidades referidas na alínea a) do nº 1 do artigo 83º; não a censurou por não se ter apresentado pessoalmente no tribunal; nem a censurou por não ter colaborado com o administrador de insolvência. Censurou-a por ter declarado que não era proprietária de bens imóveis quando, na realidade, era titular, em comunhão com o seu marido, de duas frações autónomas. O que está em causa é, pois, o incumprimento do dever que lhe era imposto pela alínea e) do nº 1 do artigo 24º do CIRE, ou seja, o dever de dizer a verdade sobre os bens e direitos de que era titular, quando se apresentou à insolvência, mediante relacionação de tais bens e direitos. Embora o recurso não suscite a questão de saber se o incumprimento deste dever cabe na previsão da alínea g) do nº 1 do artigo 238º do CIRE, sempre se dirá que a resposta a tal questão é positiva. Com efeito, a letra do preceito abrange a violação dos deveres de informação, apresentação e colaboração que, para o devedor, resultem do CIRE no decurso do processo de insolvência. Ora, o dever de dizer a verdade sobre os bens de que é titular quando se apresenta à insolvência, relacionando-os, é um dever que cabe ao devedor; é um dever que resulta da uma norma do CIRE (alínea e) do nº 1 do artigo 24º) e é um dever que deve ser cumprido com o articulado que dá início ao processo de insolvência. … Interpretando a alínea g) do nº 1 do artigo 238º do CIRE, em combinação com a alínea e) do nº 1 do artigo 24º do mesmo diploma, com o sentido e alcance expostos, é de concluir que tais normas não foram violadas pela decisão recorrida. …”.

B- Do Direito

1. Como se sabe, o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, com exceção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, artigos 635.º, 608.º, 663.º e 679.º, do CPC , não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas invocadas pelas mesmas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, artigo 5.º, n.º 3, também do CPC.

1.1. O objeto do presente recurso prende-se em saber se ficou demonstrado e comprovado a perda de chance ou oportunidade, de à Recorrente ser admitido o pedido desde logo, liminarmente, de exoneração do passivo restante no âmbito da insolvência, a que se apresentou, devido à conduta do seu então Mandatário, quanto à omissão da existência de património da apresentante, que aquele sabia não ser verdade, invocando ser altíssimo e muito provável obter o resultado pretendido, o mencionado despacho liminar e a exoneração do passivo restante, tendo essa possibilidade se desvanecido.

A Recorrida, por sua vez, vem alegar que não estava vedado à Autora requerer novamente a exoneração do passivo restante, como aliás já fez, embora sem o resultado pretendido, e subsidiariamente, na hipótese de a Recorrente obter provimento no recurso, na ampliação do objeto do recurso, reafirmar que não ficou demonstrada a consistência e seriedade do dano, cuja prova impendia sobre a Recorrente, pois descurou a preocupação com os seus credores, apresentando-se tardiamente à insolvência, com o decorrente prejuízo para aqueles, questão que foi também suscitada por um dos credores na Assembleia de Credores realizada no processo de insolvência.

2. Num breve enquadramento, de uma figura que não tem merecido consenso e que se mostra ainda em construção em termos jurisprudenciais e doutrinários, tem muitas vezes surgido associada ao cumprimento defeituoso do mandatário judicial, em termos de atividade processual, traduzindo-se num dano objetivo ou projetável.

Em termos gerais, pode definir-se a perda de chance, como a perda da possibilidade de obter um resultado favorável ou de evitar um resultado desfavorável, sendo acolhido na Jurisprudência e na Doutrina como um instrumento jurídico de ampliação do dano ressarcível em sede responsabilidade civil, contratual e extracontratual[2], como um dano autónomo[3], consubstanciando-se numa frustração irremediável, por ato ou omissão de terceiro, da verificação da obtenção de uma vantagem, que de forma probabilística era altamente razoável supor que fosse atingida ou na verificação de uma desvantagem que razoavelmente seria de supor não ocorrer, caso não se verificasse essa omissão.

Assim indicam-se como pressupostos a demonstração da consistência e seriedade da perda da oportunidade de obter uma vantagem, ou de evitar um prejuízo, bem como um juízo de probabilidade, tido por suficiente, independentemente do resultado final frustrado, que deverá ser aferido casuisticamente, em função dos indícios factualmente provados[4], salientando-se que o respetivo ressarcimento não visa indemnizar a perda do resultado querido, antes e apenas a oportunidade perdida, no atendimento de um direito violado com uma conduta ilícita, devendo o cômputo indemnizatório, se devido, ser apurado segundo o critério da teoria da diferença, conforme o disposto no n.º 2, do art.º 566, do CC, ou em último recurso, lançando-se mão de critérios de equidade, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito legal.

Releva-se do mencionado, em termos de caraterização do dano da perda de chance, que não se mostra suficiente um critério de sucesso processual abstrato, mas sim um juízo de probabilidade séria e consistente que o direito não alcançado teria obtido acolhimento no processo, na inevitável colação do julgamento dentro do julgamento, no atendimento no que seria considerado como altamente provável pelo Tribunal da causa[5].

Daí que se considere “(…) que para apurar a existência de um dano, relevante para a obrigação de indemnizar, é decisiva uma averiguação puramente objetiva ou exterior, sobre a probabilidade de sucesso (…) e portanto sobre o prejuízo patrimonial sofrido com a frustração deste – averiguação essa que deve ser efetuada, não a partir da convicção de qualquer parte ou mandatário, mas do estado objetivo da jurisprudência à data em que (…) teria sido decidido(…)”[6], alertando o mesmo autor, “No entanto, tal apreciação traduz-se, enquanto tal, numa questão de facto que extravasa os fundamentos do recurso de revista[7].

Sublinhe-se ainda, nomeadamente tendo em conta o caso dos autos, que entre os pressupostos da admissibilidade da reparação na base da doutrina da perda de chance, está também que o comportamento de terceiro seja suscetível de gerar a sua responsabilidade, elimine, de forma definitiva, as possibilidades do resultado vantajoso se vir a produzir[8], no atendimento até de se poder correr o risco de enriquecer o lesado com uma indemnização pela perda de chance em situações em que a pretendida vantagem possa vir a concretizar-se[9].

 Certo é, que falando-se em perda de chance reportamo-nos a uma construção doutrinal, ainda não pacificamente aceite, a que não se mostra estranha a introdução de uma noção de causalidade probabilística, que em regra não teria virtualidade para fundamentar uma pretensão indemnizatória, ainda que se afirmando que a respetiva admissibilidade se restringirá a situações pontuais, no caso em que chance se densificou, como uma real suficiência tal, que contudo não afastará, por ora, a afirmação que parece não existir, entre nós, base jurídica-positiva para apoiar a indemnização de perda de chance[10].

Fruto da crescente ponderação em termos jurisprudenciais, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, n.º2/2022, in DR, I Série, de 26.01.2022, veio consignar no seu segmento uniformizador que “ O dano de perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus de tal consistência e seriedade”.

Percorrendo o Aresto em referência, ainda que tendo por objeto situações processuais diferentes da ora em análise, podemos recolher alguns contributos no sentido do já enunciado, referenciando-se “(…) a toda chance ou oportunidade perdida (a todo o ato lesivo e a todo processo perdido) não se segue, como que automaticamente e sem mais, uma indemnização por dano da perda da chance: a verificação do ilícito não contém em si o dano a indemnizar(…)”. .

A atender sempre estará, em conformidade a “consistência” e “seriedade” a densificar no que concerne à pretensão formulada no caso concreto[11].

3. Revertendo as considerações realizadas para a situação sob análise, no atendimento da factualidade apurada, as instâncias ainda que inicialmente convergindo na análise feita, dissentiram em parte do caminho trilhado, concluindo de modo diverso.

Na Sentença, operando o designado “julgamento dentro do julgamento”, enquanto questão de facto, colocando-se o julgador na posição do que apreciou o pedido de exoneração do passivo restante, afastando a errónea referência à inexistência de bens, e desconsiderando os demais fundamentos invocados pelos credores, até por não considerados aquando do indeferimento mas também por não cumprido o ónus impendendo sobre aqueles de alegação e prova de factos impeditivos do deferimento liminar, concluiu-se que com elevada probabilidade, a Autora teria visto ser-lhe concedido o deferimento do pedido, sendo a atuação do seu Mandatário causal do indeferimento, dando dessa forma como provado o n.º 20[12] da decisão sobre a matéria de facto.

Preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil profissional do advogado, na parte que não se mostrava alvo de discussão, quanto ao dano, em termos da medida da indemnização, no que concerne ao denominado perda de chance processual, e reportando ao aludido julgamento dentro julgamento, também assim quanto à subsunção jurídica, provada a existência do nexo causal entre o facto lesivo e o dano, resultava que a chance perdida era séria e consistente, e desse modo preenchidos os requisitos da obrigação de indemnizar pela Recorrida, na medida de tudo o que a Recorrente viesse a ter que desembolsar a favor dos credores reconhecidos, por efeito e consequência de ter pedido a oportunidade de lhe ser concedida a exoneração do passivo restante.

No Acórdão recorrido, para além da já apontada alteração da decisão sobre a matéria de facto[13], considerando que o dano da perda de chance, como uma nova e autónoma espécie[14], cuja verificação devia ser feita segundo um juízo de probabilidade tida por suficiente, independentemente do resultado final frustrado, reportando aos autos, na necessária análise casuística, dos três fundamentos invocados pela credora em Assembleia de Credores para ser indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, alíneas b), d) e e) do art.º 238, do CIRE, isto é, falta de relacionação de bens, não colaboração com a Administradora da Insolvência e a demora na apresentação à insolvência, o Tribunal apenas ponderara  dois, não se pronunciando sobre o último apontado, no acatamento da exigência de pressupostos não verificados, quanto a “prejuízos” cujo ónus de alegação recaía sobre os credores, enquanto facto impeditivos do direito do devedor a pedir a exoneração do passivo restante.

Convergindo nessa parte, desde aí divergem os entendimentos, porquanto, a partir daqui questiona-se no Acórdão recorrido se da conduta do então mandatário da Autora resultou uma impossibilidade definitiva e certa de a mesma vir a beneficiar da exoneração do passivo restante, e como tal não sofrendo o dano que alegou lhe ter sido infligido, pois só se compreendia que se recorresse à figura da perda de chance, nos casos em que a conduta não diligente do mandatário impossibilitasse a lesada de, forma definitiva, vir a conseguir o resultado que visava obter.

Analisando o instituto da exoneração do passivo restante, sobretudo no atendimento pretendido de conjugar o ressarcimento dos credores com a possibilidade dos devedores se libertarem de algumas dívidas, com a decorrente reabilitação económica, mediante o cumprimento de determinadas obrigações num período de tempo, em contraposição ao regime geral dos credores puderem exigir dos devedores, findo o processo de insolvência, o pagamento dos créditos não satisfeitos, entendeu-se que indeferida liminarmente a exoneração do passivo restante, podia o devedor, como a Autora, voltar a requerer a sua insolvência e a exoneração do passivo restante, pelo que não estando a Recorrente definitivamente impossibilitada de o fazer, inexistia o invocado dano de perda de chance.

4. Conforme se aludiu, para o comportamento de terceiro, no caso o então Mandatário da Autora fosse suscetível de gerar a responsabilidade, a título de perda de chance, teria que eliminar, de forma definitiva, as possibilidades do resultado vantajoso se vir a produzir.

Ora, no atendimento do regime legalmente estabelecido para o incidente de exoneração do passivo restante, conforme os artigos 235 e seguintes do CIRE[15], não está vedado ao devedor que tenha visto ser-lhe indeferido o pedido de exoneração do passivo restante, poder depois de nova apresentação à insolvência, deduzir novo pedido de exoneração do passivo restante, desde logo, tendo em conta, que nos termos do art.º 238, n.º c), do CIRE, pois no caso do devedor já tiver beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência, verá indeferido um novo pedido de exoneração do passivo restantes, o que facilmente se compreende considerando as finalidades do regime em causa, quanto à possibilidade de face ao benefício concedido, o devedor recomeçar a sua gestão patrimonial do zero, vindo alguns anos depois a incorrer em nova insolvibilidade, bem como os interesses dos credores, no primeiro e segundo caso, que merecem ser acautelados, até porque se sabe que uma das finalidades do processo insolvencial é a satisfação dos credores, art.º 1, do CIRE, pelo que, quem dela não beneficiou, poderá formular o respetivo pedido.

Aliás, a Recorrente não enjeita a possibilidade de se apresentar novamente à insolvência, bem como este processo ser novamente instaurado, com a possibilidade de pedir a exoneração do passivo restante, resultando às invocadas dificuldades da sua situação particular, e não de qualquer impedimento legal, sendo apenas este o que gera a impossibilidade definitiva, e não circunstâncias pessoais, que como tal poderão ser objeto de alteração, no sentido mais ou menos favorável à Recorrente, pelo que por definição não assumem tal natureza de impossibilidade definitiva, passível de levar a ponderar a existência de um dano de perda de chance.

5. Assim, na concordância com o decidido, improcedem as conclusões do recurso formulado pela Recorrente, nada importando apreciar no que concerne ao subsidiariamente solicitado pela Recorrida.

*

III – DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar a revista, confirmando o acórdão recorrido,

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 11 de julho de 2023

Ana Resende (Relatora)

Maria José Mouro

Graça Amaral

*

Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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[1] Alterado pelo Tribunal da Relação, tendo o ponto n.º 20, anteriormente, a seguinte redação: “Caso o Dr. AA não tivesse omitido a indicação desse património, não haveria fundamentos para, no âmbito do processo de insolvência da autora, lhe ser indeferido liminarmente a exoneração do passivo restante e, com elevada probabilidade, viria a autora a beneficiar, no final do período de cinco anos, da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, com efeitos a partir de 13.12.2022, com menção que o teor do ponto em causa em tais termos – “Caso o Dr. AA não tivesse omitido a indicação desse património, não haveria fundamentos para, no âmbito do processo de insolvência da autora, lhe ser indeferido liminarmente a exoneração do passivo restante”, se traduzia em “o tribunal está já a apreciar a “probabilidade de ganho” concretizadora do dano em causa”, e assim continha matéria conclusiva que devia ser eliminada.
[2] Cf. Ac. STJ de 10.09.2019, processo n.º 1052/16.7T8PVZ.P1.S1, in www.dgsi.pt,.
[3]Cf. Ac. STJ, de 9.07.2015, processo n.º 5105/12.2TBSXL.L1.S1, de 30.11.2017, processo n.º 12198/14.6T8LSB.L1.S1,  e 30.05.2017, processo n.º 22174/15.6T8PRT.P1.S1., todos in www.dgsi.pt., e também referenciados no Ac. STJ de 10.09.2019, já indicado.
[4] Cf. Ac. STJ de 10.09.2019, acima aludido, reportando também o Ac. do STJ de 15.11.2018, processo n.º 296/16.6T8GRD.C1.S2, in www.dgsi.pt.
[5] Cf. o já mencionado Ac. do STJ de 15.11.2018, processo n.º 296/16.6T8GRD.C1.S2, in www.dgsi.pt.
[6] Cf. Paulo Mota Pinto, Perda de chance processual, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos, Volume II, Tribunal Constitucional, 2016, Almedina, pág. 1322.
[7] Paulo Mota Pinto, Perda de chance processual, in RLJ, Ano 145, Março-Abril de 2016, pág. 190.
[8] Cf.  Fernando Augusto Samões, in Indeminização por perda de chance, Dissertação de Mestrado, Universidade Portucalense, agosto de 2015, pág. 63, consultável on line.
[9] Cf. Patrícia Cordeiro da Costa, A perda de chance – dez anos depois, in  JULGAR, n.º 42-2020, pág. 155, numa revisita a estudo efetuado em 2010, surpreendendo-se a manutenção do interesse doutrinário, e uma produção jurisprudencial, significativa.
[10] Concluindo-se que inexiste esse apoio, nomeadamente no art.º 563, do CC, que exige a prova de que os danos a indemnizar são apenas os que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, salvo contudo se demonstrada a forte probabilidade da obtenção do direito, não fora a chance perdida.
[11]Cf. Ac. do STJ de 17.02.2022, processo n.º 12721/18PRT.P1.S1, de 9.03.2022, processo n.º 21963/15.6T8PRTP1.S1, e de 11.10.2022, processo n.º 2759/17.7T8VNG.P2.S1, todos in www.dgsi.pt.
[12] Relembre-se que a redação inicial, fixada pela 1ª instância, era: Caso o Dr. AA não tivesse omitido a indicação desse património, não haveria fundamentos para, no âmbito do processo de insolvência da autora, lhe ser indeferido liminarmente a exoneração do passivo restante e, com elevada probabilidade, viria a autora a beneficiar, no final do período de cinco anos, da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, com efeitos a partir de 13.12.2022.
[13] Passando a ser dado como provado: Caso não tivesse sido indeferida liminarmente a exoneração do passivo restante, com elevada probabilidade, viria a Autora a beneficiar, no final do período de cinco anos, da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, com efeitos a partir de 13.12.2022.
[14] Tendo em conta que a Ré/recorrida não questionava que o dano da perda de chance não devesse ser ressarcido, entendendo, contudo, que no caso dos autos o mesmo não se verificava.
[15] Na redação em vigor, aplicável aos autos.