Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1182/14.0T2AVR-H.P1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA
PRINCÍPIO DA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
ACESSO AOS TRIBUNAIS
INTERPRETAÇÃO DA LEI
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
ANULAÇÃO DA VENDA
DESTITUIÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - ÓRGÃOS DA INSOLVÊNCIA / ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA - LIQUIDAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE / EFICÁCIA DOS ACTOS DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA.
Doutrina:
- Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, 462 e 463.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, - 4.ª edição revista e aumentada - Vol. I, 408 e ss., 416.
- Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, Quid Juris, 2008, 259.
- Pedro Pais de Vasconcelos, in “II Congresso de Direito da Insolvência”, 197.
- Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, 294 – 295.
aula Costa e Silva, no Estudo “A Liquidação da Massa Insolvente”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2005 – Ano 65 – Vol. III, Dezembro 2005.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 1.º, 55.º, 58.º, 59.º, 68.º, 161.º, 162.º, 163.º, 164.º, 164.º, 165.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 64.º, N.º 1, AL. A).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º, N.ºS 1 E 5.
ESTATUTO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL – LEI N.º 22/2013, DE 26.2: - ARTIGO 12.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-DE 12.5.2015, PROCESSO N.º110/2015, I SÉRIE DO DIÁRIO DA REPÚBLICA DE 8.6.2015.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 23.1.2017, PROC. N.º 571/12.9T2AVR-H.P1, E DE 30.1.2017, PROC. N.º 530/16.2T8AVR-F.P1 - IN WWW.DGIS.PT .
Sumário :
A interpretação que o acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163.° do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar tal questão perante o juiz do processo, e que a decisão judicial proferida na 1.ª instância, que decretou a pedida nulidade daquela venda, é ilegal por o acto ser eficaz, restando ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados; viola o art. 20.°, n.os 1 e 5, da CRP, por não assegurar, imediatamente no processo, tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador.
Decisão Texto Integral:

Proc.1182/14.0T2AVR-H.P1

R-584[1]

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No processo de insolvência da sociedade comercial “AA, Lda.”, o Administrador da Insolvência nomeado, BB, procedeu, no dia em 13.11.2014, na Conservatória do Registo Predial de ...-..., à outorga de título de compra e venda no qual declarou vender à sociedade comercial “CC, Lda.”, a qual declarou comprar, as fracções B e C do prédio integrante da massa insolvente descrito na Conservatória dos Registos de ... sob o n.º 0174, pelo preço de € 141.000,00 por cada fracção, do qual a compradora pagou 10% para pagamento das custas judiciais, despesas de liquidação e/ou créditos que possam ser graduados antes do crédito da compradora, tendo sido dispensada pelo Administrador da Insolvência de depositar o preço remanescente.

           

O credor reclamante BANCO DD, S.A., tendo tido conhecimento, em 23.10.2015, através da consulta das respectivas certidões prediais, da venda das referidas fracções sobre as quais tem garantia real, veio requerer ao tribunal que declarasse a nulidade dessa venda por violação do disposto nos artigos 164.º, nºs 2 e 3, e 165.º do CIRE e 815.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil.

Para o efeito, alegou que não foi ouvido sobre a modalidade da alienação nem informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada, conforme resulta do artigo 164.º do CIRE; que o crédito da adquirente foi impugnado e no momento da venda não havia ainda sentença de graduação de créditos pelo que a adquirente devia depositar o excedente do montante reclamado ou, ao menos, devia incidir sobre os bens adquiridos hipoteca para garantia da parte do preço não depositada, o que não sucedeu; que existe uma expressiva discrepância entre o valor fiscal e o valor de mercado atribuído às fracções e ainda o valor pelos quais os mesmos foram imprudentemente vendidos, sendo o valor da venda irrisório face ao valor patrimonial das fracções.

           

O Administrador de Insolvência foi ouvido e pronunciou-se no sentido da inexistência de nulidades na venda.

           

***

Por despacho, inserido no sistema em 20.03.2016, a M.ma Juíza a quo declarounula a venda realizada por escritura celebrada em 13.11.2014 tendo como objecto as fracções B e C (…) da massa insolvente, (…) com fundamento nos arts. 195º, nº1 e 839º, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil”.

***

           

A credora adquirente “CC, Lda.” recorreu para o Tribunal da Relação do …, que, por Acórdão de 15.9.2016 – fls. 383 a 393 –, julgou o recurso procedente e, em consequência, revogou a decisão recorrida que declarou nula a venda realizada pelo Administrador da Insolvência.

***

Inconformado, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça o BANCO DD, SA. -Sociedade Aberta, que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. O que se pretende fazer valer com o presente recurso, além da defesa do credor hipotecário e demais credores, é também uma questão de fundo, de valores, bom senso e de justiça e que se prende com a ideia de que o Credor hipotecário não pode estar mais protegido em sede de acção executiva, cível ou fiscal, do que em processo de insolvência, que é no fundo, um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor, e também que a desjudicialização do processo de insolvência, não é e não pode ser, o esvaziamento da função jurisdicional.

II. É certo que a lei determina que o administrador de insolvência proceda com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, porém esta determinação não pode concretizar-se em sucessivos atropelos às disposições legais que determinam a venda daqueles mesmos bens.

III. Como veremos, na venda das fracções B e C o Senhor Administrador de Insolvência incumpriu o disposto no nº2 do art. l64º, igualmente não ouviu a comissão de credores, por se tratar de um acto de especial relevo nos termos do art. 161º., e sem que fosse dado cumprimento ao disposto no art. 815º., n.º1 do Código de Processo Civil ex vi do art. 165º do C.I.R.E. e 801º do Código de Processo Civil.

IV. O Banco reclamante e ora Recorrente é credor hipotecário e tal facto não podia ser desconhecido do Sr. Administrador de Insolvência até porque o mesmo o reconheceu e consta das certidões prediais os registos das hipotecas.

V. Tendo a venda sido feita em incumprimento do disposto no n.º2 do art. l64.º do CIRE e cuja observação é imposta por lei, tal configura a omissão da prática de acto legalmente prescrito e por ser susceptível de influir no exame e na decisão da causa – no caso, influenciou o resultado da venda, o que constitui nulidade processual, nos termos do art. 195.º n.º1 do Código de Processo Civil, que importa não só a nulidade do acto da venda, como dos actos subsequentes que dele dependam absolutamente.

VI. Por outro lado, é dever do Administrador de insolvência informar sobre o valor base fixado ou do preço da venda projectada por entidade determinada, procedimento que, verdadeiramente, tutela o credor que goza de garantia real já que tal notificação lhe permite usar a faculdade que lhe é conferida nos termos do nº3 do art. 164.º do CIRE, ou seja, apresentar proposta de aquisição, se assim o entendesse.

VII. A intervenção do credor hipotecário no processo de insolvência destina-se a permitir que aquele possa valer aquela causa de preferência, sendo que a justificação última da intervenção em execução pendente, seja ela singular ou colectiva, dos credores que são titulares de garantias reais sobre os bens apreendidos encontra-se na extinção destas garantias através da venda.

VIII. A notificação ao credor hipotecário, nos termos do n.º2 do art. 164.º do CIRE, mesmo que se entenda não ser vinculativa, é fundamental para o exercício do seu direito de apresentar proposta nos termos do n.º3 do mesmo preceito.

IX. Assim falta dessa notificação, como bem defende o Tribunal da 1ª Instância determina a preterição de formalidades essenciais susceptíveis de influir no resultado da liquidação e importará por isso a nulidade da venda.

X. É esta a interpretação que mais se coaduna com o pensamento legislativo e que aliás foi acolhida pelo Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 18-02-2010, proferido no processo 632106.3TJVNF-L.P1 e disponível em www.dgsi.pt.

XI. Esta é também a orientação seguida pacificamente no âmbito dos Tribunais Administrativos que além do mais, entendem e reputam essencial o conhecimento do credor com garantia real da data da venda, de forma a proteger os seus interesses.

XII. Em rigor, aceitar o contrário levará a que o credor hipotecário seja mais protegido em sede de execução fiscal ou cível do que no âmbito da Insolvência, o que não faz qualquer sentido, tendo em conta o seu carácter de execução universal do património do insolvente.

XIII. A desjudicialização do processo pretendida pelo legislador, no âmbito do CIRE, que determinou a redução da intervenção do Juiz não pode chegar tão longe, que permita uma actuação do Administrador de insolvência sem qualquer controlo, impossibilitando-se de todas as formas a intervenção do juiz no controlo desse actos, que implica, no fundo, esvaziar por completo a função jurisdicional.

XIV. Não cremos, e não aceitamos que pelo facto de um credor, no caso em apreço, hipotecário, ter outras formas de reagir contra os actos do administrador, o juiz não possa controlar esses mesmos actos, negligentes ou dolosos, que põe em causa o interesse de todos os credores, desbaratam a massa insolvente e, consequentemente, aniquilam o fim do processo em si mesmo.

XV. Ao contrário do que defende o Tribunal a quo, a decisão da M.ma Juiz da 1ª Instância não se baseou apenas na tentativa de conciliação levada a cabo mas em todos os elementos constantes do processo e também aqueles que devendo constar dos Autos, foram omitidos ou mesmo mascarados pelo Sr. Administrador de Insolvência.

XVI. Como bem refere a M.ma Juiz do Tribunal da 1.ª Instância, como interpretar a coincidência dos valores de venda fossem aqueles que decorrem da avaliação dos imóveis que, por acaso, o Sr. Administrador apenas juntou aos Autos quase um ano depois da realização da venda e o valor dos créditos que foram reconhecidos com direito de retenção sobre as mesmas.

XVII. Por outro lado, o valor atribuído aos imóveis é muito inferior ao valor patrimonial dos mesmos, o que contraria frontalmente os termos do n.º3 do art. 812.º do Código de Processo Civil, norma que é aplicável, também, ao processo de insolvência, tanto mais que este é um processo de execução universal – art. 1.º do CIRE, também por aqui a venda não deixaria de ser nula.

XVIII. Embora tenha sido reconhecido o direito de retenção à credora CC o facto de não ter sido impugnado pelo Banco reclamante o crédito em sede do PER não implica que não venham e possam ser impugnados em sede de processo de insolvência, aliás, a lista definitiva de créditos no PER não tem força de caso julgado, – vide o Ac. do TR Coimbra, de 24-06-2014.

XIX. Certo é que o Banco reclamante foi alheado de todo o processo de venda das referidas fracções, sendo que o primeiro contacto que o Banco reclamante teve com a liquidação foi quase um ano depois, a 07-10-2015, com o projecto de venda da Fracção E.

XX. A única justificação para o silêncio do AI é a tentativa de esconder a venda das fracções “B” e “C” efectuada sem que fossem cumpridas as exigências legais.

XXI. Não esquecendo que o mesmo, tendo sido chamado a informar sobre o estado da liquidação veio o Administrador de Insolvência em Setembro de 2015 informar que aguardava decisão sobre os bens sujeitos a impugnação pelas partes, o que bem sabia não ser verdade.

XXII. Não haverá qualquer fundamento sério que possa ser apresentado para esta omissão...

XXIII. Incumpriu-se assim o disposto no art. 165.º do CIRE e 815.º do Código de Processo Civil, violando flagrante e gravemente a lei a que deve ao transferir duas das fracções da insolvente para a titularidade de credor que reconheceu como credor garantido, dispensando-o do depósito de 90% do preço!

XXIV. Conforme temos vindo a expor, as normas legais preteridas pelo Sr. Administrador de insolvência, e dos elementos que constam e os que não constam dos Autos, apreciadas no seu conjunto assumem relevante gravidade e consubstanciam preterição de formalidades essenciais susceptíveis, como refere o Tribunal de 1.ª Instância “não só de influir no resultado da liquidação, mas também de adulterar a ordem de pagamentos legalmente prevista através da concessão de dispensa de depósito de preço a credor cuja garantia à data da venda não havia sido reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado”.

XXV. Caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se admite, caso venha a ser revogado o douto despacho recorrido, sempre será de aplicar o disposto no nº3 do citado art. 164º, devendo o Sr. Administrador de Insolvência obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação ao preço que for oferecido pelo Credor Reclamante, após notificação para tanto, o que se requer.

XXVI. Ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido violou o disposto nos art. 164., 165.º, 161.º, nºs 1, 2, 3, g) e n.º4 do CIRE, o n.º3 do art. 812. do Código de Processo Civil, arts. 195.º, n.º1, 197.º, 199.º todos do Código de Processo Civil ex vi do art. 17.º do CIRE e art. 9º do Código Civil.

Termos em que, atento o rigor da fundamentação da douta sentença, se conclui pela absoluta improcedência do recurso e consequentemente pela confirmação da douta sentença recorrida.

Assim será feita Justiça.

Não houve contra-alegações.

***

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1. Através de requerimento de 07.01.2014 a insolvente apresentou-se a PER que foi declarado encerrado por despacho de 28.05.2014 sem que a devedora tenha apresentado e submetido qualquer plano de recuperação à negociação e votação dos seus credores (cf. req. de fls. 564 e s. do apenso A), encerramento ao qual, e conforme parecer do Sr. administrador judicial provisório nesse sentido, sobreveio a declaração da insolvência da devedora, com nomeação de comissão de credores integrada pelos credores BANCO DD, na qualidade de presidente, e dos credores FF e Autoridade Tributária na qualidade de vogais.

           

2. Em sede de assembleia de credores realizada em 27.08.14 foi constatada a ausência de proposta para elaboração de plano de insolvência e determinado o prosseguimento dos autos para liquidação.

           

3. Por requerimento de 22.09.2014 o Sr. administrador da insolvência juntou auto de arrolamento de bens móveis e de bens imóveis, estes correspondentes a oito fracções – armazéns – integrantes do mesmo prédio, dele fazendo constar: Entende-se que face à ausência de impugnações no âmbito do processo especial de revitalização e que por conversão originou o presente processo de insolvência, atribuir a concessão do direito de retenção aos credores reclamantes desse direito (fls. 2 a 7 do apenso C)

           

4. Por requerimento de 22.09.2014 o Sr. administrador da insolvência juntou listas de créditos reconhecidos e não reconhecido em cumprimento do artigo 129.º, nº 2, constando da primeira, entre outros, crédito privilegiado da Autoridade Tributária no montante de €10.774,50 (sem indicação de fundamento/tributo a que respeita), crédito garantido do BANCO DD no montante de €1.303.398,46 (sem indicação dos bens objecto da garantia), créditos garantidos de “EE, Lda.” no montante de € 170.000,00 com fundamento em direito de retenção sobre o imóvel A, “FF, SA” nos montantes de € 200.000,00, € 340.000,00 e € 320.000,00 com fundamento em direito de retenção sobre os imóveis D, G e H, “CC, Lda.” nos montantes de € 221.600,00 e € 229.000,00 com fundamento em direito de retenção sobre os imóveis C e B, direitos de retenção e correspondente natureza garantida que por requerimento de 01.10.2014 foram impugnados pelo credor BANCO DD, ao qual, notificados da impugnação, os impugnados apresentaram respostas que por despacho de 07.05.15 foram rejeitadas, por extemporâneas, estando aqueles autos pendentes de prolação de sentença.

           

5. Ainda por requerimento junto na mesma data (22.09.2014), que consta de fls. 8 do apenso de apreensão de bens, o Sr. administrador da insolvência declarou “reitera o anteriormente indicado quanto à atribuição do direito de retenção aos credores reclamantes, face à ausência de impugnações no âmbito do processo especial de revitalização e que por conversão originou o presente processo de insolvência, atribuir a concessão desse direito.//Na ausência de presentemente inexistirem factos supervenientes e impeditivos que afectem a diligência em causa, nomeadamente a celebração de escrituras, e caso este digníssimo Tribunal entenda como válido, requer-se dignamente a emissão de certidão que capacite ao Administrador da insolvência poderes suficientes para promover as restantes diligências junto da Conservatória competente ou Cartório Notarial, nomeadamente da atribuição de poderes para a celebração da devida escritura, com o intuito único de finalizar a venda anteriormente efectuada”, na sequência do que pela secção foi oficiosamente certificado o auto de apreensão, a data da prolação e trânsito da sentença de declaração da insolvência e a identificação do administrador da insolvência para ela nomeado.

           

6. Conforme certidões de ónus e encargos das fracções apreendidas, sobre estas incidem hipotecas constituídas em 2006 e 2010 em benefício do credor BANCO DD para garantia dos montantes de capital de € 1.920.000,00 e € 250.000,00, até aos montantes máximos de € 2.412.000,00 e € 340.025,00.

           

7. Através de carta datada de 06.10.2015 o Sr. administrador da insolvência comunicou ao ilustre mandatário do credor BANCO DD que:

i) a modalidade por si adoptada para a venda parcial dos activos da insolvente seria a venda extrajudicial por negociação particular com dispensa de colocação de anúncio;

ii) invocando a qualidade de credor hipotecário daquela credor, através da dita carta mais declarou informá-lo que promoveu as diligências tendentes à venda da fracção E do prédio descrito sob a ficha nº 0174 da CRP de ... (correspondente a armazém), com valor patrimonial de € 309.990,00, indicando como valor de avaliação do mesmo € 141.000,00, pondo à consideração do credor a proposta de aquisição do dito imóvel pelo preço de € 80.000,00 apresentada por “GG, Lda.”, a cuja concretização o Sr. administrador da insolvência se pronunciou favoravelmente considerando o ónus que sobre o mesmo incide, correspondente ao contrato de arrendamento celerado pela insolvente em 01.08.2013 pelo prazo de dez anos com o credor “HH, Lda.”;

iii) mais indicou ao credor “o período legal” para as diligências que entenda como úteis nos termos do art. 164º, nº3 do CIRE sob pena de, findo e não sendo apresentada proposta alternativa ou intenção de adjudicação, proceder de imediato à atribuição do imóvel ao promitente comprador (fls. 9vº e 10).

8. Em resposta o credor BANCO DD, através de mail que em 07.10.2015 o respectivo ilustre mandatário remeteu ao Sr. administrador da insolvência, solicitou ao Sr. administrador da insolvência indicação da pessoa – contactos telefónicos e morada – que possa mostrar o imóvel a fim do mesmo ser avaliado, ao que o Sr. administrador da insolvência respondeu por mail de 08.10.2015 comunicando ao ilustre mandatário do credor que o imóvel em questão poderia ser visitado para efeitos de avaliação no dia 13.10.2015 entre as 10h00 e as 11h00 (doc. fls. 9).

           

9. “II, Lda.” apresentou proposta ao Sr. administrador da insolvência datada de 19.10.2015 para aquisição das fracções E e F do prédio descrito sob a ficha nº 0174 pelo valor de € 125.000,00 cada (fls. 12 e s.).

           

10. Através de escritura pública outorgada em 13.11.2014 o Sr. administrador da insolvência, em representação da massa falida da aqui insolvente, declarou vender a CC, Ld.ª (NIPC 000 000 725), representada por JJ, e esta declarou comprar, as fracções B e C do prédio descrito sob a ficha nº 0174 da Conservatória do Registo Predial de ..., pelo preço global de € 282.000,00, correspondente a € 141.000,00 por cada fracção, do qual a compradora apenas entregou/pagou por depósito na conta da massa insolvente a quantia de € 28.200,00 para pagamento das custas judiciais, despesas de liquidação e/ou créditos que possam ser graduados antes do crédito da compradora, tendo o Sr. administrador da insolvência dispensado a compradora do depósito do remanescente do preço de aquisição nos termos do disposto no art. 815º, nº 1 do Código de Processo Civil, mais fazendo constar do referido título de transmissão que o diverso articulado não invalida a responsabilidade e a necessária disponibilidade do credor e adquirente dos imóveis em aquisição em promover o pagamento dos montantes necessários para efeitos do art. 172º e do nº 1 do art. 51º do CIRE que excedam os dez por cento do montante da proposta explicitados no nº 2 do art. 172º do CIRE (doc. fls. 35 e ss.).

11. A compradora CC requereu a inscrição no registo da aquisição do direito de propriedade sobre as fracções em seu benefício através de ap. de 13.11.2014 (ap. nº 2037, às 15h49), por compra no âmbito do presente processo de insolvência, com o consequente cancelamento da hipoteca e das penhoras que incidiam sobre cada uma das fracções (doc. fls. 27, vº e ss.).

           

12. Por requerimento apresentado na mesma data a sobredita fracção B foi inscrita em benefício de KK, Ld.ª, por compra a CC (ap. nº 2393, às 16h42).

           

13. Por requerimento apresentado em 30.07.2015 o direito de propriedade sobre a sobredita fracção C foi provisoriamente inscrito em benefício do BANCO LL, SA por compra a CC, registo convertido em definitivo em 11.08.2015 e, por requerimento apresentado nesta data (11.08.2015), foi inscrita locação financeira pelo prazo de dez anos em benefício de MM Lda. (doc. fls. 31 e ss.).

           

14. Sem que tenha consultado ou solicitado autorização da comissão de credores para o efeito, o Sr. administrador da insolvência contratou perito para proceder à avaliação dos imóveis apreendidos, o qual conclui pelos valores (presumíveis de transacção) do prédio descrito sob a ficha nº 0174: fracção A – € 145.000,00, fracção B – € 141.000,00, fracção C – € 141.000,00, fracção D – € 141.000,00, fracção E – € 141.000,00, fracção F – € 141.000,00, fracção G – € 245.000,00, fracção H – € 264.000,00 que expressou em relatórios datados de 06.10.2014 e que o Sr. administrador da insolvência juntou aos autos por requerimento de 15.10.2015, acompanhados da escritura de compra e venda que celebrou em Novembro de 2014, traduzindo-se esta a única informação prestada nos autos pelo Sr. administrador da insolvência sobre as diligências e estado da liquidação (fls. 59 e 65 e ss.).

           

15. Através de requerimento que em 26.11.2015 dirigiu e foi junto aos autos principais o Sr. administrador da insolvência declarou informar da inexistência de reconhecimento dos representantes dos membros da comissão de credores no presente processo, requereu a notificação às partes para os necessários efeitos, e que seja notificado da identificação e contactos dos membros que venham a ser identificados para efeitos de continuidade da liquidação (requerimento de fls. 174), na sequência do que os elementos da comissão de credores juntaram credenciais aos autos (fls. 178 a 181 e 186).

           

16. Em sede de tentativa de composição dos interesses em litígio através, se assim fosse entendido, do total depósito do preço das fracções B e C vendidas pelo Sr. administrador da insolvência com dispensa de depósito de 90% do mesmo, o Sr. administrador da insolvência declarou que não procedeu à audição da comissão de credores pelo facto de os respectivos elementos não terem junto credencial aos autos (ata de 25.02, fls. 151).

Fundamentação:

Sendo pelas conclusões das alegações do recorrente, que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a venda por negociação particular de duas fracções autónomas prediais da Massa insolvente de AA, Lda., foi feita de harmonia com as normas previstas no CIRE, tendo em conta que o crédito reclamado e reconhecido ao Recorrente, sobre elas, dispunha de garantia hipotecária.

Como consta do processo, a devedora foi requerente de PER, que findou sem aprovação de Plano de recuperação, razão por que foi declarada insolvente.

Na fase de liquidação a cargo do Senhor Administrador, agora da insolvência, antes administrador judicial provisório em vida do PER, o BANCO DD, credor hipotecário com créditos reconhecidos no valor € 1 303 398,46, questionou a legalidade da venda de duas fracções autónomas, “B” e “C”, à compradora CC pelo preço de € 140 000,00 cada uma, negócio que considerou nulo com base nos seguintes factos (“falhas” como consta do Acórdão recorrido):

“i) Não ouviu o credor BANCO DD sobre a modalidade da venda, o valor base e o preço das fracções a vender, o que devia ter feito nos termos do artigo 164.º, n.º2, do CIRE face à circunstância de o mesmo ter hipoteca registada sobre as fracções para garantia do seu crédito;

ii) não comunicou previamente em tempo útil à comissão de credores os termos em que tinha a intenção de alienar as fracções para a comissão poder exercer o seu direito de fiscalização nos termos do artigo 68.º do CIRE;

iii) concedeu ao adquirente a dispensa de pagamento de 90% do preço, reconhecendo-lhe um suposto direito de garantia que não está reconhecido nos autos por não haver ainda sentença de verificação e graduação dos créditos e não exigiu sequer que as fracções ficassem oneradas com hipoteca para garantia do pagamento do remanescente do preço conforme previsto no artigo 815.º do Código de Processo Civil para a venda executiva.”

O Acórdão recorrido começou por abordar os poderes do Administrador da Insolvência (doravante AI), no que respeita à liquidação dos bens da massa insolvente, afirmando que “não basta invocar normas do Código de Processo Civil relativas à venda em processo executivo ou a actos processuais para daí concluir sem mais que as mesmas são directa e totalmente aplicáveis à liquidação do activo num processo de insolvência”

A propósito indica os Acórdãos daquela Relação, de 29.05.2014 e de 12.11.2015 proferidos nos processos n.º615/11TYNVG-D.P1, in www.dgsi.pt., e nº2337/13.0T2AVR-K.P1, inédito.

Depois de citar Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, 2009, e enfatizar o diverso regime normativo, no que concerne à liquidação do activo a cargo do AI, no confronto com o Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência (CPEREF) com o vigente CIRE, evidenciando que o intuito de desburocratizar, que é pedra de toque do vigente diploma insolvencial, colocou nas mãos do AI, ainda que sob a fiscalização do juiz e da comissão de credores, ampla e exclusiva liberdade de escolha quanto à modalidade de venda dos bens integrantes da massa, e sublinhar que o AI deve actuar como um gestor criterioso em função dos interesses que lhe competem por via do Estatuto do Administrador – Lei nº22/2013, de 26.2 – e também por imposição do CIRE, afirmou, in litteris, o seguinte:

“Na senda deste entendimento, que aqui se reitera, a decisão recorrida tem de ser revogada por o decidido exceder os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos actos do administrador praticados na liquidação do activo.

Cremos dever anotar que esta solução não conduz a qualquer espécie de bloqueio das formas de fiscalização e responsabilização da actuação do Administrador da Insolvência. A anulação dos actos praticados pelo Administrador não é a única forma de reacção possível contra a omissão do cumprimento de normas legais que regem a actuação funcional do Administrador na liquidação da insolvência.

Essa omissão faz o Administrador incorrer em responsabilidade civil perante os credores, os quais deverão utilizar os mecanismos legais previstos na lei para o exercício do correspondente direito de indemnização e que se mostram afastados no âmbito do processo de insolvência por razões que se prendem com a celeridade que o legislador quis imprimir a este processo.”

Se bem interpretamos o douto Acórdão, no caso do AI, na liquidação dos bens imóveis integrantes da massa insolvente, actuar de maneira repreensível, porque desconforme aos preceitos legais aplicáveis, o lesado ou lesados, com tal actuação, têm ao seu alcance, apenas, poderem demandá-lo no contexto do instituto da responsabilidade civil extracontratual, para, à custa do seu património e ilimitadamente, se ressarcirem dos danos causados.

A solução, nesta perspectiva, é ditada por razões de celeridade e desburocratização, que caracterizam o CIRE, tendo em conta os latos poderes do AI, na fase de liquidação, não tendo o Juiz competência para intervir, no que respeita à administração e liquidação da massa, não sendo sequer possível, a não ser em casos excepcionais, que ao diante abordaremos, impugnar os actos do administrador da insolvência, obviamente, sem prejuízo dos poderes cometidos ao julgador, de fiscalização e de destituição do administrador da insolvência com justa causa.

Cumpre analisar:

Decorre do art. 1º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresa (CIRE)[2], na redacção introduzida pela Lei nº16/2012, de 20.4, que criou o Plano de Revitalização de Empresa (PER), que o processo de insolvência é um processo de execução universal “Que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.

O CIRE é norteado pela desjudicialização, ampla autonomia dos credores, latos poderes do administrador, mormente, no que respeita à liquidação do activo do insolvente.  

No ponto 10) do Preâmbulo do CIRE pode ler-se:

“A afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo.

Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do juiz no processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da intervenção do juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais.

É assim que, por um lado, ao juiz cabe apenas declarar ou não a insolvência, sem que para tal tenha de se pronunciar quanto à recuperabilidade financeira da empresa (como actualmente sucede para efeitos do despacho de prosseguimento da acção).

A desnecessidade de proceder a tal apreciação permite obter ganhos do ponto de vista da celeridade do processo, justificando a previsão de que a declaração de insolvência deva ter lugar, no caso de apresentação à insolvência ou de não oposição do devedor a pedido formulado por terceiro, no próprio dia da distribuição ou nos três dias úteis subsequentes, ou no dia seguinte ao termo do prazo para a oposição, respectivamente.

Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz tanto as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa).”

Vejamos os preceitos do CIRE que a controvérsia convoca:

Artigo 55.º – Funções e exercício

1 - Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir:

a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;

b) Prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica.

[…].”  

Artigo 58.º Fiscalização pelo juiz

O administrador da insolvência exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação. 

Sobre os poderes e deveres do administrador da insolvência e inerente responsabilidade, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2008, pág. 259:

           

“Os poderes do Administrador têm em vista a satisfação de interesses que não são próprios: corresponde-lhe, por isso, a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que ele não só pode, como, sobretudo, deve desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado (cfr. artigo 59º, in fine). Mesmo quando a lei lhe atribui a possibilidade de opção entre várias alternativas, o administrador deve agir de acordo com aquela que, segundo as circunstâncias concretas e ao olhar de um gestor criterioso e ordenado, se evidenciar como a mais favorável e proveitosa para a melhor tutela dos interesses dos credores. É a esta luz que têm sempre que ser avaliadas as faculdades múltiplas que cabem ao administrador, bem como os deveres que sobre ele impendem. E a essa mesma luz será apreciado o seu procedimento e, correspondentemente, medida a sua responsabilidade.”

 

O Estatuto do Administrador Judicial – Lei nº22/2013, de 26.2 – no seu art. 12º estabelece:

1 - Os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se dignos da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes.

2 - Os administradores judiciais, no exercício das suas funções, devem atuar com absoluta independência e isenção, estando-lhes vedada a prática de quaisquer atos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados. 

[…]

 Artigo 59.º Responsabilidade

1 - O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado.

2 - O administrador da insolvência responde igualmente pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respectivos direitos e estes resultarem de acto do administrador, salvo o caso de imprevisibilidade da insuficiência da massa, tendo em conta as circunstâncias conhecidas do administrador e aquelas que ele não devia ignorar.

3 - O administrador da insolvência responde solidariamente com os seus auxiliares pelos danos causados pelos actos e omissões destes, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.

4 - A responsabilidade do administrador da insolvência prevista nos números anteriores encontra-se limitada às condutas ou omissões danosas ocorridas após a sua nomeação.

5 - A responsabilidade do administrador da insolvência prescreve no prazo de dois anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mas nunca depois de decorrido igual período sobre a data da cessação de funções. 

O padrão de exigência e o critério de actuação exigíveis não diferem muito do previsto no art. 64º, nº1, a) do Código das Sociedades Comerciais. A propósito Pedro Pais de Vasconcelos, in “II Congresso de Direito da Insolvência”, em Estudo aí publicado – pág. 197 – escreve:

“O dever de cuidado, consagrado no artigo 64º, nº1, alínea a) do Código das Sociedades Comerciais, tem em comum com o nº1 do artigo 59º do CIRE a referência ao administrador da insolvência criterioso e ordenado. É o mesmo operador jurídico. O administrador da sociedade e o administrador da insolvência, devem usar da diligência de um administrador ou gestor (é a mesma coisa) criterioso e ordenado. É óbvia a intencionalidade normativa do recurso à mesma fórmula. A maior prolixidade do nº1 do artigo 64º do Código das Sociedades Comerciais poderia ser transposta para o nº1 do artigo 59º do CIRE sem violência nem desvio de sentido.

Não colide com o sentido do regime de responsabilidade do administrador da insolvência que lhe seja exigido o cumprimento de deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade (…) adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado. A diferença não é mais do que terminológica e de redação. Não se pode negar que o administrador da insolvência deva usar do cuidado, deva cumprir o duty of care, do mesmo modo, com a mesma competência e proficiência.”

Artigo 68.º Funções e poderes da comissão de credores

1 - À comissão compete, para além de outras tarefas que lhe sejam especialmente cometidas, fiscalizar a actividade do administrador da insolvência e prestar-lhe colaboração.

2 - No exercício das suas funções, pode a comissão examinar livremente os elementos da contabilidade do devedor e solicitar ao administrador da insolvência as informações e a apresentação dos elementos que considere necessários. 

Artigo 161.º Necessidade de consentimento

1 - Depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência.

2 - Na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa.

3 - Constituem, designadamente, actos de especial relevo:

a) A venda da empresa, de estabelecimentos ou da totalidade das existências;

b) A alienação de bens necessários à continuação da exploração da empresa, anteriormente ao respectivo encerramento;

c) A alienação de participações noutras sociedades destinadas a garantir o estabelecimento com estas de uma relação duradoura;

d) A aquisição de imóveis;

e) A celebração de novos contratos de execução duradoura;

f) A assunção de obrigações de terceiros e a constituição de garantias;

g) A alienação de qualquer bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza.

4 - A intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio deverão ser comunicadas não só à comissão de credores, se existir, como ao devedor, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção.

5 - O juiz manda sobrestar na alienação e convoca a assembleia de credores para prestar o seu consentimento à operação, se isso lhe for requerido pelo devedor ou por um credor ou grupo de credores cujos créditos representem, na estimativa do juiz, pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados, e o requerente demonstrar a plausibilidade de que a alienação a outro interessado seria mais vantajosa para a massa insolvente.”

  

Artigo 163.º Eficácia dos actos

A violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte. 

  

Artigo 164.ºModalidades da alienação

1 - O administrador da insolvência escolhe a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.

2 - O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.

3 - Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.

4 - A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa falida, no valor de 20% do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 897.º e 898.º do Código de Processo Civil.

5 - Se o bem tiver sido dado em garantia de dívida de terceiro ainda não exigível pela qual o insolvente não responda pessoalmente, a alienação pode ter lugar com essa oneração, excepto se tal prejudicar a satisfação de crédito, com garantia prevalecente, já exigível ou relativamente ao qual se verifique aquela responsabilidade pessoal.

6 - À venda de imóvel, ou de fracção de imóvel, em que tenha sido feita, ou esteja em curso de edificação, uma construção urbana, é aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 905.º do Código de Processo Civil, não só quando tenha lugar por negociação particular como quando assuma a forma de venda directa”.

Artigo 165.º Credores garantidos e preferentes

           

Aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respectivos direitos na venda em processo executivo. 

O Recorrente considera que a actuação do AI foi discriminatória e parcial, no que respeita ao tratamento do seu crédito garantido por hipoteca, no que respeita à alienação, em 13.11.2014, de duas fracções prediais pelo preço unitário de € 141 000,00 – cfr. factos provados 10) e 14).

Estando em causa a venda de imóveis sobre os quais o Recorrente tinha tal garantia, estava o AI obrigado, nos termos do art. 164º, nº2, do CIRE, a ouvi-lo sobre a modalidade da venda e a informá-lo do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.

O AI, no uso dos seus poderes-deveres funcionais de prover à liquidação dos bens compreendidos na massa, escolheu a venda por negociação particular sem publicitação.

Sendo seu dever maximizar o produto da venda, tendo em vista satisfação dos credores (tratava-se de liquidar a insolvente e não de a recuperar), pode considerar-se discutível a opção, mais a mais se se atentar que, segundo o facto provado 14), o fez sem que tenha consultado ou solicitado autorização da comissão de credores para o efeito, tendo contratado um perito para proceder à avaliação dos imóveis apreendidos.

A possibilidade de reacção contra os actos do administrador está hoje dependente da qualificação desse acto como assumindo “especial relevo para o processo de insolvência”.

Nos termos do nº2 do art. 161º do CIRE – “Na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa.”

O art. 161º, nº3, do CIRE elenca, sem carácter taxativo, actos qualificados de especial relevo: sendo o conceito indeterminado ficará à consideração do intérprete uma ponderação qualificativa casuística.

             

Não parecem merecer a qualificação de “actos de especial relevo” procedimentos de carácter processual, pois, aquele normativo ao estatuir que “a violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos atos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte, apenas confere excepcional relevância violadora, geradora de invalidade, aos casos em que da actuação do AI resulte a assunção de obrigações caso excedam manifestamente as da contraparte.

A regra é, pois, a que os actos omissivos ou comissivos praticados pelo AI, infractores dos arts.161º e 162º do CIRE, não deixam de ser eficazes.

De notar que o nº4 do art. 161º, estatuindo que “a intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular…”, repete, enfatizando, quiçá desnecessariamente, face ao seu nº3, que constitui acto de especial relevo a intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular.

Parece, desta pouco clara técnica legislativa, que alienações por negociação particular podem constituir actos de especial relevo.

Paula Costa e Silva, no Estudo “A Liquidação da Massa Insolvente”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2005 – Ano 65 – Vol. III, Dezembro 2005[3] – aborda a questão interrogativamente:

“Que actos têm especial relevo?

A lei utiliza uma técnica mista de qualificação que visa, seguramente, conferir flexibilidade ao preceito. Por um lado, apresenta índices de qualificação no n.°2 do art. 161º, por outro, enuncia, no n.°3 do mesmo preceito, tipos de actos que se presumem ter particular relevo. Isto implica ter especial relevo quer um acto relativamente ao qual se preencham os índices do n.°2, quer um acto que se apresente como análogo àqueles que estão enunciados no n.°3.

Tanto dos índices, quanto dos casos expressamente previstos, resulta que terão especial relevo actos que influenciem decisivamente o processo de insolvência, quer porque têm especial impacto na massa insolvente, quer porque repercutem efeitos no conjunto das dívidas da insolvência.

Curiosamente, entre os actos que assumem especial relevo não se prevêem especificamente as actuações processuais.” (destaque e sublinhado nosso)

A lei insolvencial não contempla a possibilidade de anulação de actos praticados pelo AI, em sede de liquidação da massa insolvente, que enferme de vícios processuais cometidos, por acção ou omissão, na venda por negociação particular por si promovida, que são os invocados pelo recorrente.

A alienação, mesmo no caso de venda por negociação particular – a modalidade quiçá menos transparente de venda forçada –, mesmo que enferme de vício de tal natureza não prejudica a eficácia dos actos, excepto no caso (aqui nem sequer ventilado) de as obrigações assumidas pelo AI excederem manifestamente as da contraparte – art. 163º do CIRE.

 Os tratadistas são críticos da solução legal, se, como parece ser opinião dominante, o lesado ou lesados com a actuação do AI, apenas o puderem demandar civilmente, para o responsabilizar pelos danos causados com tal actuação: por não ter agido segundo o padrão do gestor criterioso e ordenado, sendo administrador de interesses alheios, como órgão da insolvência na veste de colaborador da justiça, ou então, diligenciando no processo, por via do pedido de destituição do cargo; a sanção de destituição por justa causa (aliás pedida e decretada neste processo, ainda que sem decisão transitada em julgado, ao que se sabe).

Em comentário ao art. 163º do CIRE, ligando-o às consequências dos actos praticados pelo AI, em violação dos arts. 161º e 162º – Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, págs. 462 e 463, escrevem:

“4. A ressalva dos negócios em que as obrigações assumidas excedam “manifestamente”as da contraparte coloca o problema não resolvido legalmente de saber em que ação se apreciam estes atos, quem tem legitimidade para a propor e quem indemniza os danos dos terceiros que tenham intervindo nos atos declarados ineficazes. Nenhuma das questões é irresolúvel, mas teria sido preferível que a lei se ocupasse do seu regime.

Parece-nos que a(s) ação(ões) tendente(s) a declarar a ineficácia do(s) ato(s) corre(m)por apenso ao processo de insolvência, cabendo legitimidade para a(s) intentar a qualquer credor ou ao devedor, sendo a responsabilidade pela sua celebração do administrador da insolvência, que, apesar de apenas estar prevista no artigo 59º perante o devedor e os credores, não deixa de responder nos termos gerais por responsabilidade pré-contratual perante aqueles com quem tenha negociado.

Carvalho Fernandes e João Labareda (ibidem, pág. 544) afirmam que, “antes do mais”, a assembleia de credores “poderá […] decidir a propositura da acção, […] porque é o próprio colectivo de credores o principal lesado pela violação”.

Se houver lugar à destituição do administrador, acrescentam: “supomos que o novo administrador deverá, ele próprio, ser encarregado de promover a acção”, e: “no caso contrário, a assembleia terá o poder de nomear um representante especial para essa acção, visto que o próprio administrador infractor terá de ser demandado nela”.

Ainda os autores citados (ibidem) opinam que, não havendo “nenhum mecanismo de excepção”, “restará unicamente a instauração de uma acção declarativa dirigida contra quem pretenda aproveitar – ou fazer prevalecer – o acto atacado, e contra o administrador infractor tendente a obter a declaração jurídica da sua ineficácia”, com toda “a perturbação que isso comporta para a insolvência, que vai desde a possível dificuldade de prova do requisito do pedido […] até à simples demora do processo”.

5. Naturalmente que, como acabou de ficar dito, a prática de atos pelo administrador da insolvência em desrespeito da lei pode, se culposa, implicar a sua responsabilidade perante o devedor e os credores (da insolvência ou da massa insolvente) nos termos do artigo 59º, sendo constituir justa causa para a sua destituição, de acordo com o artigo 56º.”

Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, págs. 294 – 295 – não se afasta desta perspectiva, quando escreve – “A falta do necessário consentimento da comissão de credores ou da assembleia de credores não prejudica, em regra, a eficácia do ato jurídico de especial relevo do administrador da insolvência (art. 163.º). A ineficácia ocorrerá, porém, se as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência excederem manifestamente as da contraparte”. Este regime é aplicável também aos casos em que o juiz mandou sobrestar na alienação (art. 161.º 5).

Mas, ainda que o ato não seja ineficaz, isso não significa que o administrador da insolvência o possa praticar sem o consentimento exigido. A prática do ato sem esse consentimento pode conduzir à destituição com justa causa do administrador da insolvência e até à sua responsabilização civil.” (destaque nosso)

           

Será o regime legal vigente, de reacção aos actos ilegais do AI, mormente o art. 163º do CIRE, compatível com a tutela jurisdicional efectiva dos direitos afectados no processo da insolvência?

Recusando-se ao juiz do processo de insolvência[4], poder apreciar e anular a venda por negociação particular, promovida pelo AI, em violação das normas que lhe impõem a adopção das formalidades previstas nos arts. 161º e 162º do CIRE, não sairá afectado o direito fundamental dos prejudicados, de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no art. 20º da Constituição da República?

Cremos que tal entendimento viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República se se entender, como no Acórdão recorrido, que “O administrador está vinculado a actuar como administrador criterioso e ordenado, sob pena de responder pelos danos que a sua actuação cause aos credores. Contudo, os seus actos não podem ser impugnados perante o juiz, já que perante terceiros, em regra, se mantém válidos e eficazes, sem prejuízo do dever de indemnização que façam recair sobre o administrador. Tanto basta para concluir que o recurso não pode deixar de improceder uma vez que não cabe na competência jurisdicional apreciar a regularidade dos actos praticados pelo administrador que motivaram o recurso.” (destaque e sublinhado nosso)

Este entendimento foi, mais recentemente, sufragado nos Acórdãos da Relação do Porto de 23.1.2017[5] – Proc. 571/12.9T2AVR-H.P1 – e de 30.1.2017[6] – Proc. 530/16.2T8AVR-F.P1 - in www.dgis.pt., no que parece constituir jurisprudência pacífica daquele Tribunal.

O art. 20º, nº1, da Constituição da República estatui: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” e o nº5 – “Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, - 4ª edição revista e aumentada - Vol. I, em anotação ao normativo, págs. 408 e segs. expressam:

“O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (n°1 e epígrafe) é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais. Sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito. É certo que carece de conformação através da lei, ao mesmo tempo em que lhe é congénita uma incontornável dimensão prestacional a cargo do Estado […]” e, na pág. 416, “Na epígrafe e no n°5 a Constituição alude expressis verbis ao direito à tutela jurisdicional efectiva (epígrafe) ou ao direito à tutela efectiva (n°5). Não é suficiente garantia o direito de acesso aos tribunais ou o direito de acção.

A tutela através dos tribunais deve ser efectiva. O princípio da efectividade articula-se, assim com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo de protecção e garantia.

Não obstante reconhecer o direito à protecção de direitos e interesses, não é suficiente garantia o direito de acção para se lograr uma tutela efectiva. O princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (cfr. Código de Processo Civil, art. 2°-2), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão (cfr. As formas de processo hoje consagradas no Cód. Proc. Trib. Admin., arts. 35° e ss.). A imposição constitucional da tutela jurisdicional efectiva impende, em primeiro lugar, sobre o legislador, que a deve tomar em consideração na organização dos tribunais e no recorte dos instrumentos processuais, sendo-lhe vedado: (1) a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais; (2) a criação de “situações de indefesa” originadas por conflitos de competência negativos entre vários tribunais.”

A tutela jurisdicional deve ser efectiva, e não o é quando a lei assegura, mas de forma colateral, a “protecção” de direitos, quando a parte, que se considera prejudicada em processo pendente, argui perante o Juiz, a existência de vícios processuais que contendem com o seu direito.

No caso, mesmo que a prática de actos de especial relevo da competência do administrador da insolvência, na fase de liquidação da massa insolvente, evidenciem terem sido por si violados os arts. 161º e 162º do CIRE pelo administrador da insolvência, o art. 163º do CIRE estatui que tal violação “não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepeto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”.

Este normativo, na interpretação do Acórdão recorrido, não contempla o direito da parte lesada, no incidente de liquidação, por acto ou omissão do AI, poder arguir, perante o Juiz do processo, vícios procedimentais. A vingar tal interpretação, o remédio ao alcance de quem no processo for lesado, por actuação ilegal daquele órgão, é nenhum em termos imediatos e de proporcionalidade, exprimindo indefesa.

 Disporá, quem for prejudicado, do direito de intentar acção indemnizatória para obter a condenação do AI, pelos danos patrimoniais sofridos e pedir a destituição do cargo com justa causa, esta, sim, a apreciar no processo pelo Juiz.

A lei confere ao lesado como que uma possibilidade de actuação sancionatória de um órgão da insolvência, mas permanece eficaz o acto praticado que não será sindicável no processo. Parece incongruente: o lesado quererá, sobretudo, ver declarada a ineficácia de um acto que patrimonialmente pode ser danoso.

Não obterá a reparação, pela via da arguição da nulidade processual do acto, mas apenas, no contexto de responsabilização em acção judicial em que terá que ser demandante, podendo obter uma indemnização pelos prejuízos sofridos. 

Segundo o art. 839º, nº1, c) do Código de Processo Civil, a venda forçada fica sem efeito, em processo executivo, se for anulado o acto da venda, nos termos do art. 195º, ou seja, são aplicáveis as regras gerais sobre a nulidade dos actos omissivos ou comissivos prescritos na lei[7]. Não se ignora que a insolvência é um processo de liquidação universal, que se rege por regras próprias, sendo, subsidiariamente, aplicável o Código de Processo Civil, como prevê o art. 17º do CIRE; estando em causa, no processo de insolvência, interesses dos credores (que podem ser muitos) – a execução é universal e concursal – do devedor insolvente e outros, não parece que a não apreciação imediata no processo de direitos alegadamente violados, exprima tutela efectiva.

Só excepcionalmente – ut. parte final do art. 163º do CIRE – a violação do disposto nos arts. 161º, nº1, e 162º (que contemplam actos de “especial relevo”) conduzirá à ineficácia dos actos ilícitos praticados.

O processo de insolvência, que o legislador quis célere e desjudicializado, não pode erigir tais valores em objectivos em si mesmos, com prejuízo dos interesses que nele se jogam. A celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do Juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência.

A interpretação que o douto Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação violadora do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar essa actuação ilícita perante o Juiz do processo, e que o despacho do julgador da 1ª Instância que apreciou tal arguição decretando a pedida nulidade, é ilegal por o acto ser eficaz, considerando que resta ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o AI, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados, viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, por não assegurar imediatamente no processo, tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador, estando no limite de violar o princípio da proibição da indefesa.

Efectivamente, “no balanceamento ou ponderação de interesses” do credor, alegadamente lesado, no seu interesse patrimonial, e as exigências de “simplificação, celeridade e desjudicialização”, que não permitem directa e imediata sindicância judicial de actos violadores da lei, fazem pender, desproporcionalmente, o equilíbrio processual e substantivo, não sendo compagináveis com aquele princípio constitucional – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, de 12.5.2015, Processo nº110/2015, I Série do Diário da República de 8. 6.2015.

Assim, este Supremo Tribunal de Justiça considera que a interpretação que, no Acórdão recorrido foi acolhida do art. 163º do CIRE, sentenciando que “a decisão recorrida tem de ser revogada por o decidido [anulação da venda] exceder os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos actos praticados na liquidação do activo”, é materialmente inconstitucional, por violar o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, do ponto em que não garante ao lesado tutela jurisdicional efectiva do seu direito, e, consequentemente, revoga o Acórdão recorrido.

Sumário – art. 667º, nº3 do Código de Processo Civil

A interpretação que o Acórdão recorrido acolhe, no que respeita ao art. 163º do CIRE, sentenciando que um credor hipotecário, alegadamente prejudicado pela actuação do administrador da insolvência, no contexto de venda por negociação particular de dois imóveis, não pode suscitar tal questão perante o Juiz do processo, e que o decisão judicial proferida na 1ª Instância, que decretou a pedida nulidade daquela venda, é ilegal por o acto ser eficaz, restando ao lesado intentar acção de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência, e/ou pedir a sua destituição com justa causa, como únicas sanções para os actos ilegais praticados; viola o art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República por não assegurar, imediatamente no processo, tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador.

Decisão:

Nestes termos:

a) Julga-se materialmente inconstitucional a interpretação, acolhida no Acórdão recorrido do art. 163º do CIRE, por violação do art. 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva - nos termos e com os fundamentos expostos.

b) Revoga-se, por isso, o Acórdão recorrido, para ficar a valer a decisão apelada, que decretou a nulidade da venda.

Custas pela massa insolvente.

Supremo Tribunal de Justiça, 04 de abril de 2017

Fonseca Ramos – Relator

Ana Paula Boularot – (Vencida, não conheceria do objecto do recurso uma vez que o mesmo não é admissível, porquanto não tendo a decisão recorrida posto fim ao processo, a impugnação apenas seria admissível nos termos do artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPCivil, por oposição do Acórdão, o que in casu não aconteceu).

Pinto de Almeida

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[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot.
Conselheiro Pinto de Almeida.
1. DL.53/2004, de 18.3, alterado pelos DL. n.º200/2004, de 18 de Agosto, do DL n.º 76-A/2006, de 29 de Março, do DL n.º 282/2007, de 7 de Agosto, do DL. n°116/2008, de 4 de Julho, do DL n.º185/2009, de 12 de Agosto, e, mais recentemente, da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.
[3] https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-iii-dez-2005/doutrina/paula-costa-e-silva-a-liquidacao-da-massa-insolvente
[4] A decisão da 1ª Instância, de 18.3.2016, declarou nula a venda realizada por escritura pública celebrada em 13.11.2014, tendo como objecto as fracções B e C, ao abrigo dos arts.195º, nº1, e 839º, nº1, al. c) do Código de Processo Civil. Na fundamentação, apreciando os factos acima considerados provados e a actuação do AI, pode ler-se: “Da factualidade supra enunciada, e que retratam as comunicações formais (e outras não alegou ter efectuado) que o Senhor Administrador da insolvência cumpriu ao credor BANCO DD, titular de crédito garantido por hipoteca constituída sobre todas as fracções apreendidas para a massa insolvente, resulta que, não obstante a dita qualidade, este credor não foi tido nem achado pelo Senhor Administrador da insolvência a respeito da modalidade e dos termos, designadamente de preço, da venda a praticar relativamente às fracções que foram objeto da venda que celebrou em novembro de 2014. Tão pouco resulta que comunicou ao credor hipotecário o relatório da avaliação dos imóveis que solicitou e obteve em outubro de 2014 e que apenas no âmbito do incidente que ora se aprecia juntou aos autos, um ano depois de realizada, perícia a qual também não solicitou o consentimento da comissão de credores, conforme estava adstrito em obediência ao disposto no art. 55°, n°3 do CIRE (anotando-se aqui a “coincidência” entre o valor de venda em que foram avaliadas as fracções e o valor dos créditos que foram reconhecidos com direito de retenção sobre as mesmas).
Conforme supra referido, a decisão sobre a modalidade e os termos da venda integra-se na competência e responsabilidade funcional do Senhor Administrador da insolvência. Porém, e para além do dever de atuar em conformidade com os normativos legais que regulam a atividade de liquidação em cada ato em que esta se consubstancia - posto que no exercício das suas funções a lei não atribui nem reconhece ao administrador da insolvência um qualquer poder arbitrário de agir como bem entender – o legislador sujeitou a atividade do administrador da insolvência à sindicância da comissão de credores, conforme art. 68°, n°1 do CIRE (que não se confunde com a necessidade de consentimento prevista pelo art. 161º) sendo certo que a fiscalização, e mais ainda o direito de audição (que a lei não prevê como mera formalidade, vazia de contraditório e de possibilidade real de reação) apenas poderá ser exercida se previamente e em tempo útil forem comunicados os termos em que o administrador da insolvência projecta celebrar cada concreto ato de venda dos bens da massa insolvente, maxime quando urge tratar-se de bens imóveis.
Para além do exposto, e como cereja no topo do bolo, o Senhor Administrador da insolvência, com o total desconhecimento dos autos, do credor hipotecário e da comissão de credores, violou flagrante e gravemente a lei a que deve obediência – e se impõe seja por ele especificamente conhecida – ao transferir duas das fracções da insolvente para a titularidade de credor que reconheceu como credor garantido, dispensando-o do depósito de 90% do preço declarado a pretexto de o mesmo ser titular de direito de retenção sobre as ditas fracções, sem que porém, e como não podia deixar de ser do conhecimento do Senhor Administrador da insolvência, assim estivesse declarado por sentença de verificação e graduação de créditos e sem que, nesse contexto, tenha cumprido, conforme se lhe impunha, o disposto no art. 815°, n°3 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 165° do CIRE, fazendo consignar no título de transmissão a constituição de hipoteca para garantia da parte do preço não depositada (em alternativa à prestação de caução bancária em valor correspondente).” […]
[5] No sumário pode ler-se: “I - O facto do Administrador não ter ouvido um interessado antes de ter procedido à venda por negociação particular de um imóvel que integrava a massa insolvente, por preço inferior àquele que esse interessado já havia oferecido e não havia sido aceite, não constitui uma nulidade processual que possa afetar a venda realizada.
II - Se o Administrador da Insolvência, nas operações para a venda dos bens que integram a massa insolvente, deve procurar obter o melhor preço, de modo a proteger os interesses do insolvente e dos credores, estando sujeito a deveres de atuação diligente, o incumprimento de tais deveres, designadamente quando despreza injustificadamente a existência de uma melhor proposta para a venda de um bem da massa insolvente, tem como consequência, não a anulação da venda realizada com o incumprimento desses deveres, mas sim uma eventual destituição do cargo, ao abrigo do artigo 56.º, n.º 1, do CIRE, e a sua responsabilização, nos termos do artigo 59.º, n.º 1, do mesmo diploma.”
[6] - No sumário consta: “I.A preterição de formalidades legais na venda efectuada pelo administrador da insolvência não constitui fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação dos bens nem de nulidade da venda.
II - A declaração da ineficácia do acto relativamente à massa insolvente, só pode ser declarada nos termos do artigo 163.º do CIRE se, em acção declarativa, a instaurar, nomeadamente pelos credores, for reconhecido que a violação do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência e as do adquirente do bem.
III - Não obstante, isso não afasta a eventual responsabilidade do Senhor Administrador da insolvência, que poderá responder pelos danos causados à devedora e aos credores (artigo 59.º do CIRE).”
[7] Dispõe tal normativo, “1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. 2. Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes. 3. Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.”