Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
372/09.1TBESP.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO PREDIAL
EXTINÇÃO DE SERVIDÃO
SERVIDÃO APARENTE
NÃO USO
USUCAPIÃO
CADUCIDADE
REGISTO PREDIAL
ABUSO DE DIREITO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / FACTOS JURÍDICOS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITOS REAIS / SERVIDÕES PREDIAIS.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / SENTENÇA / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 236º, 298º , 303º, 333º, 1548º, 1569º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 489º, 660º, Nº 2, 668º, Nº 1, D) E 716º, Nº 1
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (DECRETO-LEI Nº 47.611, DE 28 DE MARÇO DE 1967), ARTIGO 7º
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (DECRETO-LEI Nº 224/84, DE 6 DE JULHO, ARTIGO 5º
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL, WWW.DGSI.PT DE:

– 14 DE NOVEMBRO DE 2006, PROC. Nº 06A3441
– 3 DE JULHO DE 2008, PROC. Nº 08B2002
– 18 DE DEZEMBRO DE 2008, PROC. Nº 08B3154
– 31 DE MARÇO DE 2009, PROC. Nº 09A0537
– 24 DE SETEMBRO DE 2009, PROC. Nº 09B659
– 12 DE NOVEMBRO DE 2009, PROC. Nº 09B0332
– 31 DE JANEIRO DE 2012, PROC. Nº 1358/08.9TBILH.C1.S1
– 8 DE MAIO DE 2013, PROC. Nº 2915/06.3TBOAZ.P1.S1
– 24 DE OUTUBRO DE 2013, PROC. Nº 1673/07.9TJVNF.P1.S1
Sumário :
1. Tratando-se de direitos disponíveis, a extinção de uma servidão predial por não uso não é de conhecimento oficioso; tem de ser invocada por aquele a quem aproveita.

2. Sendo do interesse dos réus, há-de ser invocada na contestação, havendo que a interpretar para determinar se a alegação consubstancia essa invocação.

3. Entre as causas de extinção das servidões, figura a da “reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa” (al. a) do nº 1 do artigo 1569º do Código Civil); excluiu-se portanto a possibilidade de manutenção da servidão no interesse do proprietário.

4. A falta de indicação da existência de servidão no contrato de arrendamento do prédio onerado, acompanhada da ignorância da sua existência por parte dos arrendatários, não prejudica o prédio dominante; antes se traduzirá num eventual vício do contrato de arrendamento.

5. O arrendatário do prédio serviente continua obrigado a dar passagem, se o proprietário do prédio dominante adquirir o direito de propriedade sobre o prédio serviente.

6. As servidões de passagem podem constituir-se por contrato de doação.

7. A circunstância de estar demonstrado que os arrendatários do prédio serviente autorizaram passagens repetidas pelo prédio não releva para considerar não usada a servidão de passagem. Não pode atribuir-se a essa autorização a eficácia de apagar a relevância da efectiva passagem pelo prédio arrendado aos réus – e muito menos, a eficácia indirecta de conduzir à extinção de uma servidão de passagem pré-existente.

8. As servidões aparentes não deixam de produzir efeitos relativamente a terceiros por não serem levadas ao registo; a aparência que agora interessa destina-se a garantir que se trate de uma servidão que se mostre exteriormente, em termos de poder ser conhecida publicamente, tal como se constasse do registo predial.

9. Não basta o desconhecimento dos réus, ainda que prolongado no tempo, para paralisar o exercício do direito de passagem, invocando abuso de direito. Seria imperioso que o modo concreto como vêm pretender exercer o direito de passagem, objectivamente considerado, se apresentasse ostensivamente contrário “à boa fé, (a)os bons costumes ou (a)o fim social ou económico” do direito em causa (artigo 334º do Código Civil), e que o seu titular tivesse criado na parte contrária a convicção de que o não exerceria, tendo invertido qualquer decisão nesse sentido.
Decisão Texto Integral:


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA e BB instauraram uma acção contra CC e mulher, DD, pedindo que fossem condenados a reconhecer-lhes “o direito de passagem de carro e tractores sobre o seu terreno”, a afastar os “obstáculos que se opõem ao exercício efectivo do respectivo direito dos AA, mantendo para isso limpo e livre, desimpedido o caminho de acesso ao seu terreno, com uma entrada que permita a passagem de carros e tractores” e a pagar-lhes uma indemnização por danos não patrimoniais em quantia não inferior a € 2.000,00.

Como fundamento, invocaram existir sobre o prédio de que os réus são arrendatários, desde 1978, uma servidão de passagem em favor do prédio que habitam, que “foi constituída por usucapião”; que os artigos matriciais respectivos são geminados; que, desde 2008 e 2004, respectivamente, são proprietários de ambos os prédios; que os prédios pertenciam a EE, que doou aquele que habitam a FF que, por sua vez, o doou a GG, a quem o compraram em 23 de Abril de 2004; que compraram o prédio de que os réus são arrendatários a EE; que desde 1978 “os antepossuidores e directamente ou através de arrendatários (…) utilizavam a passagem do prédio arrendado para ter acesso à sua garagem”; mas que desde que adquiriram o prédio onde habitam foram impedidos pelos réus de aceder à garagem respectiva, que “não tem outro acesso ou entrada a não ser a que se encontra junto à casa dos RR”; que essa impossibilidade lhes causou danos não patrimoniais, cujo ressarcimento pretendem; que, da escritura de doação a FF, “consta” a “passagem pelo (…) terreno” dos réus.

Os réus contestaram, sustentando não existir nenhuma servidão; que o “direito de passagem” ressalvado por EE na escritura de doação a FF, sem se definir a extensão ou modo de exercício, “nunca chegou a ser materializado”; que não foram alertados por EE para a existência de qualquer servidão, quando com ele celebraram o contrato de arrendamento; que o então arrendatário do outro prédio, HH, também nunca foi informado da existência de qualquer servidão, passando pelo seu prédio para aceder à garagem porque a tanto o autorizaram; que nunca foi registada nenhuma servidão, nem referida na doação de FF a GG, nem na venda ao autor; que o seu terreno não apresenta quaisquer sinais que evidenciem a servidão, que nunca existiu.

Houve réplica.

A acção foi julgada parcialmente procedente pela sentença de fls. 189, que decidiu:

“– Condenar os réus CC e mulher, DD, enquanto arrendatários do prédio urbano correspondente ao artigo matricial ....° da freguesia de ..., Espinho, a reconhecer aos autores AA e mulher, BB, enquanto proprietários do prédio urbano correspondente ao artigo matricial ….° da mesma referida freguesia, o direito de passagem de veículos automóveis e agrícolas sobre faixa de terreno existente no primeiro dos referidos prédios, faixa de terreno essa que se desenvolve desde o local onde se encontra um portão que separa o referido prédio da rua pública designada por Rua …, até às traseiras do referido prédio, mais exactamente até ao local onde se situa a respectiva garagem, devendo consequentemente manter limpa, livre e desimpedida a referida faixa de terreno, de modo a permitir aos autores aceder, a partir da dita via pública, à garagem do prédio correspondente ao artigo matricial ….°, por meio dos referidos tipos de veículos, na medida em que a largura máxima possível da dita faixa o permita, que é condicionada desde logo pela máxima abertura possível do mencionado portão.

– Absolver os réus quanto ao mais peticionado pelos autores.”

Em síntese, entendeu-se na sentença que não foram provados factos que suportem a constituição da servidão de passagem por usucapião; mas que se devia considerar que a servidão foi constituída pelo contrato de doação celebrado entre EE e FF e que, ainda que assim não fosse, sempre se deveria ter como constituída por destinação de bom pai de família, tendo em conta que ambos os prédios pertenceram a EE e que o prédio de que são arrendatários os réus tem sinais que revelam a existência da servidão (“No caso, da conjugação dos factos julgados provados e descritos sob os itens 2.1.2), 2.1.8), 2.1.11), 2.1.13), 2.1.14) e 2.1.15), resultam bem evidentes, ao que julgamos, sinais visíveis e permanentes reveladores de servidão de passagem nos termos a que já aludimos”).

Quanto ao pedido de indemnização, o tribunal considerou não verificados os respectivos requisitos (acto doloso ou negligente dos réus, gravidade dos danos).

Mas a sentença foi revogada pelo Tribunal da Relação do Porto, pelo acórdão de fls. 309, nestes termos:

“A acção foi estruturada no sentido de ser declarada a existência de uma servidão de passagem por usucapião (art. 1547º nº 1 do CC).

Como se refere na decisão recorrida inexiste factualidade que fundamente a aquisição por usucapião da peticionada servidão.

Contudo, o tribunal a quo, sob invocação dos poderes de livre subsunção da lei aos factos provados, considerou a existência da servidão em causa com fundamento em contrato e mesmo por destinação do pai de família.

Quanto ao contrato, o mesmo tem a ver com a sobredita doação de 23/5/78 onde se ressalvou um direito de passagem de veículos automóveis e agrícolas a onerar o prédio inscrito na matriz sob o art. ...º em benefício do inscrito sob o art. …º.

Contrato, em suma, é a convenção pela qual duas ou mais pessoas constituem, regulam, modificam ou extinguem relações jurídicas, regulando assim os seus interesses.

Neste contexto, considerando que na referida doação apenas se ressalvou o referido direito de passagem conclui-se que na mesma não se constituiu qualquer servidão ou seja não foi nesse acto que a mesma nasceu.

Consequentemente, inexiste servidão constituída por contrato.

Quanto à constituição por destinação do pai de família os pressupostos da mesma encontram-se enunciados no art. 1549º do CC.

Para que haja transformação da serventia em servidão torna-se necessário, além do mais, que a serventia seja aparente consubstanciada em sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos os prédios.

Em suma, se antes da alienação algum dos prédios desempenhasse ostensivamente uma função de serventia em relação ao outro o titular do prédio em benefício do qual a serventia se dava terá, em princípio, direito à constituição de uma servidão de igual conteúdo.

De acordo com a decisão recorrida esses sinais seriam os que constam dos factos provados sob os arts. 2.1.2), 2.1.8), 2.1.11) e 2.1.15) ou seja prédios geminados, com garagens, único acesso à pretendida garagem pelo terreno ocupado pelos réus e parte traseira dos prédios vedada em arame e existência, então de uma cancela.

Porém, os referidos factos não revelam os sobreditos sinais visíveis e permanentes postos em um ou em ambos os prédios ou seja não revelam a existência de sinais exteriores consubstanciadores da pretendida servidão (a passagem de carro e tractores para o fim em vista tinha que emanar de sinais existentes no próprio terreno, o que não se demonstra).

Aliás, sinais visíveis ficaram no terreno em virtude da passagem do então inquilino do prédio sob o art. …º e de outras passagens de veículos (factos provados sob os nºs 2.1.13 e 2.1.14) mas não relevam para o caso em apreço (os sinais, para efeito da servidão em causa, teriam que ser contemporâneos da separação dos prédios).

Consequentemente, inexiste servidão constituída por destinação do pai de família.

Seja como for, o direito de servidão (cfr art. 1543º do CC) respeita sempre a prédios pertencentes a pessoas diferentes o que não é o caso (os autores são proprietários dos dois prédios em causa).

A servidão extingue-se pela reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa (art. 1569º nº 1 al. a) do CC) pelo que, a existir servidão, com a aquisição pelos autores do prédio sob a matriz nº ...º a mesma extinguiu-se.

A constituir-se servidão por contrato em 1978 a mesma extinguiu-se em 1998 (art. 1569º nº 1 al. b) e 1571º do CC) pelo não uso.

Por sobreditos motivos, improcede, também, o pedido em questão.”

    

2. Os autores recorreram e apresentaram alegações, com as seguintes conclusões:                                  

“A) A presente acção foi julgada procedente pelo Tribunal de 1a Instância e improcedente pelo Tribunal da Relação do Porto, porquanto no entendimento daquele tribunal que bem decidiu, pela constituição valida por contrato, de uma servidão de passagem de veículos automóveis e agrícolas sobre a faixa de terreno existente no prédio urbano correspondente ao artigo matricial n° ...° da freguesia de ... – Espinho, em favor do prédio urbano correspondente ao artigo matricial n° …° da mesma freguesia, indo até mais longe ao entender que a mesma servidão, sempre se poderia e deveria ser reconhecida com fundamento no artigo 1549 do C.C  Destinação do pai de família.

B) Já o douto Tribunal da Relação, decidiu no sentido da inexistência de servidão quer por contrato, quer por destinação do pai de família, contrariando o então decidido pelo tribunal de primeira instância.

C)        O Tribunal recorrido utilizou um conceito jurídico abstracto de" contrato" sem sequer ao afastar o caso concreto de tal conceito, o tenha fundamentado de
facto, referindo o porquê de tal situação estar a ser afastada.

D)        De acordo com um homem médio no momento da doação, o doador expressamente fez uma declaração negocial (contrato) expressa, clara e
objectiva, no sentido da constituição da servidão. Do outro lado, o donatário, aceitou sem qualquer ressalva o que lhe foi doado com os encargos.

E)         Não considerou que a escritura de doação outorgada no Cartório Notarial de Espinho no dia 23/05/1978 constituísse qualquer servidão, pelo contrário
entendeu, que apenas se tenha ressalvado o direito à referida passagem – vide
documento de fls 36/39.

F) Contrariando assim o disposto no art° 236 CC que refere: 1. A declaração negocial vale no sentido que um declaratário normal, colocado na posição do
real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este
não puder razoavelmente contar com ele " " 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a
declaração emitida."

G)        Facilmente se percebe, que qualquer declaratário normal, colocado na
posição de real declaratário possa deduzir do comportamento do declarante, uma vontade expressa de constituição de um direito de passagem do prédio
dominante e serviente de acordo com os cânones do citado artigo 236 do CC.

H) Tal encargo ou ónus, constituído através desta doação é um direito de servidão, servidão esta prevista no nosso sistema legal, quer como servidões legais, que são aquelas que são constituídas pela própria lei – artigo 1543 e ss. do C. C, quer como as servidões constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família previstas no artigo 1547 n.° 1 do C.C.;

I ) Enquanto no douto acórdão da primeira instância, o Sr. Juiz foi mais longe, uma vez que não está sujeito às limitações dos fundamentos de direito das partes, considerou que todos os factos se enquadram também numa constituição de servidão por destinação do pai de família artigo 1547/1549 C.C "in fine";

J ) tribunal recorrido, entendeu que apenas os factos provados e que resultam dos pontes 2.1.2), 2.1.8), 2.1.11), 2.1.15)... não revelam os sinais visíveis e permanentes postos em um ou em ambos os prédios, ou seja entendem que não revelam a existência de sinais exteriores consubstanciadores da pretendida servidão;....

L) Ora, para além dos factos indicados e invocados pelo Tribunal da Relação (2.1.2), 2.1.8), 2.1.11), 2.1.15), outros há, provados em sentença de 1a instância, que não foram transportados para o acórdão do Tribunal " a quo", sem qualquer tipo de justificação, uma vez que eles estão expressamente invocados como factos provados na sentença de primeira instancia, ora, não foi feito um afastamento critico desta argumentação de factos da 1a instancia.

M) tais factos provados resultam dos n°s 2.1.13 e 2.1.14 : " ...Também através da mesma referida faixa de terreno, igualmente com autorização dos réus, em diversos momentos temporais cujas datas não foi possível apurar em concreto, circularam viaturas destinadas a auxiliar o despejo da fossa séptica quer de um quer de outro dos dois referidos prédios, bem assim, durante período não exactamente apurado do ano de 2001 veículos destinados a auxiliar a execução de obras no prédio correspondente ao artigo matricial ....°."

N) 2.1.14 (14.°) "- Em consequência da passagem de veículos mencionada em 2.1.13), a terra ficava batida e nela permaneciam as marcas de circulação correspondentes."

O) Resultando assim claramente e sem qualquer dúvida a posição de constituição de servidão seguida pelo Tribunal de primeira instância;

P) Erradamente também decidiu o Tribunal da relação, ao não considerar o momento em que foi constituído o direito de servidão, pois nesse momento (doação) o prédio veio a pertencer a pessoas diferentes – doador e donatário; mais tarde tais prédios vieram a ser adquiridos em momentos diferentes pelos AA : O correspondente ao artigo matricial ....° foi adquirido pelo autor em 23/04/2004, por compra – artigo matricial ...;

Q) E em 17 de Abril de 2008, por compra, mas momento do último acto – 17 de Abril de 2008, o prédio já estava onerado com o contrato de arrendamento habitacional aos RR. desde 1 de Setembro de 1978 – vide facto provado 2.1.5..

R) Assim, nunca chegou a adquirir a detenção/domínio de tal prédio, e sendo assim falece o argumento jurídico apresentado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, quando extingue a servidão pela reunião dos dois prédios dominante e serviente na mesma pessoa.

S) O verdadeiro domínio nunca chegou acontecer de facto, pois, o prédio serviente encontra-se no domínio do arrendatário e o prédio dominante encontra-se no domínio do proprietário, que também é senhorio do prédio serviente.

T) O Tribunal da Relação ao invocaram a extinção da servidão por contrato, pelo seu não uso, é de todo irracional, incompreensível, pois não existe nenhum facto quer invocado pelas partes, quer dado como provado pelo tribunal de 1a instância que existam factos que aludam ao não uso.

U) Não se consegue perceber de onde se socorreu para invocar tal facto, sem sequer ter invocado com exactidão, a ocorrência de um facto com dia e mês nesse mesmo ano de 1998, já que dos factos dados como provados, tal ano nem sequer surge!!!!, o que consubstancia uma nulidade da sentença que cumpre V/ Exas. apreciar e declarar.

V) Até porque, resulta como provado precisamente a passagem pelo caminho de servidão pelo menos até ao ano de 2001 vide facto provado 2.1.13 e 2.1.23.

X) Pelo que, a procedência do presente recurso é manifesta.

Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas. deve ser julgado procedente por provado o presente recurso anulando-se ou revogando-se a decisão recorrida, com todas as legais consequências.”

Os réus contra-alegaram, defendendo a manutenção do decidido. Concluíram as alegações desta forma:

“a) Antes de mais, importa atentar que o reconhecimento da constituição da servidão
pedida pelos AA. é legalmente inadmissível pois que a própria noção de
servidão impõe que o prédio dominante e o prédio serviente pertençam a donos
diferentes, o que não se verifica no caso concreto, factos provados nos pontos 2.1.3.

b) Tal equivale a invocar a máxima de que nemini res sua servit – não é admissível a servidão do proprietário, impossibilidade legal que decorre expressamente do conceito de servidão, definido no art. 1543.° do Código Civil.

c) Por outro lado, dos factos provados não resulta, como incorrectamente defendem os Recorrentes, a existência de sinais visíveis e permanentes que comprovam a existência de servidão por destinação de pai de família.

d) Decorre do art. 1549.° do C.C que a existência de sinais visíveis e permanentes deve reportar-se ao tempo da separação do domínio dos prédios, veja-se a título de exemplo o Ac. RC de 3-10-1995, BMJ, 450.°-568.

e) Os sinais visíveis e permanentes considerados na decisão são os referidos nos pontos 2.1.2, 2.1.8,2.1.11, 2.1.13, 2.1.14 e 2.15.

f) O Acórdão recorrido considerou que estes factos não revelam os sobreditos sinais visíveis e permanentes postos em um ou em ambos os prédios, ou seja, não revelam a existência de sinais exteriores consubstanciadores da pretendida servidão — a passagem de carros e tractores para o fim em vista tinha que emanar de sinais existentes no próprio terreno, o que não se demonstra.

g) Ora, como refere o Acórdão, os sinais visíveis que ficaram no terreno, factos provados nos pontos 2.Í.13 e 2,1.14, apenas começaram a existir depois da doação efectuada a FF e não antes.

h) Na verdade, a própria fundamentação da matéria de facto realizada em l.a instância confirma esta realidade. Confronte-se a fundamentação expendida a propósito dos itens 3.°, 7.°, 8.°, 9.°, 10.°, 12.°,13.° e 14.º

i) Concluindo-se pela inexistência de quaisquer sinais visíveis e aparentes no momento da doação realizada a FF, não se encontram preenchidos os requisitos para se constituir a servidão por destinação de pai de família, como doutamente decidiu o Acórdão.

j) Para além disso, se atentarmos ao contexto em que a declaração da ressalva do direito de passagem foi realizada na escritura de doação em causa, constata-se que da mesma não emana qualquer a vontade de constituir uma servidão.

k) Pelo que, como doutamente conclui o Acórdão recorrido, nesta escritura não nasceu qualquer servidão de passagem.

1) Por outro lado e sem prescindir, é manifesto que os autores não lograram provar que eles próprios ou quaisquer antecessores, directamente ou através de arrendatários, tenham utilizado a faixa de terreno em questão, integrada no prédio correspondente ao artigo matricial ....°, para, por meio de veículos automóveis e agrícolas, acederem, a partir da via pública, à garagem existente no prédio correspondente ao artigo matricial ....°, convictos de exercerem um direito próprio, correspondente ao direito de passagem pelo referido prédio.

m) Assim sendo, é de concluir que a servidão referida na escrita de 23 de Maio de 1978, nunca chegou a ser exercida nem pela FF, nem pelo GG, nem por nenhum dos inquilinos que habitaram o prédio ....°.

n) A sua previsão constituiu um acto inócuo, destituído de qualquer valor ou fim sócio-económico.

o) Nunca houve, por isso, qualquer corpus porquanto a passagem nunca foi executada e, consequentemente, nunca ninguém dela usufruiu com animus de estar a exercer um direito de passagem.

p) Tanto assim é que a definição da extensão e limites do exercício da mesma foi pela primeira vez fixada na sentença recorrida na parte da conclusão pois que nenhum documento existe nem qualquer outro meio probatório sobre o modo de exercício daquela.

q) Tanto assim é que nem o proprietário original do ....° alertou os réus, quando celebrou contrato de arrendamento em 1978, para a existência de tal servidão nem a proprietária do ....°, FF, alertou a testemunha HH para a existência de qualquer direito de passagem (cfr. 2.1.21), quando celebrou contrato em 1982. De modo que, nem o proprietário do prédio dominante nem o do prédio serviente quiseram efectivamente constituir qualquer servidão.

r) Factos que levam a concluir que nem o proprietário do prédio dominante nem o do prédio serviente quiseram efectivamente constituir qualquer servidão.

s) Na verdade, a ter existido qualquer servidão contratual, a mesma morreu antes de nascer porquanto nunca foi utilizada pelos proprietários, usufrutuários ou possuidores precários do imóvel dominante, o prédio ....°, com ónus dos proprietários, usufrutuários ou possuidores precários do prédio serviente.

t) Não obstante e sem prescindir, a ter sido constituída uma servidão contratual, a mesma extinguiu-se há muito pelo não uso, como prescreve o art. 1569.°, n.° 1, al. b) do C.C.

u) Ora, resultando provado que nem os autores nem antepossuidores do prédio ....° alguma vez passaram pela faixa de terreno do prédio ocupado pelos réus, desde 1978, para, por meio de veículos automóveis e agrícolas acederem à garagem sita nas traseiras do prédio ….°, com a convicção de estarem a exercer um direito próprio e tendo-se a servidão constituído em 1978, dúvidas não restam de que a servidão já se extinguiu no ano de 1998, ou seja, onze anos antes de os autores terem instaurado a presente acção.

v) Sendo que os factos invocados pelos AA./Recorrentes e que se encontram descritos nos pontos 2.1.13 e 2.1.23, apenas revelam a passagem pelo terreno pertencente ao locado dos Recorridos, em determinados e precisos momentos temporais, pelos próprios ou por outras pessoas, mas sempre com autorização dos RR./Recorridos.

w) Pelo que, tal utilização não reveste as características necessárias para se concluir pelo exercício de uma servidão pois que aos mesmos sempre faltou a convicção de estarem a exercer um direito.

x) Deste modo, a servidão contratual ou de destinação do pai de família cuja constituição se reconheceu na sentença de primeira instância encontra-se extinta pelo não uso, desde 24 de Maio 1998, como bem decidiu o Acórdão proferido.

y) Sem prescindir, no caso em apreço, ficou comprovado que os réus desconheciam, sem qualquer culpa, que o prédio que lhes foi arrendado, se encontrava onerado com uma servidão de passagem.

z) Omissão que foi reiterada, durante mais de 30 anos (desde 1978 a 2009) pelo facto de nenhum dos proprietários, antepossuidores ou inquilinos do prédio ....° ter usado a faixa de terreno do prédio locado aos réus para acederem à garagem do seu prédio com veículos automóveis ou agrícolas.

aa) Tendo ficado provado outrossim que foram sempre os réus quem usufruiu da totalidade do logradouro do prédio ....°, utilizando-o para guardar o seu automóvel na garagem do prédio, estacionar veículos no seu percurso, passar por ela seus familiares e amigos, utilizá-la e ao terreno adjacente para os afazeres pessoais e domésticos...

bb) Pelo exposto, a contemporização com o não exercício de uma servidão, durante mais de trinta anos, sem que durante essa período temporal os réus soubessem da existência da mesma, usufruindo do imóvel que lhes foi locado na totalidade e sem quaisquer restrições, constitui um abuso de direito na vertente de um venire contra factum proprium.

cc) Invoca-se ainda o abuso do direito, previsto no art. 334.° do Código Civil que impedirá os autores de verem reconhecida a servidão peticionada.”

O recurso foi admitido como revista, com efeito devolutivo.

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

“2.1.1 (A) - Os autores são donos de dois prédios em propriedade total, sem andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, sitos na Rua …, n°s … e …, inscritos na matriz urbana sob os artigos ....° e ….°, respectivamente, da freguesia de ..., Espinho-cfr. documentos de fls. 64/65 e 66, cujo teor se dá por reproduzido.

2.1.2(B) -Ambos os artigos são geminados. ";

2.1.3(C) - Tais prédios advieram aos autores da seguinte forma:

a) O correspondente ao artigo matricial …° foi adquirido pelo autor em 23/04/2004, por compra a GG;

b) O correspondente ao artigo matricial ....° foi adquirido pelo autor em 17 de Abril de 2008, por compra.

2.1.4(D) - O prédio mencionado em 2.1.3-a) chegou à posse do vendedor, GG, por doação de FF, formalizada por escritura pública de 16/03/1993, que por sua vez o havia recebido também por doação, em 23 de Maio de 1978, do Padre EE, conforme documentos de fls. 36 e 39 (escritura de 1978) e 58/59 (escritura de 1993), cujo teor se dá por reproduzido.

2.1.5 (E) - Os réus habitam o prédio correspondente ao artigo matricial ....°, desde 1 de Setembro de 1978 até à presente data, na qualidade de arrendatários.

2.1.6 (F) - Em 3 de Abril de 2008, o autor, por escritura pública de compra e venda celebrada no Cartório Notarial da Dra. II, na cidade do Porto, comprou o imóvel correspondente ao artigo ....° e assumiu a qualidade de senhorio dos réus - cfr. documento de fls. 68 a 71, cujo teor se dá por reproduzido.

2.1.7 (1.°) - Os autores habitam o prédio correspondente ao artigo matricial ….° desde finais de 2004.

2.1.8 (2.°) -Ambos os prédios descritos em 2.1.3) possuem garagem.

2.19 (3.°) - Os réus, desde sempre, enquanto arrendatários do prédio correspondente ao artigo matricial ....°, acederam à garagem do mesmo prédio.

2.1.10 (4.°) - Na escritura de doação outorgada em 23 de Maio de 1978, mencionada em 2.1.4), ficou ressalvado um direito de passagem de veículos automóveis e agrícolas pelo lote n.° 2, correspondente ao prédio inscrito na matriz sob o artigo ....°, em benefício do prédio objecto da  referida doação, correspondente ao artigo matricial ....°.

2.1.11 (5.°) - A garagem do prédio dos autores (artigo matricial ....°) não tem outro acesso de veículos automóveis e agrícolas, a não ser através de uma faixa de terreno do prédio habitado pelos réus na qualidade de arrendatários.

2.1.12 (6.°) - A casa dos autores confina a norte com estrada, nascente com património do Estado, sul com JJ e poente com o próprio (casa arrendada aos réus), encontrando-se as garagens na parte traseira dos respectivos prédios.

2.1.13 (7.°, 8.°, 9.°, 10.°, 12.° e 13.°) - Desde 1982 até 31 de Dezembro de 2002, HH, na qualidade de arrendatário do prédio correspondente ao artigo matricial ....°, utilizou faixa de terreno do prédio correspondente ao artigo matricial ....° para, por meio de veículo automóvel, aceder, a partir da rua pública, à garagem existente no primeiro dos referidos prédios, o que fazia a qualquer hora do dia, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta, com autorização dos réus e sem que ninguém a tal se tivesse oposto.

Também através da mesma referida faixa de terreno, igualmente com autorização dos réus, em diversos momentos temporais cujas datas não foi possível apurar em concreto, circularam viaturas destinadas a auxiliar o despejo da fossa séptica quer de um quer de outro dos dois referidos prédios, bem assim, durante período não exactamente apurado do ano de 2001, veículos destinados a auxiliar a execução de obras no prédio correspondente ao artigo matricial ....°.

2.1.14 14.°) - Em consequência da passagem de veículos mencionada em 2.1.13), a terra ficava batida e nela permaneciam as marcas de circulação correspondentes.

2.1.15 (15.°) - A parte traseira de ambos os referidos prédios encontrava-se apenas dividida por uma vedação em arame, sendo que no sítio da passagem do carro para o prédio actualmente habitado pelos autores, mencionado em 2.1.3-a), existia uma cancela que se movia s\ manualmente para a passagem dos carros e tractores.

2.1.16 (17.° e 18.°) - Os réus nunca permitiram aos autores que estes acedessem à garagem do prédio correspondente ao artigo matricial ...° através da referida faixa de terreno do prédio correspondente ao artigo matricial ....°.

2.1.17 (21.° e 22.°) - Os autores, após comprarem o prédio correspondente ao artigo matricial ....°, substituíram a vedação mencionada em 2.1.15) por uma vedação de rede mais resistente, e no sítio onde existia a cancela para a passagem dos veículos automóveis colocaram também vedação em rede igual àquela outra.

2.1.18 (25.°) - Apesar de interpelados pelos autores para abrirem o portão que delimita a rua pública da faixa de terreno mencionada em 2.1.13), os réus negam-se a fazê-lo.

2.1.19 (26.°) - Em virtude do referido em 2.1.16), os autores têm de deixar a sua viatura automóvel na rua, exposta ao tempo.

2.1.20 (27.°) - ... ficando os autores em sobressalto, mormente durante a noite, com receio de que lhes assaltem a viatura, para além de terem de passar com os lixos do terreno por dentro da sua habitação.

2.1.21 (30.°) - A então senhoria FF não alertou o então inquilino do prédio descrito em 2.1.3-a), o referido HH, para a existência de qualquer direito de passagem, nomeadamente o que se alude em 2.1.10).

2.1.22 (31.° e 32.°) - O referido HH declarou o que consta do documento de fls. 72, cujo teor se dá por reproduzido, nomeadamente que "(...) por mero favor, cortesia e bom relacionamento com o Sr. CC, meu vizinho, este me autorizou a passar pelo espaço que integra o objecto do seu contrato de arrendamento. Com isto quero significar que não me assistia qualquer direito de utilizar ou passar por esse mesmo espaço e que a autorização concedida pelo Sr. CC tinha carácter meramente precário e transitório".

2.1.23 (34.°) - Após a conclusão das obras realizadas em 2001 no prédio correspondente ao artigo matricial ...°, mencionadas em 2.1.13), os réus são os únicos que
utilizam a referida entrada para guardar o seu automóvel na garagem do prédio objecto do seu arrendamento, estacionar veículos no seu percurso, passar por ela seus familiares e amigos, utilizá-la e ao terreno adjacente para os afazeres pessoais e domésticos, deixar ali circular cães e galinhas e depositando lenha e outros bens pessoais no mesmo.”

            4. Estão em causa neste recurso as seguintes questões:

            – Nulidade do acórdão recorrido, por ter decidido que, a ter-se constituído a servidão em 1978, ter-se-ia extinguido em 1998, por não uso;

            – Constituição da servidão por contrato;

            – Constituição da servidão por destinação do pai de família;

            – Extinção da servidão por virtude da compra, pelos autores, do prédio habitado pelos réus;

            – Falta de registo do direito de servidão;

            – Abuso de direito.

            5. Os recorrentes invocam a nulidade do acórdão recorrido, porque “não existe nenhum facto, quer invocado pelas partes, quer dado como provado pelo tribunal de 1ª instância, que existam factos que aludam ao não uso”.

            Não esclarecem, todavia, a que nulidade se referem em concreto, nomeadamente por referência ao preceito legal respectivo.

            Seja como for, é exacto que as servidões prediais se extinguem “pelo não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo” (al. b) do nº 1 do artigo 1569º e nº 2 do artigo 298º do Código Civil), sendo aplicáveis as regras da caducidade (nº 3 do artigo 298º).

            Assim, a extinção por não uso só é de conhecimento oficioso “se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes” (nº 1 do artigo 303º do Código Civil), o que não é manifestamente o caso; caso contrário, tem de ser invocada por “aquele a quem aproveita” (artigos 303º e 333º, nº 2 do Código Civil), para poder ser declarada pelo tribunal.

            Ora, nos termos do princípio da concentração da defesa na contestação (nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil, na versão aplicável à contestação apresentada nesta acção), recaía sobre os réus o ónus de invocar na contestação a extinção da servidão por não uso, sob pena de preclusão.

            Da leitura atenta da contestação verifica-se que, embora não tenham expressamente oposto a excepção do não uso, a verdade é que os réus sustentaram repetidamente que a servidão não chegou a materializar-se, para usar as suas próprias palavras, nem a ser utilizada, como tal, por ninguém; e os autores responderam a esta alegação, na réplica.

Considera-se, assim, suficientemente alegada a excepção de não uso, razão pela qual se conclui que a Relação não excedeu os seus poderes de cognição e que, portanto, o acórdão não é nulo por excesso de pronúncia (artigos 660º, nº 2, 668º, nº 1, d) e 716º, nº 1, na redacção vigente à data do acórdão).

            No fundo, segue-se o mesmo critério interpretativo substancial que permitiu o conhecimento da eventual constituição da servidão por contrato ou por destinação do pai de família, também não expressamente invocada como causa de pedir, como notou a sentença da 1ª Instância.

            6. Cumpre então verificar se a servidão se constituiu, seja por contrato, seja por destinação do pai de família.

No entanto, por razões de ordem prática, começa-se por averiguar se a aquisição, pelos autores, do direito de propriedade sobre o prédio arrendado aos réus (ponto 2.1.2 C b) da matéria de facto provada), em 17 de Abril de 2008, conduziria inevitavelmente à improcedência da presente acção, por provocar a extinção de uma servidão de passagem que eventualmente tivesse existido, como se entendeu no acórdão recorrido (“A servidão extingue-se pela reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa (art. 1569º nº 1 al. a) do CC) pelo que, a existir servidão, com a aquisição pelos autores do prédio sob a matriz nº ...º a mesma extinguiu-se.”). Com efeito, uma resposta afirmativa inutiliza a apreciação das demais questões.

É certo que o legislador prevê, entre as causas de extinção das servidões, a da “reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa” (al. a) do nº 1 do artigo 1569º do Código Civil) e que essa opção implicou o afastamento consciente da possibilidade de manutenção da servidão no interesse do proprietário (cfr. Actas da Comissão Revisora do Anteprojecto sobre Servidões Prediais do Futuro Código Civil português, Boletim do Ministério da Justiça 136º, pág. 77 e segs., págs. 140-141 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., Coimbra, 1984, pág. 674).

Mas é igualmente certo que, a ter-se constituído, seja por uma via, seja por outra, sempre teria surgido em momento anterior ao do contrato de arrendamento celebrado com os réus; o que implica que, tal como observou a 1ª Instância, o arrendamento teria como objecto um imóvel onerado com uma servidão. A falta de indicação da existência de servidão no contrato de arrendamento, acompanhada da ignorância da sua existência por parte dos arrendatários, não prejudicaria o prédio dominante; antes se traduziria num eventual vício do contrato de arrendamento.

            Significa isto que, apesar de a servidão predial se extinguir, os réus continuariam obrigados a dar passagem para o prédio onde habitam os autores. A extinção da oneração real em que se traduziria a servidão expandiria o direito de propriedade dos autores sobre o prédio arrendado aos réus; mas não expandiria o direito do arrendatário sobre o mesmo prédio, que manteria o mesmo conteúdo e extensão.

            Como consta das cits. Actas da Comissão Revisora, nas palavras do autor do Anteprojecto então discutido, proferidas em explicação do texto que passou para a al. a) do nº 1 do artigo 1569º do Código Civil, com a reunião dos prédios dominante e serviente “no domínio da mesma pessoa” extingue-se a servidão, mas “a extinção em nada altera os direitos de terceiros. Desaparece a figura jurídica da servidão, mas mantêm-se os pressupostos de facto, de modo que a posição de terceiros não fica limitada nem, por outro lado, se amplia. Isto sucede no usufruto, no arrendamento ou em qualquer outra hipótese. De forma que não há realmente vantagem em afastar-se da construção tradicional da servidão, segundo a qual esta não existe senão em relação a prédios pertencentes a donos diferentes”.

Não vem agora ao caso averiguar se seria ou não vantajosa uma opção legislativa diferente, de iure condendo. Mas não se pode deixar de observar que a interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido conduz a resultados inaceitáveis: o proprietário de um prédio dominante que adquirisse o direito de propriedade sobre o prédio serviente, onerado com uma servidão de passagem em benefício do primeiro, e que estivesse arrendado, deixaria de poder passar pelo prédio serviente… por se ter tornado seu proprietário.

            7. O Tribunal da Relação afastou a constituição da servidão por contrato com a justificação de que “Neste contexto” – da doação de 23 de Maio de 1978, “onde se ressalvou um direito de passagem (…) em benefício do prédio inscrito sob o art. ...º”, como atrás se transcreveu – “considerando que na dita doação apenas se ressalvou o referido direito de passagem, conclui-se que na mesma não se constituiu qualquer servidão ou seja não foi nesse acto que a mesma nasceu”.

A parte relevante do contrato tem o seguinte texto (fls. 36 e 39):

“O primeiro outorgante declarou que doa à segunda o lote número um, com quinhentos e vinte e sete metros quadrados e vinte e cinco decímetros, a destacar do artigo mil quatrocentos trinta e quatro, e do descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o número oitocentos oitenta e quatro, a folhas (…), a que atribui o valor de quarenta e cinco mil escudos, a confinar (…), com direito de passagem de veículos automóveis e agrícolas pelo lote número dois. A segunda outorgante declarou que aceita esta doação.

Arquivo a certidão comprovativa da discriminação efectuada, passado em 16 do corrente e o alvará de loteamento número três/setenta e oito, passado em vinte e seis de Janeiro pela Câmara Municipal de Espinho”.

O que resulta deste texto, interpretado à luz do disposto nos artigos 236º e segs. do Código Civil, é que o proprietário do prédio a que corresponde “o artigo mil quatrocentos trinta e quatro”, EE, doou a FF um lote do mesmo, a destacar, com direito de passagem por outro lote; e que esta doação foi aceite pela destinatária. Não há rasto de que na doação apenas se tenha ressalvado o direito de passagem; nem será muito claro o significado dessa afirmação do acórdão recorrido, num contexto em que ambos os lotes se integram no mesmo prédio e em que esse prédio é de propriedade do doador.

E os factos que vêm provados, relativos à geminação dos prédios, à circunstância de ambos terem garagem e de o acesso de veículos automóveis e agrícolas à garagem correspondente ao prédio então doado a FF só se poder fazer “através de uma faixa de terreno do prédio habitado pelos réus na qualidade de arrendatários” (pontos 2.1.2, 2.1.6 , 2.1.11 e 2.1.12), corroboram este sentido, como sendo aquele que um declaratário medianamente informado e diligente poderia retirar das declarações documentadas, quando colocado na posição da real donatária (de um lote a que pertence a uma garagem à qual só se acede passando pelo outro, que é igualmente da propriedade do doador, repete-se).

8. A Relação entendeu também que, ainda que a servidão se tivesse constituído em 1978, ter-se-ia extinguido por não uso, vinte anos depois (al. b) do nº 1 do artigo 1569º e nº 2 do artigo 298º do Código Civil, já citados).

Mas não se encontra fundamento para esta conclusão. Não ficaram demonstrados factos que permitam fundamentar a aquisição por usucapião, como entenderam ambas as instâncias; mas ficou provado que a passagem foi utilizada antes de 1998, repetidamente, pelo arrendatário do prédio onde habitam os autores: “Desde 1982 até 31 de Dezembro de 2002, HH, na qualidade de arrendatário do prédio correspondente ao artigo matricial ....°, utilizou faixa de terreno do prédio correspondente ao artigo matricial ....° para, por meio de veículo automóvel, aceder, a partir da rua pública, à garagem existente no primeiro dos referidos prédios, o que fazia a qualquer hora do dia, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta, com autorização dos réus e sem que ninguém a tal se tivesse oposto.”

A circunstância de estar demonstrado que os réus autorizaram estas passagens não releva para considerar não usada a servidão de passagem, naturalmente. No fundo, não pode atribuir-se a essa autorização a eficácia de apagar a relevância da efectiva passagem pelo prédio arrendado aos réus – e muito menos, a eficácia indirecta de conduzir à extinção de uma servidão de passagem pré-existente. Recorde-se que, na contestação, os réus alegaram que o arrendamento de HH era anterior à doação de 1978; retirar relevância à sua passagem equivaleria a excluir quem teve o poder de gozo do prédio dominante durante todo o tempo relevante para conduzir à extinção da servidão por não uso.

Não se dá relevo, para o efeito de determinar se a servidão se extinguiu por não uso, à prova de que o prédio arrendado aos réus foi utilizado para passagem de viaturas “destinadas a auxiliar o despejo da fossa séptica quer de um quer de outro dos dois referidos prédios”, desde logo porque não se provou quando ocorreu; nem tão pouco à demonstração de que nele também passaram, em 2001,“”veículos destinados a auxiliar a execução de obras no prédio correspondente ao artigo matricial ...º” (segunda parte do ponto 2.1.13 da matéria de facto). Em primeiro lugar, porque esta utilização é posterior a 1998; em segundo lugar, porque foi esporádica.

9. Torna-se pois desnecessário averiguar da eventual constituição da servidão por destinação do pai de família; mas ainda há que determinar se procede a alegação de inoponibilidade aos réus, por não constar do registo predial a existência da servidão, ou de abuso de direito.

Como também se observou na sentença, “à luz do Código do Registo Predial, tanto à data de 23 de Maio de 1978 como actualmente, as servidões aparentes não deixam de produzir efeitos relativamente a terceiros pelo simples facto de não serem levadas ao registo (cfr. art. 7.°, n.° 2, c), do CRPredial, aprovado pelo DL n.° 47 611, de 28 de Março de 1967, e art. 5.°, n.° 2, b), do CRPredial, aprovado pelo DL n.° 224/84, de 6 de Julho).”

Torna-se então necessário determinar o que são servidões aparentes, para o efeito de se poder dispensar a publicidade prosseguida pelo registo predial.

O Código Civil exige, como condição para a aquisição do correspondente direito por usucapião, que a servidão se revele “por sinais visíveis e permanentes” (nº 2 do artigo 1548º do Código Civil). Como se escreveu já no acórdão deste Supremo Tribunal, de 8 de Maio de 2013 (www.dgsi.pt, proc. nº 2915/06.3TBOAZ.P1.S1), “É sabido que a exigência de sinais visíveis e permanentes se destina a distinguir as situações de mera tolerância do proprietário, que apenas consente em que terceiros retirem certas utilidades do prédio, das hipóteses de exercício de poderes de facto susceptíveis de conduzir à aquisição de um direito por usucapião, em limitação ou oneração do direito de propriedade, traduzindo um apossamento e a prática reiterada de poderes correspondentes a tal direito e exteriorizando a relação de serventia entre os prédios; assim, Pires de Lima e Antunes Varela. Código Civil Anotado cit., III,, pág. 629 e segs. ou A. Santos Justo, Direitos Reais, 4ª ed., Coimbra, 2012, págs. 424 e 425.”

No caso de que nos ocupamos, está afastada a hipótese de usucapião; o título aquisitivo é o contrato, e não a posse prolongada. Por esse motivo, a aparência que agora interessa destina-se apenas a  garantir que se trate de uma servidão que se mostre exteriormente, em termos de poder ser conhecida publicamente, tal como se constasse do registo predial; nada mais tem de revelar.

Dentro destes limites, deve considerar-se aparente a servidão, tal como se entendeu em 1ª Instância: “No caso, da conjugação dos factos julgados provados e descritos sob os itens 2.1.2), 2.1.8), 2.1.11), 2.1.13), 2.1.14) e 2.1.15), resultam bem evidentes, ao que julgamos, sinais visíveis e permanentes reveladores de servidão de passagem (…) já aludimos”. Na verdade, os prédios são geminados e possuem, ambos, garagem; só se acede à garagem correspondente ao prédio onde habitam os autores “através de uma faixa de terreno do prédio habitado pelos réus na qualidade de arrendatários”; a passagem dos veículos referidos em 2.1.13 deixava marcas (“…a terra ficava batida e nela permaneciam as marcas de circulação correspondentes”); “A parte traseira de ambos os referidos prédios encontrava-se apenas dividida por uma vedação em arame, sendo que no sítio da passagem do carro para o prédio actualmente habitado pelos autores, mencionado em 2.1.3-a), existia uma cancela que se movia manualmente para a passagem dos carros e tractores”.

Não estando em causa a constituição por destinação de pai de família, não interessa que não se considere provada a existência destes sinais, à data da separação dos prédios.

10. Os réus invocam ainda abuso de direito por parte dos autores, afirmando que “a aposição da servidão aos RR. que desconheceram a sua existência durante mais de trinta anos constitui um clamoroso abuso de direito”, “que impedirá os autores de verem reconhecida a servidão peticionada.”

Mas não basta o desconhecimento dos réus, ainda que prolongado no tempo, para paralisar o exercício do direito de passagem. Como repetidamente se tem recordado no Supremo Tribunal de Justiça (cfr. por exemplo, o acórdão de 31 de Janeiro de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 1358/08.9TBILH.C1.S1, e a jurisprudência dele citada, e ainda o acórdão de 24 de Outubro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 1673/07.9TJVNF.P1.S1), seria imperioso que o modo concreto como vêm pretender exercer o direito de passagem, objectivamente considerado, se apresentasse ostensivamente contrário “à boa fé, (a)os bons costumes ou (a)o fim social ou económico” do direito em causa (artigo 334º do Código Civil), e que o seu titular tivesse criado na parte contrária a convicção de que o não exerceria, tendo invertido qualquer decisão nesse sentido (cfr., por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 14 de Novembro de 2006, 3 de Julho de 2008, 18 de Dezembro de 2008 ou de 31 de Março de 2009, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 06A3441, 08B2002, 08B3154 e 09A0537, ou ainda de Supremo Tribunal de 24 de Setembro de 2009 (www.dgsi.pt, proc. nº 09B659) e de 12 de Novembro de 2009 (www.dgsi.pt, proc. nº 09B0332).

Note-se que vem provado que “Os réus nunca permitiram aos autores que estes acedessem à garagem do prédio correspondente ao artigo matricial ...° através da referida faixa de terreno do prédio correspondente ao artigo matricial ....°” e que “Apesar de interpelados pelos autores para abrirem o portão que delimita a rua pública da faixa de terreno mencionada em 2.1.13), os réus negam-se a fazê-lo.”, o que revela que os autores não criaram nos réus a confiança de que não iriam exercer o direito.

 

11. Nestes termos, concede-se provimento à revista, revogando o acórdão recorrido e repondo a sentença da 1ª Instância.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2013

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relator)

Salazar Casanova

Lopes do Rego