Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3244/19.8T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
PREÇO
ABUSO DO DIREITO
BOA FÉ
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
DECLARAÇÃO TÁCITA
CLÁUSULA CONTRATUAL
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiro e a criar uma desproporção entre a utilidade do exercício do direito e as consequências decorrentes desse exercício. Por via deste instituto tutela-se uma situação em que a aplicação de um preceito legal numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.

II. O princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas – sendo que a tutela da confiança só tem razão de ser quando a conduta contrária à fides causar ou for susceptível de causar danos a outrem, factor indispensável ao surgimento de responsabilidade.

III. Em regra, uma vez fixado, o preço da empreitada é invariável, salvo em situações excepcionais (ut arts. 1214.º, n.º 3, 1215.º, n.º 1, 1216.º, nºs 1 e 2, do Cód. Civil) como aquela das alterações ordenadas ou autorizadas pelo dono da obra.

IV. Tendo o dono da obra, por si ou pelo seu representante (o seu Arquitecto), solicitado alterações substanciais à obra inicial acordada e orçamentada – obras essas que antes de realizadas eram comunicadas e discutidas com a Autora/Empreiteira – , tendo constatado a execução das mesmas alterações sem nunca ter reclamado ou se insurgido da realização das mesmas, ou do respectivo pagamento, designadamente por não terem sido por si aprovadas por escrito como exigia o clausulado do contrato de empreitada, ao vir, só depois de se ver servido e concluída a obra, dizer que, afinal, não as tem de pagar porque foram levadas a cabo sem constarem de escrito assinado por si ou seu representante, está a incorrer em abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium.  

V. declaração (negocial) tácita sempre que, conforme aos usos da vida, haja, quanto aos factos de que se trata, toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões), ainda que não esteja precludida a possibilidade de outra significação. Não se trata de apurar uma conclusão absolutamente irrefutável, antes se procura uma conclusão altamente provável.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO


Sadobat – Construções, Ld.ª, instaurou contra Roeland Biever acção de processo comum.

Pediu a condenação do Réu a pagar as faturas em dívida no montante de €25.905,77 e ainda os valores retidos como garantia no valor de €8.762,47 dos quais está vencida a primeira prestação anual de €1.752,49 e as quatro restantes, cada uma, no valor de €1.752,49, com vencimento em 16 de fevereiro dos anos de 2020 a 2023, bem como juros à taxa comercial, vencidos a partir de 20-03-2019.


Alegou, em suma, que celebrou com o Réu um contrato de empreitada que teve por objeto trabalhos de recuperação e reabilitação de um prédio urbano sito em ..., tendo executado, a pedido do Réu, trabalhos a mais ou novos trabalhos sem ordem escrita do mesmo, mas com a sua autorização expressa ou tácita.

O Réu não pagou esses trabalhos apesar de lhe terem sido apresentados os respetivos autos de medição.

Em relação aos autos de medição n.º 1 a 9, o Réu detém em seu poder os valores deduzidos para garantia de cumprimento do contrato que somam o montante de €8.441,20.


Contestou a Ré, alegando que durante a execução da obra houve necessidade de alterar os trabalhos previamente definidos, quer deixando de executar alguns trabalhos, quer executando outros que não estavam previstos, quer fazendo os mesmos trabalhos, mas com outros materiais.

As alterações aos trabalhos, a mais ou a menos, foram previamente à sua execução ou omissão comunicados e discutidos com a Autora, sendo que os trabalhos a mais foram correlativos com os trabalhos a menos não realizados e, por isso, em momento algum, antes ou durante a sua execução, a Autora veio peticionar qualquer validação de trabalhos a mais ou a fixação de qualquer valor.

Deve improceder o pedido da Autora, com exceção do montante de €6.616,64, que reconhece dever por conta dos valores de duas faturas correspondentes aos autos de medição 10 e 11, com as deduções operadas e que só não pagou por falta de entendimento com a mesma.

Também aceita como devida, por vencida, a devolução de €1.752,79 correspondente a 1% do valor da obra, retido a título de caução, devendo esses montantes serem compensados com o crédito do Réu.


Deduziu pedido reconvencional (que foi aperfeiçoado e cumprido o princípio do contraditório) no montante de €37.082,40 resultante da soma dos €35.000,00 de multa contratual pelo atraso na entrega da obra e € 2.082,40 de despesas com habitação.


Replicou a Autora, alegando que a obra foi entregue em fevereiro de 2019, dentro do prazo previsto acrescido do tempo de suspensão (pelas condições climatéricas adversas durante os três ou quatro primeiros meses de execução dos trabalhos) ou do tempo exigido pelos novos trabalhos executados e solicitados verbalmente pelo Réu ou pelo seu representante, não tendo o Réu direito a cobrar qualquer multa porque o atraso na obra ficou a dever-se a si próprio.

Consequentemente, pediu a improcedência do pedido reconvencional.


Foi proferida Sentença, nos seguintes termos:

«Por tudo o exposto, declara-se parcialmente procedente o peticionado pela A., condenando o R. no pagamento

- da quantia de €4.863,75 (€3.435,00+€1428,75 constantes da factura n.º 17/2019) datada de 13.02.2019, acrescida dos juros de mora peticionados, calculados desde a data 20.03.2019 à taxa supletiva de juros comerciais que se for sucedendo até integral pagamento;

- da quantia retida, no montante de €1.752,79, correspondente a 1% do valor da obra, retido como caução;

- e das prestações de igual montante à medida que se vão vencendo sendo que presentemente é já devida a entrega à A. da quantia da prestação dos anos de 2020 e 2021 e os restantes serão entregues em devido tempo nos termos clausulados, (sendo libertados 1% com a recepção provisória da empreitada e os restantes 4% proporcionalmente em cada ano subsequente até à recepção definitiva da empreitada).

Absolvendo-se o R. do demais peticionado.

Declara-se improcedente o pedido reconvencional, absolvendo-se a Reconvinda do pedido»


*


A Autora interpôs recurso principal e o Réu recurso subordinado.

Ambas apresentaram resposta ao recurso da contraparte.


A Relação, em acórdão, decidiu:

«Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar as duas apelações nos seguintes termos:

1) - Em relação à Apelação da Autora, revogam parcialmente a sentença recorrida, por proceder a respetiva Apelação (não obstante a parcial alteração da decisão de facto), nos seguintes termos:

a) - Confirmam a sentença na parte em que condenou o Réu;

b) - Revogam a sentença na parte em que absolveu o Réu, condenando-o a pagar à Autora:

- Os trabalhos a mais e ou imprevistos que constam do ponto 109 dos factos provados (que abrange os pontos 66, 67, 68, 69, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 79, 80 e 81 dos factos provados) e que correspondem a um custo não concretamente apurado, a liquidar posteriormente;

- O valor da troca de material que consta do ponto 54 dos factos provados;

- O diferencial dos valores que constam dos pontos 72, 73, 74, 75, 76 e 78 dos factos provados.

O custo dos trabalhos a menos que constam dos factos provados sob os números 52, 104 e 105, não concretamente apurado e também a liquidar oportunamente deve se abatido ao valor da condenação referente aos trabalhos a mais e ou imprevistos.

- Mais condenam o Réu a pagar à Autora juros de mora sobre as quantias a liquidar oportunamente, à taxa comercial, desde a citação para ação declarativa até integral e efetivo pagamento; em relação às quantias já quantificadas também objeto desta condenação, são devidos juros de mora vencidos desde 20.03.2019 (artigo 805.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil).

2)- Em relação à Apelação do Réu, confirmam a sentença, que absolveu a Autora reconvinda do pedido, improcedendo na totalidade a respetiva Apelação».


**


Inconformado, veio o réu ROELAND BIEVER interpor recurso de revista (normal no que tange à decisão da Relação sobre o recurso (principal) da Autora e excepcional quanto a decisão da Relação sobre o recurso subordinado interposto pelo Réu (que incidiu sobre o pedido reconvencional, tendo aqui a Relação confirmado a sentença), apresentando alegações que remata com as seguintes.


CONCLUSÕES:

I – O contrato de empreitada dos autos foi celebrado sob o regime de preço global.

“V - A desproporcionalidade de valor entre o preço e a obra não constitui, necessariamente, de per si, fundamento legal da revisão do preço.

VI - A entidade objetiva da prestação do empreiteiro subsiste imodificada qualquer que seja o custo efetivo final que para si resulte.”


II – Na clausula 9ª do contrato de empreitada ficou contratualizado que:

8 -Designam-se por trabalhos a mais todos aqueles que no decorrer da empreitada o Dono de Obra mandar executar, para além de todos os consequentes ou necessários para a perfeita execução daqueles que são especificamente designados ou previstos nos documentos contratuais.

9 - Os trabalhos referidos no número anterior serão pagos com base na lista de preços unitários constante da proposta, nas quantidades que forem aplicadas na obra, em conformidade com o que vier a ser verificado e assinado pela Fiscalização.

10 - Verificando-se a necessidade ou conveniência, por proposta do Dono de Obra, na realização de trabalhos a mais que não constem da lista de preços unitários, serão propostos novos preços pelo Empreiteiro, que estarão sujeitos a aprovação escrita do Dono de Obra antes de serem executados.

11 - (…)

12 - Sempre que por imposição do Dono da Obra o u em virtude de deferimento de reclamação do Empreiteiro haja lugar à execução de trabalhos a mais ou espécies de trabalhos  não previstas, o prazo contratual para a conclusão da obra poderá ser prorrogado a requerimento do Empreiteiro, mediante acordo com o Dono de Obra.

13 - Em circunstância alguma poderá o empreiteiro reclamar o pagamento de trabalhos a mais que não hajam sido determinados por escrito e de forma expressa, por representante legal do Dono de Obra.

14 - Designam-se por trabalhos a menos aqueles que, tendo sido previstos nas peças que regulam a empreitada, o Dono de obra, decida não executar.”.


III – No orçamento apresentado pela A. ficou como condição que:

ii) …“A execução de eventuais trabalhos a mais e/ou imprevistos será objeto de prévio acordo entre o Cliente e a Sadobat”


IV – Resultam provados os seguintes factos:

47- As alterações aos trabalhos, seja a mais ou a menos, foram previamente à sua execução comunicados e discutidos com a A.;

48- Durante a execução dos trabalhos a A. não requereu a fixação de qualquer valor “.

E esta matéria provada não foi alterada pela decisão aqui em recurso.

“7 - Mais acordaram A. e R. que os pagamentos seriam feitos mensalmente, 10 dias após a apresentação das facturas mensais relativas aos trabalhos contratuais executados em cada mês, sendo os respectivos valores calculados a partir dos preços unitários e quantidades realizadas;

10 - Durante o período de execução da empreitada a A. foi elaborando os autos de medição dos trabalhos confirmados pelo arquitecto AA, autor do projecto, e que o R. liquidou; “


V – O Tribunal recorrido aditou um novo facto provado, o 109:

“Os trabalhos referidos nos pontos 66, 67, 68, 69, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 79, 80 e 81 dos factos provados traduziram -se num custo não concretamente apurado.”

VI – Este novo facto provado resulta já dos trabalhos que a 1ª instância considerou estarem provados como tendo sido realizados, apenas não dando por provado o seu custo ou a sua qualificação como trabalhos a mais.

VII – O próprio tribunal recorrido não consegue apurar dos trabalhos novos realizados, quais estão fora do preço acordado, uma vez que reconhece existirem trabalhos a menos.

Por isso mesmo, o Acórdão recorrido determina o paga mento:

“- Os trabalhos a mais e ou imprevistos que constam do ponto 109 dos factos provados (que abrange os pontos 66, 67, 68, 69, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 79, 80 e 81 dos factos provados) e que correspondem a um custo não concretamente apurado, a liquidar posteriormente;

- O valor da troca de material que consta do ponto 54 dos factos provados;

- O diferencial dos valores que constam dos pontos 72, 73, 74, 75, 76 e 78 dos factos provados.

O custo dos trabalhos a menos que constam dos factos provados sob os números 52, 104 e 105, não concretamente apurado e também a liquidar oportunamente deve se abatido ao valor da condenação referente aos trabalhos a mais e ou imprevistos”


VIII – A alteração da matéria de facto por si e face ao confronto com os factos dados como provados (vide IV supra) não permite alterar a decisão, estando a decisão em contradição com a prova, ferindo -a de nulidade.

IX – O douto Acórdão recorrido teria que ter entendimento diverso sobre a prova produzida quanto aos pontos mencionados em IV supra para que em aditamento dos novos factos, houvesse coerência decisória.

X – O único argumento que o tribunal recorrido utiliza para da mesma prova retirar outro efeito juridico, é o comportamento das partes no sentido de, em comum acordo, terem alterado os termos do contrato.

XI – Considerando que os pedidos do R. de trabalhos novos e a execução dos mesmos pela A., foram suficientes a alterar o formalismo contratualmente previsto e sendo novos trabalhos teriam forçamente um custo que o R. não poderia ignorar e muito superior ao inicialmente previsto.

Por esta razão condena o R. ao pagamento do valor que se vier apurar essa diferença de custo.

XII – Mas  não pode proceder este  entendimento porque os  pedidos  de alterações foram sempre feitos por escrito pelo R. ou seu representante, conforme resulta do depoimento das testemunhas e dos documentos juntos nos autos.

XIII – A A. aceitou essas alterações, como o mesmo verbalizou, e executou sem ter em momento algum mencionado que significariam um custo acrescido.

XIV –O próprio legal representante da A. disse que em determinado momento achou que o R. não estava à espera de ter de pagar os trabalhos novos. O próprio teve esta percepção – porque não pode o tribunal entender razoável esta convicção do R.?!

XV – Da parte do R. não houve, quanto ao pedido principal, comportamento tácito que possa ser interpretado da forma como o tribunal recorrido pretende.

XVI – Já ao invés, a A. teve um comportamento tácito de executar os trabalhos; apresentar os autos de medição mensais e não remeter, como contratualizado, o elenco dos trabalhos que considerasse a mais, nem valor de custos unitários dos mesmos.

Mesmo quando sugerido pelo Arqt. AA que o fizesse se considerasse devidos.

XVII – Recordamos que se trata de uma empreitada em regime de preço global, onde o risco corre pelo empreiteiro, sem ter necessidade de reduzir preço se utilizar quantidades distintas das orçamentadas mas também onde tem de ser pro-ativo e reclamar custo acrescido, pois que o preço está fixado.

XVIII – Ao não fazer nada disto, criou no R. a convicção de que não obstante os novos trabalhos, não haveria lugar a trabalhos a mais.

E tal convicção permaneceu até à reunião no final de obra e já com as partes em contendo, em que o legal representante da A. afirma que vai exigir trabalhos a mais se lhe cobram multas.

XIX – E versando sobre as multas, recorre-se do entendimento do tribunal em manter a decisão proferida sobre o pedido reconvencional, por ambiguidade e obscuridade na apreciação do mesmo comportamento das partes.

XX – Ora, entende o tribunal recorrido que não obstante as notificações prévias, a comunicação de aplicação e quantificação da multa contratual não foi acompanhada de auto especifico, como prevê o contrato e, por isso, não pode o R. querer valer-se do contrato para se escudar ao pagamento de trabalhos a mais, mas desvalorizar o contrato na forma de pedir as multas.

XXI – Até se poderia entender este raciocínio do tribunal, conquanto também o aplicasse à apreciação do caso, mas, em apelação, foi o tribunal recorrido quem desvirtuou as exigências contratuais para validar uma declaração tácita quanto ao pedido principal e depois havendo igual declaração tácita (porque a A. não respondeu à intenção de aplicação de multa), ignora-a do ponto de vista do efeito jurídico e mantém a decisão da 1ª instância quanto ao pedido reconvencional, por falta de cumprimento do formalismo contratual.

XXII – É aqui que o tribunal de recurso faz errada aplicação do direito e que por razões de justiça material e defesa do principio de igual tratamento, merece revisão da decisão.

Donde

XXIII – O tribunal recorrido não poderia condenar o R. no pagamento dos trabalhos resultantes do ponto 109 dos factos provados e as diferenças dos pontos 54, 72, 73, 74, 75, 76 e 78 mantendo como provado que o quanto é mencionado em IV.

Pois que ao manter estes factos como provados teria de retirar do comportamento da A. a convicção de que o R. razoavelmente não achou que existiriam trabalhos a mais cujo custo acrescesse ao preço global e lhe fossem exigidos.


Sendo de completa má fé, executar os trabalhos todos e no fim, fixar o preço a belo prazer e exigi-lo ao R., quando nada podia já decidir pois que os trabalhos já estavam executados, pretendendo, com isso, coagi -lo e obriga-lo ao pagamento.


XXIV – Se o tribunal recorrido quiser desvirtuar os contratos e validar os comportamentos das partes como alteração dos mesmos, interpretando e integrando os comportamentos tácitos, então por questão de justiça e equilíbrio teria de reconhecer a validade da aplicação das multas e revogar a decisão da 1ª instância, a favor do R.


TERMOS EM QUE V.EXAS. FAZENDO A TÃO COSTUMADA JUSTIÇA, DECIDIRÃO PELA REVOGAÇÃO DO DOUTO ACÓRDÃO APLICANDO O DIREITO DE FORMA JUSTA E EQUILIBRADA.


*


Contra-alegou a Autora, pugnando pela improcedência do recurso, com a manutenção do acórdão recorrido.


Em despacho do relator, foi determinado que, oportunamente, os autos fossem remetidos à Formação, para a verificação do arrogado pressuposto que justificasse, ou não, a pretendida revista excepcional (e que os autos fossem conclusos após a decisão da Formação, “para apreciação do recurso de revista normal interposta (incidente sobre a decisão da Relação que concedeu provimento à apelação da Autora) e, eventualmente, também, do recurso de revista excepcional caso a Formação o admita”).

A Formação não admitiu a revista excepcional – como dito, respeitante à decisão sobre o pedido reconvencional da Ré.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Dado que a Formação rejeitou a revista excepcional deduzida (que incidia sobre a decisão relativa ao pedido reconvencional da Ré), a presente revista (normal) incidirá, apenas e só, sobre a decisão da Relação na parte em que revogou a sentença condenando o Réu a pagar à Autora os “trabalhos a mais (…)”, aludidos na al. b) do segmento decisório.

O que quer dizer que apenas serão levadas em conta as conclusões da revista respeitantes ao recurso principal, que não as respeitantes ao recurso subordinado incidente sobre a decisão da reconvenção (conclusões XIX a XXII).


*


 Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:

§ Nulidade do acórdão, por contradição entre os factos e a decisão;

§ Saber se à Autora são devidos os valores em que o Réu/Recorrente foi condenado sob a al. b) do dispositivo do acórdão recorrido (ou seja, condenação nos valores ali aludidos a título de “trabalhos a mais e ou imprevistos”, “valor da troca de material”, “diferencial dos valores”,trabalhos a menos” e respectivos juros)[1].

III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (fixada na Relação após impugnação em recurso):

1 - A A. é uma sociedade unipessoal por quotas cujo objecto social consiste na actividade de construção civil e obras públicas, empreitadas e subempreitadas, compra e venda de propriedades e materiais de construção, exploração de areias e pedreiras e asfaltos;

2 - Em 23 de Janeiro de 2018 a A. e o R. celebraram um contrato de empreitada que teve por objecto trabalhos de recuperação e reabilitação de um prédio urbano, com a área total de 92,00 m2, sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o artigo ...6;

3 - A A. havia apresentado ao R. no dia 14 de Dezembro de 2017, o orçamento n.º ...17, relativamente aos trabalhos que iria realizar, aceite pelo R. e que integravam o contrato de empreitada (clausula 1ª al. b);

4 - O Preço foi fixado em € 175.000,00 acrescido de IVA à taxa legal em vigor de 6%;

5 - Todas as taxas e licenças camarárias eram da responsabilidade do R.;

6 - Foi acordado que com a adjudicação da obra o R. entregaria o valor de 20% a titulo de adiantamento sendo deduzido em cada pagamento 20% do respectivo valor, para devolução do adiantamento;

7 - Mais acordaram A. e R. que os pagamentos seriam feitos mensalmente, 10 dias após a apresentação das facturas mensais relativas aos trabalhos contratuais executados em cada mês, sendo os respectivos valores calculados a partir dos preços unitários e quantidades realizadas;

8 - Os pagamentos eram efectuados após emissão de autos de medição a aprovar por ambas as partes contraentes prevendo a clausula 4ª n.º 5 do contrato de empreitada que «5- Não são passiveis de pagamento pelo Dono de Obra trabalhos que , não estado previstos nos projetos e no caderno de encargos , sejam executados sem a sua expressa autorização escrita.» (clausula 4ª );

9 - O prazo de execução dos trabalhos, acordado na clausula 6ª do contrato era, de «7 meses, a contar da data da consignação da empreitada da qual será lavrado o respectivo auto; 2. A pedido expresso do Empreiteiro será concedido mais 1 mês de prazo de execução sem aplicação de penalidades por atraso.»

10 - Durante o período de execução da empreitada a A. foi elaborando os autos de medição dos trabalhos confirmados pelo arquitecto AA, autor do projecto, e que o R. liquidou;

11 - A A. apresentou ao R. em 20 de Março de 2018 o auto de medição n.º 1 no valor de 12.020,00€deduzido de 20%, correspondente ao adiantamento (2.404,00€) e de 5% correspondente à garantia (601,00€) com um saldo a favor da A. de 9.015,00€ acrescido de IVA à taxa legal de 6% que o R. pagou;

12 - A A. apresentou ao R. em 20 de Abril de 2018 o auto de medição n.º 2, no valor de 34.088,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (6.817,60€) e dedução de 5% garantia (1.704,40€) com um saldo a favor da A. de 25.566,00€ acrescida de IVA à taxa legal de 6% , que o R. pagou;

13 - A A. apresentou ao R. em 20 de Maio de 2018 o auto de medição n.º 3, no valor de 22.562,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (4.513,60€) e dedução de 5% correspondente a garantia (1.128,00€) com um saldo a favor da A. de 16.921,00€ acrescida de IVA à taxa legal de 6% , que o R. pagou;

14 - A A. apresentou ao R. em 20 de Junho de 2018 o auto de medição n.º 4, no valor de 8.549,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (1.709,80€) e dedução de 5% correspondente a garantia (427,20€) com um saldo a favor da A. de 6.412,00€ acrescida de IVA à taxa legal de 6% , que o R. pagou;

15 - A A. apresentou ao R. em 20 de Julho de 2018 o auto de medição n.º 5, no valor de 15.070,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (3.014,00€) e dedução de 5% correspondente a garantia (754,00€) com um saldo a favor da A. de 11.302,00€ acrescido de IVA à taxa legal de 6% , que o R. pagou;

16 - A A. apresentou ao R. em 20 de Agosto de 2018 o auto de medição n.º 6, no valor de 19.633,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (3.927,00€) e dedução de 5% correspondente a garantia (982,00€) com um saldo a favor da A. de 14.724,00€ acrescid0 de IVA à taxa legal de 6% , que o R. pagou;

17 - A A. apresentou ao R. em 20 de Setembro de 2018 o auto de medição n.º 7, no valor de 15.200,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (3.040,00€) e dedução de 5% correspondente a garantia (760,00€) com um saldo a favor da A. de 11.400,00€ acrescida de IVA à taxa legal de 6% , que o R. pagou;

18 - A A. apresentou ao R. em 20 de Outubro de 2018 o auto de medição n.º 8, no valor de 24.669,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (4.934,00€) e dedução de 5% correspondente a garantia (1.233,00€) com um saldo a favor da A. de 18.502,00€ acrescida de IVA à taxa legal de 6% , que o R. pagou;

19 - A A. apresentou ao R. em 20 de Novembro de 2018 o auto de medição n.º 9, no valor de 17.039,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (3.407,80€) e dedução de 5% correspondente a garantia (852,00€) com um saldo a favor da A. de 12.779,20€ acrescida de IVA à taxa legal de 6% , que o R. pagou;

20 - A A. apresentou ao R. em 20 de Dezembro de 2018 o auto de medição n.º 10, no valor de 4.580,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (916,00€) e dedução de 5% correspondente a garantia (229,00€) com um saldo a favor da A. de 3.435,00€, e o R. ainda não pagou os trabalhos discriminados no auto de medição;

21 - A A. apresentou ao R. em 20 de Janeiro de 2019 o auto de medição n.º 11, no valor de 1.905,00€ com dedução dos 20% de adiantamento (381,00€) e dedução de 5% correspondente a garantia (95,25€) com um saldo a favor da A. de 1.428,75€, e o R. ainda não pagou os trabalhos discriminados no auto de medição;

22 - O valor dos autos n.º 10 e 11 está refletido na factura n.º 17/2019 emitida em 13 de Fevereiro de 2019 no total de 2019, no total de 4.863,75 € acrescido de IVA à taxa legal de 6% (291,83) com saldo favorável à A. de 5.155,58€;

23 - Fazia parte do contrato de empreitada o orçamento apresentado pela A. definindo preços unitários e quantidades;

24 - Durante a execução da obra o R., dono da obra esteve períodos ausente na ... e o arquitecto AA assegurava por ele o acompanhamento da obra;

25 - Aquando da adjudicação da obra o R. escolheu a A., embora sendo proposta de maior valor do que os outros dois orçamentos apresentados, porque a A. indicava a execução dos trabalhos em 7 meses, e os outros se comprometiam com 12 meses;

26 - O A. não tinha residência em Portugal e realizou obras no imóvel para dele fazer a sua habitação em Portugal;

27 - Estatui a clausula 9ª do contrato de empreitada que « 1- Designam-se por trabalhos a mais todos aqueles que no decorrer da empreitada o Dono de Obra mandar executar, para além de todos os consequentes ou necessários para a perfeita execução daqueles que são especificamente designados ou previstos nos documentos contratuais.»

28 - (…) «2- Os trabalhos referidos no número anterior serão pagos com base na lista de preços unitários constante da proposta, nas quantidades que forem aplicadas na obra, em conformidade com o que vier a ser verificado e assinado pela Fiscalização.»;

29 - (…) «3- Verificando-se a necessidade ou conveniência, por proposta do Dono de Obra, na realização de trabalhos a mais que não constem da lista de preços unitários, serão propostos novos preços pelo Empreiteiro, que estarão sujeitos a aprovação escrita do Dono de Obra antes de serem executados.»:

30 - (…) «5- Sempre que por imposição do Dono da Obra ou em virtude de deferimento de reclamação do Empreiteiro haja lugar à execução de trabalhos a mais ou espécies de trabalhos não previstas, o prazo contratual para a conclusão da obra poderá ser prorrogado a requerimento do Empreiteiro, mediante acordo com o Dono de Obra. »;

31 - (…) «6- Em circunstância alguma poderá o empreiteiro reclamar o pagamento de trabalhos a mais que não hajam sido determinados por escrito e de forma expressa, por representante legal do Dono de Obra.»:

32 - (…)«7- Designam-se por trabalhos a menos aqueles que, tendo sido previstos nas peças que regulam a empreitada, o Dono de obra, decida não executar.»;

33 - Estatui a cláusula 6ª do contrato de empreitada que «1. O prazo de execução dos trabalhos é de 7 meses, a contar da data da consignação da empreitada, da qual será lavrado o respectivo auto.»;

34 - (…) «A pedido expresso do Empreiteiro será concedido mais 1 mês de prazo de execução, sem aplicação de penalidades por atraso.»

35 - Estatui a cláusula 7ª do contrato de empreitada que «1 - Por forma a garantir o integral e pontual cumprimento do presente contrato, será deduzido em cada pagamento 5% do respectivo valor. 2 - O valor das retenções serão libertadas pelo Dono da obra em 1% ao ano ao longo do período de garantia de 5 anos, sendo libertados 1% com a recepção provisória da empreitada e os restantes 4% proporcionalmente em cada ano subsequente, até à recepção definitiva da empreitada.»

36 -Estatui a cláusula 8ª do contrato de empreitada que «1. Se o Empreiteiro não concluir a obra no prazo contratualmente estabelecido, acrescido de prorrogações graciosas ou legais, ser-lhe-á aplicada (…) multa (…)»;

37 - (…) «3. Nos casos de recepção provisoria de parte da empreitada, as multas contratuais a que se referre o numero 1 serão aplicadas na base do valor dos trabalhos ainda não recebidos.»;

38 - (…) «A aplicação de multas contratuais nos termos dos números anteriores será precedida de auto lavrado pelo representante do Dono de Obra, sendo enviada cópia ao Empreiteiro.»;

39 - Estatui a cláusula 11ª do contrato de empreitada que «a) Não podem ser impostas multas pecuniárias ao Empreiteiro, nem é havida como incumprimento, a não realização pontual das prestações contratuais a cargo de qualquer das partes que resulte de caso de força maior, entendendo-se como tal as circunstancias que impossibilitem a respectiva realização, alheias à vontade da parte afectada, que ela não pudesse conhecer ou prever à data da celebração do contrato e cujos efeitos não lhe fosse razoavelmente exigível contornar ou evitar. b) Podem constituir força maior, se se verificarem os requisitos do numero anterior, designadamente, tremores de terra, inundações, incêndios, epidemias, sabotagens, greves, embargos ou bloqueios internacionais, atos de guerra ou terrorismo e motins.»;

40 - O auto de consignação dos trabalhos foi assinado pelas partes em 16.02.2018;

41 - O arquitecto AA, representante do Réu enviou a BB, legal representante da A., mail datado de 02.11.2018, referindo que «a obra está a ficar espetacular e será para nós motivo de orgulho»;

42 - O R. por mail datado de 08.05.2018 remetido a BB deu conta de estar contente com o progresso da obra e apreciaria altamente que continuasse naquela velocidade com presença diária do Sr. BB para conclusão da construção do edifício até ao fim de setembro conforme planeado.

43 - A A. emitiu autos de medição no valor de 9.577,60€ (auto de medição de trabalhos a mais datado de 30.01.2019) e de 9.998,00€ (auto de medição n.º 2 de trabalhos a mais), discriminados na fatura nº 29/2019, emitida em 20 de Março de 2019, no total de 19.575,65€, acrescida de IVA, à taxa de 6% (1.174,54€), com o saldo a favor da Autora de 20.750,19€;

44 - O R. devolveu à A. a factura n.º 29/2019 e não validou os autos de medição de trabalhos a mais (por carta carta datada de 03.04.2019);

45 - Resulta da clausula 2ª do contrato de empreitada que «O regime da empreitada é o designado por preço global, fixo e não revisível.»;

46 - Resulta da clausula 3ª (Preço) do contrato de empreitada que «3. Quaisquer alterações ao projecto da Empreitada dependem da autorização, prévia e por escrito, do Dono de Obra»;

47- As alterações aos trabalhos, seja a mais ou a menos, foram previamente à sua execução comunicados e discutidos com a A.;

48 - Durante a execução dos trabalhos a A. não requereu a fixação de qualquer valor;

49 - O projecto inicial, para além da construção da nova habitação, incluía a demolição total do edifício existente no local e posteriormente o Réu com o objectivo de obter um benefício camarário, deu ordens à A. para que fosse preservada uma das paredes exteriores existentes no edifício antigo;

50 - E acarretou a necessidade de betonagem para consolidar a parede e a introdução de duas novas vigas construídas para reforço num plano frontal (interior);

51 - Trabalhos efectuados pelos trabalhadores da A.;

52 - Não foram assentes as pedras de soleira das 3 varandas a norte;

53 - Parte do material de revestimento escolhido pelo dono da obra teve de ser devolvido, já depois de estar armazenado e distribuído pelos pisos, pois o arquitecto contratado pelo Réu enganara-se no projecto de arquitectura na referência do material;

54 - O arquitecto AA solicitou orçamento para trocar este material e foi-lhe dito em contactos com a A. que os custos seriam de 130 € e demoraria 2 semanas e o arquitecto assumiu o lapso da troca da cor do material e prontificou-se a pagar esse valor mas não pagou até ao momento;

55 - A A. pagou esse diferencial;

56 - A localização dos pontos de iluminação para os quadros decorativos, depois de acabados (com abertura e tapamento de roços, reboco e pintura de toda a parede) foram alterados a pedido do Réu, que após ter indicado os locais, decidiu que fossem colocados mais altos pelo que foi inutilizado o que estava feito, executando-se novas aberturas de roços, instalação eléctrica e tapamento de roços, com novo estuque e nova pintura. (três dias de trabalho);

57 - A porta entre a lavandaria e os arrumos, com todo o trabalho de alvenaria já concluído foi objecto de trabalhos para estreitamento do vão, por ordem do arquitecto (dois dias de trabalho).

58 - O assentamento de rodapés em poliuretano branco com 7X1,5m na garagem, que não estava previsto no contrato, e foi pedido pelo arquitecto, por ordem e no interesse do Réu (um dia de trabalho);

59 - Foi executada a estrutura para colocação do elevador, conforme projecto, mas a posteriori a empresa do elevador referiu a necessidade de baixar 30 cm a base de betão armado que já se encontrava concluída, e com uma enorme densidade de ferro na sua armadura, pelo que teve de ser demolida com recurso a meios mecânicos e manuais e reconstruída a uma cota inferior (dois dias de trabalho);

60 - Sem estar previsto no contrato e apenas porque era necessário e a empresa que forneceu o elevador o exigiu, os espaços previstos em projecto para as diversas portas do elevador foram alterados, com rebaixamento do pavimento a um nível inferior de todas as portas;

61 - Como consequência do rebaixamento das referidas portas, a um nível superior teve de se proceder ao enchimento para que as portas ficassem com as medidas correctas (dois dias de trabalho);

62 - Relativamente ao elevador, o que foi contratado, constando do orçamento, era a execução da estrutura (caixa do elevador) mas o Réu solicitou à Autora vários trabalhos relativos à instalação do elevador, como fornecimento e instalação de tubos (por abertura de roços no pavimento em betão armado e furos numa parede em betão armado) para a passagem de alimentação ao elevador (dois dias de trabalho);

63 - A Autora pintou o muro do terraço e da pala do terraço com a cor prevista no projecto, e depois do trabalho executado e concluído o Réu não gostou e ordenou que fosse novamente pintado com cor diferente (um dia de trabalho);

64 - As paredes da sala estavam pintadas de acordo com o projecto, mas o Réu ordenou que fosse pintado de cor diferente (dois dias de trabalho);

65 - O pedido de preservação de umas das paredes (alçado tardoz) existente no edifício antigo implicou a necessidade de escorar em segurança e de forma faseada a parede antiga e os troços adjacentes para que não desmoronassem;

66 - Ao não ter estabilidade estrutural, em vez de se executar a cofragem normal para construção dos elementos estruturais teve de se improvisar, escavando dentro das paredes adjacentes (construídas em alvenaria de pedra) desde o piso 0 até ao piso 2, de modo a lhes serem introduzidas as armaduras de ferro dos pilares para posterior betonagem, para que não houvesse o risco de desmoronamento;

67 - Cada operação de escavação nas paredes, determinou a produção de novos entulhos e a necessidade de os retirar, carregar e transportar a vazadouro;

68 - Quando se atingiu o piso 2 e perante o estado de degradação em que se encontrava a cimalha e a sua interligação à parede antiga, foi decidido, com o acordo do arquitecto, a construção de uma viga em betão armado, que simultaneamente assegurou estabilização da referida cimalha, promoveu a interligação entre a laje do piso 2 e os elementos estruturais adjacentes, servindo ainda de arranque para o último troço de parede dupla exterior do alçado tardoz;

69 - A troca do material de revestimento e posterior fornecimento do material que o substituiu, por lapso não imputável ao empreiteiro, determinou, cargas, transportes e descargas do mesmo em obra, com a interveniência e dispêndio de várias horas de trabalho do próprio empreiteiro e bem assim ao valor de 130,00€ cobrados a mais pelo fornecedor, que o arquitecto se prontificou a pagar mas não pagou até ao momento;

70 - No orçamento, o fornecimento e montagem do pavimento, tinha um valor de 8.330,00€ (montagem, 3.500,00€ e materiais, 4.830,00€) mas o Réu escolheu materiais, no valor de 8.538,02€,

71 - A Autora não se apercebeu de que os materiais referenciados pelo Réu eram de valor superior ao orçamentado;

72 - A verba prevista em orçamento para o fornecimento e montagem das loiças sanitárias era de 3.000,00€ (considerando que o valor do fornecimento era de 2.230,46€ e à montagem dizia respeito o valor de 769,54€) não estando previstas nas especificações técnicas quaisquer marcas ou modelos;

73 - (…) E o Réu escolheu materiais no valor de 6.669,81€;

74 - As portas previstas e orçamentadas para o interior da casa eram simples, em faia envernizada, porém o dono da obra, posteriormente, optou por outro modelo, tendo sido solicitada ao carpinteiro a apresentação de amostras de portas com réguas verticais e acabamento lacado a branco, pedido que o carpinteiro oportunamente satisfez;

75 - Após a apresentação das três amostras em reunião de obra, na presença do dono de obra, arquitecto e empreiteiro, decidiu-se o dono da obra pelo modelo que de pronto aprovou e mandou fabricar. O valor do diferencial entre as portas inicialmente orçamentadas (3.300,00€) e as efectivamente fornecidas e assentes foi de 1.137,00€;

76 - De igual modo procedeu o dono da obra relativamente a uma porta interior de correr com a respectiva cassete, orçamentada em 440,00€, com o diferencial de 161,30€;

77 - O projecto e orçamento previam a execução de dois lanços de escadas em ferro decapado, metalizado e pintado, sendo os degraus em vidro laminado de 14 mm, posteriormente o arquitecto chegou à conclusão de que o vidro com tal espessura não seria suficientemente resistente para suportar o peso dos utilizadores e como tal seria preferível aumentar a espessura dos vidros para 20 mm, tendo solicitado que os mesmos fossem fabricados com essa nova espessura;

78 - O diferencial dos vidros de uma espessura para a outra teve um custo adicional de 485,00€ (custo orçamentado, 5.850,00€, custo efectivo, 6.385,00€);

79 - Por diversas vezes solicitou o dono da obra ao empreiteiro que realizasse uma limpeza profunda da obra e tal limpeza foi feita por uma empresa especializada que trabalha nessa área de obras;

80 - Sem pedir autorização à Autora o Réu ordenou que os funcionários da Autora transportassem os seus móveis, que estavam armazenados na garagem, para os diversos compartimentos indicados por si. (três dias de trabalho);

81 - O Réu também deu ordem aos funcionários para colocarem os acessórios da casa de banho nas quatro casas de banho da habitação. (um dia de trabalho);

82 - Em 30 de Janeiro de 2019 a Autora elaborou o auto de medição de trabalhos a mais no valor total de 9.577,65€, (conforme discriminação no documento de fls 35 e 35v.º, que se dá como reproduzido);

83 - Em 20 de Março de 2019 a autora elaborou o auto de medição nº 2 de trabalhos a mais no valor total de 9.998,00€, (conforme discriminação no documento de fls. 36 v.º e 37 que se dá como reproduzido);

84 - Referentes aos autos de medição 1 a 9, o Réu detém ainda em seu poder os valores deduzidos, para garantia de cumprimento do contrato que somam 8.441,20€;

85 - A restituição dos valores retidos a título de garantia opera, nos termos da cláusula 7ª do contrato;

86 - As alterações efectuadas no plano de empreitada foram determinadas ou por ordem directa ou indirecta do Réu, através do arquitecto AA ou por força das circunstâncias da obra;

87 - Nos termos da cláusula 7ª, foi deduzido em cada pagamento efectuado 5% do respectivo valor, num total de 8.762,45€ (que incluem os autos de medição 10 e 11), que ficariam retidos como garantia do cumprimento do contrato e que o Réu teria de restituir à Autora em cinco prestações, uma vencida na data da recepção provisória da obra e as restantes proporcionalmente na mesma data dos anos subsequentes;

88 - Encontra-se por pagar, a primeira prestação, no valor de 1.752,49€.

89 - As prestações futuras, cada uma no valor de 1.752,49€, têm data de vencimento em 16 de Fevereiro de 2020, 2021, 2022 e 2023.

90 - O gerente da Autora foi submetido a um procedimento cirúrgico ao coração no início de Outubro de 2018 e após receber alta, esteve de baixa médica com “incapacidade temporária para o trabalho” durante cerca de quarenta dias;

91 - A A. escolheu como encarregado CC, técnico qualificado (conforme certificado junto a fls. 63);

92 - O representante do Réu na obra, era o Arquitecto AA, que não se encontrava na obra a tempo inteiro, pois tinha um gabinete de arquitectura, fora do local da obra e era professor;

93 - Para além do Senhor CC, havia outro trabalhador em obra, o Senhor DD, que também exerce funções de encarregado em várias das suas obras e esteve presente praticamente a tempo inteiro na obra do Réu, desempenhando as funções de encarregado sempre que o Sr. CC tinha de se ausentar.

94 - Os trabalhos de demolição decorreram até ao final de Março e o inicio da betonagem das fundações ocorreu no dia 03 de Abril de 2018;

95 - Após reunião de obra em 17 de Abril 2018 BB apresentou cronograma dos trabalhos até conclusão da obra;

96 - De acordo com esse cronograma a obra estaria concluída no final de Setembro de 2018;

97 - Entre 11 a 20 de Setembro o R. esteve ... hospedado num estúdio (airbnb) tendo pago € 593,37;

98 - Entre 15 de Outubro e 14 de Novembro de 2018 o R. esteve em ... hospedado num estúdio (airbnb) tendo efectuado a reserva em 14 de Agosto e pago € 1452,40;

99 - Entre 15 de Novembro de 2018 e 28 de Novembro de 2018 o R. esteve em ... hospedado num estúdio (airbnb) tendo pago € 630,00;

100 - O R. enviou à A. carta datada de 27.12.2018 de onde consta « Chegados a esta data e passados 2 meses após o prazo previsto e contratado de finalização da obra lamento constatar que a obra não decorreu conforme o plano de trabalhos contratual, por motivos imputáveis à SADOBAT. (…) Toda esta situação gerou e está a gerar custos directos e indirectos, que permitiriam acionar as clausulas do contrato previstas para situações de incumprimento. Contudo e porque queremos dar mais uma oportunidade ao Sr. BB e na nossa boa fé e espirito de colaboração, vamos efectuar o pagamento da factura de Novembro/18 (…) valor este que deverá ser utilizado para pagar ao carpinteiro, que já executou o trabalho e nos manifestou a sua preocupação legítima por ainda não ter recebido o pagamento. Aguardamos assim que da v/ parte também exista o mesmo espirito de colaboração que permita finalizar todos os trabalhos e entregar as telas finais com a maior brevidade, permitindo-me assim habitar a casa.»;

101 - A obra foi entregue em Fevereiro de 2019;

102 - Do livro de obra consta registada a data de 01.02.2019 com observação de «Nesta data a obra encontra-se concluída de acordo com o projecto aprovado e telas finais.»;

103 - O escoramento da parede centenária foi idealizado em obra, pela A. e pela empresa de demolição;

104 - Não foram executadas as alvenarias duplas com isolamento térmico nos dois pisos;

105 - não foram executadas as vergas dos vãos e não foram assentes as pedras de soleira nas 3 varandas a norte do piso 1;

106 - a conclusão da obra determina a sua entrega limpa;

107 - Foi determinado pelo R. que nas escadas metálicas já colocadas na obra fossem colocadas peças de madeira nos degraus até à colocação dos degraus de vidro, para acesso ao piso superior;

108 - O R. enviou à A. carta datada de 03.04.2019 com indicação de aplicação de multa no valore de €35.000,00.

109. Os trabalhos referidos nos pontos 66, 67, 68, 69, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 79, 80 e 81 dos factos provados traduziram-se num custo não concretamente apurado (aditado pela Relação).


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Não resultou provado, com relevo para a apreciação do mérito, que:

- chuvas copiosas entre Fevereiro e Abril de 2018 impossibilitaram a execução de qualquer trabalho durante um período de cerca de 6 semanas;

- chuvas torrenciais ocorridas na fase das demolições impossibilitaram o acesso a vazadouro para despejo dos materiais sobrantes, pelo que a Autora alugou temporariamente um espaço, onde depositou os materiais, e implicou para o empreiteiro uma despesa de 660,00€, correspondente ao aluguer;

- a manutenção da parede exterior correspondente ao alçado tardoz, teve influência directa no traçado dos esgotos da cozinha e casa de banho ambas localizadas no piso 2, impossibilitando que as prumadas dos mesmos se desenvolvessem contidas em couretes, obrigando a que o canalizador tivesse de procurar circuitos alternativos, com a aplicação de mais materiais e mais mão-de-obra de pedreiro para abrir e tapar roços, que em circunstâncias normais seriam desnecessários;

-pela mesma razão (manutenção das paredes adjacentes antigas) uma das caixas de visita ao nível do piso 0, cuja marcação havia sido feita pelo arquitecto no período que sucedeu à fase de escavação, e que havia sido construída de acordo com a referida implantação, teve de ser demolida porque o acesso das prumadas de descarga á referida caixa de visita colidia com a localização dessa parede, pelo que foi construída uma nova caixa de visita em substituição da referida atrás, localizada de modo a permitir a recepção das tubagens de esgoto provenientes das prumadas;

- o esquema de execução a ventilação das instalações sanitárias interiores ao nível do piso 1 e instalação sanitária e casas das máquinas, interiores, ao nível do piso 0, teve de ser estudado e implementado em obra pela Autora, implicando a construção de couretes horizontais em gesso cartonado para ocultar as tubagens de ventilação;

-aquando da construção da parede divisória entre a garagem e o hall de entrada, o arquitecto verificou que quando o portão colocado na garagem fosse colocado e se encontrasse na posição de abertura máxima (paralelo ao tecto) iria colidir com a referida parede, pelo que o arquitecto deu instruções para que a parede, na zona em questão, fosse erigida até determinada altura e construída uma lage aligeirada, criando-se assim uma caixa que permitira a abertura máxima do portão sem que este colidisse com a parede (este trabalho não estava previsto no contrato).

- a porta (a aplicar no vão da lavandaria) não se encontrava pronta e o custo de acerto de alvenaria necessária pela alteração do projecto é inferior ao custo que iria ser incorrido pela carpintaria;

- O cilindro termoacumulador estava em obra em 14 de Outubro de 2018; -os valores envolvidos pela colocação do rodapé na garagem foram

considerados pela A. dentro do preço global e por isso não solicitados;

- a demolição de parte do fundo de betão armado do poço do elevador, pela simplicidade, é um trabalho que se inclui no restante da empreitada;

- os 13 pontos de luz foram colocados, por erro da A., em locais distintos dos previstos, por isso é que a A. teve de mudar a localização;

- foi colocada, pela A., uma tomada na ilha da cozinha, sem que tal fosse solicitado pelo Dono de Obra, o que motivou o pedido de eliminação;

- a pintura da pala e parede do terraço, a mesma deveu-se a erros de execução que implicaram intervenção.

- o escoramento da parede centenária foi idealizado em obra, pela fiscalização e sem custos;

- a decisão de manter a fachada Norte nos pisos 1 e 2, originou menor valias ao nível da estrutura, porque as áreas a betonar nas fundações e no teto do piso 0, foram inferiores

-(…) e porque não foram executados os 4 pilares previstos nos extremos dos dois pisos da fachada;

- nenhuma das alterações propostas pelo R. implicou atrasos;

-a demora na escolha do cilindro para aquecimento das águas sanitárias por parte do aquitecto deu origem a um atraso de 3 semanas.

- a A. sempre foi dizendo ao R. que as alterações estavam dentro dos valores e descritivos orçamentais

- nos dias 23 e 27 de fevereiro, 7 a 10, 12 , 13 , 16 , 17 , 19 a 21, 23, 26 a 28 de março e ainda nos dias 2, 4 a 6, 10 a 14 de abril , excluindo os domingos e dia de descanso semanal, a A. não teve ninguém em obra a trabalhar;

- na reunião de 3 de Agosto o BB afirmou que em 15 de Outubro a obra estaria concluída e apresentou outro cronograma;

- só após esta reunião passou a estar presente em obra como encarregado o Sr. CC;

- quem na prática assegurou as funções de Encarregado de Obra foi o arquitecto AA;

-foi o arquitecto quem teve de contactar fornecedores de materiais para acelerar os processos de encomendas e evitar maiores atrasos,

- (…) e quem teve de fazer a gestão diária da obra, dado não haver ninguém da A. na mesma;

- o legal representante da A. não acompanhou a obra, nem designou pessoa com capacidade para tal;

- com o passar do tempo e o atraso visivel nos trabalhos, o R. começou a enviar várias interpelações escritas ao A. para reunir e para concretizar a data de fim dos trabalhos;

-a A. não respondeu a esses mails;

-De Outubro/ 18 a fevereiro/19, o R. deslocou-se por duas vezes a Portugal para ver a obra e nesses períodos teve de arrendar um apartamento.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO


Apreciemos as questões suscitadas na revista.


§ Nulidade do acórdão, por contradição entre os factos e a decisão


Não há nulidade alguma.

Aliás, se é certo que no ponto 67º das alegações se fala em nulidade do acórdão, certo é, também, que tal invocação é feita a propósito da matéria do recurso subordinado respeitante à decisão que incidiu sobre a reconvenção. E tendo sobre esta decisão incidido revista excepcional, que a Formação não admitiu, a eventual arguição de nulidade do ac. nessa parte sempre estava arredada desta revista (normal).

Por outro lado, não vemos que nas conclusões de recurso, o recorrente tenha arguido a nulidade do acórdão nos termos do artigo 615.º do CPC, pois não faz qualquer enquadramento jurídico da nulidade que diz existir.


Mas sempre se acrescente que nunca teria estaríamos a pretensa contradição entre a fundamentação de facto e a decisão – nulidade ínsita na alínea c), 1ª parte, do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil.

Nesta nulidade está-se perante um vício lógico da sentença/decisão que a compromete; «se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença»[2]. Não se trata de um simples erro material (em que o juiz, por lapso, escreveu coisa diversa da que pretendia escrever - contradição ou oposição meramente aparente), mas de um erro lógico-discursivo, em que os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, direção diferente (contradição ou oposição real)[3]. O que não é, também, confundível com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção dos factos concretos à correspondente previsão normativa abstrata, nem, tão pouco, a uma errada interpretação desta, vícios estes só sindicáveis em sede de recurso jurisdicional[4]. Na verdade, quando, embora indevidamente, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, está-se perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, verifica-se a apontada nulidade8.

Com efeito, a nulidade da decisão, aqui (embora de forma algo “encapotada) invocada, (alínea c), 1ª parte, do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil) remete-nos, portanto, para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica.

Ora, a decisão recorrida está em sintonia com a fundamentação nela vertida.

O que faz o Recorrente, nas suas alegações, é, afinal, discordar da decisão havida, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável. Mas já não quanto à estrutura lógica da sentença.

Como tal, estamos perante invocação de erro de julgamento e não em face da apontada nulidade. O raciocínio lógico seguido na fundamentação do acórdão está em sintonia com a decisão a final nele proferida.


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§ Se à Autora são devidos os valores em que o Réu/Recorrente foi condenado sob a al. b) do dispositivo do acórdão recorrido (ou seja, condenação nos valores ali aludidos a título de “trabalhos a mais …”).


Como supra observámos, o Recorrente não impugnou a decisão da matéria de facto – limitou-se a dizer que o acórdão recorrido não analisou corretamente a prova (ponto 11º), por aqui se quedando (nada, mesmo nada, aliás, dizendo a propósito nas conclusões recursivas).

Como tal, é com a factualidade que as instâncias fixaram que teremos de laborar.


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Peticionou a Autora, nesta acção, a condenação do R. no pagamento da quantia de € 25.905,77 respeitante a facturas em dívida e, ainda, os valores retidos como garantia no valor de € 8.762,47 dos quais está vencida a primeira prestação anual de € 1752,49 e as quatro restantes, cada uma no valor de € 1.752,49, com vencimento em 16 de Fevereiro dos anos de 2020 a 2023 e ainda juros vencidos a partir de 20.03.2019.

Para tal, alegou que celebrou com o R. um contrato de empreitada que teve por objecto trabalhos de recuperação e reabilitação de um prédio urbano sito em ..., tendo executado, a pedido do R., trabalhos a mais ou novos trabalhos sem ordem escrita do R. mas com autorização expressa ou tácita dada pelo R. e que este não pagou, apesar de lhe terem sido apresentados os respectivos autos de medição. Tendo alegado, ainda, que o R., referente aos autos de medição n.º 1 a 9, detém em seu poder os valores deduzidos para garantia de cumprimento do contrato que somam o montante de €8.441,20.


O que se impõe saber é, então, se os trabalhos a mais pedidos/ordenados pelo Réu (por si ou por intermédio do seu representante - Arquitecto), de forma verbal, bem como o diferencial do valor dos materiais orçamentados e escolhidos pelo dono da obra, devem ser pagos à empreiteira, uma vez que o respectivo valor não foi previamente aprovado por escrito pelo dono da obra antes de serem executados, como determina o contrato de empreitada.


A sentença decidiu que a Autora não cumpriu o acordado na cláusula 9.ª, n.º 3, do contrato de empreitada que determina do seguinte modo: «3. Verificando-se a necessidade ou conveniência por proposta do Dono da Obra, na realização de trabalhos a mais que não constem da lista de preços unitários, serão propostos novos preços pelo Empreiteiro, que estarão sujeitos a aprovação escrita do Dono da Obra antes de serem executados.».

Como tal, concluiu a sentença que tendo ficado provado que as alterações do plano original da obra, pedidas pelo dono da obra ou pelo seu Arquitecto, ou até por conveniência na execução (como aconteceu com a instalação do elevador), não foram aprovadas por escrito pelo dono da obra antes de serem executadas, não devem ser pagas ao empreiteiro. Ou seja, ficou-se, sem mais, com a aplicação da letra da referida clª 9ª do contrato de empreitada: não havendo aprovação escrita do dono da obra para as alterações, não há lugar ao seu pagamento ao empreiteiro – também afastando-se na sentença a aplicação do artigo 473.º do Código Civil, dada a subsidiariedade do enriquecimento sem causa, e por estar em causa uma relação contratual – um contrato de empreitada – , livremente celebrado pelas partes, sem que se tenha demonstrado que a negociação do contrato não tenha seguido os ditames da boa-fé (artigos 405.º, 406.º e 227.º do Código Civil).


*


Já a Relação, reconhecendo, embora, que os trabalhos a mais levados a cabo pelo empreiteiro não foram aprovadas por escrito, como exigia a cláusula 9ª do contrato, considerou, no entanto, que, atenta a factualidade provada, teve lugar, quanto a tais trabalhos e suporte do respectivo custo pelo dono da obra, uma aceitação tácita dos mesmos por banda deste.


Escreveu-se no acórdão recorrido, a justificar a aludida aceitação tácita dos trabalhos a mais por banda do dono da obra:

«Os factos provados evidenciam presuntivamente que o dono da obra quis e aceitou as alterações necessárias, bem como as que ordenou direta ou indiretamente, incluindo o custo das mesmas, pois ao longo da execução das alterações nunca questionou o preço das mesmas, o impacto que as mesmas tinham no preço final da empreitada, nem nunca suscitou perante o empreiteiro a necessidade de aprovar por escrito o preço das mesmas previamente à sua execução.

Sendo que sempre esteve a par do andamento dos trabalhos por os ter acompanhado diretamente ou através do seu representante na obra (cfr. ponto 24 dos factos provados).

As alterações assim introduzidas na obra - os trabalhos a mais e os trabalhos a menos - foram ou necessárias à boa execução da mesma ou pedidas pelo dono da obra, com aceitação tácita dos respetivo custo, e executadas pelo empreiteiro sem as sujeitar a prévia  aprovação por escrito do dono da obra quanto ao aumento do preço da empreitada, pelo que o comportamento das partes ao longo da execução das alterações e da obra em geral, é concludente no sentido de aceitação das alterações e dos respetivos custos, devendo ser interpretado nos termos dos artigos 217.º e 236.º do Código Civil, como vontade negocial de tacitamente revogarem a cláusula 9.ª, n.º 3 e 6 do contrato de empreitada.

Afigura-se-nos que outro não pode ser o sentido que um declaratário normal colocado na posição das partes, retira desse comportamento negocial.».

E, nessa senda, remata:

« E sendo assim, embora estejamos perante uma empreitada por preço global, o que se verifica é que as partes aceitaram tacitamente e por comum acordo alterar o valor do preço global em função das alterações introduzidas na obra.

Donde, em relação às obras necessárias (as referentes à colocação do elevador) a empreiteira tem direito a receber o preço das mesmas, ao abrigo do artigo 1215.º do Código Civil, e quanto às alterações exigidas pelo dono da obra e alteração de custo de materiais aplicados na obra, a empreiteira tem o direito de receber o preço, ao abrigo do artigo 1216.º, n.º 2, do Código Civil, deduzido que seja o valor das obras a menos (n.º 3 deste último preceito).» - os destaques são nossos.


Assim considerando, a Relação revogou parcialmente a sentença, no segmento que absolveu o Réu do pedido, condenando o mesmo Réu a suportar os custos dos trabalhos a mais e ou imprevistos, bem como o diferencial do valor dos materiais orçamentados e implementados na obra – condenação que veio a levar a cabo no dispositivo.

Porém, uma vez que se não apurou o concreto valor de parte das alterações, a mais e a menos, que se deram como provadas, nem sequer por recurso à equidade (artigo 609.º do CPC), determinou-se que a condenação seria a liquidar oportunamente.


É do assim decidido que discorda o Réu/recorrente.

Porém, afigura-se-nos que sem razão.


*


Para além do que se referiu a propósito da aceitação e por comum acordo da alteração do valor do preço global em função das alterações introduzidas na obra, escreveu-se – a nosso ver, com toda a pertinência – no acórdão recorrido:

«Não é controvertido entre as partes que a Autora, na qualidade de empreiteira, e o Réu, na qualidade de dono da obra, celebraram um contrato de empreitada definido no artigo 1207.º do Código Civil como o contrato mediante o qual alguém se compromete a realizar certa obra mediante um preço.

O contrato de empreitada celebrado entre particulares rege-se pelas cláusulas acordadas entre as partes no contrato, desde que não violem normas legais de natureza imperativa (cfr. artigos 405.º, n.º 1, 406.º, n.º 1 e 294.º, do Código Civil), depois pelas disposições legais que especificamente regulam o tipo legal do contrato de empreitada (artigos 1207.º a 1226.º, do Código Civil) e, por último, pelas normas gerais relativas aos contratos e às obrigações com ele compatíveis.

Na situação em apreço, o preço da empreitada foi fixado, por comum acordo das partes, na modalidade de preço global, a corpo, per aversionem ou à forfait (cfr. cláusula 2.ª do contrato de empreitada) e tem carácter vinculativo para as partes[5].

«O preço é fixado no momento da celebração do contrato, globalmente para toda a obra.

Trata-se de uma modalidade que oferece garantias para o dono da obra, uma vez que o preço fixado de antemão, envolvendo, no entanto, alguns riscos para o empreiteiro, especialmente em caso de alteração do preço dos materiais ou da necessidade de realização de despesas não previstas.»[6].

De acordo com o artigo 1214.º, n.º 3, do Código Civil, «Se tiver sido fixado para a obra um preço global e a autorização não tiver sido dada por escrito com fixação do aumento do preço, o empreiteiro pode exigir do dono da obra uma indemnização correspondente ao enriquecimento deste.»


Se as alterações ao plano convencionado se apresentarem como necessárias, em consequência de direitos de terceiro ou de regras técnicas, rege o disposto no artigo 1215.º do  Código Civil, ou seja, a fixação do preço e prazo de execução depende do acordo das partes ou, em caso de desacordo, da fixação do tribunal, decorrendo do preceito que o empreiteiro, para além de poder denunciar o contrato se as alterações determinarem em mais de vinte por cento o preço inicial, pode exigir uma indemnização equitativa.


Também as alterações podem decorrer de exigências do dono da obra. Nesse caso, estipula o artigo 1216.º do Código Civil as condições em que o dono da obra as pode exigir (o valor não pode exceder a quinta parte do preço estipulado e não haja modificação da natureza da obra) conferindo ao empreiteiro o direito a «um aumento do preço estipulado, correspondente ao acréscimo de despesa e trabalho, e a um prolongamento do prazo para a execução da obra» (n.º 2).

Prevendo o n.º 3 do citado artigo 1216.º do Código Civil as situações em que as alterações introduzem diminuição do custo dos trabalhos, concedendo ao empreiteiro o «direito ao preço estipulado, com dedução do que, em consequência das alterações, poupar em despesas ou adquirir por outras aplicações da sua atividade.».

Todo este regime tem como pressuposto o princípio da invariabilidade do conteúdos dos contratos, em geral, e em particular, o princípio segundo o qual o empreiteiro executa a obra no  âmbito do seu múnus, cumprindo o acordado, assumindo a gestão e o risco próprio do negócio.


Porém, se ocorrerem alterações ao contrato nas condições previstas na lei, também salvaguarda o equilíbrio económico do contrato de empreitada, de natureza onerosa e sinalagmática, prevendo a devida compensação pelo aumento do preço sejam as alterações introduzidas pelo empreiteiro e consentidas pelo dono da obra, sejam exigidas pelo dono da obra, sejam necessárias à execução do contrato de empreitada sem vícios.

Sendo que o referido regime legal tem de ser conjugado com o especificamente clausulado no contrato de empreitada devidamente interpretado à luz das regras dos artigos 236.º e 239.º do Código Civil, que consagra, como é sabido, a teoria da impressão do destinatário, segundo a qual a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário medianamente sagaz, diligente e previdente a interpretaria, não valendo com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência com o texto escrito dada a natureza formal do contrato reduzido a escrito.


É inegável que os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda), pontualmente e de boa fé, quer na celebração, quer na sua execução (artigos 405.º, 406.º, 227.º e 762.º, n.º 2, do Código Civil).

Também é inquestionável que a cláusula 9.ª, n.º 2, do contrato de empreitada exige que o dono da obra previamente à execução, aceite por escrito as alterações (e leia-se, o respetivo custo) ainda que a iniciativa da introdução das mesmas provenha da sua vontade.


E também prevê no número 6 da cláusula 9.ª o seguinte: «9. Em circunstância alguma poderá o Empreiteiro reclamar o pagamento de trabalhos a mais que não hajam sido determinados, por escrito e de forma expressa, por representante legal do Dono da Obra.»


Todavia, o que ficou escrito no contrato não foi o que sucedeu na realidade quanto aos pedidos de alteração de trabalhos a mais, quer por parte do dono da obra e/ou do seu representante, quer por parte do empreiteiro quanto ao cumprimento do solicitado.

Do empreiteiro, porque executou os trabalhos a mais apenas por tal lhe ter sido pedido verbalmente pelo dono da obra ou pelo representante do mesmo, não submetendo a escrito a validação do solicitado e o respetivo custo, tendo, ainda, do mesmo modo, incorporado na obra materiais escolhidos pelo dono da obra de valor superior ao orçamentado; do dono da obra porque constatou, por si ou através do seu representante, a execução dos trabalhos a mais e nunca reclamou ou se insurgiu por não ter aprovado por escrito a realização dos trabalhos a mais e respetivo custo, bem como o custo do diferencial dos materiais por si escolhidos.

Decorre dos factos provados (cfr. v.g., pontos 42 e 100 dos factos provados) que a preocupação do dono da obra era o atraso no cumprimento dos prazos e nunca colocou em causa a execução dos trabalhos a mais e o seu custo, nem a alteração do valor dos materiais aplicados, durante a execução da obra.

Sendo que o dono da obra foi pedindo e exigindo ao longo da execução da obra várias e substanciais alterações em relação ao orçamento original, por si ou por intermédio do seu Arquiteto e representante na obra, as quais sempre foram previamente comunicadas e discutidas com a Autora, como se encontra bem retratado nos pontos 47, 49, 53 a 55, 56 a 58, 62 a 81, 86 e 107 dos factos provados.

Outras alterações foram introduzidas na obra por serem tecnicamente necessárias, não se encontrando o projeto em conformidade, como sucedeu com a instalação do elevador (cfr. pontos 59 a 61 dos factos provados).

Refere o Réu na contestação que entendia que os trabalhos a mais eram compensados com os trabalhos a menos, o que evidencia que a aprovação por escrito dos trabalhos não era para ele uma questão essencial. Só o foi quando verificou que o valor dos trabalhos a mais era significativo e que não era de todo compensado com o dos trabalhos a menos. Aí, socorreu-se das cláusulas contratuais para justificar o não pagamento.

Mas na verdade, tendo apenas ficado provado que os trabalhos a menos são uma parte ínfima do originalmente previsto (cfr. pontos 52, 104 e 105 dos factos provados), comparado com os trabalhos a mais, não se compreende a razoabilidade de tal convicção.

Ora, as partes não podem socorrer-se do contratualizado apenas e quando tal lhe é conveniente. O princípio da boa-fé contraria esse tipo de comportamento negocial, pois a boa-fé exige lisura e coerência das partes ao longo do cumprimento do programa contratual (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil).» - os destaques são nossos.


*


Não almejamos censura a fazer à decisão recorrida.

    • DO ABUSO DO DIREITO


O princípio da boa fé em aqui (no caso sub judice) particular incidência, na ponderação dos factos assentes, que denotam, à saciedade, que o Réu/Recorrente, quer por si, quer através do seu representante (o arquitecto), sempre esteve ao corrente de todas as alterações, maxime quanto aos trabalhos a mais que iam sendo levados a cabo na obra, nunca os tendo recusado ou questionado, razão pela qual se não vislumbra razão aceitável para se vir escudar na falta de escrito para recusar o pagamento dos mesmos trabalhos.

Pode bem dizer-se que a conduta do Réu, ao vir invocar a ausência de forma escrita para não pagar os trabalhos que aceitou (por si ou pelo seu representante na obra) fossem feitos, consubstancia mesmo um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

Com efeito, como ressalta da matéria factual assente – e não obstante a exigência de escrito ínsita no aludido ponto 3º da clª 9ª – os trabalhos a mais só foram executados na obra porque o dono da mesma, ou o seu representante, os solicitou ao empreiteiro, tendo até sido o dono a obra quem escolheu materiais para a mesma de valor superior ao que constava do orçamento.

Como pode aceitar-se que, tendo o próprio dono da obra, por si ou pelo seu representante na obra (o seu Arquitecto), solicitado alterações substanciais à obra inicial acordada e orçamentada – obras essas que antes de realizadas eram comunicadas e discutidas com a Autora/Empreiteira – , tendo constatado a execução das mesmas alterações sem nunca ter reclamado ou se insurgido da realização das mesmas, ou do respectivo pagamento, designadamente por não terem sido por si aprovadas por escrito, só depois de se ver servido e concluída a obra, venha dizer que, afinal, não as tem de pagar só porque… foram levadas a cabo sem constarem de escrito  assinado por si, dono da obra?

Nunca durante a execução dos trabalhos referentes às alterações na empreitada foi questionada a sua execução e/ou o respectivo custo, não tendo, sequer, havido qualquer manifestação de discórdia do dono a obra ou seu representante quanto à alteração do valor dos materiais que iam sendo aplicados.

Parece claro, assim, que a preocupação com os trabalhos a mais e seu custo só surgiu quando foi ao Réu apresentada a conta dos mesmos, para liquidação. O que até aí era irrelevante – completamente ignorado – para o dono da obra, passou a ser crucial no processo contratual: então deixou de importar o que foi acordado verbalmente, pois, apenas e só, o que agora interessa é arranjar forma de não pagar. E nada melhor do que se socorrer da ausência do escrito para tal. Aqui, então, o que ficou plasmado no contrato já é o que importa considerar, pois é o que lhe dá jeito.

Isto é, salvo melhor opinião, uma actuação abusiva do direito, na referida modalidade do venire contra factum proprium.  A Autora, empreiteira, seguramente que não levaria a cabo as alterações à empreitada inicialmente acordada se não tivesse confiado na palavra da dona da obra ou do seu representante na mesma. Foi com sustento nessa relação de confiança, assente na boa fé, que as alterações (obras a mais) foram concretizadas.

E não venha o Recorrente procurar compensar os trabalhos a mais com os trabalhos a menos, pois, como dito, ficado provado que os trabalhos a menos são uma parte ínfima do originalmente previsto (cfr. pontos 52, 104 e 105 dos factos provados), comparado com os trabalhos a mais.


Dispõe o art.º 334.º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso de direito é uma excepção de conhecimento oficioso[7].


Os comportamentos típicos abusivos são: venire contra factum proprium; inalegabilidade; suppressio; tu quoque; desequilíbrio.

E segundo MENEZES CORDEIRO[8], a figura do venire contra factum proprium, estruturalmente, postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo. Só que a primeira – o factum proprium – é contraditada pela segunda – o venire.


O óbice que justificaria a intervenção do sistema residiria na relação de oposição que, entre ambas, se possa verificar.

Para as doutrinas da confiança (Canaris), o venire seria proibido quando viesse defrontar inadmissivelmente uma situação de confiança legítima gerada pelo factum proprium.

Para as negociais (Wieling), o agente ficaria vinculado, em termos negociais, pelo factum proprium em causa; ao perpetrar o venire, estaria a violar a vinculação daí derivada. Apesar de significativas, as teorias negociais têm dificuldades práticas: afinal, o regime do venire não é o do negócio.

Além disso, a ser possível, in concreto, descobrir um verdadeiro negócio, dispensada ficaria toda uma complexa construção em torno da boa fé e do abuso do direito.

Prevalecem hoje as doutrinas da confiança, as quais têm obtido o apoio da literatura portuguesa interessada.

Na verdade, o princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto.

Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas.

Várias razões depõem nesse sentido. Em termos antropológicos e sociológicos, podemos dizer que, desde a sedentarização, a espécie humana organiza-se na base de relacionamentos estáveis, a respeitar. No campo ético, cada um deve ser coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante.

Juridicamente, a tutela da confiança acaba por desaguar no grande oceano do princípio da igualdade e da necessidade de harmonia, daí resultante: tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida da diferença.

Ora, a pessoa que confie, legitimamente, num certo estado de coisas não pode ser tratada como se não tivesse confiado: seria tratar o diferente de modo igual.

 A tutela da confiança, embora convincente, só pode operar, na falta de preceitos jurídicos, quando se mostrem reunidos especiais pressupostos. De outro modo, poderíamos transformar a sociedade num colete-de-forças, que prejudicasse as iniciativas individuais necessárias para dar corpo à liberdade e para possibilitar a inovação e o progresso.

Na base da doutrina e com significativa consagração jurisprudencial, a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim:

1.ª uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

2.ª uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocar uma crença plausível;

3.ª um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

4.ª a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu.

Estas quatro proposições devem ser entendidas dentro da lógica de um sistema móvel.

Ou seja: não há, entre elas, uma hierarquia e o modelo funciona mesmo na falta de alguma (ou algumas) delas: desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que permita, valorativamente, compensar a falha.

Regressando aos factos, diremos que, perante os factos provados carreados aos autos, nos parece claro que a Ré, se bem que podia invocar o clausulado na cláusula 9ª do contrato de empreitada para fugir ao pagamento do custo das alterações levadas a cabo na obra, na medida em que não foram aprovadas por escrito pelo dono da mesma, na verdade, perante toda a referida postura que teve relativamente a essas alterações (por si ou pelo seu representante na obra), ao refugiar-se nessa necessidade de escrito está a exercer um direito de forma ilegítima por estar a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé [9], pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (direito este que visa, in casu, estabelecer o sinalagma contratual, de forma a que os trabalhos que tenham sido realizados devam ser devidamente pagos ao respectivo credor/empreiteiro). Abuso de direito esse que abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiro e a criar uma desproporção entre a utilidade do exercício do direito e as consequências decorrentes desse exercício.

Trata-se de um “comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica — por não contrariar a estrutura formal — definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde — e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto — materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício” [10].

Ou seja, por via deste instituto tutela-se uma situação em que a aplicação de um preceito legal numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.

Meditando acerca dos fundamentos da consagração de tal válvula de segurança, Baptista Machado [11] considerava que o Direito não pode deixar de tutelar certas expectativas que espontaneamente emergem dos contratos ou das relações interpessoais e, por isso, fixa os limites da responsabilidade na interacção social, reconhecendo e criando normas que consolidem de forma particular as expectativas criadas.

Neste caso, o Direito dá cobertura a auto‑vinculações resultantes da comunicação entre as pessoas ou tutela a aparência jurídica na medida do necessário para a segurança do tráfego jurídico.

Por outras palavras, acentuava aquele Autor que um dos princípios fundamentais do sistema jurídico é o princípio da confiança que procura proteger aquele que, de boa fé, justificadamente, desenvolve certa actividade ou omite determinado acto, por acreditar que se manterá a conduta da contraparte que esteve na base da sua própria actuação [12].

E discorrendo acerca da vertente da boa fé, aquele Autor entendia que do ponto de vista estrito do Direito a tutela da confiança só tem razão de ser quando a conduta for contrária à fides causar ou for susceptível de causar danos a outrem, factor indispensável ao surgimento de responsabilidade.


*


Vem a doutrina referindo como paradigmático do venire contra factum proprium, precisamente, o caso em que uma das partes num contrato nulo fez a sua prestação, a qual foi recebida e aproveitada pela contraparte e esta, mais tarde, ciente de que não é possível restituir a prestação recebida nem o seu valor, ou não existe fundamento para invocar o enriquecimento, invoca a nulidade do negócio jurídico apenas para colher um benefício, tirar um desforço ou libertar‑se de um vínculo que entretanto se lhe tornou indesejável.

O mesmo se podendo aplicar, mutatis mutandis, ao caso – como o presente – em que se clausulou a forma escrita para a validade do acto (alterações à obra empreitada).

A solução, nesse caso, pode consistir na obrigação de indemnizar por culpa in contraendo mas em alguns casos tal resulta insatisfatório havendo necessidade de tolher o exercício do direito de invocar a nulidade por parte do contraente que dele abuse, conquanto não seja prejudicada a finalidade proteccionista visada pela norma para a validade do negócio.

Embora seja necessário ter presente que a opção pela paralisação do exercício do direito quando esteja em causa a nulidade por vício de forma pode suscitar algumas reservas, o certo é que há situações que justificam esse efeito por razões de interesse e ordem pública.  Vaz Serra [13] defendia que se a nulidade por falta de forma foi consagrada por motivos de interesse e ordem pública também a ilegitimidade do exercício do direito de a invocar se funda nesses mesmos interesses, não lhe parecendo que a primeira deva ter prioridade sobre a segunda.

Aplicando, como dito mutatis mutandis, esta doutrina ao caso sub judice, é claro que quaisquer que sejam os motivos que levaram a estipular a necessidade do escrito para as alterações à obra contratada, a ilegitimidade do exercício do direito da Recorrente em invocar esse “vício” para evitar o pagamento de tais alterações à obra funda-se em interesses que não podemos colocar num patamar inferior àqueles motivos.


Assim, portanto, ao vir invocar, posteriormente, a falta de formalismo contratualmente previsto, tendo em vista furtar-se ao pagamento dos trabalhos que solicitou, incorre o Réu em abuso de direito.

Isso mesmo foi decidido no Ac. da Relação de Lisboa, de 27/05/2010 (Proc. 89/2002.L1.6):

«1. A previsão constante dos vários números do artº 1214º do CC, pressupõe que as alterações são da iniciativa do empreiteiro, e não do dono da obra;

2. Tendo convencionado as partes que o pagamento de obras a mais será de admitir se pedidas pelo dono da obra e objecto de acordo escrito, verifica-se abuso de direito, se o dono da obra pediu alterações, sem as sujeitar à forma escrita, criando a convicção no empreiteiro, de que por as ter pedido, não iria invocar a falta de forma, para se subtrair ao seu pagamento” (destaque nosso)..


Não pode olvidar-se que o próprio réu assumiu que pediu trabalhos a mais (cfr. ponto 38º das suas alegações), pese embora pretenda fazer passar a existência de uma correlação entre esses trabalhos e outros a que chama amenos, mas que não logrou provar, em sede própria, que existissem – os quais, de resto, nem concretiza.

Assim, portanto, cremos que, por esta via do abuso do direito, sempre seria negada a pretensão da Recorrente em recusar o pagamento dos trabalhos levados a cabo na obra pelo empreiteiro.

Sendo, como dito, jurisprudência pacífica que o abuso do direito é de conhecimento oficioso.


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Continuando.

§ DO PREÇO DA EMPREITADA – PREÇO GLOBAL

Defende-se, também, a Recorrente com o facto de a obra ter sido contratada em regime de preço global.

Como refere PEDRO ROMANO MAMRTINEZ, o preço da empreitada é normalmente fixado até ao momento da celebração do negócio jurídico, sendo uso já constar do orçamento aprovado aquando do ajuste do contrato[14]. O preço, escreve este Autor, “pode ter sido determinado de um modo global, normalmente designado por preço a forfait, a corpo ou per aversionem (….). Esta forma de determinação do preço apresenta-se, em princípio, como mais vantajosa para o dono da obra, porque fica, de antemão, conhecedor do montante que lhe será exigido; em contrapartida, o empreiteiro corre mais riscos, porquanto terá de suportar eventuais maiores despesas se a sua previsão, quando à realização de toda a obra, não estava correcta. Diferentemente, as partes podem estabelecer que o preço da obra seja determinado por cada artigo, por unidade a executar. (…) Da mesma forma, se as partes estabelecerem um preço por medida, o preço total da obra vai depender da dimensão que esta tiver depois de concluída. (…) Nestes dois casos, a remuneração do empreiteiro resulta da aplicação dos preços unitários, previstos no contrato para cada espécie de trabalho a realizar, às quantidades desses trabalhos efectivamente executados.” (…) “Todavia, se a partes não estabeleceram uma forma de fixação do preço ou se o orçamento tinha uma finalidade de mera orientação, terá de se estabelecer um critério para assentar no valor dessa prestação do dono da obra: de facto, como se depreende do disposto no art.º 1221.º CC, a perfeição do contrato de empreitada não depende da fixação, por acordo, do preço. O preço, apesar de ser um elemento integrador da noção de empreitada, pode ser determinado em momento posterior ao ajuste.”.

E continua: de acordo com o art. 7.º, do DL 405/93, de 10 de Dezembro: "Entende-se por preço global a empreitada cujo montante da remuneração correspondente à realização de todos os trabalhos necessários para a execução da obra ou parte da obra objecto do contrato é previamente fixado". "A empreitada é por preço global (ou, como também se diz, por preço único e fixo, a corpo, a forfait ou per avisionem), quando o seu preço é previamente determinado para todos os trabalhos a executar; o preço é único, está logo fixado no momento da celebração do contrato, pelo que, para a sua fixação, não existem operações ulteriores, designadamente de cálculo ou medição (cfr. o artigo 9.º) Arts. 7 e 8 do DL 405/93.. Trata-se, como se vê, de uma modalidade de empreitada claramente favorável ao dono da obra que, assim, fica a coberto das vicissitudes por que os custos dos elementos de produção eventualmente passem, de erros de cálculo que empreiteiro porventura tenha cometido sobre as reais dimensões da obra ou das dificuldades da sua execução. Porém, tudo isto só em princípio, já que, na realidade, o processo não pode desenvolver-se com uma rigidez total, sob pena de, injustamente, se adulterar o equilíbrio económico do contrato" (...). Por isso só em termos relativos se pode afirmar que, na empreitada por preço global, tal preço está desde logo fixado".

Temos, assim, que uma empreitada ajustada por “preço global” só tendencialmente assume uma feição rígida e fixa quanto a este elemento do contrato de empreitada. Na verdade, como dispõe o Ac. do STA, de 12-04-2007, “[na] empreitada por preço global, o seu custo é, em princípio, determinado no momento da celebração do contrato. Todavia, se existirem trabalhos suprimidos ou acrescentados ao acordado no contrato - por terem sido retirados ou aditados ou por existir erro no projecto num sentido ou noutro - o respectivo valor será deduzido ou acrescentado ao valor do contrato (arts. 7.º, 14.º n.º 1 e 15, do DL 405/93).”.

Assim ocorreu no presente caso: face às alterações acordadas entre as partes contratantes, ao longo da obra, o preço inicial contratado passou, naturalmente, a ser outro, em função do custo dessas mesmas alterações.

Ora, constata-se que o Réu/Recorrente, no fito de sustentar juridicamente o não pagamento do custo de tais alterações, chama à colação (no ponto 8 das suas alegações) o ac. do STJ de 10.09.2019, carreando aos autos o que diz ser o sumário desse aresto.

“Esqueceu-se”, porém, se transcrever todo o sumário. Melhor, esqueceu-se da parte do sumário que lhe não interessava, porque, precisamente, não suportava a sua alegação: o ponto VIII (o último), que reza assim: “

“ VIII – Em regra, u  vez fixado, o preço é invariável, salvo em situações excepcionais (arts. 1214.º, n.º 3, 1215.º, n.º 1, 1216.º, nºs 1 e 2, do Cód. Civil) como aquela das alterações ordenadas ou autorizadas pelo dono da obra. Isto resulta do princípio geral da invariabilidade do conteúdo dos contratos, em geral e, em particular, do princípio segundo o qual o empreiteiro executa a obra “com gestão e risco próprio”.

O que, ocorreu, como vimos, nos presentes autos.


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Sobre as alterações à obra regem os arts. 1214.º a 1217.º do C.C.

Segundo o art. 1216.º/1, “o dono da obra pode exigir que sejam feitas alterações ao plano convencionado, desde que o seu valor não exceda a quinta parte do preço estipulado e não haja modificação da natureza da obra.”

Esta norma, ao admitir uma modificação do contrato mediante manifestação unilateral de vontade de uma das partes, consagra uma excepção ao disposto no art. 406.º/1, a qual se justifica em virtude de o resultado que se pretende obter com a empreitada interessar, quase exclusivamente, ao dono da obra.  Permite-se‑, pois, que este, potestativamente, exija alterações no plano convencionado.

Esse direito não é, todavia, ilimitado.  Como resulta da parte final da norma, o empreiteiro não fica adstrito, por um lado, a executar modificações que excedam no seu valor a quinta parte do preço total convencionado e, por outro, as alterações que impliquem uma modificação da natureza da obra.  O legislador, apesar de ter concedido ao dono da obra o direito de modificar unilateralmente o contrato, não olvidou a situação do empreiteiro, designadamente no que concerne à capacidade deste para realizar uma obra de valor muito superior ao valor inicialmente previsto ou fora da sua área de actividade.  De facto, o empreiteiro pode não ter disponibilidade financeira ou meios técnicos para executar a obra em condições diferentes [15].

Ora, não se exige que as alterações ordenadas pelo dono da obra sejam dadas por escrito, tal como sucede relativamente às modificações da iniciativa do empreiteiro, em empreitadas cujo preço seja determinado de forma global (art. 1214.º/3).  Prevalecem as razões que levaram ao estabelecimento da regra da consensualidade na celebração destes contratos.  Como diz VAZ SERRA, prepondera uma razão de defesa do empreiteiro[16].  Nos termos gerais do ónus da prova em sede de responsabilidade contratual (arts. 342.º e 799.º/1), impende sobre o empreiteiro a prova de que as alterações foram exigidas pelo dono da obra [17].

No caso presente, como visto, as partes clausularam, porém, no contrato de empreitada, a sujeição a escrito das alterações a realizar.

No entanto, tendo (o empreiteiro) provado que as alterações foram exigidas pelo dono da obra, e, outrossim, ponderando na exigência do escrito uma razão de defesa do empreiteiro (como diz VAZ SERRA), seria dificilmente aceitável que este não pudesse exigir do dono da obra o ressarcimento do respectivo custo.


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DA ALTERAÇÃO TÁCITA QUANTO À EXIGÊNCIA DE FORMA ESCRITA PARA AS ALTERAÇÕES


A declaração negocial é composta por dois elementos: a vontade e a declaração, manifestação que são, respectivamente, do elemento subjectivo (ou interno) e do objectivo (ou externo).  Ou seja, para haver uma declaração negocial, que leva à constituição dum contrato, tem que haver um comportamento declarativo, ou seja um comportamento que, visto de fora, apareça como significativo de uma vontade negocial.

Estamos, assim, reconduzidos à análise do art. 236.º do Código Civil.  Constatado que o declarante e declaratário atribuíram à declaração o mesmo sentido, será esse o decisivo.  Esta é a projecção prática do princípio da autonomia privada e da regra falsa demonstratio non nocet: afirmação da ponderosa vontade real.


A interpretação da declaração negocial assenta nos comandos ínsitos nos arts. 236.º a 238.º do CC.

A posição preferível «de jure constituendo», para a generalidade dos negócios, é a doutrina da impressão do destinatário.  É a posição mais razoável.  É a mais justa por ser a que dá tutela plena à legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração.  Acresce — e por isso se justifica a sua aplicação mesmo quando o declarante não teve culpa de exteriorizar um sentido diverso da sua vontade real — ser a posição mais conveniente, por ser largamente mais favorável à facilidade, à rapidez e à segurança da vida jurídico‑negocial.

O Código Civil define o tipo de sentido negocial decisivo para a interpretação nos termos daquela posição objectivista: a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante» (art. 236.º, n.º 1).  Releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer.

E quanto às circunstâncias atendíveis para a interpretação, serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.

A título exemplificativo, Manuel de Andrade [18] refere «os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.  Ao lado destas circunstâncias, referidas a título de exemplo, podem assinalar‑se outras, designadamente «os modos de conduta por que, posteriormente, se prestou observância ao negócio concluído».


A declaração negocial pode ser expressa ou tácita (art. 217.º do CC), existindo declaração tácita sempre que, conforme aos usos da vida, haja, quanto aos factos de que se trata, toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões), ainda que não esteja precludida a possibilidade de outra significação[19].

“Não se trata de apurar uma conclusão absolutamente irrefutável, antes se procura uma conclusão altamente provável” [20].

Não se exigindo sequer, para se aquilatar da concludência de um comportamento no sentido de permitir concluir a latere um certo sentido negocial, a consciência subjectiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que objectivamente, de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante [21].

Por isso, “quando a declaração negocial se não exprime por palavras ou por escrito, terão os outros meios directos de manifestação de vontade de ser inequívocos, de modo a que não haja necessidade de recorrer a deduções ou interpretações da atitude das partes” [22].  Ou seja, tal declaração tácita tem de resultar de factos inequívocos, isto é, que com toda a probabilidade revelam a vontade negocial [23], sendo esse o sentido que, nos termos do n.º 1 do artigo 236.º do CC deles retiraria um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e inteligente, colocado na situação concreta do declaratário.

Assim, “há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando‑a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este concretamente conheceu, mesmo que um declaratário normal delas não tivesse conhecido” [24].


Ora, considerando toda a factualidade provada atinente aos trabalhos a mais, peticionados pela Autora, parece mais que claro ter ocorrido um assentimento tácito do Réu/Recorrente para a realização desses mesmos trabalhos - alterações ao contrato de empreitada inicial – e que os pagaria, logo que realizados, mesmo que tal assentimento não fosse sujeito à forma escrita.

É esta, de facto, a interpretação que qualquer declaratário, normal e minimamente diligente, colocado na posição da empreiteira/Autora, faria da postura negocial do Réu, dono da obra. Dessa forma se concluindo que o comportamento das partes ao longo da execução das alterações e da obra em geral, foi, de todo, concludente no sentido de aceitação pelo Recorrente das alterações e dos respectivos custos, assim se interpretando, conforme o que rezam os artigos 217.º e 236.º do Código Civil, como vontade negocial de tacitamente revogarem a cláusula 9.ª, n.º 3 e 6 do contrato de empreitada.


Não vemos, de facto, que outro sentido um declaratário normal colocado na posição das partes possa retirar desse mesmo comportamento negocial.


Assim claudicam as conclusões da revista.


IV. DECISÃO 

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo do Recorrente.


Lisboa, 19 de Janeiro de 2023


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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[1] É certo que no corpo das alegações se diz que o acórdão recorrido não analisou corretamente a prova (ponto 11º). Porém, fica-se por aqui, pois não impugna a decisão da matéria de facto, como ou nos termos que a lei permite. E, na verdade, nada consta, a propósito, das conclusões das alegações.

[2] JOSÉ LEBRE DE FEITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 736.

[3] Cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, Coimbra Editora, p. 141 e ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 690.

[4] Cfr. FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 371.
[5] Cfr. Ac. STJ, de 10-09-2019, proc. n.º 183/12.7TVPRT, em www.dgsi.pt
[6] LUIS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol III, Contratos em Especial, Almedina, 6ª ed., p. 520-521.
[7] Ver, entre outros, o Ac. do TRC de 02.12.2008, in www.dgsi.pt.
[8] Do Abuso do Direito - Estado das Questões e Perspetivas, in ROA, ano 2055, II, setembro de 2005.
[9]- O princípio da boa fé, que é de aplicação geral a todos os domínios do jurídico, vale para todo o comportamento juridicamente relevante das pessoas” (Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, p. 61) e pressupõe, necessariamente, uma “específica relação inter-pessoal (embora não necessariamente negocial, ou sequer, pré ou circum-negocial), fonte de uma específica relação de confiança — ou, pelo menos, expectação de conduta — cuja frustração ou violação seja particularmente clamorosa” (Orlando de Carvalho, “Teoria Geral do Direito Civil”, Centelha, Coimbra, 1991, p. 56).
A boa fé, na sua vertente de princípio geral de direito, constitui um “critério que deve presidir e orientar todo o comportamento” (Fernando Cunha Sá, “Abuso do Direito”, p. 172) e que consiste num agir caracterizado pela correcção, lealdade e honestidade.  Efectiva­mente, segundo Coutinho de Abreu (“Do Abuso de Direito”, p. 55) o princípio da boa fé significa “que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal nomeadamente, no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”.
[10]- Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, p. 391.
[11]- In RLJ, Ano 117, p. 267.
[12]- Cfr. Ac. RP de 18.1993, in CJ, Ano XVIII, T. 5, p. 219.
[13]- Citado por Ac. RP de 11.05.89, in CJ, Ano XIV, T. 3, p. 192.
[14] Direito das Obrigações (Parte Especial). Contratos. Compra e Venda. Locação. Empreitada, Almedina, Coimbra.
[15]- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1986, p. 811.
[16]- Cfr. Vaz Serra, “Empreitada”, BMJ, n.º 145, pp, 95, 114 e 116.
[17]- A propósito, vide Vaz Serra, Empreitada cit., p. 118; Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial), 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2001, p. 432; Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, III, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, p. 541.  Na jurisprudência; o Ac. do STJ de 7.01.2010, processo n.º 434/06.7TCFUN.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[18]- In Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, reimpressão, Coimbra, 1992.
[19]- Autor e ob. cits., p. 132.
[20]- Rui de Alarcão, A Confirmação dos Negócios Anuláveis, p. 218.
[21]- Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra, 1989, p. 425.
[22]- Ac. RP, de 06-12-1994; www.dgsi.pt/jtrp; Processo 9450299.
[23]- Cfr. Ac. STJ, de 13.02.1959; BMJ 84.º, p. 507.
[24]- Paulo da Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, p. 208.