Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1975/21.1T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
ACORDO DE CREDORES
CREDITO LABORAL
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 07/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A admissibilidade do recurso de revista, restrita e atípica, previsto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, aplicável aos processos pré-insolvência como o previsto nos arts. 17.º-A e ss. do CIRE (PER), implica que o recorrente tem o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários.
II - As decisões dos acórdãos em confronto entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo - tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito - são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial (frontal e expressa, por regra) uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental de direito (ou questões fundamentais) em que assenta(m) a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.
III - Se os acórdãos em confronto estão de acordo quanto à necessidade de, vista a conjugação dos arts. 194.º e 215.º do CIRE, o procedimento e o conteúdo do plano de revitalização-“recuperação” da devedora requerente respeitar o princípio da igualdade de credores, e as situações fáctico-materiais litigiosas não são equiparáveis para a apreciação da mesma subsunção jurídica sobre aquela posição correspondente ao regime legal aplicável, uma vez atento o diverso prisma de tratamento e consideração dos créditos laborais no contexto dos créditos em pagamento, falece, como condição prévia para a admissibilidade do recurso, a oposição de julgados indispensável para ser conhecida a revista no âmbito do art. 14.º, n.º 1, do CIRE.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 1975/21.1T8STB.E1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação ..., ... Secção

Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. «Vitória Futebol Clube – SAD» requereu a instauração de processo especial de revitalização (PER) nos termos do disposto nos arts. 17º-A e ss do CIRE.
Foi concluída e publicada a versão final do plano de revitalização-“recuperação” da sociedade-empresa devedora, que, depois do encerramento do prazo para votação, foi aprovado, com junção nos autos pelo Administrador Judicial Provisório do mapa contendo a votação e as declarações de voto, sendo requerida a respectiva homologação. Desse mapa resulta que o plano foi aprovado por credores que representam 80,06% dos votos num universo de credores que correspondem a 91,3% da totalidade dos créditos reconhecidos, sendo que 79,23% dos votos emitidos em sentido favorável correspondem a créditos não subordinados.

2. Em 18/8/2021, o Juiz ... do Juízo de Comércio ... proferiu sentença que homologou o plano de recuperação apresentado pelo Requerente, nos termos conjugados dos arts.17º-F, 5 e 7, do CIRE.

3. Inconformada, a credora «Griset – Gestão Imobiliária, S. A.» interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação ..., sendo proferido acórdão em 28/10/2021, que – uma vez identificadas as seguintes questões: “1a – Se a utilização, por mais que uma vez, do PER, por parte da devedora, configura uma situação abusiva da sua parte; 2a – Se o conteúdo do Plano aprovado e homologado é violador do disposto nos arts. 194.º e 195.º do CIRE, pondo em causa o princípio da igualdade no tratamento dos credores e do conteúdo legalmente determinado.” – concluiu não existir fundamento para a pretendida recusa de homologação do plano apresentado pela devedora, julgando improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

4. Sem se resignar, veio a mesma credora interpor recurso de revista para o STJ com fundamento do regime do art. 14º, 1, com referência ao art. 671º, 1, do CIRE, ainda que com enquadramento no regime da revista excepcional (art. 672º, 1, c), CPC), invocando oposição com o julgado pelo Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 4/4/2017, processo n.º 3820/15.8T8VNF.G1, juntando cópia da respectiva publicação na base de dados www.dgsi.pt.

A Requerente e Devedora apresentou contra-alegações, desde logo pugnando pela inadmissibilidade da revista por falta de preenchimento dos requisitos do art. 14º, 1, do CIRE.

A Recorrente foi notificada do acórdão recorrido, através da sua Mandatária, em 2/11/2021 (ref.ª Citius: ...).


5. Foi proferido despacho pelo aqui Relator no âmbito de aplicação e para os efeitos do art. 655º, 1, do CPC, ex vi art. 679º, do CPC e 17º, 1, do CIRE, uma vez verificado que, relativamente à questão fundamental de direito elencada, incidente sobre a valência jusnormativa do princípio da igualdade de credores, não se verificaria a oposição de julgados requerida pelo art. 14º, 1, do CIRE como condição de admissibilidade recursiva.

A Recorrente respondeu, pugnando pela admissibilidade do recurso à luz do art. 14º, 1, do CIRE e a existência de oposição com o acórdão fundamento no que toca ao enquadramento jurídico da questão e sendo de considerar “situações jurídicas similiares do ponto de vista subjectivo”.

A Recorrida também atravessou a sua pronúncia, reiterando a inadmissibilidade da revista, na esteira do já sustentado nas contra-alegações.


Foram dispensados os vistos nos termos legais.

Cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO


Questão prévia da admissibilidade do recurso


6. A revista da Credora e aqui Recorrente visa a revogação do acórdão recorrido, que inverta a decisão de homologação do plano de revitalização-“recuperação” apresentado pela devedora e aprovado pela maioria dos credores.

Esta decisão, sendo proferida endogenamente nos próprios autos de PER, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, aplicável aos processos pré-insolvenciais como o regulado nos arts. 17º-A e ss do CIRE, sem aplicação do regime do recurso de revista excepcional e da disciplina do art. 671º, 3, do CPC.

Trata-se de um regime de revista atípico e restritivo e, por isso, delimitador da susceptibilidade do recurso de revista do acórdão recorrido.

O art. 14º, 1, do CIRE determina:
«No processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme».
Daqui resulta que o recorrente tem o ónus específico de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de não inadmissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito.
Para existência da indispensável oposição jurisprudencial, as decisões entendem-se como divergentes se se baseiam em situações fáctico-materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, acrescendo que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.
Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma oposição (frontal e expressa, por regra) de entendimentos nos acórdãos em confronto sobre a aplicação de determinada solução legal, sendo que – reitere-se – tal divergência se projecta decisivamente no modo como os casos foram decididos.

7. Vistas as Conclusões que finalizam a revista, a Recorrente alega que a questão fundamental de direito contraditoriamente julgada respeita à violação do princípio da igualdade dos credores, decorrente da aplicação do art. 194º por força dos arts. 17º-A, 3, e 17º-F, 7, do CIRE, no plano de recuperação aprovado e homologado pela sentença de 1.ª instância, tendo em conta que os créditos laborais (créditos privilegiados) serão liquidados em 138 prestações mensais, iguais e sucessivas, enquanto que, para os créditos comuns, se encontra previsto um período de carência de 36 meses, findo o qual a percentagem de 50% do valor do crédito será liquidado em 120 prestações mensais e o remanescente (50%) a final, período de carência de capital esse que se extingue se a devedora subir à 1.ª Liga do futebol profissional nesse período, caso em que iniciará os pagamentos no último dia do mês seguinte àquele em que se efectivar tal subida – condição essa que, a suceder, levaria ao pagamento dos créditos comuns antes dos créditos privilegiados. 

Vejamos.

8. Sobre a questão pertinente, refere-se e argumenta-se no acórdão recorrido:

“Nos termos previstos no art. 194°, n° 1 do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas”.
E, segundo o seu n° 2, “O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado em caso de voto favorável”.
A este propósito, vide Carvalho Fernandes, João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Quid Juris, 2a edição, na anotação 8a ao art. 192°, a pág. 746, é referido: "Cremos, todavia, ser de admitira não homologação, seja oficiosamente, com base no art. 215º, ou a requerimento do lesado, fundada no art. 216º, quando, não estando demonstrado o consentimento, tenha havido indevida afetação da posição jurídica dos interessados ou de terceiros", e na anotação 1a ao art. 215º, a pág. 825: "Este preceito continua a orientação do Direito anterior no sentido de conferir ao tribunal o papel de guardião da legalidade, cabendo-lhe, em consequência, sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano". (…)
O legislador quis, assim, uma verdadeira igualdade entre credores da insolvência.
O art. 215º do CIRE impõe ao juiz que recuse a homologação do plano aprovado pelos credores sempre que ocorra “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”, assim estando em causa tanto aspetos de procedimento como de substância, estes atinentes ao conteúdo do plano. Mas, atente-se, não é qualquer desvio que implica a recusa de homologação, exigindo a lei que se trate de "violação não negligenciável", deixando ao intérprete a difícil tarefa de concretização do conceito.
De todo o modo, do que não há dúvida face à literalidade da disposição legal, é que violações menores deverão ser desconsideradas.
Segundo Carvalho Fernandes, João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2a edição, 826, "Normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento – e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar".
Ainda segundo aqueles autores, ob. cit., págs. 826 e 827, a lei não define o que deva considerar-se vício negligenciável, nem fornece objetivamente pistas que iluminem a descoberta da resposta. No entanto, consideram que, para se decidir se a violação da lei justifica ou não a recusa de homologação de um plano aprovado pelos credores, do que verdadeiramente se trata é de avaliar a relevância, ou não, da violação constatada.
Para o efeito, entendem que parece razoável atender ao critério geral que a própria lei processual utiliza no art. 195º do CPC.
Isto é, o que importa é sindicar se a nulidade observada é suscetível de interferir com a boa decisão da causa. O que significa, acrescentam, "valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável”.
No caso dos presentes autos a recorrente invoca, como um dos fundamentos a violação do princípio da igualdade previsto no art. 194° do CIRE, o facto de no seu entendimento existir um benefício dos credores comuns em detrimento dos credores laborais.
Os créditos laborais, privilegiados, são liquidados em 138 prestações mensais, iguais e sucessivas, enquanto os créditos comuns terão um período de carência de 36 meses, findo o qual 50% do valor do crédito será liquidado em 120 prestações mensais e o remanescente a final, entendendo a recorrente não haver razão atendível para protelamento do pagamento daqueles créditos, que podem vir a ser liquidados na sua totalidade, até numa data posterior a estes, atendendo a que, quanto estes, está prevista a possibilidade/condição de que caso a devedora subir (retornar) à 1.a Liga do Futebol Profissional cessar o período de carência com inicio imediato do plano de pagamento.
Ou seja, entende a recorrente, apesar de até poder sair beneficiada, já que é credor comum, que a possibilidade/condição, não sendo aplicada aos créditos laborais, põe em causa o princípio da igualdade, por permitir o pagamento dos créditos comuns antes dos créditos privilegiados.
Na 1a instância não se concordou com este entendimento com a seguinte argumentação:
“Em primeiro lugar porque o pagamento dos créditos laborais não prevê qualquer período de carência, ao contrário dos créditos comuns, em segundo lugar porque o início dos pagamentos antes de terminado o período de carência está condicionado por uma decisão futura e incerta que não depende da devedora, em terceiro lugar porque o pagamento aos credores comuns prevê uma redução de 50% do capital em dívida, o que não sucede com os créditos laborais.
Assim, e embora exista diferenciação no modo de pagamento, desde já se dirá que quanto ao prazo de pagamento ainda assim os créditos laborais serão ressarcidos, em condições normais e atuais, antes dos créditos comuns, e integralmente, não existindo violação do princípio da igualdade”.
Acompanhamos a fundamentação da 1a instância à exceção da referência que faz à redução de 50% do capital em dívida relativamente aos créditos comuns, por tal não resultar do Plano, antes resultando que relativamente a tais créditos a última prestação a liquidar contemplará “os restantes 50% do capital” que não foi pago com a liquidação processada em todas as anteriores prestações.
Em condições normais e atuais não haverá possibilidade do período de carência relativa aos créditos comuns ser reduzido pelo facto de se dar a subida da equipa profissional de futebol à 1.a Liga, embora essa condição conste consignada, mas, mesmo assim, se tal acontecesse não seria num período de tempo tão curto (menor que 18 meses) que pudesse levar à liquidação total das prestações referentes aos créditos comuns em momento anterior às prestações relativas aos créditos laborais, cujo início de pagamento é efetuado de imediato, sem qualquer período de carência.
Assim, entendemos que a possibilidade de alteração do período de carência por força da condição não traduz uma desigualdade infundada em prejuízo dos créditos laborais.”

9. Por outro lado, surpreende-se a seguinte posição para o que é pertinente para o alegado pela Recorrente no acórdão fundamento, no que toca à questão decidenda (“Analisar se o plano de revitalização homologado não respeita o princípio da igualdade previsto no artigo 194.º, n.º 1 e 2, 215.º e 216.º do CIRE, e no artigo 59.º da CRP, no tocante aos créditos laborais enquanto alvo de tratamento diferenciado relativamente aos restantes credores privilegiados”):

“(…) quanto à concreta questão do recurso temos que sopesar se o tratamento dado ao crédito laboral do recorrente, quando comparado com os demais créditos, é intoleravelmente desproporcionado, violando o disposto nos arts. 215.º e 194.º do CIRE e no artigo 59.° da CRP.

Temos por certo que por força do disposto nos n.os 1 e 2, do art. 194.º do CIRE, ex vi do art. 17-F, n.º 5, o plano de recuperação há-de forçosamente obedecer ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.

Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas, Anotado, Reimpressão 2009, pp. 713, referindo-se ao significado/conteúdo do apontado princípio, dizem-nos que acolhe o legislador (no art. 194.º) “as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzidas na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo dos credores atingidos, em contrário”.

Daí que, ainda segundo os mesmos autores, permite-se que o plano possa estabelecer diferenciações entre os credores da insolvência, desde que “justificadas por razões objectivas”, sendo que, de entre estas últimas –  susceptíveis portanto de justificar um tratamento diferenciado – relevam v.g. a distinta classificação dos créditos, o grau hierárquico que ocupam na respectiva graduação ou mesmo as fontes do crédito, apenas estando vedada a possibilidade de, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em idênticas circunstâncias.

Por sua vez, de acordo com o princípio da proporcionalidade, a diferenciação ou tratamento desigual deve ser equilibrado. Para se verificar se há equilíbrio é efectuada uma operação de ponderação multipolar cruzada que contrapesa (i) a espécie, profundidade, extensão e significado do tratamento desigual sofrido por um dos grupos componentes do par comparativo em relação ao outro, (ii) as razões justificativas da diferenciação, (iii) as razões que implicariam uma não diferenciação, ou uma diferenciação diferente, e (iv) a intensidade da relação de tudo isso com o contexto normativo e factual que dá sentido à decisão do legislador e com o fim da norma. Esta versão forte não postula que a opção diferenciadora adoptada seja a mais justa das alternativas disponíveis. Mas o resultado da ponderação deve permitir concluir que as razões que fundamentam o tratamento diferenciado sob exame, com aquela espécie e com aquela extensão, têm um peso suficiente para justificar tal tratamento, ou não (neste sentido acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional e Alexy, «Los derechos fundamentales y el principio de proporcionalidade», in REDC, vol. 91, Janeiro-Abril 2011, p. 15).

Sendo estes os princípios instituídos e tidos em conta pelo legislador, conclui-se que deve prevalecer o princípio da igualdade, traduzido no tratamento do que é igual de forma semelhante e do que é desigual de forma desigual, tendo em conta que a possibilidade de estabelecer diferenciações entre credores, está dependente da existência de uma razão que o justifique.

(…)

Posto em evidência o plano de revitalização apresentado, quanto às providências previstas a incidir no passivo, há que proceder à sua análise por forma a apurar se, por via do mesmo, se violam os princípios fundamentais mencionados no recurso, concretamente o da igualdade, sabendo, como se deixou expresso, que o mesmo pode salvaguardar até um tratamento diferenciado entre credores, quando tal se justifique, na medida em que não se pode ter por absoluto, não impondo necessariamente uma total identidade de tratamento entre créditos idênticos, tal como não permite toda e qualquer solução de tratamento diferenciado entre créditos de diversa natureza. Pelo contrário, os valores inerentes a esse princípio não podem deixar de induzir critérios de proporcionalidade, em conformidade com o supra referido.

Por outro lado, é certo, não se pode também deixar de ter em conta que o processo de revitalização é um processo de cariz marcadamente voluntário e extrajudicial, em que se privilegia o controlo pelos credores, restringindo o controlo jurisdicional à gestão processual.
Desta forma, em sede de recusa da homologação (art. 215.° CIRE) do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, por violação não negligenciável de regras procedimentais, há-de forçosamente o Juiz atender, ou pelo menos não menosprezar, o favor debitoris, ou seja, ter de alguma forma presente o desiderato do PER em sede de revitalização do tecido empresarial, em oposição à filosofia que tinha por norte e regra a liquidação e o desmantelamento dos patrimónios.

Assim, impõe-se proceder a um exercício intelectual de prognose, comparando o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele, concretamente se a declaração de insolvência seria mais favorável do que a homologação do Plano para o credor recorrente.

Ora, como resulta do plano, contrariamente aos créditos do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. e do Estado, em que se prevê o pagamento da totalidade do valor em dívida, sem períodos de carência, e apenas com redução dos créditos fiscais por juros de mora vencidos e vincendos, e em que se mantêm em vigor as garantias reais anteriormente constituídas, com constituição de garantias idóneas a prestar pela devedora ou por terceiro junto do órgão de execução fiscal, bem como o do Banco 1..., S. A., com dação em pagamento para pagamento do valor total em dívida do prédio urbano, com celebração de um Contrato de Leasing Imobiliário pelo valor total da dívida, incluindo impostos e demais encargos decorrentes da operação, com taxa de juro a aplicar calculada com base na Euribor a seis meses, acrescida de um spread máximo de 2,5%, tal como os créditos comuns das instituições bancárias e financeiras, em que se prevê também o pagamento de 100% do capital e juros vencidos até ao trânsito em julgado do despacho de "homologação do plano de recuperação, a capitalizar e vincendos, com taxa calculada com base na Euribor a seis meses, acrescida de um spread máximo de 2,5 %, mais manutenção das garantias prestadas nos contratos, para os créditos laborais prevê-se o pagamento de apenas 80% dos créditos de capital, com um período de carência de 12 meses após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação e perdão total dos juros vencidos e pagamentos dos vincendos a uma taxa de 1 %.

Acontece que, posteriormente, foi apresentada uma alteração ao plano quanto aos créditos comuns decorrentes de leasing ou locação financeira imobiliária/mobiliária/renting/aluguer de longa duração, por forma a que o pagamento desses créditos fosse pago a 100%, com juros vencidos e vincendos, calculados com base na Euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 2,5%, e manutenção das garantias dos contratos.

Acresce, por outro lado, quanto às justificações apresentadas para as medidas contempladas no plano, relativamente aos preceitos legais derrogados, quanto aos créditos dos trabalhadores, em virtude das garantias que legalmente lhes assiste, apenas é referido que ‘se prevê um período de carência por ser absolutamente indispensável para que o requerente consiga manter a sua actividade corrente; cabendo apontar que os trabalhadores que entretanto já se desvincularam se encontram salvaguardados, face ao período de carência, pela atribuição do subsídio de desemprego’.

Fica, no entanto, por justificar e explicar por que razão é reduzido o pagamento em 20% desses créditos, bem como a desigualdade quanto à taxa de juro a aplicar aos juros vincendos, o perdão dos juros vencidos, o período de carência para os demais trabalhadores que ainda mantém o vínculo contratual, a não constituição de quaisquer garantias patrimoniais para o caso de incumprimento, e a notória e flagrante desigualdade de tratamento quanto aos demais credores com privilégios, já para não falar nos outros credores sem tais garantias acrescidas que são manifestamente beneficiados em detrimentos dos trabalhadores, sem que para tal o recorrente tivesse nisso consentido.

Daqui decorre que não é minimamente ponderada a natureza especial dos créditos laborais, constitucionalmente consagrada, nem as especiais garantias que a CRP, no seu art. 59.º, confere aos créditos laborais, intimamente relacionados com o direito a uma vida digna, de natureza alimentar, essencial à vida e à subsistência pessoal do trabalhador, e que, com a aprovação e homologação dos planos de recuperação em causa ficam, ainda que parcialmente, anuladas.

Nesse sentido, há que ter em conta que todo o sistema laboral é construído sob a perspectiva da (tendencial) irrenunciabilidade, irredutibilidade e indisponibilidade dos créditos laborais. E se tais características parecem poder desaparecer após a cessação do contrato, a verdade é que na pendência do mesmo aquelas mantêm-se. Como tal, choca-nos profundamente que um plano de pagamentos preveja, por exemplo, um perdão de capital de 20 % dos créditos laborais, quando falámos, muitas vezes, não apenas de créditos indemnizatórios ou compensatórios, mas de créditos referentes à própria execução do contrato de trabalho, ou seja, atinentes à remuneração devida pela efectiva prestação laboral.

Assim, embora entendamos que a análise deve ser casuística, parece-nos evidente que qualquer plano que preveja o perdão de créditos referentes à execução do contrato de trabalho não é conforme à legislação (laboral) nem às garantias constitucionais conferidas ao salário, quando os demais créditos equiparados não sofrem qualquer redução. O mesmo sucede com a dilação no tempo do pagamento previsto, que deve ser razoável e, no limite, não deve impedir o exercício dos direitos do trabalhador inerentes a tal pagamento.

Em todo o processo entendemos que devem ser compatibilizadas as garantias e direitos dos trabalhadores com o intuito e vantagens do processo especial de revitalização para o devedor, não apenas estas.

Daqui decorre, consequentemente, face ao que se prevê no plano quanto ao pagamento dos créditos laborais, sem grande esforço analítico, que sem a sua homologação o recorrente fica mais protegido e beneficiado do que com a sua homologação, dado que com a liquidação do património da devedora, terá direito a ser pago na sua totalidade, preferencialmente, e de uma só vez, pelo produto obtido com a venda dos bens da devedora, atento o privilégio mobiliário geral e imobiliário especial previsto no artigo 333.° do Código do Trabalho, e dado que nos termos do disposto no n.° 3, do artigo 59.°, da Constituição da República Portuguesa, os salários gozam de privilégios especiais, contra a incerteza desse pagamento pela dação em pagamento do imóvel da sociedade requerente e a constituição de garantias idóneas e suficientes para satisfação de outros credores em caso de incumprimento do plano.

Aliás, como recentemente foi decidido pelo STJ, no seu Acórdão 5512/15.9T8CBR.C1.S1, de 7.2.2017, publicado na pág. da dgsi, ‘inexistindo razão atendível para que o plano de revitalização trate privilegiadamente as entidades bancárias credoras face aos credores titulares de créditos laborais, é de concluir pela ofensa ao princípio da igualdade entre credores, o que constitui causa de recusa oficiosa da sua homologação’.

Assim, tudo sopesado, conclui-se que o plano de recuperação ofende o princípio da igualdade, tal como esse princípio se encontra consagrado no art. 194º do CIRE (…)”.

10. Daqui decorre que:

           

10.1. Ambos os acórdãos reflectem uma mesma e comum posição sobre a necessidade de, atenta a conjugação dos arts. 194º e 215º do CIRE, o procedimento e o conteúdo do plano de revitalização respeitar o princípio da igualdade de credores.

10.2. As situações fáctico-materiais litigiosas não são equiparáveis para a apreciação da mesma subsunção jurídica sobre aquela posição correspondente ao regime legal aplicável:

 

(i) no acórdão recorrido, perante o tratamento mais favorável dos créditos laborais, enquanto créditos privilegiados, foi ponderado um eventual benefício dos créditos comuns, tendo em conta a previsão de uma condição futura relativa à cessação do período de carência para o início do seu plano de pagamento, em relação aos créditos laborais, de todo o modo (estes últimos) com início de pagamento sem qualquer período de carência, tendo como resultado a homologação do plano de revitalização;

(ii) no acórdão fundamento, foi ponderado o tratamento mais desfavorável dos créditos laborais, beneficiados com tratamento especial, no âmbito do plano de pagamentos aprovados no plano de recuperação, em especial no âmbito de tratamento da mesma categoria de créditos privilegiados e em face do regime conducente à não homologação (recusa) do plano de revitalização.

Assim, é de concluir que, também nesta perspectiva, não há um substracto factual que seja de equiparar para este efeito de admissibilidade; antes subsiste uma dissemelhança relevante das situações de facto subjacentes às decisões em confronto, ainda que sempre no contexto de reconhecimento da necessidade de respeito do princípio da igualdade dos credores, atento o diverso prisma de tratamento e consideração dos créditos laborais no contexto dos créditos em pagamento.

Em suma.
Resulta do analisado que, sem prejuízo do inconformismo da Recorrente quanto à solução do acórdão recorrido proferido pela Relação, não ocorre, como condição prévia para a admissibilidade do recurso, a oposição de julgados (pelo menos com este acórdão indicado como fundamento recursivo) indispensável para ser conhecida a revista no âmbito do art. 14º, 1, do CIRE. E sem esta condição estar verificada, não se pode aceitar uma reapreciação em último grau de jurisdição através de uma revista que deve ser admitida com particular exigência, no âmbito de um regime prima facie de irrecorribilidade.


III) DECISÃO

Em conformidade, não sendo admissível a revista, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.

Custas pela Recorrente.

STJ/Lisboa, 5 de Julho de 2022

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).