Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS OPOSIÇÃO DE JULGADOS PRINCÍPIO DA IGUALDADE ACORDO DE CREDORES CREDITO LABORAL RECURSO DE REVISTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO REJEIÇÃO DE RECURSO | ||
Data do Acordão: | 07/05/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
Sumário : | I - A admissibilidade do recurso de revista, restrita e atípica, previsto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, aplicável aos processos pré-insolvência como o previsto nos arts. 17.º-A e ss. do CIRE (PER), implica que o recorrente tem o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários. II - As decisões dos acórdãos em confronto entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo - tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito - são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial (frontal e expressa, por regra) uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental de direito (ou questões fundamentais) em que assenta(m) a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso. III - Se os acórdãos em confronto estão de acordo quanto à necessidade de, vista a conjugação dos arts. 194.º e 215.º do CIRE, o procedimento e o conteúdo do plano de revitalização-“recuperação” da devedora requerente respeitar o princípio da igualdade de credores, e as situações fáctico-materiais litigiosas não são equiparáveis para a apreciação da mesma subsunção jurídica sobre aquela posição correspondente ao regime legal aplicável, uma vez atento o diverso prisma de tratamento e consideração dos créditos laborais no contexto dos créditos em pagamento, falece, como condição prévia para a admissibilidade do recurso, a oposição de julgados indispensável para ser conhecida a revista no âmbito do art. 14.º, n.º 1, do CIRE. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1975/21.1T8STB.E1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação ..., ... Secção
Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
4. Sem se resignar, veio a mesma credora interpor recurso de revista para o STJ com fundamento do regime do art. 14º, 1, com referência ao art. 671º, 1, do CIRE, ainda que com enquadramento no regime da revista excepcional (art. 672º, 1, c), CPC), invocando oposição com o julgado pelo Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 4/4/2017, processo n.º 3820/15.8T8VNF.G1, juntando cópia da respectiva publicação na base de dados www.dgsi.pt. A Requerente e Devedora apresentou contra-alegações, desde logo pugnando pela inadmissibilidade da revista por falta de preenchimento dos requisitos do art. 14º, 1, do CIRE. A Recorrente foi notificada do acórdão recorrido, através da sua Mandatária, em 2/11/2021 (ref.ª Citius: ...). A Recorrente respondeu, pugnando pela admissibilidade do recurso à luz do art. 14º, 1, do CIRE e a existência de oposição com o acórdão fundamento no que toca ao enquadramento jurídico da questão e sendo de considerar “situações jurídicas similiares do ponto de vista subjectivo”. A Recorrida também atravessou a sua pronúncia, reiterando a inadmissibilidade da revista, na esteira do já sustentado nas contra-alegações.
Esta decisão, sendo proferida endogenamente nos próprios autos de PER, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, aplicável aos processos pré-insolvenciais como o regulado nos arts. 17º-A e ss do CIRE, sem aplicação do regime do recurso de revista excepcional e da disciplina do art. 671º, 3, do CPC. Trata-se de um regime de revista atípico e restritivo e, por isso, delimitador da susceptibilidade do recurso de revista do acórdão recorrido. “(…) quanto à concreta questão do recurso temos que sopesar se o tratamento dado ao crédito laboral do recorrente, quando comparado com os demais créditos, é intoleravelmente desproporcionado, violando o disposto nos arts. 215.º e 194.º do CIRE e no artigo 59.° da CRP. Temos por certo que por força do disposto nos n.os 1 e 2, do art. 194.º do CIRE, ex vi do art. 17-F, n.º 5, o plano de recuperação há-de forçosamente obedecer ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e de Recuperação de Empresas, Anotado, Reimpressão 2009, pp. 713, referindo-se ao significado/conteúdo do apontado princípio, dizem-nos que acolhe o legislador (no art. 194.º) “as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzidas na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo dos credores atingidos, em contrário”. Daí que, ainda segundo os mesmos autores, permite-se que o plano possa estabelecer diferenciações entre os credores da insolvência, desde que “justificadas por razões objectivas”, sendo que, de entre estas últimas – susceptíveis portanto de justificar um tratamento diferenciado – relevam v.g. a distinta classificação dos créditos, o grau hierárquico que ocupam na respectiva graduação ou mesmo as fontes do crédito, apenas estando vedada a possibilidade de, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em idênticas circunstâncias. Por sua vez, de acordo com o princípio da proporcionalidade, a diferenciação ou tratamento desigual deve ser equilibrado. Para se verificar se há equilíbrio é efectuada uma operação de ponderação multipolar cruzada que contrapesa (i) a espécie, profundidade, extensão e significado do tratamento desigual sofrido por um dos grupos componentes do par comparativo em relação ao outro, (ii) as razões justificativas da diferenciação, (iii) as razões que implicariam uma não diferenciação, ou uma diferenciação diferente, e (iv) a intensidade da relação de tudo isso com o contexto normativo e factual que dá sentido à decisão do legislador e com o fim da norma. Esta versão forte não postula que a opção diferenciadora adoptada seja a mais justa das alternativas disponíveis. Mas o resultado da ponderação deve permitir concluir que as razões que fundamentam o tratamento diferenciado sob exame, com aquela espécie e com aquela extensão, têm um peso suficiente para justificar tal tratamento, ou não (neste sentido acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional e Alexy, «Los derechos fundamentales y el principio de proporcionalidade», in REDC, vol. 91, Janeiro-Abril 2011, p. 15). Sendo estes os princípios instituídos e tidos em conta pelo legislador, conclui-se que deve prevalecer o princípio da igualdade, traduzido no tratamento do que é igual de forma semelhante e do que é desigual de forma desigual, tendo em conta que a possibilidade de estabelecer diferenciações entre credores, está dependente da existência de uma razão que o justifique. (…) Posto em evidência o plano de revitalização apresentado, quanto às providências previstas a incidir no passivo, há que proceder à sua análise por forma a apurar se, por via do mesmo, se violam os princípios fundamentais mencionados no recurso, concretamente o da igualdade, sabendo, como se deixou expresso, que o mesmo pode salvaguardar até um tratamento diferenciado entre credores, quando tal se justifique, na medida em que não se pode ter por absoluto, não impondo necessariamente uma total identidade de tratamento entre créditos idênticos, tal como não permite toda e qualquer solução de tratamento diferenciado entre créditos de diversa natureza. Pelo contrário, os valores inerentes a esse princípio não podem deixar de induzir critérios de proporcionalidade, em conformidade com o supra referido. Por outro lado, é certo, não se pode também deixar de ter em conta que o processo de revitalização é um processo de cariz marcadamente voluntário e extrajudicial, em que se privilegia o controlo pelos credores, restringindo o controlo jurisdicional à gestão processual. Assim, impõe-se proceder a um exercício intelectual de prognose, comparando o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele, concretamente se a declaração de insolvência seria mais favorável do que a homologação do Plano para o credor recorrente. Ora, como resulta do plano, contrariamente aos créditos do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. e do Estado, em que se prevê o pagamento da totalidade do valor em dívida, sem períodos de carência, e apenas com redução dos créditos fiscais por juros de mora vencidos e vincendos, e em que se mantêm em vigor as garantias reais anteriormente constituídas, com constituição de garantias idóneas a prestar pela devedora ou por terceiro junto do órgão de execução fiscal, bem como o do Banco 1..., S. A., com dação em pagamento para pagamento do valor total em dívida do prédio urbano, com celebração de um Contrato de Leasing Imobiliário pelo valor total da dívida, incluindo impostos e demais encargos decorrentes da operação, com taxa de juro a aplicar calculada com base na Euribor a seis meses, acrescida de um spread máximo de 2,5%, tal como os créditos comuns das instituições bancárias e financeiras, em que se prevê também o pagamento de 100% do capital e juros vencidos até ao trânsito em julgado do despacho de "homologação do plano de recuperação, a capitalizar e vincendos, com taxa calculada com base na Euribor a seis meses, acrescida de um spread máximo de 2,5 %, mais manutenção das garantias prestadas nos contratos, para os créditos laborais prevê-se o pagamento de apenas 80% dos créditos de capital, com um período de carência de 12 meses após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação e perdão total dos juros vencidos e pagamentos dos vincendos a uma taxa de 1 %. Acontece que, posteriormente, foi apresentada uma alteração ao plano quanto aos créditos comuns decorrentes de leasing ou locação financeira imobiliária/mobiliária/renting/aluguer de longa duração, por forma a que o pagamento desses créditos fosse pago a 100%, com juros vencidos e vincendos, calculados com base na Euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 2,5%, e manutenção das garantias dos contratos. Acresce, por outro lado, quanto às justificações apresentadas para as medidas contempladas no plano, relativamente aos preceitos legais derrogados, quanto aos créditos dos trabalhadores, em virtude das garantias que legalmente lhes assiste, apenas é referido que ‘se prevê um período de carência por ser absolutamente indispensável para que o requerente consiga manter a sua actividade corrente; cabendo apontar que os trabalhadores que entretanto já se desvincularam se encontram salvaguardados, face ao período de carência, pela atribuição do subsídio de desemprego’. Fica, no entanto, por justificar e explicar por que razão é reduzido o pagamento em 20% desses créditos, bem como a desigualdade quanto à taxa de juro a aplicar aos juros vincendos, o perdão dos juros vencidos, o período de carência para os demais trabalhadores que ainda mantém o vínculo contratual, a não constituição de quaisquer garantias patrimoniais para o caso de incumprimento, e a notória e flagrante desigualdade de tratamento quanto aos demais credores com privilégios, já para não falar nos outros credores sem tais garantias acrescidas que são manifestamente beneficiados em detrimentos dos trabalhadores, sem que para tal o recorrente tivesse nisso consentido. Daqui decorre que não é minimamente ponderada a natureza especial dos créditos laborais, constitucionalmente consagrada, nem as especiais garantias que a CRP, no seu art. 59.º, confere aos créditos laborais, intimamente relacionados com o direito a uma vida digna, de natureza alimentar, essencial à vida e à subsistência pessoal do trabalhador, e que, com a aprovação e homologação dos planos de recuperação em causa ficam, ainda que parcialmente, anuladas. Nesse sentido, há que ter em conta que todo o sistema laboral é construído sob a perspectiva da (tendencial) irrenunciabilidade, irredutibilidade e indisponibilidade dos créditos laborais. E se tais características parecem poder desaparecer após a cessação do contrato, a verdade é que na pendência do mesmo aquelas mantêm-se. Como tal, choca-nos profundamente que um plano de pagamentos preveja, por exemplo, um perdão de capital de 20 % dos créditos laborais, quando falámos, muitas vezes, não apenas de créditos indemnizatórios ou compensatórios, mas de créditos referentes à própria execução do contrato de trabalho, ou seja, atinentes à remuneração devida pela efectiva prestação laboral. Assim, embora entendamos que a análise deve ser casuística, parece-nos evidente que qualquer plano que preveja o perdão de créditos referentes à execução do contrato de trabalho não é conforme à legislação (laboral) nem às garantias constitucionais conferidas ao salário, quando os demais créditos equiparados não sofrem qualquer redução. O mesmo sucede com a dilação no tempo do pagamento previsto, que deve ser razoável e, no limite, não deve impedir o exercício dos direitos do trabalhador inerentes a tal pagamento. Em todo o processo entendemos que devem ser compatibilizadas as garantias e direitos dos trabalhadores com o intuito e vantagens do processo especial de revitalização para o devedor, não apenas estas. Daqui decorre, consequentemente, face ao que se prevê no plano quanto ao pagamento dos créditos laborais, sem grande esforço analítico, que sem a sua homologação o recorrente fica mais protegido e beneficiado do que com a sua homologação, dado que com a liquidação do património da devedora, terá direito a ser pago na sua totalidade, preferencialmente, e de uma só vez, pelo produto obtido com a venda dos bens da devedora, atento o privilégio mobiliário geral e imobiliário especial previsto no artigo 333.° do Código do Trabalho, e dado que nos termos do disposto no n.° 3, do artigo 59.°, da Constituição da República Portuguesa, os salários gozam de privilégios especiais, contra a incerteza desse pagamento pela dação em pagamento do imóvel da sociedade requerente e a constituição de garantias idóneas e suficientes para satisfação de outros credores em caso de incumprimento do plano. Aliás, como recentemente foi decidido pelo STJ, no seu Acórdão 5512/15.9T8CBR.C1.S1, de 7.2.2017, publicado na pág. da dgsi, ‘inexistindo razão atendível para que o plano de revitalização trate privilegiadamente as entidades bancárias credoras face aos credores titulares de créditos laborais, é de concluir pela ofensa ao princípio da igualdade entre credores, o que constitui causa de recusa oficiosa da sua homologação’. Assim, tudo sopesado, conclui-se que o plano de recuperação ofende o princípio da igualdade, tal como esse princípio se encontra consagrado no art. 194º do CIRE (…)”. 10. Daqui decorre que:
10.1. Ambos os acórdãos reflectem uma mesma e comum posição sobre a necessidade de, atenta a conjugação dos arts. 194º e 215º do CIRE, o procedimento e o conteúdo do plano de revitalização respeitar o princípio da igualdade de credores.
10.2. As situações fáctico-materiais litigiosas não são equiparáveis para a apreciação da mesma subsunção jurídica sobre aquela posição correspondente ao regime legal aplicável:
(i) no acórdão recorrido, perante o tratamento mais favorável dos créditos laborais, enquanto créditos privilegiados, foi ponderado um eventual benefício dos créditos comuns, tendo em conta a previsão de uma condição futura relativa à cessação do período de carência para o início do seu plano de pagamento, em relação aos créditos laborais, de todo o modo (estes últimos) com início de pagamento sem qualquer período de carência, tendo como resultado a homologação do plano de revitalização; (ii) no acórdão fundamento, foi ponderado o tratamento mais desfavorável dos créditos laborais, beneficiados com tratamento especial, no âmbito do plano de pagamentos aprovados no plano de recuperação, em especial no âmbito de tratamento da mesma categoria de créditos privilegiados e em face do regime conducente à não homologação (recusa) do plano de revitalização.
Assim, é de concluir que, também nesta perspectiva, não há um substracto factual que seja de equiparar para este efeito de admissibilidade; antes subsiste uma dissemelhança relevante das situações de facto subjacentes às decisões em confronto, ainda que sempre no contexto de reconhecimento da necessidade de respeito do princípio da igualdade dos credores, atento o diverso prisma de tratamento e consideração dos créditos laborais no contexto dos créditos em pagamento.
STJ/Lisboa, 5 de Julho de 2022
Ricardo Costa (Relator) António Barateiro Martins Luís Espírito Santo
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC). |