Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
893/05.5TBPCV.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: TESTAMENTO
VONTADE DO TESTADOR
INCAPACIDADE ACIDENTAL
ANULABILIDADE
ÓNUS DA PROVA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
Data do Acordão: 01/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA / CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA / FALTA E VÍCIOS DA VONTADE / ANULABILIDADE DO TESTAMENTO.
Doutrina:
- Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Edição, em nota ao art. 754.º, pp. 640 a 642.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, p. 396.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. VI, pp. 323, 342.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 257.º, 342.º, N.º1, 362.º, 363.º, N.ºS 2 E 3, 371.º, N.º1, 393.º, N.º2, 754.º, N.º2, 2179.º, N.º1, 2188.º, 2189.º, 2199.º, 2308.º, N.ºS 1 E 2,
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14.5.2009, PROC.N.º 09B0301, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 11.4.2013, PROC. 1565/10.4TJVNF.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I. A incapacidade acidental, a que se refere o art. 2199º do Código Civil, afectando a vontade do testador, constitui vício volitivo que determina a anulabilidade do acto; o normativo quer proteger o testador, o seu acto de vontade unilateral, ao passo que o art. 257º do Código Civil, que também versa sobre a incapacidade acidental, mas em actos contratuais e tem o seu campo de aplicação nos negócios jurídicos bilaterais, visa proteger, sobretudo, o declaratário desde logo exigindo como requisito de anulabilidade da declaração que o facto determinante da incapacitação acidental de entender o sentido da declaração de vontade seja notório, ou conhecido do declaratário.

II. No art. 2199º do Código Civil, prescinde-se dos requisitos notoriedade ou cognoscibilidade do vício que afecta a vontade do declarante, desde logo, por se tratar de um acto unilateral, um negócio jurídico não recipiendo, que não carece de aceitação para produzir os seus efeitos.

III. O estado de incapacidade acidental do testador deve existir no momento da feitura do testamento, incumbindo ao interessado na invalidade o ónus da prova dos factos reveladores de incapacidade acidental – art. 342º, nº1, do Código Civil.

IV. A incapacidade para entender e querer, no momento da feitura do testamento, não tem necessariamente de estar afirmada por uma sentença que declare a interdição do testador, o que pressupõe um estado continuado, permanente, de incapacidade volitiva; essa incapacidade pode ser meramente ocasional, transitória, desde que seja contemporânea da declaração volitiva plasmada no testamento.

  V. A força probatória plena dos documentos autênticos circunscreve-se às percepções neles afirmadas pela autoridade ou oficial público documentador, já não à sinceridade, genuinidade ou verdade das declarações dos intervenientes, ou a factos que não possam por ele ser comprovados cientificamente; o facto de não constar numa escritura pública, suporte de um testamento, que a testadora estava acidentalmente incapaz de entender ou querer, não impede que essa prova se faça ulteriormente.

Decisão Texto Integral:

Proc.893/05.5TBPCV.C1.S1

R-526[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


           AA, intentou em 6.12.2005, na Comarca de Penacova, agora Comarca de Coimbra-Penacova-Instância Local – Secção de Competência Genérica, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:

           - BB, (foram demandados, então, outros RR., os quais foram posteriormente julgados partes ilegítimas, tendo sido todos eles absolvidos da presente instância, conforme despacho de fls. 348.

                Foram eles: CC, DD, EE, FF, BB, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO).

            Peticiona a Autora – em segundo articulado corrigido, conforme fls. 350 a 357 – que, na procedência total da acção, seja declarada a nulidade do testamento outorgado por PP, em 22.1.1988, no Cartório Notarial de ....

            Para o efeito alegou que PP, no estado de solteira e com última residência no Lar de 3ª Idade da freguesia de ... (...), … de ..., faleceu no dia 18.6.2000, e que no dia 22.1.1988 havia lavrado um testamento, no Cartório Notarial de ..., no qual instituiu como seu herdeiro universal o seu sobrinho BB, demandado como Réu.

            Que esse testamento é nulo, na medida em que, à data em que foi outorgado, a PP não estava capaz de entender o alcance desse acto.

           Mais alega que é irmã da testadora e sua presuntiva herdeira e que só tomou conhecimento do testamento no âmbito do inventário que corre termos por óbito da dita testadora.

           O réu, BB, apresentou contestação, na qual, muito em resumo, impugnou a factualidade alegada pela Autora e invocou a caducidade do direito que a Autora pretende exercer, nos termos do art. 2308º, nº 2 do Código Civil – conforme fls. 273 a 273, 294 e 369 a 371.

            Terminou pedindo a improcedência da acção.

           Mas também refere que a Autora formalizou a procuração que juntou aos autos no Brasil, pelo que a dita deve obedecer às formalidades previstas no art. 540º do Código de Processo Civil, face ao que se deve entender não ter sido apresentada uma procuração válida, por parte da autora. 

           A fls. 309, com a data de 14.07.2009, foi proferido despacho, segundo o qual “a procuração junta pela autora a fls. 304 é um mero documento particular que, sendo suficiente para conferir mandato judicial, não está sujeito à disciplina prevista no art. 540º do Código de Processo Civil.”.

            Deste despacho interpôs recurso o Réu, BB, em 3.09.2009, fls. 314 e 315, recurso este que foi admitido como sendo de agravo, com subida diferida e com efeito devolutivo – fls. 316.

            A Autora apresentou articulado de réplica – fls. 338 a 343 e 359 a 364 –, onde manteve tudo quanto antes alegou e onde referiu que apenas teve conhecimento do testamento, a que se reporta o seu pedido na acção, após ter sido citada para os autos de inventário instaurados por óbito da testadora – Inventário nº30/2001 do Tribunal de Penacova –, sabendo da causa de nulidade do testamento através da comunicação do relatório médico relativo à testadora, pelo que só a partir de então é que começou a correr o prazo de caducidade, pelo que não se verifica a excepção de caducidade invocada pelo Réu.

           

            Terminou pedindo pela procedência da acção.

            Terminados os articulados, foi elaborado despacho saneador, no qual foi mantido que apenas o Réu BB é parte legítima, como demandado, encontrando-se, quanto ao mais, regularmente tramitada a acção – fls. 373 a 377.

           Foram, então, seleccionados os factos alegados e tidos como assentes e como controvertidos (tendo, porém, a redacção do quesito 7º da base instrutória sido alterada em sede de audiência de julgamento, conforme fls. 766).

           

           Foi realizada a audiência de julgamento com gravação da prova testemunhal produzida, conforme consta da respectiva acta – fls. 765 a 767 – posto que teve lugar a resposta à matéria de facto quesitada, com indicação da respectiva fundamentação, conforme fls. 770 a 772.

           Do despacho que alterou a redacção do quesito 7º da B.I. foi interposto recurso pelo Réu BB, conforme fls. 775/776, recurso este que foi admitido como sendo de agravo, com subida diferida e com efeito devolutivo – fls. 782.


***

           Proferida sentença sobre o mérito da causa, com data de 27.05.2013, nela foi decidido julgar-se a acção procedente, tendo sido declarado anulado o testamento outorgado por PP, em 22.01.1988, no Cartório Notarial de ... (fls. 783 a 797).


***

           

           Inconformado, o Réu BB, a fls. 826, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 30.6.2015 – fls. 914 a 923 verso – negou provimento aos recursos, quer de agravo, quer da sentença, confirmando as decisões recorridas.


***

           Inconformados, recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça, os RR. BB e mulher GG, que, alegando, formularam as seguintes conclusões:

            a) O Réu tem lutado desde o início para que lhe seja efectuado a justiça que julga ter direito, e, para tal alegou na sua contestação e nas suas posições que tomou quanto às diligências levadas a cabo nos autos, e muito em especial nas alegações dos recursos de agravo impetrados, assim como na apelação, as quais constam de fls. 232 a 328; 799 a 818 e 869 a 881, e que aqui se dão por reproduzidas, para todos os efeitos legais, muito em especial as conclusões, constantes das mesmas, onde constam todas as razões que julga suficientes para lhe ser feita aquela justiça;

           b) O recurso interposto que é de Revista e regulado pela lei adjectiva vigente à data do ano de 2005, quando tiveram início os autos, ou foi instaurada a acção, que eram, além do mais, os artigos 721° e 722º (do Código de Processo Civil), ou seja a violação da lei substantiva e a lei adjectiva que se apontaram durante os trâmites dos autos;

            c) A questão em causa diz respeito, essencialmente, à instituição de um herdeiro testamentário, por uma tia, que se veio impugnar, por no entender de alguns dos outros herdeiros legítimos (legais) com a indicação que a testadora PP não tinha capacidade de instituir o seu sobrinho, que tinha criado, como seu único e universal herdeiro através do testamento que outorgou;

           d) Mas de facto, a incapacidade relevante para anular o testamento, tinha de existir na data da outorga do testamento, a qual aconteceu perante a Notária de ..., no dia 22.01.1988;

           e) A testadora PP era maior, não tinha herdeiros legitimários e não se encontrava legalmente interdita por qualquer anomalia psíquica decretada pelo tribunal e, em princípio, tinha de se considerar plenamente capaz de outorgar um testamento;

          f) E naquele dia 22.01.1988, perante a senhora Notária, a PP outorgou de forma escorreita o testamento, verifique-se quer a caligrafia constante deste, quer a aposta 29.01.1988, quando perante a mesma Notária voltou a outorgar uma procuração, onde assinou de forma clara com letra perfeita e igual à anteriormente feita no testamento, e a senhora Notária leu aquele documentos, explicou os mesmos, sem qualquer dúvida e confronte-se as assinaturas;

           g) Na validade, não se fez qualquer prova que naquele dia 22.01.1988, a PP estaria incapacitada de manifestar a sua vontade, pois jamais alguém referiu que a tivesse visto naquele dia, para além da Notária e das testemunhas e a prova indirecta ou por presunção, neste caso, não devia ser admitida, pois nem sequer se provou que a testadora não pudesse vir a ter momentos lúcidos;

            h) E se algumas dúvidas podiam existir, quanto à última vontade da PP, em instituir o recorrente seu sobrinho de herdeiro. Elas poder-se-iam desfazer com o que foi proclamado pela testadora durante a sua vida normal, antes até de qualquer doença;

           i) E de facto o recorrente alegou essa matéria e, não restam dúvidas que se viesse a provar que assim aconteceu, ou seja, que esse foi sempre o seu desejo, manifestado ao longo da sua vida, julgamos que quaisquer dúvidas ficavam ultrapassadas;

           j) E a matéria que podia demonstrar tal atitude encontra-se alegada nos artigos 28° a 46° da contestação, que nem sequer foram impugnados especificadamente e, por isso, encontram-se de certa forma demonstrados aquela vontade de instituir o recorrente seu herdeiro, sem esquecer que a falta de precisão desta matéria também podia ser corrigida por indicação do M.mo Juiz, nos termos do nº3 do artigo 508° do Código de Processo Civil em causa;

           k) E o indeferimento e a oposição que o Réu teve de demonstrar, em função da realidade corrente, não pode deixar de violar as normas constantes do artigo 511° do Código de Processo Civil, na redacção vigente em 2005, o que determina a nulidade do Acórdão, por força do artigo 688° do mesmo Código;

           l) Mesmo que assim não se entendesse, o Acórdão sub judice violou, ao fazer errada interpretação das normas, além do mais, dos artigos 342°, 2178º, 2188º, 2191° e 2199° todos do Código Civil, muito em especial quanto ao ónus da prova e a aplicação do artigo 516º do Código de Processo Civil em vigor em 2005;

           Nestes termos e melhores de direito e, por tudo o mais que V. Exas. doutamente suprirão deve ser dado provimento ao recurso e em consequência julgar-se improcedente a acção e considerar o recorrente legal herdeiro da sua tia, ou quando assim se não entender anular-se os julgamentos efectuados e permitir que seja discutida a acção nos termos colocados na contestação.

            Não houve contra-alegações.


***

           Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

            1. No dia 18 de Junho de 2000 faleceu, no estado de solteira, PP, irmã da Autora, com última residência habitual no Lar de 3ª Idade, freguesia de ... (...), … de ... (conhecimento dos autos de inventário que neste Tribunal correm termos sob o nº 30/2001 e art. 514º, nº2, do Código de Processo Civil) – al. A) dos factos dados como assentes.

            2. Correm termos por este Tribunal os autos de inventário com o nº 30/2001, requerido pelo réu BB, no âmbito dos quais se pretende o términos da comunhão hereditária no que respeita aos bens deixados por, além de outros, PP – al. B dos factos dados como assentes.

           3. Em tal processo de inventário foram prestadas declarações pelo cabeça de casal, KK, que declarou que a inventariada PP havia deixado testamento tendo no mesmo instituído seu herdeiro universal o réu BB – al. C dos factos dados como assentes.

           4. Foi lavrado testamento no dia 22 de Janeiro de 1988 no Cartório Notarial de ..., através do qual PP instituiu seu herdeiro universal o seu sobrinho BB – al. D dos factos dados como assentes.

           5. Em 12 de Outubro de 1987 a PP foi internada no Hospital Psiquiátrico do Lorvão, manifestando um estado de permanente desorientação, no espaço e no tempo – resposta dada ao quesito 1º da base instrutória.

           6. Não sabendo referir idade nem data de nascimento – resposta dada ao quesito 2º da B.I.

           7. Falando com os pais e uma irmã, já falecidos, sobretudo quando estava frente a espelhos – resposta dada ao quesito 3º da B.I.

           8. Ficando por vezes aflita, partindo os espelhos – resposta dada ao quesito 4º da B.I.

           9. Constando do respectivo relatório médico que a doença principal era “demência por multi-enfartes” – resposta dada ao quesito 6º da B.I.

           10. Em 22 de Janeiro de 1998, PP não entendia o sentido da declaração que prestou, quando lavrou o testamento referido em 4. supra, bem como o alcance desse acto – resposta dada ao quesito 7º da B.I.

            Fundamentação:

           Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

           - se se verificam os requisitos de que depende a anulação do testamento por incapacidade da testadora.

           Uma vez que a acção de onde o recurso dimana foi instaurada em 6.12.2005, sendo que os dois despachos interlocutórios recorridos e a sentença foram prolatados em data anterior a 1.09.2013 – (a sentença está datada de 27.05.2013) – o regime recursivo aplicável a todos esses recursos é o do Código de Processo Civil, anterior às alterações nele introduzidas pelo DL. nº 303/2007, de 24.08, como resulta do art. 11º, nº 1, desse diploma e do disposto nos arts 7º, nº 1,  e 8º da Lei nº 41/2013, de 26.6, que aprovou o NCPC.

           Posto que as conclusões não primem pela clareza, delas parece decorrer, sobretudo se ponderado o que consta do corpo alegatório, que os Recorrentes pretendem que este Supremo Tribunal de Justiça reaprecie as questões objecto dos dois recursos interlocutórios (“agravos”) que versaram sobre questões processuais apreciadas pela Relação, em sentido desfavorável à sua pretensão e confirmatórias dos despachos recorridos.

           Esses recursos relacionam-se: um, com a validade da procuração forense, emitida no Brasil a favor da Advogada Dr.ª QQ, pretendendo os Recorrentes, que não tendo sido legalizada em Portugal não era válida; e o outro com a alteração feita em audiência de discussão e julgamento ao quesito 7º da Base Instrutória.

            Sendo certo que na conclusões J) a K) aventam a violação da lei processual pelo facto de não ter sido incluída na B.I. o que alegaram nos arts. 28º a 46º da sua contestação que entendem conter matéria de excepção, considerando violado o art. 511º do Código de Processo Civil, vigente antes das alterações introduzidas pela Reforma de 2007.

           Estas questões também foram apreciadas no Acórdão da Relação, no contexto da argumentação aduzida pelos recorrentes e foram consideradas improcedentes.

           Trata-se pois de “agravos continuados” – art. 754º, nº2, do Código de Processo Civil na redacção ao tempo vigente.

            Ora os Decretos-Leis 329-A/95 de 12.12 e 180/96 introduziram restrições à admissibilidade de recursos de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça visando “obstar a que um tribunal de revista como é, no nosso sistema judiciário, o Supremo se veja sistematicamente solicitado para resolver questões meramente processuais já decididas uniformemente nas várias instâncias e de acordo com jurisprudência pacífica”.

Estando em causa, de novo no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a pretensão de recorrer de questões já decididas, consonantemente, na 1ª Instância e na Relação, estamos perante agravos continuados – art. 754º, nº2, do Código de Processo Civil.

A recorribilidade de tais decisões depende da verificação de requisitos que tal normativo estatui: “Não é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da lª instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.°-A e 732.°-B jurisprudência com ele conforme”.

O recurso não se nos afigura admissível, como resulta do normativo citado, na redacção do Decreto-Lei nº375/99, de 20 de Setembro, uma vez que o Acórdão da Relação foi proferido “sobre decisão da 1ª Instância”, e não se verifica nenhuma das hipóteses em que o agravo seria possível.

           

            Como a propósito se sentenciou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.5.2009, Proc.09B0301, acessível em www.dgsi.pt

                “A lei proíbe o recurso de agravo dos acórdãos da Relação sobre decisões proferidas em recursos de agravo vindos da 1ª instância (artigo 754º, nº2, 1ª parte, do Código de Processo Civil).

Consequentemente, a regra é no sentido de ser inadmissível recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos pelo tribunal da Relação em recursos de agravo de decisões sobre matéria processual proferidas nos tribunais de 1ª instância.

É uma restrição motivada pelo desiderato de obstar a que o Supremo Tribunal de Justiça, tribunal essencialmente de revista, seja constantemente chamado a resolver questões meramente processuais já objecto de dupla apreciação jurisdicional, como ocorre no caso vertente.

Excepcionam-se, porém, dessa proibição, por um lado, os recursos de agravo que tenham por fundamento a violação das regras de competência absoluta ou de caso julgado ou que incidam sobre decisões respeitantes ao valor da causa, dos incidentes ou dos procedimentos cautelares, com fundamento em que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre e das decisões que ponham termo ao processo (artigo 754º, nº 3, do Código de Processo Civil).

E, por outro, os acórdãos da Relação que estiverem em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme (artigo 754º, nº 2, 2ª parte, do Código de Processo Civil).

Em síntese, a mencionada excepção de admissibilidade de recurso de agravo dos acórdãos da Relação depende da verificação dos seguintes pressupostos: acórdão da Relação sobre recurso de agravo de decisão proferida na 1ª instância; contradição desse acórdão com outro da mesma ou de outra Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça proferidos no domínio da mesma legislação sobre alguma questão de direito; inexistência de jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça harmónica com o decidido.

É neste contexto de excepção que a lei admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da Relação com soluções opostas, sobre a mesma questão de direito, às de outros acórdãos da mesma ou de outra Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, todos proferidos no domínio da mesma legislação, se não tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência nesse sentido”. (sublinhámos)

           A admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de tais decisões interlocutórias dependia, nos termos do normativo aplicável do Código de Processo Civil, da demonstração pelo Recorrente da existência de oposição, entre a decisão do Acórdão e anterior decisão sobre a mesma questão, constante de acórdão das Relações ou do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, implicava a prova do crucial requisito postulado naquela norma, qual seja a verificação de conflito jurisprudencial.

            Neste sentido “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª Edição, do agora Conselheiro Lopes do Rego, em nota ao art. 754º do Código de Processo Civil, págs. 640 a 642.

            Não tendo o recorrente feito prova da oposição a que alude o nº2 do normativo citado e não correndo a excepção a que alude o nº3, não são recorríveis para este Supremo Tribunal de Justiça os recursos interlocutórios já apreciadas no Tribunal da Relação.

                Da questão de mérito:

           Atenta a causa de pedir e o pedido formulado pela Autora consiste este na declaração, lato sensu, da invalidade do testamento feito em 22.1.1988 por PP, irmã da demandante, a favor do Recorrente/Réu seu sobrinho, instituindo-o seu único e universal herdeiro.

           A Autora alegou que a testadora, falecida em 18.6.2000, tinha feito testamento a favor do seu sobrinho, sendo que, nessa data, não estava capaz de entender o alcance do acto por padecer de doença que afectava a sua vontade.

           O Réu contrapôs que a testadora estava de posse das suas faculdades mentais, jamais foi interdita, e que, por razões afectivas, quis fazer o testamento nos termos em que o fez.

           Excepcionou, ainda, a caducidade do direito de accionar, excepção que foi julgada improcedente e que agora não constitui objecto do recurso.

            Vejamos:

O art. 2179°, nº1, do Código Civil define testamento como “O acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles”.

Por ser um acto unilateral, pessoal, e não um negócio jurídico, relevante para interpretação da vontade do testador é a consideração da sua intenção, em ordem a saber se a sua vontade prevalece sobre a interpretação de terceiros, sobretudo, os que se arroguem direitos emergentes da vontade do testador expressa solenemente no testamento, como acto de vontade.

Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 3ª edição – pág. 396 – ensina:

 “O testamento é um negócio de cariz muito peculiar. Ao contrário dos negócios entre vivos, não tem por função vincular o seu autor, mas antes dispor sobre o destino do seu espólio para depois da sua morte. O respeito pela última vontade das pessoas é uma exigência de Direito Natural que implica, na interpretação do testamento, o respeito escrupuloso pela vontade real do testador em tudo aquilo que não seja contrário à Lei imperativa e à Moral ou não seja impossível. Nesta perspectiva, a interpretação dos testamentos deve ser subjectiva”.

           Tratando-se de um acto de disposição patrimonial gratuito, importa sobremaneira, que a vontade e o livre arbítrio do testador não sejam afectados por qualquer circunstância temporária ou permanente que tolha as suas faculdades intelectuais, volitivas, pois, de outro modo, não pode falar-se em acto de vontade livre e esclarecido.

            No caso em apreço, não se trata de interpretar o testamento mas de saber se é valida a declaração de vontade da testadora, se a sua vontade naquele momento, estava afectada por doença ou circunstância impeditiva de saber o que queria e medir o alcance do acto unilateral que o testamento é.

           O art. 2188º do Código Civil, que rege sobre capacidade testamentária activa (limitando-a a pessoas singulares, os “indivíduos”), afirma: “Podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer”.

           O art. 2189º expressa que “São incapazes de testar: a) os menores não emancipados; b) os interditos por anomalia psíquica.” 

           No art. 2308º prevêem-se prazos de caducidade da acção de nulidade do testamento – no seu nº1, e de anulabilidade no nº2.

           Nos termos do art. 2199º do Código Civil –“É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapaz de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”.

           A incapacidade acidental, a que se refere o art. 2199º do Código Civil, afectando ou obnubilando a vontade do testador, constitui vício volitivo que determina a anulabilidade do acto; o normativo quer proteger o testador, o seu acto de vontade unilateral, ao passo que o art. 257º do Código Civil, que também versa sobre a incapacidade acidental, mas em actos contratuais e tem o seu campo de aplicação nos negócios jurídicos bilaterais visa proteger, sobretudo, o declaratário desde logo exigindo como requisito de anulabilidade da declaração que o facto determinante da incapacitação acidental de entender o sentido da declaração de vontade seja notório, ou conhecido do declaratário.

            No citado normativo prescinde-se dos requisitos notoriedade ou cognoscibilidade do vício que afecta a vontade do declarante, desde logo, por se tratar de um acto unilateral, um negócio jurídico não recipiendo, que não carece de aceitação para produzir os seus efeitos.

           Em comentário ao art. 2199º do Código Civil, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. VI, pág. 323, ensinam:

           “A primeira destas regras específicas, constante do artigo 2199.°, refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.

                A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiências psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.

                E por conseguinte o mesmo tipo de deficiência psicológica que o artigo 257º considera em relação aos actos entre vivos em geral.

                Na área das disposições testamentárias, trata-se de uma situação de crise essencialmente distinta da abrangida na alínea b) do artigo 2189º (incapacidade de testar baseada na interdição por anomalia psíquica).

                A nulidade do testamento feito pelo interdito baseia-se na presunção do estado ou situação de incapacidade, juris et de jure, criada pela sentença, desde que é proferida até ao momento em que a interdição é levantada.

                A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199º, assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.”

            O estado de incapacidade acidental do testador deve existir no momento da feitura do testamento, incumbindo ao interessado na invalidade o ónus da prova dos factos reveladores de incapacidade acidental – art. 342º, nº1, do Código Civil.

           Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11.4.2013, Proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1, in www.dgsi.pt, de que foi Relator o Conselheiro Gabriel Catarino, (itens X a XII do Sumário):

           “Ao invés do que acontece nas situações de anulação da declaração negocial conformadora de um acto ou negócio jurídico, em geral, por incapacidade acidental, em que a lei exige que “o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário” (art. 257.º, n.º 1, do Código Civil), no caso previsto no art. 2199.º do Código Civil, a anulação do testamento por idêntica razão – incapacidade acidental – não é exigida essa notoriedade, bastando-se com a prova da existência de um estado de incapacidade natural que seja coeva ou contemporânea do momento em que o declarante emite a declaração relativa à disposição dos seus bens post mortis.

                 Compete ao peticionante da anulabilidade do acto jurídico de disposição post mortem, a prova dos factos conducentes à verificação do estado de incapacidade que obnubilaria a sã capacidade de dispor dos seus bens e o discernimento quanto às consequências decorrentes do acto ditado.

              Ao peticionante da anulabilidade do acto jurídico testamentário, por incapacidade acidental, compete provar que o testador sofria de doença que, no plano clínico, é comprovada e cientificamente susceptível de afectar a sua capacidade de percepção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer acto de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente”.

               A incapacidade para entender e querer, no momento da feitura do testamento, não tem necessariamente de estar afirmada por uma sentença que declare a interdição do testador, o que pressupõe um estado continuado, permanente, de incapacidade volitiva, essa incapacidade pode ser meramente ocasional, transitória, desde que seja contemporânea da declaração volitiva plasmada no testamento.

           Não têm, pois, razão os Recorrentes quando afirmam que, no momento em que a testadora fez o testamento, estava na posse das suas faculdades mentais, pois não fora judicialmente declarada interdita.

           Os factos provados acerca do estado de saúde mental da testadora são eloquentes.

           

          O testamento foi feito quando a testadora tinha 68 anos de idade, em 22.1.1998, sendo que nessa data não entendia o sentido da declaração que prestou, nem o alcance desse acto. No ano anterior esteve internada no Hospital Psiquiátrico manifestando um estado de desorientação permanente no tempo e no espaço não sabendo a sua idade.

           “Falava” com os pais e irmã já falecidos, sobretudo, quando estava em frente a espelhos, constando do seu relatório médico que a doença principal era demência por multi-enfartes.

            A grave situação de saúde que se iniciou, pelo menos quando do seu internamento psiquiátrico em Hospital Psiquiátrico, existia na data da feitura de testamento, e, por isso, a testadora não entendia o sentido da declaração, quando o lavrou, assim como não podia intelectualmente representar o alcance desse acto.

           O estado demencial, sem dúvida que preexistia à data do testamento e permanecia nessa data, privando a testadora de vontade e discernimento para o grave acto de disposição gratuita da totalidade dos seus bens, o que exprime ausência de vontade livre e esclarecida e determina, por privação ao menos acidental de discernimento e livre arbítrio, a anulabilidade do testamento.

           Os Recorrentes sustentam que, constando o testamento de documento autêntico e tendo sido lavado na presença de Notário, que não mencionou a existência de qualquer deficiência de vontade da testadora que possa ser considerada incapacidade acidental, tal documento faz prova plena da ausência de qualquer perturbação volitiva.

            Nos termos do art. 362º do Código Civil – “Prova documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto”.

           Os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares; estes podem ser autenticados, precisando os nºs 2 e 3 do art. 363º do Código Civil as definições legais.

           “Autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares” – art. 371º, nº1, do Código Civil.

 

               A força probatória plena dos documentos autênticos circunscreve-se às percepções neles afirmadas pela autoridade ou oficial público documentador, já não à sinceridade, genuinidade ou verdade das declarações dos intervenientes, ou a factos que não possam por ele ser comprovados cientificamente; o facto de não constar numa escritura pública, suporte de um testamento, que a testadora estava acidentalmente incapaz de entender ou querer, não impede que essa prova se faça ulteriormente.

                Apesar do nº2 do art. 393º do Código Civil estipular que “Não é admitida prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena”, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, pág. 342, em comentário a tal normativo, sustentam que o preceito deve ser interpretado “nos seus justos termos”, já que, “nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta ou vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.

            O documento prova, em dados termos, que o seu autor fez as declarações nele constantes; os factos compreendidos na declaração consideram-se provados, quando sejam desfavoráveis ao declarante. Mas o documento não prova nem garante, nem podia garantir, que as declarações não sejam viciadas por erro, dolo, ou coacção ou simuladas. Por isso mesmo a prova testemunhal se não pode, neste aspecto considerar legalmente interdita”.

            Tendo sido feita prova da incapacidade volitiva e da ausência de adequada representação das consequências e alcance do testamento, inexorável é a declaração da sua anulabilidade por incapacidade acidental da testadora.  

            Pelo quanto dissemos o Acórdão recorrido não merece censura.

            Sumário –  art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil

         

            Decisão.

            Nega-se a revista.

            Custas pelos recorrentes.

            Supremo Tribunal de Justiça, 19 de janeiro 2016

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

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[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.