Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5836/16.8T9LSB-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
PRESSUPOSTOS
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
OPOSIÇÃO EXPRESSA
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A admissibilidade de recurso directo para o STJ, de decisões proferidas contra jurisprudência que por ele se mostra fixada, prevista no artigo 446.º, do CPP, está directamente relacionada com a necessidade de garantir o controle difuso dos fundamentos das decisões das instâncias que, eventualmente, não acatem tal jurisprudência, por via do reexame do tribunal superior. Visa, pois, a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando eventuais conflitos existentes entre uma decisão com outra que fixou jurisprudência sobre a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação.
II - Esta disposição está directamente ligada com o n.º 3, do art. 445.º, do CPP. Entende-se que incumbe ao tribunal que não acate tal jurisprudência, um particular dever de fundamentação de modo a convencer da razoabilidade dos fundamentos que sustentam essa divergência, havendo recurso nos termos do art. 446.º, do CPP, para permitir uma reponderação que atenda aos novos argumentos.
III - Da conjugação dos arts. 445.º, n.º 3 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP, decorre que apenas haverá fundamento para recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão que divirja da fixação não a aceite, expressamente a contestando, o que é diverso da desaplicação da jurisprudência fixada por desconhecimento ou errada interpretação, devendo quanto a esta o meio de impugnação, ser o de recurso ordinário.
IV - A possibilidade de interpor este recurso extraordinário apenas se admite quando estiverem esgotados todos os recursos ordinários, seja por que a eles se lançou mão sem êxito, seja por que, não importa o motivo, se deixou precludir o direito a recorrer, nomeadamente, por trânsito em julgado da decisão recorrida. E, sendo assim, tem assumido a jurisprudência que para a admissibilidade deste recurso extraordinário, impõe-se a verificação de determinados requisitos de natureza formal e de natureza substancial.
V - Entre os requisitos de ordem formal contam-se a legitimidade do recorrente - que é restrita ao arguido, ao assistente, às partes civis e ao MP - e a interposição do referido recurso no prazo de 30 dias, contados a partir do trânsito da decisão de que se pretende recorrer. É ainda exigível a existência de prévio trânsito em julgado, por esgotada a possibilidade de recurso ordinário.
VI - A nível substancial, exige-se a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência. Exige-se, nos termos do disposto no art. 445.°, n.° 3, que "a decisão recorrida tenha decidido em sentido divergente ao do acórdão uniformizador, por não acatamento da sua doutrina, caso em que o tribunal que assim decida terá de fundamentar a sua divergência".
VII - O recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada está, assim, sujeito aos mesmos requisitos substanciais exigidos para o recurso de fixação de jurisprudência, isto é, necessário é que a oposição respeite à própria decisão e não aos fundamentos, bem como que se verifique identidade de facto quanto à mesma questão de direito.
VIII - Atento o despacho recorrido verifica-se que o mesmo foi proferido no início da audiência de julgamento, sem ter sido produzida qualquer prova, baseando-se apenas na matéria de facto elencada na acusação. Ou seja, não houve qualquer alteração dos factos. A arguida vinha apenas acusada pela prática de 1 crime de abuso de poder, tendo sido considerado que estavam em causa 32 crimes de abuso de poder, tal correspondeu apenas a uma alteração da qualificação jurídica dos mesmos factos. Apenas constituem alteração substancial dos factos aqueles casos em que é imputado ao arguido um crime diverso, ou quando haja uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis [artigo 1.º, al. f), do CPP]. Ora, no presente caso o crime foi o mesmo, com a diferença de que os factos foram classificados como integrando 32 crimes de abuso de poder, em vez de um único crime de abuso de poder.
IX - O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 229/2016, já considerou ser admissível, através da alteração da qualificação jurídica dos factos (sem que os factos tout court sejam alterados) o aumento (relativamente à acusação) das infrações imputadas ao arguido.
X - Apesar de o despacho recorrido, ter decidido em desrespeito ao que se mostra decidido no acórdão de fixação n.º 11/2013, verifica-se, que não manifestou a sua discordância expressa, face a tal acórdão de fixação, contestando-o, ou negando a sua validade.
XI - Motivo que nos leva a entender que não é admissível o presente recurso contra jurisprudência fixada.
XII - Com efeito, nos casos em que a decisão não expressa qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, não negando a sua validade, mas não a aplicando, quer por desconhecimento, ou mau entendimento, estamos perante uma errada aplicação do direito, que pode ser impugnada pelas vias normais, no caso de estas ainda o permitirem, mas não é possível interpor recurso extraordinário contra jurisprudência fixada.
XIII - O despacho recorrido não fez qualquer alusão à jurisprudência fixada no AFJ n.º 11/2013, nem a aplicou, nem a questionou, não negou a sua validade, nem afirmou qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, pura e simplesmente nada disse em aparente desconhecimento. Pelo que, analisando o caso dos autos, não podemos deixar de concluir que, uma vez que na decisão recorrida, o tribunal a quo, não expressou oposição à jurisprudência fixada pelo STJ através do acórdão n.º 11/2013, tendo tão só e apenas deixado de o aplicar, não se está, assim, perante decisão proferida contra jurisprudência fixada e, assim sendo, não estão reunidos todos os pressupostos para admissão do presente recurso.
XIV - Razão que leva à rejeição do recurso extraordinário contra jurisprudência fixada, nos termos conjugados dos arts. 440.º, n.º 4, e 441.º, n.º 1, correspondentemente aplicáveis ao caso, por força do art. 446.º, n.º 1.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 5836/16.8T9LSB-A. S1

(recurso extraordinário contra jurisprudência fixada)

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. O Ministério Público, junto do Juízo Central Criminal de …., Juiz …., veio interpor recurso extraordinário contra jurisprudência fixada, ao abrigo do disposto no artigo 446.º, do Código de Processo Penal (CPP), do despacho que decidiu proceder à alteração da qualificação jurídica quanto ao crime de abuso de poder imputado à arguida na acusação pública, despacho esse proferido a 15.10.2020, após a abertura da audiência de julgamento, sem que tenha havido qualquer produção de prova, que nem tampouco se iniciou. Entende o Ministério Público que tal despacho contraria nitidamente a jurisprudência fixada no Acórdão proferido pelo STJ n.º 11/2013, publicado a 19.07.2013 (doravante designado por AFJ) sem que tenham sido adiantados elementos novos que permitam pôr em crise tal jurisprudência, pelo que, deve ser aquele despacho ser revogado e substituído por outro que respeite a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

2. O recurso foi admitido por despacho de 14.12.2020.

3. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, onde em Parecer, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta considerou estarem preenchidos os requisitos de que depende a admissibilidade do recurso interposto pelo Ministério Público, e que o mesmo deve ser admitido, reconhecendo-se que o despacho recorrido violou a jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 11/2013, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 138, de 19.07.2013, determinando-se a revogação do despacho recorrido por força da aplicação dessa jurisprudência.

4. Foi proferido exame preliminar nos termos do disposto no artigo 440.º, n.º 1, do CPP ex vi artigo 446.º, n.º 2, do CPP.

5. Foram os autos remetidos a conferência, nos termos do artigo 440.º, n.º 4, do CPP, ex vi artigo 446.º, n.º 1, do CPP.

II.

6. Compulsados os autos retira-se o seguinte:

6.1. O despacho que deu origem ao presente recurso extraordinário contra fixação de jurisprudência tem o seguinte teor:

(…)

Nos presentes autos, foi deduzida acusação pública contra Arguida AA, por alegadamente, entre os dias 24/09/2015 e 07/10/2016, a mesma ter nomeado, ao arrepio das normas legais aplicáveis, advogado seu conhecido, para intervir em trinta e dois processos sumaríssimos, cf. ref.ª ….., imputando-lhe a prática de um (1) crime de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º do CP.

Porém na acusação pública deduzida, foi-lhe imputada tal atuação em trinta e dois (32) processos.

Assim, de modo a evitar a prática de atos inúteis, atento o disposto no artigo 141.º do CPC ex vi artigo 4.º do CPP, desde já se procede à comunicação da alteração da qualificação jurídica dos crimes imputados na acusação pública deduzida contra a arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 e n.º 3 do artigo 358.º do CPP, passando a mesma a estar incursa na prática de:

Trinta e dois (32) crimes de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º do CP. (…).

Na sequência de tal despacho, a defensora da arguida declarou prescindir do prazo para se pronunciar relativamente à alteração da qualificação jurídica e o Ministério Público promoveu a remessa dos autos ao Juízo Central Criminal por ser o competente, atenta a alteração da qualificação jurídica comunicada.

O Tribunal proferiu então novo despacho, com o seguinte teor:

O crime de abuso de poder é punível com pena de prisão até três anos, ou pena de multa, atento o disposto no artigo 382.º do CP.

Atendendo aos trinta e dois crimes de abuso de poder em que a Arguida passou a estar incursa, a pena máxima aplicável é bastante superior a cinco anos de prisão.

Assim, a competência para apreciar e julgar os presentes autos, cabe ao tribunal coletivo, atento o conjugadamente disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 14. °, artigo 13. ° e artigo 16. ° todos do CPP.

Atendendo ao local da prática dos factos imputados - ….. - é competente para conhecer dos presentes autos, o Juízo Central Criminal ….., atento o conjugadamente disposto no artigo 7.° do CP, artigo 7.° e artigo 19.°, ambos do CPP ex vi n.º 1 do artigo 118.° e alínea a) do artigo 134.°, ambos da LOSJ, alínea l) do artigo 64. ° alínea b) do n.º 1 do artigo 84. ° n.º 3 do artigo 4. ° - Mapa III, do ROFTJ.

Pelo exposto, o presente Juízo Local Criminal do Tribunal da Comarca …… é materialmente incompetente para apreciar e conhecer dos presentes autos, o que se declara.

Notifique. Após trânsito, remeta à Secção Central Criminal ….. (…).

6.2. Em 24.11.2020, foi proferido despacho pelo Sr. Juiz do Juízo Central Criminal …., Juiz ….., que aqui se transcreve, por conter todos os elementos para conhecimento do presente recurso:

(…) Em 02.10.2019, o Ministério Público, em processo comum e perante tribunal singular, deduziu acusação contra a arguida AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do Código Penal (fls. 462 a 466).

Em 18.11.2019, o processo foi remetido ao Juízo Local Criminal …., a fim de aí ser distribuído, para julgamento (fls. 474).

Por seu turno, em 05.12.2019, o Juízo Local Criminal ….. proferiu os despachos a que aludem os arts. 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, nomeadamente, considerando que o Tribunal é competente e designando o dia 11.03.2020, pelas 09h30, para o início da audiência de discussão e julgamento (fls. 477).

Após ter sido dada sem efeito a data designada para o início da audiência de discussão e julgamento (fls. 501), foi marcado para o efeito o dia 15.10.2020, pelas 09h30 (fls. 506).

Nesta data, aquando do início da audiência de discussão e julgamento, e sem que tivesse sido produzida qualquer prova, foi proferido despacho em que se refere que nos presentes autos, foi deduzida acusação pública contra Arguida AA, por alegadamente, entre os dias 24/09/2015 e 07/10/2016, a mesma ter nomeado, ao arrepio da normas legais aplicáveis, advogado seu conhecido, para intervir em trinta e dois processos sumaríssimos, cf. ref.ª ……, imputando-lhe a prática de um (1) crime de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º do CP, mais se acrescentando que, porém na acusação pública deduzida, foi-lhe imputada tal atuação em trinta e dois (32) processos, bem como que, assim, de modo a evitar a prática de atos inúteis, atento o disposto no artigo 141.º do CPC ex vi artigo 4.º do CPP, desde já se procede à comunicação da alteração da qualificação jurídica dos crimes imputados na acusação pública deduzida contra a arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 e n.º 3 do artigo 358.º do CPP, passando a mesma a estar incursa na prática de: trinta e dois (32) crimes de abuso de poder, previsto e punível pelo artigo 382.º do CP (cf. a acta da audiência de discussão e julgamento de 15.10.2020, a que corresponde a referência Citius …..).

Nesta sequência, após o Ministério Público ter promovido a remessa dos autos para o Juízo Central Criminal ….., alegando para tanto que é o competente, atenta a alteração da qualificação jurídica (...) comunicada, e nada tendo a defensora da arguida requerido em face da alteração da qualificação jurídica, foi proferido novo despacho, em que se considerou que o crime de abuso de poder é punível com pena de prisão até três anos, ou pena de multa, atento o disposto no artigo 382º do CP, que atendendo aos trinta e dois crimes de abuso de poder em que a Arguida passou a estar incursa, a pena máxima aplicável é bastante superior a cinco anos de prisão, que assim, a competência para apreciar e julgar os presentes autos, cabe ao tribunal coletivo, atento o conjugadamente disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º, artigo 13.º e artigo 16.º, todos do CPP, e que atendendo ao local da prática dos factos imputados - …. - é competente para conhecer dos presentes autos, o juízo Central Criminal …., atento o conjugadamente disposto no artigo 7.º do CP, artigo 7.º e artigo 19.º, ambos do CPP ex vi n.º 1 do artigo 118.º e alínea a) do artigo 134.º, ambos da LOSJ, alínea l) do artigo 64.º, alínea b) do n.º 1 do artigo 84.º, n.º 3 do artigo 4.º - Mapa III, do ROFTJ. Por fim, no mesmo despacho, fez-se constar que pelo exposto, o presente juízo Local Criminal do Tribunal da Comarca de …. é materialmente incompetente para apreciar e conhecer dos presentes autos, o que se declara (cf. a citada acta).

De seguida, em 19.11.2020, após se ter aguardado pelo trânsito em julgado do aludido despacho [art. 411.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal], o processo foi remetido à distribuição pelo Juízo Central Criminal …. (fls. 524).

No entanto, o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão n.º 11/2013, fixou jurisprudência nos seguintes termos: “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP” (publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 138, de 19.07.2013).

Ou seja, o citado despacho proferido pelo Juízo Local Criminal de …. em 15.10.2020, no início da audiência de discussão e julgamento, sem que tenha havido produção de prova, em que se decidiu proceder à comunicação da alteração da qualificação jurídica dos crimes imputados na acusação pública deduzida contra a arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 e n.º 3 do artigo 358.º do CPP, contraria a mencionada jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

De harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 446.º do Código de Processo Penal, é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida (...), acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito legal que o recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

Assim, em face do exposto, tendo o mencionado despacho do Juízo Local Criminal …. que contraria jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça sido proferido em 15.10.2020 e transitado em julgado em 16.11.2020, aguardem os autos o decurso do prazo a que alude o art. 446.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para ser interposto pelo Ministério Público recurso extraordinário obrigatório.

Notifique o Ministério Público e a arguida. (…).

7. Apreciemos.

A admissibilidade de recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de decisões proferidas contra jurisprudência que por ele se mostra fixada, prevista no artigo 446.º, do CPP, está directamente relacionada com a necessidade de garantir o controle difuso dos fundamentos das decisões das instâncias que, eventualmente, não acatem tal jurisprudência, por via do reexame do tribunal superior. Visa, pois, a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando eventuais conflitos existentes entre uma decisão com outra que fixou jurisprudência sobre a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação.

Esta disposição está directamente ligada com o n.º 3, do artigo 445.º, do CPP que prevê: “(…) A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão. (…)”.

Entende-se que incumbe ao tribunal que não acate tal jurisprudência, um particular dever de fundamentação de modo a convencer da razoabilidade dos fundamentos que sustentam essa divergência, havendo recurso nos termos do artigo 446.º, do CPP, para permitir uma reponderação que atenda aos novos argumentos.

Decorre, deste modo, da conjugação dos artigos 445.º, n.º 3 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP, que apenas haverá fundamento para recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão que divirja da fixação não a aceite, expressamente a contestando, o que é diverso da desaplicação da jurisprudência fixada por desconhecimento ou errada interpretação, devendo quanto a esta o meio de impugnação, ser o de recurso ordinário[1]. Por outras palavras, a possibilidade de interpor este recurso extraordinário apenas se admite quando estiverem esgotados todos os recursos ordinários, seja por que a eles se lançou mão sem êxito, seja por que, não importa o motivo, se deixou precludir o direito a recorrer, nomeadamente, por trânsito em julgado da decisão recorrida. E, sendo assim, tem assumido a jurisprudência que para a admissibilidade deste recurso extraordinário, impõe-se a verificação de determinados requisitos de natureza formal e de natureza substancial.

Entre os requisitos de ordem formal contam-se a legitimidade do recorrente - que é restrita ao arguido, ao assistente, às partes civis e ao Ministério Público - e a interposição do referido recurso no prazo de 30 dias, contados a partir do trânsito da decisão de que se pretende recorrer. É ainda exigível a existência de prévio trânsito em julgado, por esgotada a possibilidade de recurso ordinário.

A nível substancial, exige-se a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência. Exige-se, nos termos do disposto no artigo 445.°, n° 3, que "a decisão recorrida tenha decidido em sentido divergente ao do acórdão uniformizador, por não acatamento da sua doutrina, caso em que o tribunal que assim decida terá de fundamentar a sua divergência".

O recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada está, assim, sujeito aos mesmos requisitos substanciais exigidos para o recurso de fixação de jurisprudência, isto é, necessário é que a oposição respeite à própria decisão e não aos fundamentos, bem como que se verifique identidade de facto quanto à mesma questão de direito.

8. No caso em apreço, no que diz respeito aos requisitos formais, os mesmos encontram-se preenchidos, já que o presente recurso foi interposto por quem tinha legitimidade para tanto, in casu, o Ministério Público – e foi tempestivamente apresentado.

9. Refere o Ministério Público, no recurso interposto, que o despacho judicial proferido em 15.10.2020 pelo Juízo Local Criminal …. contraria nitidamente a jurisprudência fixada no Acórdão proferido pelo STJ n.º 11/2013, publicado in Diário da República n.º 138/2013, Série I, de 2013-07-19 que, decidiu que “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3, do CPP”.

Entendemos que lhe cabe razão neste segmento da sua alegação.

Decidiu o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 11/2013, publicado no Diário da República n.º 138/2013, Série I de 2013-07-19 que “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP”.

Conforme se defendeu neste Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 11/2013:

“(…) Ora, considerando que a acusação, definidora do objecto do processo, integra, para além dos factos, as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica (um dos requisitos obrigatórios da acusação cuja omissão acarreta rejeição - artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP), a alteração da qualificação efectuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação.

De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição.

É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação.

No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.

Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade. (…)

Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.

Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete. E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto."

10. Atento o despacho recorrido verifica-se que o mesmo foi proferido no início da audiência de julgamento, sem ter sido produzida qualquer prova, baseando-se apenas na matéria de facto elencada na acusação. Ou seja, não houve qualquer alteração dos factos. A arguida vinha apenas acusada pela prática de 1 crime de abuso de poder, tendo sido considerado que estavam em causa 32 crimes de abuso de poder, tal correspondeu apenas a uma alteração da qualificação jurídica dos mesmos factos.

Apenas constituem alteração substancial dos factos aqueles casos em que é imputado ao arguido um crime diverso, ou quando haja uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis [artigo 1.º, al. f), do CPP].

Ora, no presente caso o crime foi o mesmo, com a diferença de que os factos foram classificados como integrando 32 crimes de abuso de poder, em vez de um único crime de abuso de poder.

Na verdade, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 229/2016[2], já considerou ser admissível, através da alteração da qualificação jurídica dos factos (sem que os factos tout court sejam alterados) o aumento (relativamente à acusação) das infrações imputadas ao arguido: "Este julgamento apoiou-se em anterior jurisprudência deste Tribunal que em matéria de processo penal sempre sustentou que era admissível a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido pelo juiz do julgamento, mesmo que essa alteração agrave a posição do arguido, designadamente imputando-lhe um número superior de crimes àqueles que constavam da acusação ou da pronúncia, desde que essa alteração seja comunicada ao arguido, facultando-lhe a possibilidade de reformular a sua defesa, face à alteração produzida. ".

11. Assim, da análise do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 11/2013 e do confronto da jurisprudência pelo mesmo fixada com o despacho recorrido e a situação que lhe está subjacente, ressalta que não foi respeitada aquela jurisprudência fixada.

Com efeito, o despacho recorrido (proferido pelo Juízo Local Criminal) procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos imputados à arguida na acusação - de 1 para 32 crimes de abuso de poder - e fê-lo no início da audiência de julgamento, sem que fosse produzida qualquer prova, disso dando conhecimento à arguida para efeitos do disposto no artigo 358.º, n.º 3 do CPP.

No entanto, e apesar de o despacho recorrido, ter decidido em desrespeito ao que se mostra decidido no acórdão de fixação n.º 11/2013, verifica-se, que não manifestou a sua discordância expressa, face a tal acórdão de fixação, contestando-o, ou negando a sua validade.

Motivo que nos leva a entender que não é admissível o presente recurso contra jurisprudência fixada.

Com efeito, nos casos em que a decisão não expressa qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, não negando a sua validade, mas não a aplicando, quer por desconhecimento, ou mau entendimento, estamos perante uma errada aplicação do direito, que pode ser impugnada pelas vias normais, no caso de estas ainda o permitirem, mas não é possível interpor recurso extraordinário contra jurisprudência fixada.

Neste mesmo sentido já foi decidido, no acórdão proferido em 31.10.2019, no Proc. n.º 285/11.7TAEPS.G1-A. S1, onde chamou à colação o decidido no acórdão deste Tribunal proferido no processo n.º 1727/14.5TAGM-A. S1, em 18.10.2017[3], no qual se refere que:

1. Sobre este tipo de recurso considerou-se em acórdão deste Supremo Tribunal de 27/04/2017, proferido no processo n° 28/13.0SPPRT.P1. S1 da 5ª secção, subscrito por esta formação de juízes: Nos termos do art° 446° do CPP, «é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis» as disposições que regulam o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Esta norma está directamente relacionada com a do n° 3 do art° 445°, que imediatamente a precede: embora a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça não seja obrigatória para os tribunais judiciais, «estes devem fundamentar as divergências relativas» a essa jurisprudência.

Deve, pois, entender-se que é das decisões que, ao abrigo do n° 3 do art° 445°, divirjam da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça que se admite o recurso previsto no art° 446°, ou seja, das decisões que não aceitem essa jurisprudência, contestando-a. Não das decisões que, sem afrontarem a referida jurisprudência, deixem de aplicá-la, por desconhecimento ou por dela fazerem uma errada leitura.

Por outras palavras, para o efeito previsto no art. 446. °, n.º 1, decisões proferidas contra jurisprudência fixada são as que se inserem na categoria acabada de delimitar na norma anterior: aquelas que divergem dessa jurisprudência. Só nesses casos se justifica que seja sempre admitido recurso para o Supremo, que será directo se estiver em causa uma decisão de 1 ª instância, na medida em que, sendo questionada a validade da jurisprudência por si fixada, se pode equacionar a necessidade de a reexaminar, de acordo com o n.º 3 do mesmo art. 446.º.”

Nos casos em que a decisão não afirma qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, isto é, não nega a sua validade, mas a não aplica, por desconhecimento ou mau entendimento, o que pode haver é uma errada aplicação do direito, que, como todas as erradas aplicações do direito, pode ser impugnada na medida em que as vias normais o permitam. Não há, na verdade, qualquer justificação para que uma decisão que não põe em causa a validade da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça admita mais meios de impugnação do que uma decisão que aplica incorrectamente o direito.

Já assim não é no caso de divergência assumida. Aí, porque é posta em causa a validade da jurisprudência fixada, há necessidade de decidir se ela continua válida. E isso só pode ser feito por meio do recurso extraordinário, visto que se pode colocar a questão do reexame dessa jurisprudência, para o qual só tem competência o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Só uma decisão desse tipo justifica o desencadeamento do mecanismo processual destinado a verificar se a jurisprudência fixada se mantém válida. Reafirma-se aqui esse entendimento.”.

12. No caso em apreço, o despacho recorrido não fez qualquer alusão à jurisprudência fixada no AFJ n.º 11/2013, nem a aplicou, nem a questionou, não negou a sua validade, nem afirmou qualquer divergência em relação à jurisprudência fixada, pura e simplesmente nada disse em aparente desconhecimento. Pelo que, analisando o caso dos autos, não podemos deixar de concluir que, uma vez que na decisão recorrida, o tribunal a quo, não expressou oposição à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão n.º 11/2013, tendo tão só e apenas deixado de o aplicar, não se está, assim, perante decisão proferida contra jurisprudência fixada e, assim sendo, não estão reunidos todos os pressupostos para admissão do presente recurso.

Argumentando e decidindo neste mesmo sentido, veja-se o recente acórdão deste STJ de 29.10.2020, proferido no Proc. n.º 185/19.2T0PTL-E. G1-A. S1 - 5.ª Secção, relatado por Francisco Caetano[4] : “I - Para os efeitos do art. 446.º do CPP as decisões proferidas contra a jurisprudência fixada são aquelas que não aceitam essa jurisprudência. II - Isso não acontece se, por acaso, a decisão não convocar a jurisprudência fixada para resolução da questão de direito, desde logo por desconhecimento ou má interpretação. III - O recurso extraordinário de decisão contra jurisprudência fixada não visa a tutela do caso concreto pelo que, qualquer erro de julgamento, terá que passar pelos recursos ordinários, até serem esgotados, antes constitui um meio adequado para reanalisar a jurisprudência fixada quando surjam novos argumentos, antes não foram ponderados, ou quando se mostre ultrapassada.

Em sentido igual, veja-se ainda, os acórdãos desta 5.ª secção, nos Proc. n.º 74/15.0T9ABF.E1. S1-5.ª Secção, de 23.05.2019, proferido pelo Conselheiro Carlos Almeida; Proc. n.º 1727/14.5TAGMR-A. S1 - 5.ª Secção, de 18.10.2017, e Proc. n.º 523/08.3TAVIS.C1-A. S1 - 5.ª Secção, de 23.04.2015, ambos proferidos pelo Conselheiro Manuel Braz.

13. Razão que nos leva à rejeição do recurso extraordinário contra jurisprudência fixada, nos termos conjugados dos artigos 440.º, n.º 4, e 441.º, n.º 1, correspondentemente aplicáveis ao caso, por força do artigo 446.º, n.º 1.

III.

14. Face ao exposto, acordam os juízes da 5.ª secção deste Supremo Tribunal em:

a) Rejeitar o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público junto do Tribunal Central Criminal de ….;

b) Sem custas, por não serem devidas (cfr. artigo 522.º, n.º 1, do CPP).

11 de Março de 2021

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários.

Margarida Blasco (Relatora)

Eduardo Loureiro (Adjunto)

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[1] Cfr. sumário do acórdão, do STJ, de 23.05.2019, processo 74/15.0T9ABF.E1.S1, onde se diz e cita-se: “Uma outra interpretação do n.º 1 do art. 446.º conferiria uma maior protecção à efectiva aplicação da jurisprudência fixada do que aquela que se encontra estabelecida para a cabal aplicação da lei. A não aplicação de uma determinada norma legal ou a sua interpretação incorrecta apenas permite aos sujeitos processuais o direito a interpor um recurso ordinário, estando-lhes vedada a interposição de qualquer recurso extraordinário.”

[2] Disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160229.html - Processo n.º 10/16, Relator João Cura Mariano, de 22-04-2016: “Julga nula a decisão sumária reclamada, na parte em que omitiu qualquer pronúncia sobre a questão de constitucionalidade do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de que não é exigível que um despacho de alteração da qualificação jurídica dos factos seja fundamentado, e não conhece dessa mesma questão de constitucionalidade; confirma, quanto ao mais a decisão sumária reclamada, não julgando inconstitucional a norma constante do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, ex vi dos artigos 41.º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) e 208.º e 232.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICFS), quando interpretado no sentido de permitir ao julgador, através da alteração da qualificação jurídica, aumentar o número de infrações contraordenacionais imputadas ao arguido.”
[3] Ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos/ Criminal - Ano de 2020.