Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
303/2002.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ACÇÃO DE CONDENAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
TÍTULO DE CRÉDITO
LETRA PRESCRITA
QUIRÓGRAFO
RELAÇÃO SUBJACENTE
RECONHECIMENTO UNILATERAL DE DÉBITO
PRESUNÇÃO DE CAUSA
Data do Acordão: 05/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / NEGÓCIOS UNILATERAIS.
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO / TÍTULO EXECUTIVO.
Doutrina:
- Abel Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, Lisboa, Livraria Petrony, 1983, p. 39.
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., p. 387.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 8ª edição, 1994, p. 444.
- Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, 1975, p. 48.
- Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, p. 390.
- Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, 1999, p 69.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, p. 437.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 458.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 46.º, ALÍNEA C), 810.º, N.º3, ALÍNEA B).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGO 703.º, N.º1, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11/05/1999, CJ/STJ, 1999, II, 88;
-DE 20/05/2004, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 19/12/2006, P.N.º 06B3791, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 7/7/2010, P N.º. 373/08.7TBOAZ-A.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT ;
-DE 18/10/2012, IN WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 23/06/2006, NO MESMO SITE, E DE 11/10/2001, IN COL. JUR. 2001, TOMO IV, PP. 120/121.
Sumário :

1. Os títulos de crédito, desprovidos dos requisitos que permitiriam a aplicação do regime de abstracção substantiva previsto na respectiva LU, podem ser usados como quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão – beneficiando do regime de presunção de causa afirmado pelo art. 458º do CC quando, atenta a sua natureza material , se consubstanciarem em actos de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação, sem indicação da respectiva causa.

2. Porém , a parte que quer prevalecer-se do título – letra – invocado como quirógrafo da obrigação causal subjacente à sua emissão  tem o ónus de alegar, na petição inicial ou no requerimento executivo, os factos essenciais constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, desprovido de valor nos termos da respectiva LU, identificando adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais , ao demandado/executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do CC.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


  1. AA intentou acção declarativa, na forma de processo ordinário, contra BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH, alegando, em síntese que foi caseiro da Quinta ..., propriedade pertença de II, mãe, avó e sogra dos RR., já falecida, tendo efectuado diversos pagamentos por conta das despesas da mesma quinta, em substituição dos seus patrões; com a intenção de pagar a dívida ao Autor foram assinadas e emitidas 4 letras que acabaram por não ser pagas, encontrando-se o valor de € 15.525,00,  por si adiantado, por pagar.
Conclui pedindo que sejam os Réus condenados, solidariamente, a pagar ao autor essa quantia, acrescida de juros vincendos à taxa legal até ao pagamento efectivo.
Citados os Réus, apresentaram, alguns deles, contestação pugnando pela improcedência da acção.
Por morte do R. CC, foram habilitados a prosseguir na acção na sua posição JJ e KK.




Lavrado despacho no sentido de convidar o Autor a aperfeiçoar a petição inicial, veio o mesmo fazê-lo de forma extemporâneo, não tendo, pois, o articulado apresentado sido admitido - e tendo transitado em julgado tal decisão.
Na audiência preliminar , conheceu-se imediatamente do mérito da causa, sendo proferida decisão a julgar a acção improcedente, absolvendo-se os Réus dos pedidos contra si formulados. 
Não se conformando com tal decisão, apelou o Autor , tendo a Relação – após considerar insubsistentes as nulidades arguidas - negado provimento ao recurso.
Após analisar o conceito de causa de pedir e o nível de densificação ou concretização exigível quanto aos factos que a preenchem, considerou a Relação, no acórdão ora recorrido:
Postos estes princípios orientadores e respigando o conteúdo factual vertido na petição inicial, dúvidas não existem de que a causa de pedir, recortada nos termos sobreditos, não está suficientemente caracterizada.
O fundamento da acção estribou-a o Autor dizendo que, em substituição da proprietária da quinta para quem trabalhava, efectuou vários pagamentos (electricidade, água, fornecedores etc.).
Veja-se, então, o que a este respeito o Autor alegou na petição inicial:
– O autor enquanto assalariado agrícola, era caseiro, ouvia reclamações de todos os lados;
- Às tantas o autor foi pedir dinheiro a vários amigos e foi liquidando débitos da responsabilidade da falecida II e dos seus filhos LL, BB aos assalariados agrícolas sob a sua responsabilidade;
– E começou a pagar a fornecedores e a liquidar facturas da electricidade, água, telefone e outras;
– O autor é pessoa simples do campo e faz um esforço muito grande para escrever o seu nome;
– É homem pobre, humilde e de poucas letras;




– Os RR tal como a mãe, avó e sogra II são gente de fortuna, da alta burguesia e pessoas com cultura;
– Com a intenção de pagar a dívida ao autor, a falecida II preencheu, assinou, emitiu e entregou ao autor quatro letras, conforme documentos juntos ( fls 7, 8, 9 e 10 juntos aos autos;
– Com a entrega de tais letras pretendia a falecida II e o aceitante LL liquidar o débito ao autor AA;
– O autor ainda tentou descontar algumas letras no banco, mas voltaram tal como entraram;
– O débito da falecida ao autor é de onze mil quinhentos e vinte e cinco euros;
– A falecida devia liquidar o débito na data do vencimento das letras;
– Avisada para pagar, pessoalmente e por cartas, não pagou;
– Os juros vencidos atingem os quatro mil euros (artigos 9º a 20º da petição inicial).
Ora, perante este quadro factual como dizer que a causa de pedir está devidamente fundamentada?
O Autor não especifica factualmente:
- quando pagou;
- a quem pagou;
- o que pagou;
- e quanto pagou?
Na verdade, a alegação do Autor é vaga e abstracta.
É que não basta alegar, de forma conclusiva, que efectuou diversos pagamentos, é necessário alegar um continente factual que englobe as perguntas supra formuladas.
Perante esta alegação conclusiva o Autor foi convidado a suprir tais insuficiências na concretização da matéria de facto, por o tribunal recorrido ter entendido que a petição inicial não sofria do vício da ineptidão.
O Autor respondeu a este convite. Todavia, por ter sido apresentado extemporaneamente, não foi considerado o novo articulado apresentado tendo, então, a Srª juiz do processo proferido decisão nos termos já referidos.
Diz, porém, o recorrente, que apesar de não ter sido considerado o novo articulado, ainda assim, a causa de pedir está bem configurada e sustentada nos documentos juntos com a petição inicial,




nomeadamente, nas letras juntas aos autos como documentos nºs 7 a 10, razão pela qual se impunha o seu prosseguimento.
(…)
Todavia, a junção dos documentos feita pelo Autor com a petição inicial assume contornos diferentes que importa escalpelizar.
Na verdade, os documentos em causa referem-se a quatro letras, todas já prescritas.
Ora, a questão que agora se coloca é se tais letras mesmo prescritas e, portanto, como meros quirógrafos, não representam o reconhecimento unilateral de dívida.
Vejamos:
Dispõe o nº 1 do artigo 458.º do C.Civil que “se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”.
Almeida Costa[1] refere, a este propósito, que “a lei consente que, através de acto unilateral, se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e validade da relação fundamental. É consagrada, todavia, uma simples presunção, pelo que a prova em contrário produzirá as consequências próprias da falta, ilicitude ou imoralidade da causa dos negócios jurídicos”.
Trata-se aqui de uma presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e de inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
Embora sabendo que a questão não é pacífica[2], entendemos que a letra nestas condições não importa o reconhecimento de uma dívida.
Na verdade, enquanto mero documento particular, apenas nela se descortina uma ordem do sacador ao sacado para que lhe pague a si determinada quantia, não importando a mesma a constituição ou reconhecimento de qualquer outra obrigação pecuniária.





 É certo que, as letras, as livranças e os cheques não deixam de ser documentos particulares que contêm a assinatura do devedor.
Acontece que, se deixa de existir a obrigação cambiária qua tale então o que fica é apenas um quirógrafo nela não estando impressa aquela constituição ou reconhecimento de dívida, o que temos é o simples escrito particular assinado pelo devedor.
Conclui-se, por isso, que a letra, enquanto mero quirógrafo, não tem força bastante para importar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária.
Desvinculada da sua eficácia cambiária, não pode a letra ser qualificada como documento consubstanciador do reconhecimento de uma obrigação pecuniária, donde decorre que a letra, enquanto mero documento particular ou quirógrafo, apenas servirá como um meio de prova da relação fundamental, que terá de ser demonstrada pelo credor na acção.
Assim, no caso de esse documento não valer como letra, enquanto quirógrafo não importa constituição de qualquer obrigação pecuniária entre sacador e sacado, pois que, a obrigação pecuniária constituída que importava era a proveniente da vinculação cambiária.
Do que se trata, agora, é tão-somente da relação fundamental que não foi constituída pela letra e que não pode obviamente considerar-se constituída pelo seu quirógrafo.
Estamos, no caso da letra, face a um negócio abstracto; a abstracção significa que “a causa é separada do negócio cambiário, decorre, não dele próprio, mas de uma convenção subjacente, extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental. Daí que, estando a causa fora da obrigação cambiária (abstracção), esta seja vinculante independentemente dos possíveis vícios da sua causa e por isso se tornam inoponíveis ao portador mediato e de boa fé as excepções causais”.[3]
Esta separação da causa não permite concluir que, na base da emissão da letra, se encontra uma relação fundamental em que o emitente é o devedor. Assim será na maioria dos casos, mas não é certo que assim seja sempre
Por isso, nos negócios abstractos, a emissão da letra não pode valer como declaração tácita de reconhecimento de dívida porque, de modo algum, essa emissão constitui facto que, com toda a probabilidade, revele uma tal manifestação de vontade (artigo 217º do Código Civil).





Os títulos cambiários (cheque letras e livranças), enquanto títulos de crédito, fazem prova da obrigação cartular por eles titulado, dados os princípios de literalidade e de autonomia que subjazem aos títulos cambiários, mas não das relações fundamentais ou subjacentes que se tenham estabelecido entre os credores e devedores e que estejam na base da constituição da relação creditícia ou com ela conexas.[4]
Como refere Lopes do Rego: “em certos actos (v.g. no cheque) a constituição da obrigação cambiária não é atribuível à autonomia da vontade dos interessados (o cheque incorpora uma ordem de pagamento e não o reconhecimento de um débito), radicando, apenas na lei que cria para o emitente do título, posto em circulação, uma obrigação legal de garantir o respectivo pagamento ao legítimo portador”.[5]
No caso dos negócios unilaterais (promessa de cumprimento, reconhecimento de dívida: artigo 458.º do Código Civil) não estamos face a negócios abstractos, mas face a negócios que “criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Por isso se inverte o ónus da prova, mediante uma verdadeira relevatio ab onere probandi”.[6]
As letras juntas aos autos, enquanto quirógrafos, apenas nos dizem que houve uma ordem do sacador ao sacado para que lhe pague a si determinada quantia, pois que, para além disso as letras em causa, apenas fazem menção a “transacção comercial”, conceito vago e meramente conclusivo.
Ora, será esta matéria suficiente para se ter por reconhecida a dívida por banda do sacado e, portanto, dos Réus?
Cremos, salvo outro e melhor entendimento, que a resposta tem de ser negativa.
Vale, seguramente, neste domínio, o ensinado por Abel Delgado[7] quando afirma, “Como documento particular, a letra faz prova contra os signatários dela, nos termos dos artigos 362.º e seguintes do Código Civil”. É a este nível que a letra deve ser tratada.





Como simples quirógrafo de obrigação, as letras mais não são do que simples documentos particulares de prova livre e, portanto, em pé de igualdade com outros meios de prova que se revelarem necessários à demonstração dos factos.[8]
Aqui chegados, torna-se evidente que tinha o autor que ter concretizado factualmente, na petição inicial, a causa de pedir em que estribava a acção nos termos atrás que se deixaram enunciados.
Não o tendo feito, não podem as letras prescritas servir para suprir tal lacuna.

              2. Novamente inconformado, interpôs o A. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões que lhe delimitam o objecto:
1ª A causa de pedir na acção está, salvo o devido respeito, bem configurada e sustentada em documentos, pelo que, sem recurso a meios complementares de prova e julgando-os irrelevantes ou inócuos, a decisão viola o art. 362º e segs. do CC.
2ª Quando o julgador, em douto critério, entenda anular o processo, a consequência nunca é a absolvição do pedido, mas antes a absolvição da instância, pelo que a decisão viola a letra e o espírito do ar. 288º, nº1., al. b) do CPC,
3ª A matéria alegada, sustentada em documentos, impõe uma outra decisão, pelo que a decisão encontrada e sob recurso viola a letra e o espírito dos arts. 259º, 510º, n1, al. b) e bem assim o nº1, al. b), do art. 668º todos do CPC.

              3. Na concreta situação dos autos, o A. intentou acção de condenação contra os demandados invocando simultaneamente na petição inicial:



- a titularidade de 4 letras, emitidas, assinadas e entregues ao A: pela antecessora dos demandados, não sendo o débito delas resultante pago pelos devedores;
- como relação causal da emissão e aceite das letras, invoca o A., se bem que em termos totalmente genéricos e indefinidos, a realização pessoal de despesas com a satisfação de débitos da responsabilidade dos aceitantes da letra, assumindo ele próprio – na veste de caseiro da quinta àqueles pertencente – múltiplas despesas correntes provenientes nomeadamente da exploração agrícola.
Estando processualmente adquirido que as letras em causa não obedeciam aos requisitos indispensáveis para valerem como títulos cambiários, literais e abstractos, - estando nomeadamente a obrigação cambiária há muito prescrita -  foi o A. convidado a completar e corrigir a petição, já que não se mostrava minimamente densificada a matéria de facto em que consubstanciava a relação causal da emissão das letras, cumprindo-lhe especificar quais tinham sido concretamente as despesas – da responsabilidade da aceitante das letras - que o A. havia assumido perante terceiros, devendo especificar os factos concretos e materiais comprovativos dos alegados pagamentos, em substituição da proprietária do imóvel, com entidades , montantes e datas –ainda que aproximadas – uma vez que a petição não concretizava elementos alguns a tal respeito e , bem assim, concretizar as condições temporais e de pagamento das letras cujo pagamento reclamava.




Porém, o A. não deu cumprimento, em termos processualmente adequados, a tal convite: na verdade, embora não tenha recusado aperfeiçoar a petição, nos termos referidos no convite que lhe foi endereçado, não o fez dentro do respectivo prazo peremptório – o que, na óptica do princípio da autoresponsabilidade das partes, equivale à renúncia em fazer adquirir no processo os factos que traduziriam concretização e densificação mínimas da referida relação fundamental, subjacente à emissão das letras: tal comportamento processual implicou, pois, que apenas subsistisse a matéria de facto originariamente alegada, em termos inadmissivelmente genéricos e indeterminados, para quem pretende obter o pagamento de pretensas despesas feitas no interesse de outrem ( cfr. arts. 10 e 11 da petição inicial); ou seja: perante a insuprível indefinição factual e vacuidade de tal alegação, não pode ter-se por alegado o núcleo essencial da relação fundamental, subjacente à emissão das letras – manifestamente carecidas dos requisitos previstos na LU para que tais títulos pudessem valer no plano cartular.
Na verdade, quem invoca a satisfação de dívidas da responsabilidade de outrem, não pode deixar de indicar, com precisão, quais foram exactamente tais débitos, a quem e em que precisas circunstâncias foram pagos, em que momento realizou os invocados pagamentos – procedendo a uma espécie de prestação de contas da actividade que realizou alegadamente no interesse do originário devedor – não se podendo obviamente limitar a invocar que pagou, em datas indeterminadas e a credores que não identifica com precisão, determinados tipos ou categorias




gerais de despesas, indicando o valor pecuniário global que pretende obter dos demandados na acção condenatória.
Aliás, se bem compreendemos a alegação do ora recorrente, ele não põe em causa a justeza da conclusão das instâncias de que a matéria de facto alegada na petição inicial ( e com que o A. esgotou o ónus de alegação a seu cargo, já que renunciou, com o seu comportamento processual, a introduzir na petição apresentada os aperfeiçoamentos pertinentes) é manifestamente insuficiente para integrar alegação concludente da relação causal subjacente à emissão das letras: o que ele, em bom rigor, sustenta é que as 4 letras, apesar de desprovidas – por falta dos indispensáveis requisitos legais - do específico e reforçado valor no plano cambiário, deveriam bastar para, sem mais, ter por devidamente configurada a causa de pedir da referida acção de condenação.
Será assim?
A questão da suficiência de um título de crédito, desprovido dos requisitos legais para funcionar como título cambiário, para suportar a dedução de uma pretensão dirigida à efectivação em juízo de um direito de crédito tem sido essencialmente abordada a propósito da qualificação desse documento como título executivo.
Na verdade, a questão da exequibilidade dos títulos de crédito nessas circunstâncias pode encarar-se segundo três perspectivas jurídicas bem diferenciadas.
Assim:




A) Em primeiro lugar, nesse caso, está obviamente excluída a possibilidade de serem  invocados como verdadeiros e próprios títulos de crédito, sendo apresentados pelo exequente como instrumento de demonstração da respectiva relação cambiária, literal e abstracta, que constituiria  a verdadeira causa de pedir da acção executiva – sendo, para tal, obviamente necessário que se mostrem integralmente respeitados todos os pressupostos e condições de que a respectiva lei uniforme faz depender o exercício dos direitos que confere ao seu titular ou portador legítimo. Nesta situação, o título executivo é uma peculiar categoria de documentos particulares, regidos por uma disciplina específica, decorrente da sua especial segurança formal e fiabilidade, e a «causa petendi » da acção executiva é a relação creditória neles incorporada, com as suas características próprias, em larga medida decorrentes da literalidade, abstracção e autonomia das obrigações cartulares por eles documentadas.
A tutela dos interesses do credor exequente é assegurada, de modo particularmente intenso, através do regime de abstracção substancial que caracteriza as obrigações cambiárias, não sendo, em princípio, invocáveis as relações jurídicas fundamentais subjacentes à emissão e colocação em circulação dos títulos de crédito .
B) Em segundo lugar – e não se mostrando preenchido algum dos requisitos ou condições imperativamente previstos na respectiva LU para o exercício do direito de acção conferido ao titular ou portador legítimo do título – pode ainda valer tal título de crédito – desde que, pela sua particular natureza ( como sucede com as letras e livranças), envolva um acto recognitivo de dívida ou se traduza na promessa unilateral de uma



prestação - como simples documento particular, assinado pelo devedor, contendo um acto unilateral de accertamento da obrigação causal subjacente, consubstanciado no reconhecimento de uma dívida ou na promessa de uma prestação, sem indicação da respectiva causa, submetida à disciplina jurídica contida no art. 458º do CC - ou seja, implicando a dispensa de o credor provar a relação fundamental, desde que não sujeita a específicas formalidades legais, cuja existência se presume até prova em contrário.
Este regime parece ser aplicável, sem esforço, àqueles títulos de crédito que – embora imprestáveis para servirem de base à aplicação do regime de abstracção substantiva previsto na respectiva LU – contenham um acto de reconhecimento de dívida ou envolvam uma promessa de prestação por parte do respectivo subscritor/aceitante ( como sucederá com as letras e livranças, mas não já, segundo alguns, com o cheque, cuja fisionomia peculiar não se concilia facilmente com a natureza dos típicos actos de reconhecimento de uma dívida : na verdade, o cheque envolve essencialmente uma ordem de pagamento dirigida a um banqueiro, não se podendo concluir, sem mais, que apenas por força  da sua subscrição o titular da conta  reconheça ser devedor ao portador das quantias nele mencionadas - cfr. a situação debatida no. ac. . de 21/10/10, proferido pelo STJ no P. 172/08.6TBGRD-A.S1)..
Nesta peculiar situação, que a doutrina designa como de causalidade substancial e abstracção processual, o credor que invoca o acto unilateral de promessa ou reconhecimento está dispensado de invocar e provar a relação fundamental, que se presume, mas o devedor pode fazê-lo para contrariar a pretensão do credor, devendo então alegar e provar a insubsistência do crédito, por cumprimento, ou por prescrição, ou por invalidade da relação fundamental, ou por outra razão que no caso possa



ter esse efeito (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2012, pag. 437). Deste modo, embora o acto de promessa ou reconhecimento se não traduza numa relação jurídico material dotada da característica da abstracção, assentando necessariamente na existência anterior de uma relação jurídica fundamental que suporta o acto de reconhecimento unilateral de um débito pré existente, a presunção de existência da relação fundamental, decorrente do regime estabelecido no referido art. 458º, implica a dispensa de o credor demonstrar a existência e validade dessa relação causal, subjacente ao negócio unilateral, recaindo naturalmente sobre o devedor o ónus de ilidir ou afastar tal presunção, no âmbito da oposição que deduza.
Ou seja: valendo o documento particular invocado pelo exequente como declaração unilateral de reconhecimento de uma dívida ou promessa de uma prestação, sujeita ao regime do art. 458º do CC, funciona a presunção legal da existência da relação causal, nos termos do referido art. 458º, competindo por isso ao devedor demandado/executado afastar ou pôr em causa tal presunção, demonstrando a inexistência ou invalidade do débito aparentemente reconhecido pela declaração unilateral invocada pelo credor/exequente.
Saliente-se, todavia, que a doutrina não é absolutamente unânime acerca da exacta interpretação do regime de abstracção processual definido pelo art. 458º: na verdade, há quem entenda – em termos mais restritivos - que tal preceito legal apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio unilateral aí previsto, mas já não do ónus de alegar tal relação: veja-se, nomeadamente, a posição sustentada




por Lebre de Freitas ( A Confissão no Direito Probatório, pag. 390), onde se afirma: Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus de alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir, o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458º, nº2, do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental – e daí que a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo o devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor .
  Veja-se ainda o decidido no ac. de 7/7/10, proferido pelo STJ no P. 373/08.7TBOAZ-A.P1.S1).

E, a ser assim, é evidente que o credor que demande ou execute o devedor que reconheceu unilateralmente o débito não poderá limitar-se a juntar aos autos o documento particular que corporiza o acto de reconhecimento unilateral da relação causal anteriormente existente entre as partes, devendo no articulado respectivo identificar tal relação causal, alegando os seus factos essenciais constitutivos – embora, por via da dispensa de prova contida no art. 458º do CC, esteja dispensado de provar tal factualidade, cumprindo ao devedor demandado/ executado demonstrar



na oposição que deduza que essa concreta causa constitutiva, invocada pelo credor, afinal não existe em termos juridicamente válidos.

C) Em terceiro lugar, podem ainda valer os títulos de crédito que não obedeçam integralmente aos requisitos impostos pela respectiva LU e não possam materialmente subsumir-se ao referido art. 458º do CC ( por não conterem materialmente um reconhecimento de dívida nem implicarem uma promessa de prestação, feita pelo seu subscritor) como meros quirógrafos da relação causal subjacente à respectiva emissão, desde que os factos constitutivos desta resultem do próprio título ou sejam articulados pelo exequente no respectivo requerimento executivo e por ele provados, revelando plenamente a verdadeira «causa petendi» da execução e propiciando ao executado efectiva e plena possibilidade de sobre tal matéria exercer o contraditório, na oposição que deduza : como é evidente, esta perspectiva acerca do valor executivo dos títulos de crédito funcionará nos casos em que a declaração de vontade consubstanciada no título de crédito não puder valer como declaração unilateral de reconhecimento do débito subjacente à respectiva emissão, não beneficiando, consequentemente, do regime de abstracção processual aí instituído e da presunção/ dispensa de prova afirmada pelo art. 458º do CC – o que naturalmente implicará para o credor, autor ou exequente, o ónus, não só de invocar, mas também de provar, os factos constitutivos da relação fundamental que constitui a verdadeira causa de pedir da acção.




 Neste caso, o documento assinado pelo devedor constitui quirógrafo – mero meio de prova documental - de uma obrigação causal cujos elementos constitutivos essenciais têm de ser processualmente adquiridos, em complemento do título executivo, por iniciativa tempestiva e processualmente adequada do próprio exequente, onerado com a respectiva prova, sendo articulados no próprio requerimento executivo sempre que não resultem do próprio título ; é, aliás, neste tipo de situações que ressalta, com maior evidência, a diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo e de causa de pedir da acção executiva , sendo o primeiro integrado por um documento particular, assinado pelo devedor, que - embora não beneficiando do regime de dispensa de prova estabelecido no art. 458º para o acto unilateral de  reconhecimento da dívida exequenda - indicia a existência de uma relação obrigacional que o vincula no confronto do exequente ; e a segunda consubstanciada pela própria relação obrigacional que, não resultando, em termos auto-suficientes, daquele título, é introduzida no processo e demonstrada pelo exequente através de um verdadeiro articulado, complementar do documento em que execução se funda.

4. Este entendimento amplo acerca da exequibilidade dos títulos de crédito carecidos de elementos para poderem funcionar no plano da abstracção substantiva, prevista na respectiva LU, tem sido acolhido e desenvolvido pela doutrina e jurisprudência, claramente maioritárias, ( veja-se, de forma paradigmática, o Ac. do STJ de 19/12/06, proferido no P.06B3791) que não têm interpretado a norma que constava da al. c) do art.



46º do CPC com o sentido , nomeadamente, de o acto recognitivo constante do título - reconhecimento de dívida ou promessa de uma prestação fundada em anterior obrigação - ter de ser expresso , directo , inequívoco e auto-suficiente, admitindo-se, consequentemente, que possam valer como títulos executivos documentos que, embora não de forma cabalmente expressa e categórica, impliquem um acto recognitivo da obrigação exequenda - e que careçam, para serem perfeitamente concludentes quanto à realidade desta, identificando-a em termos inteligíveis, de ser conjugados com elementos fácticos complementares, estranhos ao próprio título, a introduzir e fazer adquirir processualmente pelo exequente através da alegação fáctica no requerimento executivo e de uma ulterior actividade probatória a seu cargo.
Note-se ainda que esta solução ampla mereceu expressa consagração na reforma de 2003 da acção executiva : a al. b) do nº3 do art. 810º veio consagrar expressamente a atrás citada possibilidade de o requerimento executivo conter uma exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido executivo , quando não constem do próprio título executivo – acentuando, deste modo, a inevitável quebra do princípio da auto-suficiência do título executivo : os elementos essenciais da obrigação exequenda podem, deste modo, resultar, quer do próprio documento que serve de título executivo, quer de uma actividade complementar de alegação e prova pelo exequente – que extravasa manifestamente a simples possibilidade – sempre contemplada na lei de processo - de , na fase liminar da execução, se tornar a obrigação certa, líquida e exigível, quando o não fosse já em face do título.



E, no actual CPC, apesar de drástica limitação do elenco dos títulos executivos não judiciais – deixando, em regra, de revestir as características da exequibilidade os meros documentos particulares, assinados pelo devedor, que não sejam títulos de crédito, - a alínea c) do nº1 do art. 703º manteve e explicitou a precedente orientação jurisprudencial maioritária, consagrando expressamente que valem como títulos executivos os títulos de crédito, que, embora desprovidos dos requisitos legais para incorporarem uma obrigação cartular, literal e abstracta, podem valer como meros quirógrafos da obrigação exequenda, desde que os factos constitutivos da relação subjacente , se não constarem do próprio documento, sejam alegados no requerimento executivo.

Saliente-se que este regime – que pode considerar-se interpretativo do direito anterior, já que se limitou a explicitar e consagrar orientação doutrinal e jurisprudencial claramente maioritária – acaba por favorecer a posição, anteriormente referida, sustentada por Lebre de Freitas, ao consagrar legislativamente que – sem qualquer distinção, quer os documentos sejam ou não subsumíveis ao art. 458º do CC -  o título de crédito imprestável, por carência dos requisitos legais, para suportar o típico regime de abstracção substantiva tem sempre de ser complementado com a alegação dos factos constitutivos da relação subjacente que não constem do documento.





           5. No caso dos autos, não estamos, como é evidente, confrontados com uma acção executiva, mas com uma acção condenatória movida contra o pretenso devedor, pelo que a determinação do regime aplicável não passa naturalmente pela questão da exequibilidade das letras juntas aos autos., mas pela temática do cumprimento adequado do ónus de alegação incidente sobre o A.: bastava-lhe, como modo de delinear e concretizar adequadamente a causa de pedir da acção que propôs, juntar com a petição inicial as letras de que era portador? Ou, pelo contrário, estava – como decidiram as instâncias – onerado com a alegação minimamente circunstanciada e densificada dos factos constitutivos da relação material subjacente à emissão das letras ?
 É que, se assim for, é manifesto que – não tendo aproveitado a oportunidade processual que lhe foi facultada para cumprir adequadamente tal ónus de alegação e faltando manifestamente uma definição e identificação minimamente consistentes da dita relação subjacente - não poderia a acção deixar efectivamente de improceder, como decidiram as instâncias.
Não tendo as referidas letras os requisitos impostos pela LU para valerem como verdadeiros e próprios títulos cambiários, é evidente que está ultrapassada a perspectiva traduzida na aplicabilidade a tais títulos do regime de abstracção substancial , previsto na LULL.
Poderão as referidas letras valer, porém, como actos unilaterais de promessa pelo respectivo aceitante de uma prestação, nessa medida sujeitas ao regime de abstracção processual previsto no art. 458º do CC?



E, no caso afirmativo, implicará a sujeição a tal regime legal uma dispensa do ónus de alegação da relação subjacente – ou apenas uma dispensa do ónus probatório normalmente a cargo do credor ( como sustenta L. Freitas)?
Na verdade, se se seguir a orientação sustentada por L. Freitas, atrás mencionada, segundo a qual o regime constante do art. 458º apenas implica uma dispensa do ónus probatório a cargo do credor, não o liberando, porém, do ónus de alegação da relação causal ao acto de reconhecimento unilateral do débito, é evidente que tal ónus não foi, no caso dos autos , adequadamente cumprido – o que, mesmo na óptica de aplicabilidade do art. 458º,  ditaria a irremediável improcedência da acção.

Como atrás se referiu, esta orientação surge reforçada com a norma (interpretativa do direito anterior) que o actual CPC contém na alínea c) do nº1 do art. 703º, ao impor – sem qualquer distinção – a quem quer prevalecer-se do título, invocado como mero quirógrafo da obrigação, o ónus de alegação dos factos constitutivos da relação subjacente que dele não constem : o portador do título - imprestável para suportar um verdadeiro regime de abstracção substantiva - estará assim sempre onerado com a alegação dos factos constitutivos essenciais que permitam identificar a relação causal subjacente; a distinção entre os títulos que são subsumíveis ao regime de dispensa de prova constante do art. 458º do CC e os que nele não podem enquadrar-se ( por não se consubstanciarem num acto unilateral de reconhecimento de dívida ou na  promessa de uma



prestação) operará apenas no domínio da prova de tais factos: se o título couber no âmbito do referido art. 458º, o credor está dispensado da prova dos factos constitutivos que alegou, sendo antes o devedor que terá de provar que não está validamente vinculado à obrigação causal que deles resultaria; se, pelo contrário, o título invocado não for subsumível ao disposto no art. 458º, é o credor que terá de provar, nos termos gerais, a factualidade constitutiva da relação subjacente que ele próprio invocou.

   Esta orientação parece proporcional e equilibrada, já que – sem excluir liminarmente que certos títulos cambiários possam subsumir-se, se a sua natureza material o permitir, ao regime de dispensa de prova constante do art. 458º do CC - a mera apresentação de um título cambiário ( formalmente insuficiente por preterição dos requisitos imperativamente estabelecidos na LU e por isso imprestável para fundar a aplicação de um regime de abstracção substantiva ) não deve bastar para, sem mais, se poder exigir do demandado o cumprimento das obrigações nele referenciadas : na verdade, o regime de abstracção substantiva representa a forma mais eficaz e intensa de tutela do interesse  do credor , tendo, porém, como contrapartida a exigência que todos os requisitos formais do título estejam devidamente preenchidos, nos termos exigidos pela LU.

    Se o credor não logrou preenchê-los – e com isso alcançar essa forma de tutela mais efectiva e plena do seu interesse – isso significa que a relação material controvertida já não é a relação literal e abstracta, mas uma relação causal, subjacente à emissão do título carecido dos requisitos da LU para valer como tal; ora, admitir, neste concreto circunstancialismo, que o credor/demandante nada carece de alegar como modo de identificar essa relação causal subjacente é fazer impender sobre os ombros do demandado um ónus desproporcionado, traduzido em ter de ser ele a afastar a relevância de qualquer possível facto constitutivo dessa relação: ou seja, seria ele a ter de identificar qual era, afinal, essa relação subjacente ao acto unilateral de reconhecimento, indicando a causa concreta dessa obrigação e questionando a sua existência ou validade jurídica – bastando ao A. impugnar a individualização da causa pelo devedor para que pudesse subsistir a eficácia da declaração recognitiva…

  

   Ora, aplicando este entendimento ao caso dos autos, conclui-se que estava o A. efectivamente onerado com a alegação dos factos constitutivos essenciais da relação causal à subscrição das letras, desprovidas dos requisitos para valerem como título cambiário, de modo a identificar adequadamente essa relação causal subjacente, facultando sobre ela o contraditório ao R. – e cabendo a este, por força da dispensa de prova prevista no art. 458º do CC – o ónus probatório relativamente à inexistência ou irrelevância dos factos constitutivos alegados pelo demandante.

   Ora, ao não ter o A. identificado, em termos inteligíveis e com um nível de densificação e concretização aceitável, essa relação causal á emissão das letras, facultando com isso o contraditório aos demandados – desaproveitando ainda a oportunidade processual que lhe foi concedida para suprir as manifestas insuficiências da petição – comprometeu irremediavelmente o êxito da acção que propôs; saliente-se que o problema não se situa no campo da prova ( eram os RR. que teriam de provar a inexistência ou irrelevância jurídica dos factos constitutivos identificadores da relação causal alegada pelo credor, por via da dispensa de prova contida no art. 458º do CC), mas no da suficiência da alegação, ou seja, do adequado cumprimento pelo credor de um ónus de alegação que permitisse identificar, de modo minimamente consistente, a relação causal à subscrição das letras que juntou como mero quirógrafo – e que, em última análise, é a relação material verdadeiramente controvertida entre as partes.

   Por outro lado – e como nota o acórdão recorrido – o vício que inquinava a petição inicial apresentada – e que se consumou irremediavelmente com o não aperfeiçoamento em tempo das respectivas insuficiências – não era a ineptidão da petição, nos termos previstos no art.193º do velho CPC, mas antes a irremediável insuficiência da matéria de facto que ao A. cabia alegar, de modo a identificar adequadamente a relação causal subjacente à emissão das letras que apresentou, como meros documentos particulares -facultando sobre esse núcleo factual essencial o contraditório aos demandados, já onerados com a presunção de existência dessa relação subjacente, desde que identificada adequadamente pelo credor nos articulados que apresentou.

   Ora, a insuprível insuficiência da matéria de facto essencial à procedência da pretensão conduz efectivamente, não a uma decisão de forma, traduzida na anulação de todo o processo, mas à improcedência – em termos de  apreciação do mérito – da pretensão formulada.

   Nada há, pois, a censurar ao decidido nesta sede pelas instâncias, não se mostrando violadas as disposições legais invocadas pelo recorrente.

                   6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 7 de Maio de 2014

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor

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[1] Direito das Obrigações, 6ª ed., 387


[2] Com entendimento contrário ao aqui defendido mas relativo a cheques, podem ver-se, entre vários outros, Acs. do STJ, de 11.05.1999, CJ/STJ, 1999, II, 88 e de 20-05-2004 in www.dgsi.pt.

[3] Lições de Direito Comercial, Ferrer Correia, Vol III, 1975, pág.  48.
[4] O novo Código de Processo Civil veio estipular no artigo 703.º nº 1 al. c) que podem servir da base à execução precisamente “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo

[5] Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, 1999, pág 69.
[6] Das Obrigações em Geral, Antunes Varela, 8ª edição, 1994, pág 444.
[7] In Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Lisboa, Livraria Petrony, 1983, pág. 39
[8] Neste sentido, cfr. entre outros Ac. do S.T.J. de 18/10/2012 (cuja situação era um cheque) in www.dgsi.pt e  Acs. da Relação de Lisboa de 23/06/2006 no mesmo site e que aqui se seguiu de perto e de 11/10/2001 in Col. Jur. 2001, tomo IV, pág. 120/121.