Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3326/09.4TBVFR.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DO RECURSO PARA O STJ
DECISÃO PROFERIDA CONTRA JURISPRUDÊNCIA UNIFORMIZADA
REGISTO PREDIAL
TERCEIROS PARA EFEITOS DE REGISTO
PENHORA
VENDA JUDICIAL
Data do Acordão: 02/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO SE CONHECE DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 678.º, N.º2, AL. C), 700.º, N.º3, 704.º.
Jurisprudência Nacional:
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR N.º 3/99.
Sumário :

1. No caso subjacente ao acórdão uniformizador 3/99 (proferido num momento em que a lei ainda não definia explicitamente o conceito de terceiro para efeitos de oponibilidade do registo predial) o conflito a dirimir pelo STJ consistia em saber se o exequente que logrou registar antecipadamente penhora sobre o bem reivindicado pelo embargante - e ainda não vendido na acção executiva - se podia configurar como terceiro em relação ao proprietário que omitira o registo da sua aquisição.

2. Tal acórdão uniformizador não decidiu, nem tinha que decidir, a questão da natureza jurídica da venda judicial, em termos de apurar se o Estado nela actua em nome próprio, no exercício de um poder coercitivo autónomo, ou se, pelo contrário, o transmitente do bem vendido judicialmente continua ainda a ser o devedor/ executado, actuando o Estado em verdadeira sub rogação deste – e dependendo decisivamente desta configuração normativa da venda judicial a qualificação do adquirente do bem como terceiro, por ter adquirido a propriedade de um mesmo transmitente comum.

3. Não ocorre, por isso, verdadeira contradição normativa entre o citado acórdão uniformizador e a decisão que – configurando a venda judicial como implicando ainda uma aquisição derivada de direitos do executado – qualifica como terceiro o adquirente, por os direitos incompatíveis sobre a mesma coisa provirem ainda de um mesmo autor ou transmitente comum - sendo, deste modo, inadmissível a revista que tenha como específico fundamento a norma constante da alínea c) do nº2 do art. 678º do CPC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA e mulher, BB, intentaram acção declarativa, na forma sumária, contra CC, DD e “EE, Lda.”, pedindo que:

         a) Seja declarado que os AA. são donos e legítimos senhores da fracção designada pela letra “B” do prédio urbano sito no lugar .........., freguesia de Travanca, inscrito na matriz sob o art.º 766-B e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º 0000;

            b) Sejam os RR. condenados a reconhecer que os AA. são os legítimos donos e proprietários dessa fracção, por a haverem adquirido legitimamente aos anteriores proprietários, quer por forma derivada, quer por usucapião;

            c) Sejam os RR. condenados a restituir aos AA. tal fracção, livre e devoluta de pessoas e coisas;

            d) Sejam declaradas totalmente ineficazes, em relação aos AA., os negócios celebrados pelos RR., relativos à fracção;

            e) Seja declarada judicialmente a invalidade/nulidade dos negócios celebrados pelos RR., que fundaram os pedidos de registo na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira em nome da 1.ª R. e depois do 2.º R., relativamente à fracção;

            f) Seja ordenado o cancelamento dos registos de aquisição da referida fracção a favor da 1.ª R., ap. 00000000 e do 2.º R. pela ap. 10 de 00000000 e de todos os registos em contradição ou em contrário à aquisição da fracção pelos AA., livre de ónus e encargos;

            g) Seja declarado reconhecido aos AA. o direito de conversão em definitivo do registo de aquisição da referida fracção a seu favor, referente à ap. 0000000.

         Alegaram ter adquirido, em 27/04/2005, a aludida fracção na venda judicial realizada na execução n.º 387/2000, do 4.º Juízo Cível da Comarca de Vila da Feira, a qual lhes foi entregue pelo depositário judicial e sobre a qual, aliás, por si e ante possuidor (a ali executada), têm sido exercidos ininterruptamente actos de posse, pública e pacífica, há mais de vinte anos, pelo que, igualmente, adquiriram originariamente a fracção por usucapião.

   Após a penhora na mencionada execução, a fracção foi, igualmente, penhorada no processo de execução fiscal n.º 00000000000000, do Serviço de Finanças-1, no qual era executada a mesma sociedade que era executada naquela primeira execução. Ora, não obstante os AA. terem comprado a fracção em 27/04/2005, na execução referida, em 03/07/2006, a mesma foi vendida na execução fiscal, mediante venda extrajudicial, à Ré CC, tendo a respectiva escritura pública de compra e venda sido outorgada pelo R. DD, na qualidade de legal representante da sociedade mandatada pelo Serviço de Finanças para proceder à venda e na qualidade de procurador da Ré CC.

   Aquando da realização de tal escritura, os RR. e o Serviço de Finanças sabiam que a fracção tinha já sido vendida aos AA., tendo este Serviço feito uma venda de coisa alheia, ineficaz em relação aos AA.. Tal venda é nula em virtude de ter sido simulada, por interposição fictícia de pessoas, já que a Ré CC não quis comprar nem aceitar nada, não tendo pago qualquer preço, nem a Ré “EE” quis vender àquela, mas sim ao sócio-gerente desta, o R. DD, que foi quem pagou o preço, apenas “emprestando” a Ré CC o nome para que o R. DD não aparecesse logo no primeiro acto da declarada compra às Finanças, com o intuito de enganar os AA., cientes que estes não tinham registado a sua aquisição, consubstanciando, assim e ainda, tal venda um negócio consigo mesmo.

   Tendo a fracção sido posteriormente vendida pela Ré CC ao R. DD, tal venda é, igualmente, ineficaz e nula, por se tratar de venda de coisa alheia, além de simulada, por interposição fictícia de pessoas, sendo certo que foi para se colocar numa posição de terceiro sub adquirente, que o R. DD declarou comprar à Ré CC e esta declarou vender a fracção.

         Contestou o R. DD, dizendo que prevalece a aquisição feita pelos RR., uma vez que procederam ao seu registo, sendo terceiros para efeitos registrais; e, por outro lado, que os AA. não podem invocar a seu favor a posse dos ante possuidores, uma vez que a sua aquisição deriva de uma venda judicial, além de que não se verificaria nenhuma das ilegalidades, nem nenhum dos vícios, invocados pelos AA., nos negócios celebrados pelos RR..

         Os AA. responderam, mantendo a sua posição.

         Procedeu-se a audiência de julgamento, no termo do qual foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

2. Inconformados, os AA. apelaram, tendo, todavia, a Relação confirmado a sentença recorrida - começando o acórdão por enunciar os factos provados, após ter julgado improcedente a impugnação deduzida contra a matéria de facto, salvo quanto ao aditamento da factualidade mencionada em último lugar:

                  A) Em 27/04/2005, em venda judicial, mediante propostas carta fechada, realizada no âmbito da acção executiva n.º 387/2000, do 4.º Juízo Cível deste Tribunal, no qual era exequente a “Caixa Geral de Depósitos” e executada “FF, Lda.”, o A. adquiriu a fracção designada pela letra “B” do prédio urbano sito no lugar .........., freguesia de Travanca, inscrito na matriz sob o art.º 766-B e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º 0000, pelo preço de € 18.710,00.

            B) No âmbito dessa execução, o A. apresentou proposta que foi aceite no acto de abertura de propostas, ocorrido em 11 de Abril de 2005.

            C) Tendo efectuado o depósito do respectivo preço em 22/04/2005.

            D) Em 22/04/2005 fez a declaração para efeitos de liquidação do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) no Serviço de Finanças da Feira-1, TF-94, e pagou nesse mesmo dia tal imposto, no montante de € 1.216,15.

            E) Na sequência do depósito do preço e do pagamento do IMT, por despacho de 27/04/2005, proferido na aludida acção executiva, foi a referida fracção adjudicada ao A. e determinada a passagem de título de transmissão a seu favor.

            F) Pelo fiel depositário da acção executiva, a fracção foi entregue ao A., bem como as respectivas chaves.

            G) Os AA. mudaram as fechaduras da fracção, limparam a mesma e colocaram nela uma mesa e cadeiras.

            H) Praticaram tais actos, à luz do dia, diante de toda a gente, sem hiatos, na convicção de que possuíam e exerciam direito próprio como donos exclusivos e plenos da fracção.

            I) Em 18/07/2006, o A. foi notificado pelo Serviço de Finanças da Feira-1, nos seguintes termos: “Na qualidade de adquirente e, em face do título de transmissão emitido pelo 4º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, em 19/05/05, na qual consta que adquiriu a fracção autónoma designada pela letra “B” do prédio urbano (…), fica V. Ex.ª por este meio notificado, para no prazo de 10 (dez) dias a contar da recepção da presente notificação, apresentar neste Serviço de Finanças a declaração para inscrição/actualização de prédios urbanos na matriz modelo 1 do IMI, para que se proceda à avaliação do citado imóvel (…)”.

            J) Em 27/07/2006, os AA. apresentaram a declaração no Serviço de Finanças da Feira-1 e pagar a coima por entrega fora do prazo.

            L) Notificados pelo Serviço de Finanças da Feira-1 para pagarem o IMI relativo ao ano de 2005, até 31/08/2006, procederam ao seu pagamento.

            M) Em 22/08/2006 foram notificados do resultado da avaliação.

            N) Através da inscrição F-1, Ap. 000000000, foi registada a penhora efectuada na execução do 4.º Juízo Cível.

            O) Através da inscrição F-2, Ap. 000000000, foi registada penhora efectuada em execução fiscal.

            P) Através da inscrição F-3, Ap.000000000foi registada penhora efectuada em execução fiscal.

            Q) Através da inscrição G-1, Ap. 00000000, foi registada a aquisição da fracção a favor da R. CC.

            R) Através do Av. 1, Ap. 0000000, foi cancelada a inscrição F-1.

            S) E, através do Av. 1, Ap. 0000000, foi cancelada a inscrição F-2.

            T) Através da inscrição G-2, Ap. 0000000, foi registada, a título provisório por dúvidas, a aquisição a favor do A., por “compra em execução”.

            U) Tendo tal inscrição caducado, conforme An. 1, de 09/05/2007.

            V) Através da inscrição G-3, Ap. 00000000, foi registada a aquisição a favor do R. DD, por “compra”.

            X) Os AA. deslocaram-se em Setembro de 2006 à Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira e vieram a saber da situação registral do prédio, vindo posteriormente a apurar, através de consulta no Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia do Dr. GG, que a fracção tinha sido posta à venda e vendida pelo Serviço de Finanças.

            Z) No Serviço de Finanças-1 correu o processo de execução fiscal n.º

0000000000000000, no qual era executada a mesma sociedade que era executada no aludido processo judicial n.º 387/2000.

            AA) Tendo sido, igualmente, penhorada nessa execução fiscal a fracção aqui em causa, por despacho de 09/02/2006, o Chefe do Serviço de Finanças da Feira-1 nomeou a “EE, Lda.”, representada pelo R. DD, com sede em Vila Nova de Gaia, para proceder à venda extrajudicial da fracção em causa.

            BB) E, em tal execução fiscal, por despacho de 05/05/2006, o Chefe do Serviço de Finanças da Feira-1 autorizou a referida venda pelo preço de € 11.100,00, já depositado na Tesouraria de Finanças junto desse Serviço, à compradora CC.

            BB) Tendo, em 22 de Maio de 2006, a R. CC procedido ao pagamento do respectivo IMT.

            CC) Por escritura pública lavrada em 28/05/2001, no 1.º Cartório Notarial de Vila Nova de Gaia, a cargo do Notário HH, a R.CC constituiu seu bastante procurador o R. DD, “a quem com a faculdade de substabelecer concede poderes para comprar, gerir e administrar quaisquer bens imóveis sitos em Portugal e, em consequência, fazer e aceitar arrendamentos ou alugueres, fixando os preços, os fins e o montante das rendas ou dos alugueres, (…), passar e assinar os competentes recibos e quitações, outorgando e assinando as respectivas escrituras ou contratos de arrendamento ou de aluguer, representa-los em quaisquer Repartições Públicas, Indivíduos ou Entidades, designadamente Repartições de Finanças, Câmaras (…), nas Conservatórias do Registo Predial proceder a actos de registo, provisórios ou definitivos, seus averbamentos ou cancelamentos, (…), pagar contribuições ou impostos (…)”.

            DD) Por escritura pública outorgada em 03/07/2006, no Cartório Notarial sito na Av. .............,.....,..... andar, freguesia de Mafamude, concelho de Vila Nova de Gaia, o R. DD, na qualidade de sócio gerente e em representação da sociedade “EE, Lda.” e na qualidade de procurador da R .CC, declarou o seguinte: “Que a sua representada “EE” foi, por despacho de 09/02/2006, do Chefe do Serviço de Finanças de Santa Maria da Feira-1, no processo de execução fiscal n.º00000000000000, nomeada para proceder à venda extrajudicial, nos termos da alínea (…), do seguinte: Fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente a um estabelecimento comercial (…). Com aquisição registada a favor da executada sociedade comercial por quotas com a firma “FF, Lda.” (…). Sobre o prédio encontram-se registadas hipotecas voluntárias pelas inscrições C-um e C-dois, a favor da Caixa Geral de Depósitos. Sobre a fracção encontram-se registadas penhoras pelas inscrições F-um, F-dois e F-três, sendo exequente na primeira a referida Caixa Geral de Depósitos e nas restantes a Fazenda Nacional.

            Que, em representação da sociedade nomeada para proceder à venda, pelo preço de onze mil e cem euros, já depositado à ordem do Chefe do Serviço de Finanças de Santa Maria da Feira-1, nos termos do artigo 327.º do Código de Processo Tributário, vende à sua representada CC, aquela identificada fracção autónoma.

            Mais declarou que aceita a venda para a sua representada CC”.

            EE) Nessa escritura ficou consignado que: “Exibiram: certidão emitida em 26/06/06, pela dita Conservatória do Registo Predial, comprovativa das indicadas descrição e inscrições; caderneta predial, emitida em 22/05/06, pelo mesmo Serviço de Finanças; fotocópia da licença de utilização n.º 349, emitida em 12/12/94, pela Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, para a parte habitacional e comercial do prédio; e, uma certidão passada pelo citado Serviço de Finanças em 22/05/06, donde consta o despacho que ordena o cancelamento de todos os registos reais que caducam nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil”.

            FF) No processo de execução fiscal, em 29/06/2004, foi apresentada reclamação de créditos pela “Caixa Geral de Depósitos, em cuja petição é alegada a penhora realizada na execução judicial n.º 387/2000, do 4.º Juízo Cível deste Tribunal.

            GG)

 Por informação prestada pelo Serviço de Finanças da Feira-1, em 12/07/2006, o A. constava como sendo dono da fracção em causa.

            HH) Em 2007, a fracção foi ocupada por uma senhora que se apresentou como arrendatária dos RR.;

            II) Os RR. mudaram as fechaduras da fracção.

            JJ) Por escritura pública outorgada em 20/08/2007, no Cartório Notarial sito na Av. ..................., ....., .... andar, freguesia de Mafamude, concelho de Vila Nova de Gaia, a R.CC, na qualidade de 1.º outorgante, e o R. DD, na qualidade de 2.º outorgante, declararam o seguinte: “Pela 1.ª outorgante foi declarado: Que pelo preço já recebido de dezassete mil euros vende ao 2.º outorgante, a fracção autónoma designada pela letra “B” (…). Pelo 2.º outorgante foi declarado que aceita a venda”.

            LL) Os AA. registaram a presente acção em 26/06/2009.

MM) O A. passou a constar como dono do prédio, em data que não foi possível precisar, mas anterior a 18.07.2006.            

         3. Passando a apreciar a questão jurídica suscitada na apelação, considerou a Relação, remetendo, desde logo, para o acórdão da Relação de 29.10.2009,( proferido no  Processo: 5443/04.8TBVNG.P1):

À partida, não se suscitando dúvidas sobre a validade da compra efectuada pelo autor, para ele se transferiu o direito de propriedade sobre metade indivisa das ditas fracções, por mero efeito do contrato – art. 408º nº 1 do CC. Logo, a venda posteriormente efectuada (…) padece de invalidade substancial, por constituir, (…), uma venda de coisa alheia, ineficaz em relação ao autor e nula entre as próprias partes que participaram no negócio (art. 892º do CC).

            Importa, porém, ter em consideração, os efeitos da venda efectuada ao autor em relação a terceiros; porque a mesma não foi registada, defende a ré que beneficia da protecção que lhe é conferida pelo art. 5º do CRegP, por ser terceiro em relação ao autor.

            (…).

            O art. 5º nº 1 do CRegP dispõe que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.

            Assim, qualquer facto sujeito a registo é inoponível a terceiro antes do registo. Por isso, se a ré for terceiro, a venda efectuada ao autor não lhe é oponível (só pode ser invocada entre as próprias partes ou seus herdeiros – art. 4º do CRegP).

            O regime destes preceitos deve ser conjugado com o de duas outras importantes normas do sistema de registo português:

            O art. 7º, onde se estabelece que o registo definitivo constitui presunção, ilidível, de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.             Assim, se o adquirente de certo imóvel não inscrever a aquisição, o alienante continua a figurar no registo como seu titular e é em favor dele que funciona a presunção.

            Por outro lado, o princípio da prioridade contido no art. 6º faz prevalecer o direito que primeiro seja inscrito (segundo os critérios aí indicados). Deste modo, quem obtiver registo prioritário de certo direito, beneficia de prevalência sobre os direitos não inscritos ou de inscrição posterior.

            O conceito de terceiro encontra-se agora definido no nº 4 do art. 5º do CRegP: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis.

            Esta definição foi introduzida pelo DL 533/99, de 11/12, pretendendo-se pôr cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens[1].

            Essa divergência jurisprudencial havia culminado com a publicação do Acórdão Uniformizador do STJ nº 3/99, de 18.5.99 (DR IS de 10.07.99), nos termos do qual terceiros, para efeitos do art. 5º do Código de Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.

            Acolheu-se, assim, um critério diferente do adoptado no Acórdão do STJ nº 25/97, de 20.05.97 (DR IS de 04.07.97), que havia uniformizado jurisprudência no sentido de que terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.

            Reflectem estes Acórdãos duas posições possíveis sobre o conceito de terceiro:

            - um conceito restrito ou tradicional: são terceiros para efeitos de registo os que adquiram do mesmo transmitente direitos total ou parcialmente conflituantes; no essencial, este conceito, acrescido do requisito da boa fé, foi o adoptado no Acórdão nº 3/99;

            - um conceito amplo: é terceiro quem tem direito incompatível com o titular, direito que submeteu a registo; foi este o critério seguido no Acórdão nº 15/97.

            Tem sido defendida também uma posição intermédia, segundo a qual é terceiro apenas quem adquire a um mesmo sujeito, mas englobando nesta coincidência de sujeitos transmitentes, as transmissões forçadas, nomeadamente as resultantes de acto judicial.

            Presentemente, apesar da intenção expressamente afirmada pelo legislador, ao introduzir o nº 4 do art. 5º do CRegP, a controvérsia sobre esta questão mantém-se.

            No plano do direito a constituir, a doutrina é francamente favorável a um conceito mais amplo de terceiro (um dos dois últimos indicados, conjugado com o requisito da boa fé), único tido por adequado para assegurar a segurança jurídica dos bens sujeitos a registo e para reforçar a confiança neste.

            Assim o entendem, entre outros, Heinrich Hörster[2], Couto Gonçalves[3] e Mariana França Gouveia[4].

            Sustentam estes Autores, porém, que, de iure constituto, face à alteração introduzida no art. 5º do CRegP, não é defensável essa posição: o adquirente negocial e o adquirente por via da acção executiva, por exemplo, não devem ser considerados terceiros entre si.

            Diferente é a posição de outros Autores, defendendo, mesmo no plano do direito constituído, um conceito mais amplo de terceiro[5]. Incluem-se aqui, designadamente, Carvalho Fernandes[6], C. Mota Pinto[7], Rui Pinto Duarte[8], Remédio Marques[9], Teixeira de Sousa[10], José Alberto González[11], Videira Henriques[12] e Quirino Soares[13].

            A jurisprudência encontra-se também dividida, inclinando-se maioritariamente para o conceito restrito[14].

            O conceito restrito de terceiro para efeito de registo assenta na lição de Manuel de Andrade, ao versar o tema da aquisição de direitos e, concretamente, ao caracterizar a aquisição derivada. Isto mesmo é também afirmado pelo legislador, ao "tomar partido pela clássica definição" preconizada por aquele Professor.

            Recorde-se que, segundo este Autor, terceiros para efeitos de registo predial são as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio.

            Explica o mesmo Autor que a aquisição derivada pressupõe um direito do anterior titular (o mesmo ou outro mais amplo, ao menos como regra geral). Funda-se ou filia-se na existência dele. É acompanhada da extinção subjectiva do direito do anterior titular ou da sua limitação ou compressão, havendo entre os dois fenómenos um nexo causal e não meramente cronológico. Na aquisição derivada intervém, portanto, uma relação entre o titular anterior e o novo, não querendo isto dizer, todavia, que para se operar seja sempre necessário o concurso da vontade daquele (itálico nosso).

            O registo predial é apresentado como restrição a um dos princípios que caracterizam a aquisição derivada – nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet: o adquirente não pode obter qualquer direito (…) se nenhum direito pertencia ao transmitente, nem obter mais direitos do que ele tinha.

            Assim, no caso típico de duas vendas sucessivas, feitas pelo mesmo proprietário a adquirentes diferentes, estes são terceiros entre si, e prevalece a venda que primeiro foi registada e que pode ser a segunda, não obstante dar-se o caso de já nessa altura não ser o vendedor, mas o primeiro adquirente o verdadeiro proprietário do prédio[15].

            Não é consensual a interpretação desta exposição do referido Mestre.

            Para Heinrich Hörster é seguro que Manuel de Andrade – coerente dentro da lógica negocial da aquisição derivada – não incluiu, e nem podia ter incluído, o adquirente a título coercivo no seu conceito de terceiro. Assim, unicamente o adquirente por via judicial, a todos os títulos coercivo e completamente fora da lógica negocial, não é terceiro para efeitos de registo, por não ter adquirido o seu direito de acordo com as formas e regras da aquisição derivada, que pressupõem uma relação, mesmo tendo havido uma intervenção judicial, entre transmitente e adquirente[16].

            Já para Videira Henriques, o conceito de terceiro ensinado por Manuel de Andrade não exclui a tutela daqueles que adquirem sem o concurso da vontade do transmitente ou causante. Não exclui, por exemplo, a tutela do adquirente por venda executiva[17].

            Categórico era também Orlando de Carvalho que, embora aderindo à orientação tradicional de Manuel de Andrade, não excluía os casos de venda executiva (e de concurso de direitos reais de garantia e de aquisição)[18].

            Saliente-se que na fundamentação do próprio Acórdão Unificador nº 3/99 se afirma que numa perspectiva conceptual assente, como se viu, fundamentalmente, na autoridade do saudoso mestre, Manuel de Andrade, seguida tradicionalmente pela jurisprudência, terceiro, como se constatou, é o que adquiriu, de um autor comum, direitos incompatíveis.

            E logo se acrescenta, em nota: quer essa aquisição resultasse de acto voluntário, quer forçado. Aí se refere ainda que o que realmente ocorre e verdadeiramente caracteriza tal venda forçada é a inerente coerção: o vendedor (executado) é obrigado a vender ao comprador (arrematante) que ofereceu o melhor preço, procurando-se dar satisfação aos créditos do exequente e eventuais reclamantes.

            Trata-se, porém, de uma verdadeira venda em que a propriedade passa directamente do executado para o comprador, embora por intermédio do juiz (Estado), normalmente subordinada como tal à regra nemo plus iuris re aliena transferre potest quam ipse habet (…)

            Como se afirma no citado Acórdão do STJ de 7.7.99, as opiniões doutrinárias convergem em que há por parte do adquirente na venda executiva uma aquisição derivada, cujos pólos são o executado e ele próprio; a intervenção do Estado, feita na posição de substituto do executado, é de pura instrumentalidade no exercício de um poder de direito público, mas sem que alguma vez o bem vendido entre na sua titularidade.

            E noutro passo: a protecção do terceiro adquirente não pode ser limitada aos casos em que o mesmo proprietário celebra dois negócios jurídicos sucessivos e incompatíveis a respeito do mesmo prédio; ela tem a sua justificação na publicidade de actos aquisitivos de direitos reais que, pela sua inscrição registal, se presume serem válidos e eficazes e na confiança que ao público tem de inspirar essa sua inscrição. E as convicções daí extraídas pelos particulares são da mesma natureza, quer estejam a negociar com o titular inscrito, quer acorram à venda forçada em execução.

            Observam, aliás, Antunes Varela e Henrique Mesquita[19] que, nesta hipótese de venda judicial, nem sequer se torna necessário ampliar o conceito de terceiros, pois a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida (art. 824º nº 1 do CC). O vendedor é o próprio executado, embora se trate de uma venda realizada coercivamente, no interesse dos credores, por via judicial.

            Incontornável, como se afirma no citado Acórdão do STJ de 16.10.2008, é que é do titular executado que provém o direito que o adquirente adquire. Não há entre um proprietário – o executado – e outro proprietário – o adquirente – um terceiro proprietário (o Estado?) ou um vazio onde a propriedade não tenha aonde repousar e paire no universo jurídico sem um qualquer titular[20].

            Também nos parece que não se justifica que se excluam do conceito de terceiro, para este efeito, aqueles que, confiando na situação publicitada pelo registo e exercendo legitimamente uma faculdade que a lei lhes atribui, inscrevem direitos a seu favor, sem a cooperação ou contra a vontade do titular inscrito, como no caso da venda judicial. Também neste caso devem ser protegidos segundo a regra de prevalência ou de prioridade.

            Estamos nesse caso, como é reconhecido, perante uma aquisição derivada, apesar da natureza da venda executiva; o direito aí adquirido filia-se no direito do executado, dele dependendo quer quanto à sua existência quer quanto à sua extensão; esse direito provém directamente do executado, sendo este, no fundo, que transmite, embora de forma não voluntária. Mas a falta de concurso da vontade do executado não é suficiente para desfigurar aquela transmissão operada para o adquirente, como aliás já era ressalvado pelo Prof. Manuel de Andrade.

            Na perspectiva, que aqui cremos relevante, de transferência do direito – de onde provém o direito e direito objectivamente transmitido – não existe razão para distinguir a venda negocial da venda executiva.

            Não temos dúvidas de que este entendimento é o que melhor se harmoniza com os fins do registo predial e com as regras legais que estabelecem os efeitos dos actos que nele devem ser inscritos, acompanhando-se o Exmo Cons. Quirino Soares ao afirmar que esse conceito não é excluído, sendo conciliável com a disposição do art. 5º do CRegP[21].

            (…).

            De qualquer modo, importa notar que, no caso dos autos, estão em causa duas vendas executivas; e nada vem alegado sobre a boa fé ou má fé do adquirente.

            Assim, é inegável que, independentemente do conceito de terceiro que se adopte, estamos em presença de um mesmo transmitente comum.

            Tal como se afirma no Acórdão do STJ de 21.02.2006[22], não pode deixar de entender-se haver um transmitente comum nessas duas alienações: quer se considere o transmitente o executado, quer se considere o tribunal, no exercício de uma função jurisdicional autónoma, essa posição jurídica é a mesma em ambas as acções executivas, sendo indiferente admitir que o autor comum da transferência foi o executado ou o tribunal.

            Resta uma referência à usucapião, em que o autor fundamentou também a presente acção, de reivindicação, alegando que adquiriu por título translativo válido

metade indivisa dos imóveis referidos e que tem exercido sobre estes, por si e antepossuidores, actos de posse e fruição.

            Todavia, para além de não alegar o período de tempo por que perdurou essa posse, incluindo a dos seus antecessores (por acessão – art. 1256º do CC), esta posse do transmitente não é aqui invocável, sob pena de tornar em grande parte inútil o instituto do registo predial.

            Com efeito, se as regras desse instituto impedem a oponibilidade da primeira transmissão, não registada, deve igualmente considerar-se que não permitem a invocação da posse (causal), que mais não é do que a face material ou concreta desse direito inoponível.

            Assim, a regra da inoponibilidade deve abranger não só o direito cujo registo se omitiu, mas também a posse (posse causal) que corresponde a esse direito[23].

            Aderindo a este entendimento que, como se disse subscrevemos, torna-se desnecessário determinar a ampliação da matéria de facto tendo em vista a definição da posse da antecessora dos AA..

            Dizem os apelantes que os RR. só podem ser protegidos pelo registo se forem considerados terceiros de boa fé, e que não estão.

            No entanto, como dissemos a propósito da impugnação da matéria de facto, mantém-se a decisão negativa quanto aos factos respeitantes à má fé dos RR., pelo que fica prejudicada esta questão.

            Também esgrimem os apelantes com a inoponibilidade da venda levada a cabo na execução fiscal, porquanto eles é que eram os donos da fracção quando ela teve lugar.

            Com efeito, após a primeira disposição do bem, o alienante perde a legitimidade para dispor dele, pelo que a segunda disposição é ineficaz em relação ao primeiro adquirente, e não poderia permitir a aquisição da propriedade. Mas é o registo nessas condições que permite que a propriedade seja adquirida pelo adquirente na segunda disposição, através da aquisição tabular. Fala-se em aquisição tabular nos casos em que o registo pode ter como efeito a aquisição de um direito em desconformidade com a realidade substantiva (art.s 5.º/1, 17.º/2 e 122.º do CRP e 291.º do CC)[1].

            Para a aquisição tabular prevista no art. 5.º/1 do CRP, a lei exige apenas uma dupla alienação ou oneração e o prévio registo da segunda disposição. Embora a doutrina maioritária exija que a segunda disposição seja realizada a título oneroso e de boa fé, sem o que se entende que o direito do primeiro adquirente não poderá ser posto em causa[2].

            Tem sido objecto de controvérsia na doutrina a situação em que fica o titular do direito real preterido em virtude da aquisição tabular de terceiro.

            O autor que vimos citando, após uma resenha de outros, defende que a aquisição tabular atribui o direito real em termos definitivos ao adquirente com base no registo, sendo em consequência extinto o direito real anterior, por ser com ele incompatível[3].

            Os apelantes ainda afirmam que porque propuseram esta acção dentro dos três anos subsequentes à realização do negócio, os direitos dos RR., ainda que considerados como terceiros de boa fé, não são atendidos, de acordo com a disposição do n.º 2 do art. 291.º do CC.

            Com efeito, a venda à 1.ª Ré foi feita em 03.07.2006 e a acção foi registada em 26/06/2009.

            No entanto, não se declarou a nulidade do negócio jurídico celebrado pelas Finanças a favor da 1.ª Ré, precisamente por causa da aquisição tabular, pelo que não há que invocar o disposto no n.º 2 do art. 291.º.

            Por outro lado, a previsão do art. 291.º não coincide com a do art. 5.º/4 do CRP, sendo que neste se consagrou no direito registal o conceito restrito de terceiros como os que adquiriram de um mesmo autor direitos entre si incompatíveis, evitando-se que o direito registado venha a ser arredado por um facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente. Para o artigo 291.º do Código civil, só é “terceiro” o que adquire a coisa em segunda transmissão, isto é, de um adquirente do “primeiro” vendedor na cadeia negocial[4].

            Acresce que a nulidade que resulta da venda de coisa alheia apenas se aplica na relação entre alienante e adquirente, e não no que se reporta ao dono daquela, perante o qual a mesma é ineficaz, ou seja, insusceptível de produzir efeitos sobre o seu património, por não poder actuar-se, juridicamente, a transferência do seu direito real. Sendo ineficaz em relação ao dono da coisa, este poderá reivindicar a coisa, directamente do comprador, sem ter que discutir a validade do contrato ou demonstrar que não consentiu a venda e sem necessidade de promover a prévia declaração judicial de nulidade do respectivo contrato. Sendo o negócio ineficaz em relação ao proprietário, redunda irrelevante a invocação do disposto nos arts. 291.º do CC e 17.º, n.º 2, do CRgP[5].

            Por conseguinte, não tem aplicação o citado art. 291.º.

         4. Inconformados com este sentido decisório, vieram os AA. interpor a presente revista, em que pretendem impugnar decisão da Relação, proferida em acção sumária com o valor de €18.710,00, que confirmou inteiramente a sentença da 1ª instância , encerrando a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

I-         Ocorrendo duas vendas executivas, subsequentes, a primeira judicial, e, posteriormente, a venda do mesmo bem em execução fiscal, o comprador na execução fiscal não é "terceiro" para efeitos de registo, por não se tratar de uma aquisição voluntária, ou, pelo menos, não ter adquirido de um transmitente comum, não são terceiros, sendo inaplicável o artigo 5º do CRP.

II-        A aquisição advinda da execução ao seu titular, sem a vontade deste, resulta da lei e não por acto singular do executado e a protecção disponibilizada aos terceiros está limitada aos que tenham adquirido o seu - pretenso - direito da mesma pessoa que o transmitiu ao titular do direito incompatível.

III-      Não caberia aos AA aqui recorrentes, donos substantivos, fazer a prova negativa relativamente aos factos que poderiam implicar uma aquisição tabular, pois, aos terceiros, RR na acção e aqui Recorridos, caberia alegar e provar factos onde se conclui estarem de boa fé.

IV-      Estando provado por documento que aquando da celebração da escritura de venda pelo Serviço de Finanças foi feita a advertência do registo de penhora e ónus pendentes sobre o prédio, era exigível ao "terceiro" adquirente a realização de diligências que necessariamente lhe dariam conhecimento da venda judicial do prédio aos AA - vide, Ac do ST de 11.9.2008, in www.dgsi.pt;

V-        Ora, a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.

VI-      Efectuada a venda judicial os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerem bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior.

VII-     O registo da penhora do processo executivo judicial era obviamente anterior e deu publicidade de tal processo de execução e subsequente venda coerciva.

VIII-   As penhoras do processo de execução fiscal constavam de registo posterior ao da penhora da venda judicial.

IX-      Tais ónus, com a venda judicial, caducaram, artigo 824° CC.

X-        Assim, quando se procedeu à venda nas execuções fiscais já tinham caducado sobre o prédio todos os ónus nos termos do artigo 824° do CC.

XI-      Logo, tratou-se de uma verdadeira venda ilegal, a non domino, inexistia já direito do "tradens" para a venda.

XII- O bem em causa já não podia responder pelas dívidas do executado fiscal.

XIII-   No caso dos autos o imóvel passou a ser bem de um terceiro sem qualquer justificação substantiva para poder responder por débito de outrem.

XV-     Logo, Autores e Réus nos autos não são terceiros para efeitos de registo na concepção restrita de terceiros consagrada na lei de forma inequívoca, cfr. Santos Justo e Acs. STJ de 12.01.2012, Ac. TRC de 08.11.2011, Ac. TRC de 12-12-2006, Ac. STJ de 11.09. 2008 todos in www.dgsi.pt.

XVI-   Ora, no Acórdão da Relação aqui em recurso, para além da qualificação dos factos atinentes à má-fé/ boa-fé que é feita deficientemente, em contradição com a jurisprudência uniformizada citada e com o conceito restrito de terceiros para efeitos de registo, faz-se uma aplicação do conceito de terceiros de forma ampla e extravasando mesmo de tal conceito, violando assim a lei, artigo 5°do C R P e jurisprudência uniformizada do STJ.

XVII-  O "terceiro" não pode adquirir quer pelo facto de não haver um transmitente comum, de base negocial, tal como pressuposto na lei e no Acórdão uniformizador e, aliás, maioritária jurisprudência, quer pelo facto de inexistir na data da venda executiva fiscal direito a executar o bem por força da caducidade dos ónus, rectius, penhoras que alicerçam tal processo executivo.

XVIII-  Quem adquire judicialmente e confia que o Tribunal comunica nos termos do artigo 900° do C P C aos serviços competentes a caducidade dos ónus e registos como determina o artigo 824° do CC, não pode ver a sua aquisição posta em causa por uma venda do mesmo bem efectuada pelos serviços de finanças.

XIX-   Tal como os actos de disposição ou oneração de bens anteriores ao registo da penhora prevalecem sobre esta, alienando-se bens que à data já não eram do devedor, que já não constituíam garantia comum do crédito, está-se a fazer uma venda abusiva.

XX-     E, tal acto ilegítimo não pode merecer a protecção de um regime de propriedade e de registo que se funda na substância, no título, na posse e na boa-fé.

XXI-   Ora esta situação é de relevante importância social e impõe uma decisão jurisprudencial clarificadora para este tipo de situações como a concreta destes autos, tendo em vista a boa aplicação do direito, a certeza e segurança jurídica, no fundo a boa justiça.

XXII-  Dos factos provados em AA), BB), BB), CC), sobretudo DD), EE) e FF), e ainda GG) e HH, os RR não podem ser considerados num estado subjectivo de boa-fé, pois, a boa-fé para estes efeitos do registo pressupõe um estado em que ignoram, sem culpa, a desconformidade entre a situação registai e a situação substantiva.

XXIII-   Atento o tipo de pessoa que ficou encarregado da venda fiscal, um profissional, que tinha que conhecer o prédio e logo depararia com os AA. na sua posse, que tinha que ter conhecimento das várias inscrições no registo, que bastava uma simples verificação do estado da penhora registada em primeiro lugar para verificar a venda do prédio, e tendo em conta os documentos   abundantemente   existentes   nos   autos   que   não podiam ser ignorados pelo Serviço de Finanças e pela sua encarregada da venda, não pode o Tribunal julgar verificado um estado de Boa-Fé do adquirente na execução fiscal.

XXIV-   Os Recorridos só podiam ser protegidos pelo seu registo de aquisição se fossem terceiros e se estivessem de boa-fé;

XXV-  Não estando os Recorridos de boa-fé, não gozam de qualquer protecção e como tal devia a acção ser declarada totalmente procedente, por falta de um requisito para a tutela de uma aquisição tabular, nos termos do artigo 5º da CRP.

XXVI-  Ficou provada a entrega do bem pelo fiel depositário judicial, em F), G) e H), os AA continuaram a posse do anterior, o executado.

XXVII-A posse dos Recorrentes era actual e como tal presumia-se no tempo mais antigo, pois, sendo possuidores do bem como seus legítimos donos, diante de toda a gente, cientes de que exerciam direito próprio, fazendo-o e permanecendo na posse muito depois de os Recorridos formalmente terem celebrado a escritura de venda na execução fiscal, e tendo invocado posse anterior para juntar à sua posse, o que não sofreu qualquer infirmação por parte dos RR em termos de titulo de aquisição anterior capaz de pôr em causa a aquisição originária, devia ter sido reconhecida tal aquisição que destrói qualquer registo incompatível.

XXVIII- A posse dos Recorrentes é anterior ao registo dos RR., é titulada e gozam os AA. da presunção do artigo 1268 n° l do CC a qual só cede quando existir registo anterior ao início da posse.

XIX-   Os Recorridos quando perturbaram a posse dos AA., já estes tinham adquirido por usucapião como invocam e alegam.

XX-     Os Recorridos não apresentaram título originário que ponha em causa tal aquisição originária e as regras do registo no caso da dupla transmissão, no conflito de posse e registo, cedem para a posse e para a aquisição originária, baseada nela, a usucapião, artigo 1268° do CC, devendo a matéria de facto ser ampliada.

XXI-   À data da venda fiscal eram os AA legítimos donos da fracção por a terem adquirido de modo substancialmente válido e eficaz "erga omnes" como característica dos direitos reais e por efeito da aquisição efectuada no Tribunal Judicial.

XXII-  Com a venda judicial caducaram todos os registos, ónus e encargos sobre a fracção, artigo 824° CC, a "venda" no Serviço de Finanças Feira - 1, constituiu um negócio absolutamente ineficaz em relação aos AA., trata-se de negócios que são "res inter alios".

XXIII-    A invocada aquisição pelos RR. foi feita "a non domino" e, por isso, por força do princípio da causalidade, o acto de disposição correspondente encontra-se ferido de ilegitimidade do tradens, causando, a nulidade do negócio celebrado e do subsequente, e com isso a não produção , no plano substantivo, da eficácia real, artigo 408°, n° l e 892° CC, pelo que têm os AA jus a reivindicar a propriedade aos RR., pois os negócios por estes celebrados são ineficazes em relação aos AA., - cfr. Ac. STJ de 09.01.2007, in CJ, Tomo I, pág. 19; Ac. TRC 12.12.06, in CJ n° 194; Ac. TRC de 06.12.2005, CJ n° 186; Ac. STJ de 18.02.2003 CJ 166; Ac. STJ, de 26.06.2008 CJ Tomo II e Teoria Geral do Direito Civil de M. Pinto e Ac. STJ de 12.01.2012 in www.dgsi.pt.

XXIV-   Declarando-se a nulidade da venda das finanças, para efeitos do artigo 291° do CC, a acção foi intentada e registada dentro dos 3 anos previsto no artigo 291º, n°2 do CC - LL) dos factos provados.

XXV- O douto Acórdão da Relação do Porto do qual aqui se recorre está em contradição com o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido sobre a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação. Jurisprudência Uniformizada do STJ pelo Ac. n°3/99, publicado in PR - I Série - A nº159 de 10-07-1999.

Termos em que deve o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto ser revogado e substituído por outro que julgue procedente a pretensão dos AA. aqui Recorrentes;

Mais deve decidir-se que existe no domínio da mesma legislação a apontada oposição e contradição entre o Acórdão aqui em recurso, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto e o Acórdão Uniformizador, tornando-se necessário aclarar a questão posta nestes autos das duas "vendas" executivas subsequentes, proferindo Acórdão sobre tal,

    Os recorridos suscitam a questão prévia da irrecorribilidade, perante o valor da causa e a circunstância de entenderem inverificado o conflito jurisprudencial invocado.

   5. Pelo relator foi proferido o seguinte despacho, convidando o recorrente a pronunciar-se sobre a questão prévia da recorribilidade:

  Embora no respectivo requerimento de interposição, de fls. 279, não qualifiquem expressamente o recurso como sendo de revista excepcional , ele parece surgir perspectivado como tal pelos recorrentes ao longo da sua alegação, mencionando-se ( fls. 280) que se trataria de revista excepcional e invocando-se como seus específicos fundamentos, quer a violação da

jurisprudência uniformizada pelo STJ através do acórdão nº 3/99 ( o que possibilitaria o recurso para o STJ, apesar do valor da causa e da existência de dupla conforme, por força do estatuído na al.c) do nº2 do art. 678º do CPC) , quer a existência de interesse relevante da comunidade e na melhor aplicação do direito na solução do conflito jurisprudencial invocado.

   No actual sistema de recursos, o específico e inovatório meio impugnatório da revista excepcional, prevista no art. 721º-A do CPC, pressupõe obviamente – e em primeira linha - que da decisão impugnada seja possível interpor revista normal, por se verificarem todos os requisitos ou pressupostos gerais da recorribilidade para o Supremo – desde logo, que o valor da causa seja superior à alçada da Relação, nos termos previstos no art. 678º, nº1, do CPC.

   Tal não sucede manifestamente no caso dos autos, já que – como se referiu – o valor da causa - acção sumária - em que se enxerta a revista é de apenas €18.710,00.

   Ora, neste peculiar circunstancialismo, faltando manifestamente um pressuposto geral de admissibilidade do recurso de revista ( perfeitamente diverso e autónomo da existência/inexistência de dupla conforme) – no caso, ser o valor da causa superior à alçada do Tribunal a quo -  está manifestamente excluída a via prevista no citado art. 721º-A, afigurando-se que, neste peculiar circunstancialismo, deve caber ao relator a apreciação liminar dos requisitos gerais da recorribilidade, que nada tenham a ver com os pressupostos específicos da revista excepcional, referidos no nº1 do art. 721º-A , e cuja apreciação – e só ela - surge reservada pelo nº3 de tal preceito legal à formação  aí prevista.

   Implica isto que nunca poderia o recurso, interposto em causa com o referido valor, ser alicerçado no específico fundamento previsto nas als. a) e b) do nº1 do art. 721º-A do CPC, já que obviamente este interesse relevante na apreciação do caso supõe que se trate de processo em que – sendo possível, nos termos gerais, o acesso ao STJ - este apenas se mostrasse prejudicado ou precludido pela circunstância de ter havido dupla conforme das instâncias na solução do pleito.

Questão totalmente diversa da da admissibilidade de revista excepcional, nos termos previstos no referido art. 721º-A do CPC, é a que se conexiona com o regime particular de recorribilidade irrestrita de certas decisões, previsto no art. 678º, nº2, do CPC – e que, aliás, sempre existiu no nosso sistema processual, muito antes mesmo de ter sido criada, em 2007, a inovatória  figura da revista excepcional.

   No caso dos autos, está invocada a contradição da interpretação normativa feita no acórdão recorrido com o decidido no acórdão uniformizador de jurisprudência nº 3/99, considerando os recorrentes tal situação subsumível à al. c) do nº2 do referido art. 678º.

   Saliente-se, desde logo, que, no nosso entendimento, o regime de irrecorribilidade irrestrita previsto no citado nº2 ultrapassa plenamente o obstáculo no acesso ao Supremo que poderia decorrer da existência de dupla conforme; ou seja: quando o fundamento específico da revista for a violação do caso julgado, de regras sobre a definição da competência absoluta ou a contradição com o sentido interpretativo de certa norma, fixada em jurisprudência uniformizada pelo Supremo, o acesso ao STJ é possível, ainda que se verifiquem decisões coincidentes das instâncias sobre a matéria em causa.

   Isto é particularmente evidente no que toca ao peculiar fundamento invocado nos presentes autos: na verdade, seria verdadeiramente absurdo que o simples facto de as instâncias, de forma coincidente, se terem afastado frontalmente do sentido normativo fixado em determinado acórdão uniformizador pudesse precludir a reapreciação da questão pelo STJ, de modo a confirmar a sua anterior orientação – garantindo a previsibilidade e segurança do direito - ou, porventura, a revê-la, perante eventuais e decisivos argumentos novos suscitados.

   Quais os pressupostos deste direito de acesso irrestrito ao STJ – que passa por cima das regras gerais da recorribilidade, desde logo, as respeitantes ao valor da causa e da sucumbência -  consentido pela referida al. c) do nº2 do art. 678º?

- que estejam em causa decisões proferidas no domínio da mesma legislação;

- que ocorra efectiva contradição entre a interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido e a que foi fixada no invocado acórdão uniformizador, proferido pelo STJ, devendo ambas versar exactamente sobre a mesma questão fundamental de direito , que dirimem em termos antagónicos.

   Ora, como a seguir se procurará demonstrar, não parece que estes pressupostos se verifiquem no caso dos autos.

   Em primeiro lugar – e como dá nota o acórdão recorrido – não é o mesmo o quadro legal em vigor à data em que foi proferido o acórdão uniformizador 3/99 e no momento em que a Relação proferiu o acórdão recorrido, já que entretanto havia entrado em vigor o DL 533/99, de 11/12, no qual se adoptou uma nova redacção para o nº4 do art. 5º do CRPredial, destinada precisamente a pôr termo às divergências jurisprudenciais sobre a exacta definição de terceiros para efeitos de registo predial.

   Implica isto que a decisão proferida nos autos sobre tal matéria se funda, primacial e directamente, na referida norma legal, de tal modo que, se, porventura, a tivesse interpretado de forma deficiente, padeceria da consequente ilegalidade – vício que manifestamente não legitima o acesso ao Supremo, com ultrapassagem das regras gerais sobre recorribilidade. Ou seja: estando expressamente regulada e resolvida, em lei posterior, a questão jurídica que havia motivado historicamente o conflito jurisprudencial resolvido pelo STJ em acórdão uniformizador, a doutrina neste acolhida passa a valer, quando muito, como mero elemento adjuvante para a correcta interpretação da lei nova, deixando de gozar do valor persuasório que justifica a possibilidade de recurso facultada pela al. c) do nº2 do art. 678º do CPC.

   Saliente-se, aliás, que a actual formulação legal, constante do referido art. 5º, e a adoptada no acórdão uniformizador invocado pelos recorrentes não coincidem inteiramente:

- Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si;

- «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.o do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.»

   Acresce que, na concreta situação litigiosa, não há sequer coincidência entre a questão jurídico normativa resolvida pelo STJ no citado Ac. 3/99 e a controvertida no caso dos autos. Na verdade, verifica-se uma diferenciação relevante entre as situações que estão na base, respectivamente, do conflito resolvido por aquele acórdão (num momento em que a lei ainda não definia explicitamente o conceito de terceiro) e a subjacente à actual acção – e que decorre de, nos autos que estiveram na base do Ac. 3/99, o direito incompatível com a propriedade não

registada ser emergente de mero registo de penhora sobre o bem em causa, ainda não vendido na acção executiva, ao passo que, na presente acção, estamos confrontados com uma venda executiva já consumada, o que levou naturalmente o A. a ter de propor, não embargos de terceiro, mas antes acção autónoma de reconhecimento da propriedade e de condenação na restituição do seu objecto no confronto de quem adquiriu aparentemente a propriedade através da venda executiva.

   Ou seja: o que estava em causa no Ac. 3/99 era saber se o exequente que logrou registar antecipadamente penhora sobre o bem reivindicado pelo embargante se podia configurar como terceiro em relação ao proprietário que omitiu o registo da sua aquisição. Pelo contrário, na situação agora em litígio, a questão fundamental é saber se aquele que adquiriu a propriedade de um imóvel mediante venda judicial se pode qualificar como terceiro em relação ao verdadeiro proprietário que não curou de inscrever tempestivamente no registo predial a respectiva aquisição .

   Ora, como é evidente, estas duas questões não têm necessariamente de ter a mesma resposta: se é evidente e inquestionável que o exequente que se limitou a inscrever a penhora obtida a seu favor no registo não é terceiro em relação ao proprietário do bem ( já que obviamente a faculdade, legalmente reconhecida ao credor, de unilateralmente penhorar bens do seu devedor/executado não é um negócio jurídico que seja susceptível de conduzir a uma aquisição derivada de direitos, provenientes de um mesmo autor ou transmitente), já se configura como muito mais discutível a posição do adquirente do bem no termo da acção executiva, tudo dependendo essencialmente do modo como se configurar a venda executiva ( no caso dos autos, no âmbito de execução fiscal: quem é verdadeiramente o vendedor do bem - o Estado, ao exercer um poder coercitivo autónomo, que envolveu uma espécie de expropriação do direito objecto da execução; ou, pelo contrário, o transmitente do bem vendido judicialmente será ainda o devedor/ executado, actuando o Estado em verdadeira sub rogação deste, no exercício de um poder coercitivo que lhe permite dispor de direitos alheios no interesse da realização dos créditos fiscais?) ; e, muito em particular, o entendimento a adoptar depende decisivamente do juízo que se faça sobre as necessidades de tutela da confiança e segurança jurídica no domínio da venda executiva: deverá prevalecer sobre o interesse do verdadeiro proprietário que omitiu o registo da sua aquisição o interesse do adquirente em venda executiva que confiou inteiramente no registo nessa data existente e tratou de imediatamente consolidar a sua aquisição com a imediata feitura de registo a seu favor? Merecerá, porventura, menor protecção a confiança de quem adquire um bem imóvel em venda executiva, confiando justificadamente no teor de registo existente, do que a confiança de quem, em situação paralela, adquire direitos reais no comércio ou tráfico jurídico, em negócio voluntariamente celebrado pelo próprio  proprietário aparente?

   Ora, esta exacta questão – que efectivamente reveste manifesta complexidade e tem sido objecto de apreciações divergentes – não foi, nem tinha de ser, resolvida pelo Ac. 3/99, pela singela razão de, no caso que lhe estava subjacente, não ter ainda ocorrido qualquer venda executiva, circunscrevendo-se, por isso, o conflito de interesses a dirimir ao verdadeiro proprietário do imóvel e ao exequente, titular de penhora registada prioritariamente sobre tal bem.

   E, assim sendo, é evidente que nenhuma contradição directa pode ocorrer entre as soluções jurídicas acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento.

         Nestes termos, ao abrigo do preceituado no art. 704º do CPC, convido as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre a questão prévia do não conhecimento do recurso , por inverificação dos pressupostos que facultariam o excepcional acesso ao STJ numa causa de valor inferior à alçada da Relação.

   6. O recorrente veio pronunciar-se sobre a questão prévia da irrecorribilidade, mediante requerimento do seguinte teor:

AA e mulher, BB, Recorrentes na Revista em epígrafe, notificados do douto despacho do Sr. Relator sobre a questão prévia do não conhecimento, para se pronunciarem nos termos do artigo 704° do CPC, vêm, junto de V. Ex.ª, dizer o seguinte:

1- Data vénia, reitera-se o vertido nas Alegações de recurso.

2- Nos autos discute-se a questão fundamental de direito que é o entendimento de Terceiros para efeitos de registo consagrado no artigo 5º do CRP e que plasmou a Jurisprudência Uniformizada do STJ pelo Ac. n°3/99 publicado in PR - I Série - A n°159 de 10-07-1999.

3- A contradição prende-se com o conceito uniformizador de Terceiros para efeitos de registo, que, pondo termo a discussão jurisprudencial sobre o conceito de terceiros para efeitos de registo predial previsto no artigo 5º do CRP e na sequência do Acórdão Uniformizador do STJ de 1999, citado supra, ditou o conceito restrito de terceiros, "Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5° do CRP são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.", sendo, na sequência, consagrado legislativamente tal conceito dando nova redacção ao artigo 5º n° 4 do CRP pelo DL 533/99 de 11 de Dezembro, assim redigido "Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si", conceito restrito ou tradicional de terceiro para efeitos de registo, defendido por Manuel de Andrade.

4- Defendem os aqui recorrentes que o comprador na execução fiscal não é "terceiro" para efeitos de registo, por não se tratar de uma aquisição voluntária, ou, pelo menos, não ter adquirido de um transmitente comum, não são terceiros, sendo inaplicável o artigo 5°CRP, tendo-se em vista a aquisição negocial, Vid. Oli. Ascenção, ibidem, e A. Santos Justo in Direitos Reais, págs. 67 ss.

5- A aquisição advinda da execução ao seu titular, sem a vontade deste, resulta da lei e não por acto singular do executado e a protecção disponibilizada aos terceiros está limitada aos que tenham adquirido o seu - pretenso - direito da mesma pessoa que o transmitiu ao titular do direito incompatível.

6- Nesse sentido e seguindo de perto o Ac do STJ, de 2008, in www.dgsi.pt, "todos vão no sentido de que o vendedor na venda executiva não é o executado, não sendo o comprador, portanto, terceiro para efeitos de registo. A compra e venda é um contrato (artigo 874° do C. Civil) e, embora a lei não defina o que deve entender-se por contrato, todos estão de acordo que a sua definição deve encerrar um encontra de vontades. Na venda executiva, não descortinamos qualquer encontro de vontades entre o executado - e é este apenas que aqui nos importa afastar - e o comprador. No normal, aquele até não quer vender. Á parte isso, não se vislumbra qualquer vínculo ou relação que permita dizer que o tribunal age em nome ou por conta dele, falecendo, nomeadamente, os requisitos da representação. Acolhemos, pois, esta a posição maioritária e, acolhendo-a, temos que o R. recorrente não deve ser considerado terceiro para efeitos de registo, não beneficiando de ter registado em primeiro lugar";

7- No sentido muito próximo do caso dos autos, o Ac. do STJ de 11.09.2008, refere que:

"O comprador de um bem numa venda judicial e um comprador desse mesmo bem numa venda não judicial não são terceiros entre si. E não são terceiros porque não existe autor comum nas ditas vendas. Na venda judicial feita à A., a vendedora foi a Fazenda Nacional na mediada em que actuou no exercício de um poder autónomo, que se reconhece à própria essência da sua função e não no exercício do poder originariamente pertencente à executada".

8- Por outro lado, é assertivamente dito pela Jurisprudência que, "VII- O artigo 5º, n° 1 do CRP não tem por escopo fazer depender a oponibilidade do direito real da prévia inscrição registrai da aquisição a favor do seu titular, tendo antes por objectivo proteger o terceiro que, fiado na aparência de um situação registrai desconforme à realidade substantiva, celebra um negócio jurídico inválido com o titular inscrito e regista a sua aquisição.

VIII- Todavia, essa protecção só é disponibilizada aos terceiros. Esses terceiros, porém, -de harmonia com a concepção restrita de terceiros para efeitos do registo ultimamente imposta ao intérprete e ao aplicador do direito pelo próprio legislador - são apenas aqueles que tenham adquirido do autor comum direitos incompatíveis entre si (artigo 5º, n° 4 do CRP, aditado pelo DL n° 533/99, de 11.12). IX -Quer dizer: a protecção disponibilizada por aquela norma está, pois, limitada aos terceiros" - Ac RC de 8.11.2011, in www.dgsi.pt;

9- No caso dos autos, não tendo AA e RR adquirido, de forma negocial ou voluntária de um mesmo transmitente, não são terceiros para efeitos de registo nesta acção, de acordo com a concepção restrita de terceiros consagrada na lei de forma inequívoca, cfr. Santos Justo e Ac STJ de 12.01.2012, Ac TRC de 08.11.2011, Ac. TRC de 12-12-2006, Ac STJ de 11.09. 2008, todos in www.dgsi.pt.

10- Ora, a decisão proferida pela Relação briga com esse entendimento, porquanto, não tendo AA. e RR adquirido, de forma negocial ou voluntária de um mesmo transmitente, nem de um transmitente comum, não são terceiros para efeitos de registo nesta acção, de acordo com a concepção restrita de terceiros consagrada na lei de forma inequívoca, cfr. citado Acórdão e ainda Santos Justo e Ac STJ de 12.01.2012, Ac TRC de 08.11.2011, Ac. TRC de 12-12-2006, Ac STJ de 11.09. 2008, todos in www.dgsi.pt.

11- Quando se procedeu à venda nas execuções fiscais já tinham caducado sobre o prédio todos os ónus nos termos do artigo 824° do CC, tratou-se de uma verdadeira venda a non domino, o bem em causa já não podia responder pelas dívidas do executado fiscal.

12- Ora, no Acórdão da Relação aqui em recurso, para além da qualificação dos factos atinentes à má-fé/ boa-fé que é feita deficientemente, em contradição com a jurisprudência uniformizada citada e com o conceito restrito de terceiros para efeitos de registo, faz uma aplicação do conceito de terceiros de forma ampla e extravasando mesmo de tal conceito, violando assim a lei, artigo 5o do C R P e jurisprudência uniformizada do STJ.

13- O "terceiro" não pode adquirir quer pelo facto de não haver um transmitente comum, de base negocial, tal como pressuposto na lei e no Acórdão uniformizador e, aliás, maioritária jurisprudência, quer pelo facto de inexistir na data da venda executiva fiscal direito a executar o bem por força da caducidade dos ónus, rectius, penhoras que alicerçam tal processo executivo.

14- Acresce que sendo o Acórdão Uniformizador a fonte da alteração do CRP, temos que a decisão proferida pela Relação foi proferida no domínio da mesma legislação.

15- S.d.r., pelo Venerando Conselheiro relator, cremos que se verificam os pressupostos do conhecimento do recurso, pois, na contradição alegada pelos recorrentes, s.m.o., parece-nos que o que está em causa é o prolatado "sumário " do Acórdão Uniformizador não havendo que cuidar do concreto tratado no "interior" dos autos.

16- Ora, salvo o devido respeito por posição contrária, e que é muito, temos para nós que o douto Acórdão da Relação do Porto do qual aqui se recorre está em contradição com douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido sobre a mesma Questão de direito, no domínio da mesma legislação. Jurisprudência Uniformizada do STJ pelo Ac. n°3/99 publicado in PR - I Série - A n°159 de 10-07-1999:

17 - Aliás, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, atenta a relevância da matéria, hodiernamente muito premente atentas as vendas fiscais serem independentes das judiciais e a forma célere como ocorrem nas finanças, por vezes sem cuidar de todas as garantias formais, devia pronunciar-se sobre este caso paradigmático.

18 - E isso tendo em vista firmar o entendimento seguro sobre os conflitos entre as vendas judiciais e as fiscais, pois, sempre pode ocorrer um hiato entre obter os elementos da venda judicial e, entretanto, ocorrer venda fiscal, com tramitação mais célere e, consequente entrada no registo com antecedência.

19 - Precisamente tendo em conta tudo quanto se produziu nas Alegações de recurso que aqui se dão por reproduzidas, o resumidamente supra alegado, deve o Venerando Supremo Tribunal pronunciar-se sobre o recurso.

Termos em que se pugna por estarem verificados os pressupostos da admissibilidade do recurso.

Caso assim não se entenda e atenta a indicação do despacho, reclama-se e requer-se que, ao abrigo do Artigo 700°, n°3 do CPC, sobre a matéria do despacho seja proferido acórdão, levando os autos à conferência.

   7. Importa, pois, dirimir a questão prévia da recorribilidade. Saliente-se que – ao contrário do que parece supor o recorrente, face à parte final do seu requerimento, a fls. 373 - não tem cabimento nos autos qualquer reclamação para a conferência, deduzida nos termos previstos no art. 700º, nº3, do CPC: na verdade, o despacho atrás transcrito não se traduziu numa decisão sumária do relator, impugnável por aquela via procedimental, mas antes – e apenas – num convite para as partes se pronunciarem sobre a suscitada questão da admissibilidade do acesso ao STJ, num caso com a peculiar configuração do dos presentes autos. Respondido a tal convite, irá ser julgada essa questão, sem que tenha lugar a conferência a que alude o nº3 daquele art. 700º.

  E, perante a vontade já adiantada pelo recorrente de ver submetido o caso à apreciação colegial, irá julgar-se – por razões de celeridade e economia processual - a questão da recorribilidade em acórdão – e não em decisão singular do relator, proferida ao abrigo do disposto no art. 704º do CPC, susceptível da ulterior reclamação que o recorrente logo anunciou que pretenderia deduzir.

   Considera-se que as razões aduzidas no requerimento de fls. 368 e seguintes não abalam os fundamentos da irrecorribilidade, tal como se mostram explanados no despacho-convite oportunamente proferido.

   É que - mesmo que se admita que não deve conferir-se relevo determinante ao facto de ter sido inserida no CRPredial, em 1999, uma relevante alteração legislativa relativamente ao quadro legal existente na data da prolação do Ac. 3/99 – consagrando o legislador, no essencial, de forma expressa e com força legal directa, a solução jurisprudencialmente adoptada no citado acórdão 3/99 – considera-se que não há real oposição entre a solução acolhida naquele aresto e a seguida pela Relação no acórdão recorrido.

   Reitera-se inteiramente a linha argumentativa seguida no despacho anteriormente proferido, ao sustentar que ocorre uma diferenciação relevante entre as situações que estão na base, respectivamente, do conflito resolvido por aquele acórdão (num momento em que a lei ainda não definia explicitamente o conceito de terceiro) e a subjacente à actual acção – e que decorre de, nos autos que estiveram na base do Ac. 3/99, o direito incompatível com a propriedade não registada ser emergente de mero registo de penhora sobre o bem em causa, ainda não vendido na acção executiva, ao passo que, na presente acção, estamos confrontados com uma venda executiva já consumada, o que levou naturalmente o A. a ter de propor, não embargos de terceiro, mas antes acção autónoma de reconhecimento da propriedade e de condenação na restituição do seu objecto no confronto de quem adquiriu aparentemente a propriedade através da venda executiva.

   Ou seja: o que estava em causa no Ac. 3/99 era saber se o exequente que logrou registar antecipadamente penhora sobre o bem reivindicado pelo embargante se podia configurar como terceiro em relação ao proprietário que omitiu o registo da sua aquisição. Pelo contrário, na situação agora em litígio, a questão fundamental é saber se aquele que adquiriu a propriedade de um imóvel mediante venda judicial se pode qualificar como terceiro em relação ao verdadeiro proprietário que não curou de inscrever tempestivamente no registo predial a respectiva aquisição .

   Ora, como é evidente, estas duas questões não têm necessariamente de ter a mesma resposta: se é evidente e inquestionável que o exequente que se limitou a inscrever a penhora obtida a seu favor no registo não é terceiro em relação ao proprietário do bem ( já que obviamente a faculdade, legalmente reconhecida ao credor, de unilateralmente penhorar bens do seu devedor/executado não é um negócio jurídico que seja susceptível de conduzir a uma aquisição derivada de direitos, provenientes de um mesmo autor ou transmitente), já se configura como muito mais discutível a posição do adquirente do bem no termo da acção executiva, tudo dependendo essencialmente do modo como se configurar a venda executiva ( no caso dos autos, no âmbito de execução fiscal: quem é verdadeiramente o vendedor do bem - o Estado, ao exercer um poder coercitivo autónomo, que envolveu uma espécie de expropriação do direito objecto da execução; ou, pelo contrário, o transmitente do bem vendido judicialmente será ainda o devedor/ executado, actuando o Estado em verdadeira sub rogação deste, no exercício de um poder coercitivo que lhe permite dispor de direitos alheios no interesse da realização dos créditos confiou inteiramente no registo nessa data existente e tratou de fiscais?) ; e, muito em particular, o entendimento a adoptar depende decisivamente do juízo que se faça sobre as necessidades de tutela da confiança e segurança jurídica no domínio da venda executiva: deverá prevalecer sobre o interesse do verdadeiro proprietário que omitiu o registo da sua aquisição o interesse do adquirente em venda executiva que imediatamente consolidar a sua aquisição com a imediata feitura de registo a seu favor? Merecerá, porventura, menor protecção a confiança de quem adquire um bem imóvel em venda executiva, confiando justificadamente no teor de registo existente, do que a confiança de quem, em situação paralela, adquire direitos reais no comércio ou tráfico jurídico, em negócio voluntariamente celebrado pelo próprio  proprietário aparente?

   Ora, esta exacta questão – que efectivamente reveste manifesta complexidade e tem sido objecto de apreciações divergentes – não foi, nem tinha de ser, resolvida pelo Ac. 3/99, pela singela razão de, no caso que lhe estava subjacente, não ter ainda ocorrido qualquer venda executiva, circunscrevendo-se, por isso, o conflito de interesses a dirimir ao verdadeiro proprietário do imóvel e ao exequente, titular de penhora registada prioritariamente sobre tal bem.

   Ou seja: o acórdão proferido nestes autos pela Relação não qualifica como terceiro quem não adquiriu derivadamente, de um mesmo transmitente, direito incompatível sobre o prédio em litígio: simplesmente, ao configurar a natureza jurídica da venda em processo executivo , considera que a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida (art. 824º nº 1 do CC). O vendedor é o próprio executado, embora se trate de uma venda realizada coercivamente, no interesse dos credores, por via judicial – pelo que naturalmente se limitou – perante tal configuração normativa do acto de venda - a preencher o conceito de terceiro, de forma não extensiva, em consonância com a natureza que atribuiu à venda em execução e com respeito integral pela solução adoptada, quer no Acórdão 3/99, quer no actual CRPredial.

   Na verdade, a determinação da natureza jurídica e da configuração dogmática da venda em execução é matéria que de todo extravasa a decisão ínsita no acórdão uniformizador 3/99, pela singela razão de, no caso que esteve na sua base, apenas se ter verificado um acto de penhora, não tendo ocorrido qualquer venda no processo de execução: e daí que naturalmente não possa existir contradição entre uma decisão – a recorrida - que aborda esta questão da natureza jurídico-dogmática do acto de venda em processo executivo e outra – o referido acórdão uniformizador – que se não pronunciou, nem tinha de pronunciar, sobre tal matéria.

   É certo que o entendimento acolhido no acórdão recorrido briga com outra jurisprudência – inclusivamente do Supremo – citada pelo recorrente na peça processual que apresentou: porém, movendo-nos em causa cujo valor se situa dentro da alçada da Relação, tal contradição jurisprudencial – porque tais acórdãos, onde efectivamente se mostra abordada a questão da natureza da venda executiva, não revestem a natureza de acórdãos uniformizadores – não pode fundamentar o acesso ao Supremo, só alcançável, nesta peculiar situação, pela apertada via da alínea c) do nº2 do art. 678º do CPC.

   8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados não se conhece do recurso, por se mostrarem inverificados os respectivos pressupostos.

   Custas pelo recorrente.

Lisboa, 07 de Fevereiro de 2014

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor

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[1] Luís Menezes Leitão, o. c., p 288
[2] Ibid.
[3] Ibid., pp. 290-291
[4] Acórdão do STJ de 21.04.2009; processo: 5/09.6YFLSB, www.dgsi.pt 
[5] Acórdão do STJ de 16.11.2010; processo: 42/2001.C1.S1, www.dgsi.pt