Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2324/07.7TBVCD.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ACORDO PROVISÓRIO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 01/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS – DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE – DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO AOS BENS DOS CÔNJUGES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSOS ESPECIAIS / PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 473.º, 474.º, 1406.º, 1407.º, N.º2, 1412.º, 1673.º, 1682.º-A, N.º2, 1735.º, 1736.º, 1793.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 1411.º, N.º1, 1413.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17-01-2002, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 18-11-2008, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. O acordo provisório estabelecido no âmbito de acção divórcio litigioso quanto à utilização da casa de morada de família não perde automaticamente a sua eficácia com o trânsito em julgado da sentença.

2. Em tais circunstâncias, o cônjuge interessado tem a possibilidade de obter uma resolução definitiva do conflito acerca da atribuição da casa de morada de família, nos termos do art. 1793º do CC, através do processo especial previsto no art. 1413º do CPC.

3. A persistência da situação não confere ao cônjuge não utilizador da casa de morada de família o direito de ser compensado segundo as regras do enriquecimento sem causa, uma vez que a situação encontra justificação na sua própria inércia relativamente ao accionamento do mecanismo processual previsto no art. 1413º do CPC.

Decisão Texto Integral:

I – J.

demandou

M.

em acção declarativa com processo ordinário pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 19.773,00 e da quantia mensal de € 560,00 até efectiva desocupação do imóvel de que ambos são comproprietários, assim como no pagamento de 50% das prestações vincendas correspondentes ao IMI.

Alega que foi casado com a R. e que, no âmbito do processo de divórcio, foi atribuída a esta a utilização da casa de morada de família, situação que se mantém, sendo que o imóvel foi adquirido por ambos os cônjuges em regime de compropriedade, atento o regime de separação de bens que vigorava.

A R. impugnou a pretensão do A. alegando que não se verifica uma situação qualificada como enriquecimento sem causa.

Foi proferida sentença que condenou a R. no pagamento ao A. de ½ do valor locativo do imóvel desde Janeiro de 2005 até efectiva desocupação e na quantia de € 342,14 correspondente a metade do IMI pago pelo A., assim como em metade das quantias que o A. vier a pagar a esse título.

A R. apelou, mas a Relação confirmou o decidido.

A R. interpôs recurso de revista, tendo concluído que:

a) A alusão a "pendência da acção”, tanto pode significar que as partes celebraram o acordo na pendência da acção, como o fizeram, como o de o acordo se destinar apenas a regular o destino da casa de morada de família enquanto a acção de divorcio estivesse pendente ou como se após o divorcio ficava em aberto a possibilidade de alteração ao destino da casa de morada de família, sem necessidade de prova de alteração das circunstâncias a requerimento do cônjuge que nisso tivesse interesse.

b) Ao contrário do decidido do referido acordo não resulta que as partes quiseram estabelecer como limite temporal ao destino da casa de morada de família, a pendência da acção de divórcio.

c) Assim o texto do referido acordo não afasta a presunção estabelecida no art. 1775°, nº 2, do CC.

d) Celebrado um acordo quanto ao destino da casa e morada de família ou decidido judicialmente esse destino, ainda que em incidente no processo de divórcio, a alteração só pode ser feita em processo próprio de alteração do destino da casa de morada de família se a sentença de divórcio não proceder a essa alteração.

e) A retribuição pelo uso da casa de morada de família de um dos cônjuges ao outro é fixada em processo próprio para alteração do destino da casa de morada de família, nos termos do art. 1793º do CC.

f) O tribunal, ao atribuir o destino da casa de morada de família a um dos cônjuges, olha não só para a necessidade de cada um dos cônjuges, mas fundamentalmente para o interesse dos filhos do casal, pelo que o valor da retribuição num arrendamento que possa ser imposto não é necessariamente o valor locativo de mercado.

g) O A., ao intentar acção de divisão de coisa comum, após o divórcio, manifesta a rejeição da possibilidade do arrendamento da casa de morada da família à R. ou a terceiro.

h) A petição inicial e consequentemente a acção não permite a condenação da R. com base em enriquecimento sem causa, por falta de alegação de factos concretos em que se consubstancie o enriquecimento da R. e o empobrecimento do A.

i) Analisado o circunstancialismo desde 2005 até pelo menos 2010, a R. beneficiaria com facilidade de um empréstimo a uma taxa de juro Euribor + 0,5 %, (ou spread de 0,5%) para aquisição do imóvel, o que se traduziria nesta data a um juro de 0,95 % e uma taxa de juro média no intervalo de 2005 à presente data entre 0,95 e 1,65 % ao ano, que corresponderia a se algum locupletamento houvesse ao locupletamento da R. na maior parte do período a que se refere a sentença.

j) O A. provavelmente está a pagar pelo empréstimo à habitação que contraiu há cerca de 4 anos pela casa onde reside, antes do início da actual crise económica, mas depois da propositura da acção, uma taxa de juro, na ordem dos referidos Euribor + 0,5% ou no limite Euribor + 1,0 %.

k) A condenação numa indemnização pelo valor locativo, além de retirar a capacidade negocial à R., impondo-se-lhe um valor de renda que esta provavelmente não aceitaria, vai muito além do eventual locupletamento da R. e do empobrecimento do A., constituindo assim in casu uma injusta fonte de enriquecimento do A.

l) Ao proceder o pedido do A. fora do âmbito do art. 1793º do CC, está-se a dar ao A., sem o vincular a um arrendamento, uma contrapartida maior do que a de um arrendamento que fosse deferido pelo Tribunal à R., contornando-se e ultrapassando-se as regras desse instituto, em contrário à parte final do art. 474° do CC.

m) Uma dm razões da subsidiariedade do enriquecimento sem causa em relação a outros institutos é precisamente o facto de outro instituto negar a indemnização ou atribuir ao enriquecimento efeitos diferentes da restituição do valor do locupletamento.

n) Na obrigação alimentar, compreende-se conceder habitação aos filhos.

o) A R. na prática é apenas um dos 4 utentes da casa, sendo que na pendência do matrimónio era um dos 5 utentes da casa e o A. outro dos 5, pelo que no limite, caso se entenda que ao A. assiste o direito a ser ressarcido pela fruição da casa, apenas lhe deve ser arbitrado o valor correspondente a l/8 do valor da fruição do imóvel ou, então, se pensarmos na quota-parte da fruição que teria se todos estivem a residir na casa, l/5 do valor da fruição do imóvel.

p) O pagamento de metade do valor locativo do imóvel, além de ultrapassar in casu mais do triplo do valor do locupletamento da R. e do empobrecimento do A., traduz-se numa condenação da R. a pagar ao A. pela habitação que faculta aos filhos.

q) A renda de mercado, na indicação de valor locativo do imóvel, tem incorporados custos como a fiscalidade, os intervalos entre arrendatários e as obras aquando das mudanças de arrendatários, vínculo perante o arrendatário, que não fazem sentido quando se trata de indemnização pela fruição da casa de morada de família, por parte do cônjuge inocente que ficou com a guarda dos filhos e por parte dos filhos.

r) Qualquer valor acima de 1/5 do valor da fruição do imóvel é superior ao enriquecimento da R. e ao empobrecimento ao A.

s) Ao contrário do que se decidiu na 2ª instância, a mistura que a A. fez do direito à habitação com o direito a alimentos dos filhos não nos parece ilegítima; a separação absoluta que se faz do direito da propriedade do imóvel com a obrigação alimentar do A. perante os filhos, é que nos parece contrária, no caso, quanto à casa de morada de família, quer ao conteúdo da obrigação de restituição no enriquecimento sem causa, quer à protecção ao interesse dos filhos do casal e às necessidades de cada um dos cônjuges que a legislação civil confere à casa de morada de família.

t) No limite, em acção de enriquecimento sem causa, caso se considere que a R. não tem causa para ocupar o imóvel e que o recurso a esse instituto quanto à indemnização pelo uso da casa de morada de família não está vedado pelos arts. 474º e 1793° do CC, a condenação deve quedar-se em indemnização ao A. do valor com que se tenha locupletado à sua custa pela fruição do imóvel desde a data do divórcio até à data da venda ou desocupação, de acordo com o art. 479° do CC.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

II – Factos provados:
1. O A. e a R. contraíram casamento em 22-5-87, no regime de separação de bens, dissolvido por sentença de 9-12-04, transitada em julgado em 5-1-05, proferida pelo 3° Juízo do Trib. de Família e Menores do Porto.
2. Por escritura pública de compra e venda de 10-11-93, o A. e a R. declararam comprar, para ambos em comum e partes iguais, o prédio urbano do rés-do-chão, para habitação, com a área coberta de cento e quarenta metros quadrados, anexo e garagem com a área de vinte e oito metros quadrados e logradouro com a área de 422 m2, sito no lugar de …, da freguesia de …, concelho de Vila de Conde.
3. O prédio referido em 2. encontra-se descrito na CRP sob o n° ..., ali constando como confrontando de norte com …, sul com …, nascente com caminho e poente com rua, inscrito na matriz sob o art. 664, encontrando-se registada a compra a favor do A. e da R., por apresentação de n° 23, de 29-12-04.
4. No incidente de atribuição de casa de morada de família que correu termos nos autos de divórcio litigioso n.º 186/02 do 3° Juízo do Trib. de Família e Menores do Porto, o A. e a R. acordaram, no dia 22-3-04, “quanto ao destino da casa de morada de família na pendência da acção”, passando a mesma a ser “utilizada em exclusivo pela aqui R., a partir de 21-6-04”, entregando nessa data a chave e deixando na mesma o recheio.
5. O casamento foi dissolvido por sentença de 9-12-04, proferida pelo 3° Juízo do Trib. de Família e Menores do Porto, transitada em julgado em 5-1-05.
6. Em Janeiro de 2005, o A. intentou contra a R. acção de divisão de coisa comum que corre termos no 2° Juízo Cível, sob o n° 998/05.2TBVCD, não tendo ainda sido proferida decisão.
7. O prédio identificado em 2. tem vindo a ser usado e fruído pela R. e pelos 3 filhos do casal, desde Janeiro de 2005, contra a vontade do A. e sem a entrega de qualquer quantia a este, impedindo o A. de utilizar o imóvel.
8. A R. reside no imóvel com os 3 filhos do casal em idade escolar.
9. No período de Janeiro de 2003 a Outubro 2004, o imóvel foi habitado exclusivamente pelo A. e no período de Outubro de 2002 a Janeiro de 2003, o imóvel foi habitado pelo A. e seu filho B.
10. O A. paga os alimentos acordados aos seus filhos.
11. O A. pagou as contribuições autárquicas do imóvel de Abril de 2005, Setembro de 2006, Abril de 2007, no total de € 684,28.

III – Decidindo:

1. A única questão que cumpre (re)apreciar resume-se da seguinte forma:

Fixado, na pendência do processo de divórcio litigioso, o regime provisório de utilização da casa de morada de família a favor de um dos cônjuges, o facto de, após a sentença de divórcio, este continuar a utilizar o imóvel confere ao outro o direito de ser indemnizado segundo as regras do enriquecimento sem causa?

2. Relativamente a qualquer questão litigiosa, e mais ainda quando a mesma emerge de relações jurídico-familiares, é possível – e aconselhável – que nos interroguemos sobre a justeza do resultado procurado ou projectado, já que é de supor que o legislador, na regulação abstracta dos interesses, não opta arbitrariamente por uma qualquer solução, presumindo-se que os textos legais consagram, em abstracto, aquilo que, em concreto, se revela mais justo e razoável.

Metodologicamente não será este o critério decisivo em que se deve apoiar a solução, mas, ao menos, em situações que não encontrem na lei expressa regulação, decorre esta de preceitos difusos, como é o caso, poderão evitar-se resultados que extravasem os objectivos que o legislador se propôs consagrar.

No caso concreto, a solução adoptada pelas instâncias é francamente inaceitável, à margem de uma correcta, razoável e justa composição da lide.

3. Repare-se nos elementos essenciais que estruturam a instância e em que irá assentar a decisão:

- O A. e a R. foram casados sob o regime de separação de bens;

- Na pendência do casamento, ambos adquiriram um prédio em regime de compropriedade (atenta a separação de bens), no qual foi instalada a casa de morada da família que veio a ser integrada ainda por 3 filhos;

- A ora R. moveu contra o ora A. um processo de divórcio litigioso, na pendência do qual foi suscitado o incidente de atribuição da casa de morada família que findou por acordo provisório que se traduziu na aceitação de que, na pendência da acção, a partir de 21-6-04, a casa de habitação familiar passaria a ser utilizada em exclusivo pela ora R. (e pelos 3 filhos do casal);

- O divórcio concretizou-se ainda em 2004, sendo tornado definitivo em Janeiro de 2005;

- Após o divórcio, nenhum dos cônjuges requereu a resolução definitiva da questão da atribuição da casa de morada de família, mantendo-se, relativamente à ocupação do imóvel, o statu quo emergente do referido acordo provisório;

- Do A. apenas partiu a iniciativa de intentar contra a ora R. uma acção de divisão de coisa comum do imóvel, com fundamento na relação de compropriedade que já existia desde a aquisição do bem e que se manteve depois do divórcio de ambos.

4. Em face desta factualidade, entenderam as instâncias que o acordo provisório deixou de produzir efeitos quando transitou em julgado a sentença de divórcio, passo fundamental se concluir ser injustificado o uso que vem sendo feito em exclusivo pela ora R. (e pelos 3 filhos).

Assim, com fundamento em que se mantém a situação de compropriedade sobre o imóvel, foi reconhecido ao A. o direito de obter uma compensação calculada de acordo com as regras do enriquecimento sem causa.

Discorda-se em absoluto de tal solução, a que subjaz uma incorrecta apreciação do regime jurídico da casa de morada de família (de natureza pessoal) ultrapassado, sem motivo, pela aplicação de uma regra que nem no regime da compropriedade (de natureza material) obtém confirmação.

Além disso, a mesma traduz ainda a desconsideração de que o divórcio não apaga todos os vestígios do casamento, persistindo efeitos que podem projectar-se para além dele. Estes são mais visíveis quando existam filhos do casal, mas também assomam quando se trate de regular o interesse de um e de outro dos cônjuges relativamente a alimentos ou, como sucede no caso, quando está em causa a utilização da casa de morada de família.

5. No casamento em separação de bens (que vigorou in casu) a regra é a de que os bens adquiridos por ambos os cônjuges ficam submetidos ao regime da compropriedade (arts. 1735º e 1736º do CC).

Consequentemente, uma vez decretado o divórcio, cada cônjuge mantém-se titular de ½ de cada um dos bens, cuja divisão, em vez de ser efectuada através de partilha, deve operar-se com recurso à divisão de coisa comum consensual ou litigiosa (art. 1412º do CC e arts. 1052º e segs. do CPC).

Mas, como é natural, tal regime de bens, produzindo os referidos efeitos de natureza material, não prejudica outros de natureza pessoal que são comuns a todos os casamentos, independentemente do regime de bens que tenha sido adoptado.

Com efeito, a todos os casamentos é comum a norma do art. 1673º sobre o local de residência da família, assim como o dever de coabitação dos cônjuges (art. 1673º), acompanhado dos demais deveres previstos nos arts. 1674º e segs. (deveres de cooperação, de assistência e de contribuição para os encargos da vida familiar). Além disso, independentemente da titularidade do direito de propriedade do imóvel que constitua a casa de morada de família, a sua alienação ou oneração exige o consentimento de ambos os cônjuges, nos termos do art. 1682º-A, nº 2, do CC.

A especificidade da relação conjugal indicia, assim, que a sua extinção por via de divórcio não pode ser equiparada à extinção de qualquer outra trivial relação jurídica de natureza patrimonial.

Afinal, depois do divórcio, para além da subsistência do vínculo de natureza alimentar, nos termos que agora constam do art. 2016º do CC, há que contar ainda com o destino da casa de morada de família cuja regulação, nos termos o art. 1793º do CC, está submetida a critérios de oportunidade que devem levar o tribunal a ponderar, entre outros elementos atípicos, as necessidades de cada um dos ex-cônjuges e os interesses dos filhos do casal.

De acordo com a concreta avaliação das circunstâncias consideradas relevantes, a regulação desta questão pode passar pela constituição de um contrato de arrendamento por via de sentença.

Nesta eventualidade, de acordo com a concreta situação, o contrato de arrendamento sobrepor-se-á ao que porventura anteriormente tenha sido celebrado com terceiro ou constituirá uma imposição potestativa quando a casa de morada de família esteja instalada em bem imóvel que integre o acervo comum de ambos os cônjuges, que constitua bem exclusivo de algum deles ou que esteja, como no caso, em regime de compropriedade.

É de notar ainda que o contrato de arrendamento constituído ope judicis quando a casa de morada de família incida sobre imóvel que pertença a um ou a ambos os cônjuges terá o conteúdo que o Tribunal fixar na sentença, designadamente no que concerne à fixação do montante da renda que deve ser paga por aquele que ficar na posição de arrendatário, como resulta do nº 2 do art. 1793º do CC.

Por conseguinte, contrariando uma certa linha argumentativa que perpassa pelas decisões das instâncias, não é possível extrair automaticamente do facto de o A. ser comproprietário de ½ do imóvel a verificação de um “prejuízo” correspondente a ½ do respectivo valor locativo, pois que, nas referidas circunstâncias, o valor patrimonial a considerar não está necessariamente dependente do valor de mercado, antes da apreciação do circunstancialismo que, em concreto, se mostra relevante e cuja ponderação apenas pode ser feita no âmbito do processo especial previsto no art. 1413º do CPC.

6. No caso concreto, os cônjuges estabeleceram um acordo provisório relativo à utilização da casa de morada de família, situação estabelecida ao abrigo no disposto no art. 1407º, nº 2, do CPC.

Em conformidade com este preceito, o acordo provisório apenas asseguraria a regulação dos interesses “durante o período de pendência do processo”.

Porém, daqui não resulta que o referido acordo tenha deixado de vigorar automaticamente com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, transformando uma ocupação e utilização consensual e legítima do prédio numa ocupação e utilização ilegítima ou injustificada, de modo a fundamentar a reclamação de uma compensação segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Solução diversa emerge da conjugação entre o preceituado no art. 1793º do CC, que concentra os critérios legais de atribuição da casa de morada de família, e no art. 1413º do CPC, que regulamenta a resolução do litígio sobre tal questão, de acordo com regras próprias dos processos de jurisdição voluntária (art. 1411º, nº 1, do CPC).

Da concatenação de tais preceitos, envolvidos também pelas especificidades da relação jurídico-familiar, resulta que enquanto não houver modificação do regime de utilização da casa de morada de família, os efeitos do acordo provisório judicialmente homologado manter-se-ão, sendo que, uma vez transitada em julgado a sentença de divórcio, a qualquer dos cônjuges é facultada a possibilidade de requerer a resolução definitiva do eventual diferendo.

Não existe qualquer base legal para se sustentar uma solução que se traduza na caducidade automática do acordo provisório e, por consequência, na utilização da casa de morada de família em utilização injustificada ou indevida, susceptível de legitimar a invocação de eventual enriquecimento ilegítimo em prejuízo do cônjuge não utilizador.

Trata-se de uma solução que facilmente se compreende, já que nenhum dos ex-cônjuges pode apagar a anterior existência de uma relação jurídica de casamento, vínculo ainda mais perene quando, como ocorre no caso concreto, existam filhos menores, a quem deve ser garantida, sem percalços injustificados, a estabilidade de uma habitação.

7. Malgrado o que acaba de se expor sobre o regime de utilização da casa de morada de família, a verdade é que o A. conseguiu obter em ambas as instâncias o reconhecimento de uma pretensão fundada nas regras do enriquecimento sem causa.

São por isso bem justificados os lamentos com que a recorrente introduziu as suas alegações, em busca da sua cassação que desde já se antecipa.

7.1. No campo puramente patrimonial em que o A. e as instâncias situaram a questão, um tal resultado defronta-se desde logo com o que se dispõe no art. 1406º do CC, preceito segundo o qual cada um dos comproprietários pode usar a coisa, ainda que não possa afectar o uso que os demais pretendam fazer do bem.

Tal regime não pode ser transposto para toda e qualquer situação, devendo conformar-se ainda com outras condicionantes que se extraem de outros preceitos, como ocorre com os que se reportam ao regime jurídico de utilização da casa de morada de família quando esta esteja instalada em imóvel em regime de compropriedade de ambos os cônjuges.

Ao invés do que foi assumido na sentença de primeira instância, não é legítimo centrar a atenção num aspecto de natureza meramente patrimonial como o que decorre do regime geral da compropriedade, devendo contar-se ainda com os influxos emergentes do regime de utilização da casa de morada de família, integrando na operação de subsunção jurídica o facto de o imóvel que foi morada de família, na pendência do casamento … ser ainda a casa de morada de família da ex-mulher do A. e dos 3 filhos de ambos que a seu cargo ficaram.

Encontrar nesta situação motivo para a reclamação de um crédito, ao abrigo do estatuto da compropriedade revela bem o nível a que chegou a utilização de instrumentos jurídicos que, em vez de ficarem ao serviço do Direito e da Justiça, acabam por ser manuseados com objectivos ínvios.

7.2. No acórdão recorrido que constitui o contraponto da presente revista a condenação da R. no pagamento de uma contrapartida patrimonial pela utilização do imóvel em exclusivo (com os filhos) foi fundada apenas no instituto do enriquecimento sem causa.

Sem necessidade de largos desenvolvimentos em redor de todos os pressupostos legais desta figura, que nos parecem descabidos na presente acção, centrar-nos-emos no pressuposto mais relevante: a falta de causa do pretenso enriquecimento.

Não basta para o reconhecimento do direito de crédito a prova de factos reveladores de um enriquecimento de um interessado e do correspectivo empobrecimento patrimonial do outro. Necessária é ainda a prova de factos que, como elemento constitutivo do direito, revelem a ausência de causa justificativa para uma tal transferência patrimonial.

Ora, de tudo o que anteriormente se disse resulta precisamente o contrário.

A situação em que se encontra o imóvel que foi casa de morada de família do A. e da R., enquanto foram casados, encontra uma causa bem visível e justificada: o facto de, após o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, não ter sido impulsionada pelo ora A. a resolução judicial definitiva do diferendo relativo à utilização da casa de morada de família, através do mecanismo específico previsto no 1413º do CPC instrumental do art. 1793º do CC.

O A. optou pela instauração de uma acção de divisão de coisa comum, atenta a relação de compropriedade.

Mas, como já anteriormente se disse, uma tal acção apenas terá a virtualidade de resolver a questão da propriedade, não interferindo, de modo directo, na questão da atribuição da casa de morada de família.

Com efeito, ainda que em tal acção venha a ser atribuído ao A. o direito de propriedade sobre o prédio, com pagamento à contraparte do valor que lhe corresponda, não está afastada a possibilidade de sobre o imóvel ser constituída uma relação jurídica de arrendamento, mediante a ponderação dos critérios que, a título exemplificativo, estão previstos no art. 1793º do CC.

Independentemente da motivação do A., a causa para uma putativa transferência patrimonial favorável à R. (admita-se, por facilidade de raciocínio) parece bem visível: a inércia daquele em despoletar o aludido processo de jurisdição voluntária, no âmbito do qual se sujeitaria ao resultado que o Tribunal (depois de avaliar, “nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”, nos termos do art. 1793º, nº 1, do CC) viesse a decretar.

Detectada, assim, a verdadeira causa da manutenção da situação que perdura desde que transitou em julgado a sentença de divórcio, falta um elemento essencial para o reconhecimento de algum crédito ao abrigo do disposto no art. 473º do CC.

7.3. Mas não se ficam por aqui os motivos da improcedência da pretensão do A.

Não sofre dúvidas a subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, de tal modo que dele apenas pode ser feito uso se acaso não houver instituto diverso que especificamente regule a situação (art. 474º do CC).

Ora, como decorre das anteriores considerações, a regulação dos interesses pessoais e patrimoniais que estão em causa quando um imóvel, compropriedade de ambos os cônjuges, acaba por ser utilizado apenas por um deles (com ou sem os filhos do casal), encontra no ordenamento jurídico expressa consagração.

Concedendo prioridade ao mencionado processo de jurisdição voluntária, em que interferem fundamentalmente critérios de equidade e de oportunidade, facilmente se alcançará, no campo processual apropriado, a regulação do conflito de interesses, sem necessidade de recorrer a um instituto de natureza subsidiária.

8. Contra a solução que se projecta, é invocado no acórdão recorrido entendimento contrário alegadamente assumido no Ac. do STJ, de 17-1-02 (www.dgsi.pt).

Tal aresto tratou de uma situação totalmente diversa em que se demonstrou que as contribuições monetárias de um dos cônjuges foram aplicadas na construção de um prédio cujo direito de propriedade foi adjudicado ao outro cônjuge. Trata-se, pois, de uma realidade que nenhuma ligação tem com aquela que integra a presente causa.

Mais próximo do caso concreto e também da solução que ora se propugna está o Ac. do STJ, de 18-11-08 (www.dgsi.pt), onde se decidiu que o cônjuge que abandonou a casa de morada de família, na qual permaneceu o outro, não tem direito de obter compensação de acordo com o valor locativo do imóvel, nem sequer ao abrigo do enriquecimento sem causa.

9. O único aspecto em que deve ser reconhecida razão ao A. respeita à contribuição da R. para o pagamento do IMI.

Na verdade, trata-se de despesa que é da responsabilidade de ambos os comproprietários e cujo regime não está condicionado pela situação de ocupação do prédio.

Tendo o A. suportado em exclusivo tal encargo e não havendo sequer, atento o regime de bens, lugar a encontro de contas que poderia ser feito num processo de partilha, deve ser-lhe reconhecido o direito de haver da R. a sua quota-parte.

Apenas nesta estrita medida será mantida a condenação da R.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a revista, substituindo-se o acórdão recorrido pela condenação da R. no pagamento ao A. da quantia de € 314,14 referente a ½ do IMI referente aos anos de 2005, 2006 e 2007 e no pagamento de ½ do IMI que o A. tiver suportado ou vier a suportar exclusivamente desde 2007, enquanto se mantiver a situação de compropriedade.

Custas da revista e nas instâncias a cargo do A. e da R. na proporção de 96% e 4%, respectivamente.

Notifique.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2013

Abrantes Geraldes (Relator)



Bettencourt de Faria


Pereira da Silva