Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
25192/16.3T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: ALOJAMENTO LOCAL
ALOJAMENTO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
REGULAMENTO DO CONDOMÍNO
REGULAMENTO
CONDOMÍNIO
FRACÇÃO AUTÓNOMA
FRAÇÃO AUTÓNOMA
USO PARA FIM DIVERSO
CASA DE HABITAÇÃO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ACTIVIDADE DE EXPLORAÇÃO LUCRATIVA
ATIVIDADE DE EXPLORAÇÃO LUCRATIVA
ESTABELECIMENTO
ACTO ILÍCITO
ATO ILÍCITO
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE HORIZONTAL / CONSTITUIÇÃO / DIREITOS E ENCARGOS DOS CONDÓMINOS.
Doutrina:
- Aragão Seia, Propriedade Horizontal, Condóminos e condomínios, 2.ª ed. Artigo 1417;
- Borges de Araújo, A Propriedade Horizontal e o Notariado, p. 45;
- Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.º ed., p. 379 e 387;
- Fernanda Paula Oliveira, Sandra Passinhas e Dulce Lopes, Alojamento Local e uso de Fracção Autónoma, Almedina, 2017, p. 64;
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.;
- Henrique Mesquita, A propriedade horizontal no Código Civil Português, RDES, Ano XXIII, nºs 1-4 (1976), p. 94 ; Obrigações Reais e ónus reais, Almedina, p. 295;
- J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 56;
- J. Pinto Furtado, Do alojamento local, na sua relação com a propriedade horizintal, Revista de Direito Civil, Ano II, 3, p. 550, 544 e ss.;
- J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1992, p. 332;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 460-461;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., p. 408.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1418.º, N.º 2, ALÍNEA B), 1419.º, 1422.º, N.º 2, ALÍNEA B) E 1429-A, N.º 1
REGIME JURÍDICO DAS AUTARQUIAS LOCAIS (RJAL), APROVADO PELA LEI N.º 75/2013, DE 12 DE SETEMBRO: - ARTIGOS 2.º, N.º 1 E 4.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 11-12-2014, PROCESSO N.º 833/11.2 TVPRT.P1.S1;
- DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 076/06.3TVLSB.L1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 44/99, DE 19-01-1999.
Sumário :
I - O regime jurídico de um edifício constituído em propriedade horizontal é regulado por diversas fontes:

a) - Em primeiro, o fixado pela lei (o legislador fixa um conjunto de normas inderrogáveis pelos particulares);

b) - Em segundo, pelo título constitutivo da propriedade horizontal;

c) - Em terceiro, pelo regulamento do condomínio; e

d) - Em quarto, pelas deliberações da assembleia de condóminos.

II - O título constitutivo determina o estatuto da propriedade horizontal, isto é, as suas determinações têm natureza real, sendo eficazes erga omnes.

III - Nos termos do disposto no art. 1418.º, n.º 2, al. b), do CC, o título constitutivo da pripriedade horizontal pode conter um regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas.

IV - A amplitude normativa conferida pelo legislador ao regulamento do condomínio que faça parte do título constitutivo da propriedade horizontal e a sua força vinculativa é muito maior do que a que é conferida a regulamento que seja aprovado pelos condóminos em momento posterior à constituição da propriedade horizontal. Para além de outras diferenças, importa realçar que o regulamento integrante do título pode regular e disciplinar não só a utilização das partes comuns, mas também o uso e fruição das fracções autónomas.

V - Ao contrário do que sucede com os regulamentos aprovados pelos condóminos posteriormente à constituição da propriedade horizontal, que só podem dispor sobre o uso, fruição e a conservação das partes comuns (art. 1429.º-A, n.º 1, do CC), o regulamento integrante do título constitutivo pode dispor, inclusive, sobre o uso e fruição das próprias fracções autónomas, limitando-o (art. 1422.º, n.º 2, al. b), do CC).

VI - A existência de um título constitutivo, integrado por um regulamento, tem a vantagem de permitir ao adquirente de uma fracção autónoma, num edifício constituído em propriedade horizontal, saber, antecipadamente e com certeza, o estatuto do imóvel que escolheu adquirir, e, simultaneamente, dá-lhe a confiança de que aquele estatuto se manterá (a não ser que ele próprio consinta na sua modificação), porquanto a alteração do título constitutivo, nos termos da lei (art. 1419.º do CC), apenas pode ser feita, para além do mais, com o acordo de todos os condóminos.

VII - O alojamento local é inquestionavelmente uma prestação de serviços. Foi o próprio legislador que insofismavelmente o qualificou como tal ao definir os estabelecimentos de alojamento local como aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração (art. 2.º, n.º 1, do RJAL) e reforçou essa vertente de prestação de serviços no art. 4.º, n.º 1, do mesmo diploma, de forma absolutamente clara, ao estipular que para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento.

VIII - Constando do regulamento do condomínio, integrante do título constitutivo da propriedade horizontal, que é proibido aos condóminos habitacionais usar as respectivas fracções para instalação de colégio, pensão ou equivalente…, ou para exercer qualquer actividade comercial ou de prestação de serviços nas fracções ou partes comuns do edifício, a instalação dum estabelecimento de alojamento local numa fracção autónoma desse condomínio, destinada à habitação, viola aquelas normas e consequentemente é um acto ilícito, nos termos do disposto na al. d) do n.º 2 do art. 1422.º do CC.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL



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Relatório[1]

« 1. AA, Lda., BB, CC e DD propuseram acção declarativa contra EE, FF, GG, HH - Investimentos Imobiliários e Turísticos, Lda., II - Sociedade Imobiliária, S.A., JJ, Fundo Investimento Imobiliário, KK, LL, MM; NN, OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, XX, ZZ, AAA, BBB e contra o Condomínio CCC, pedindo a declaração de nulidade ou ineficácia das deliberações da assembleia de condóminos que identifica nos autos.

Para fundamentarem a sua pretensão alegaram, em síntese, em petição inicial corrigida (fls. 196 e ss) que exercem a atividade de alojamento local nas suas frações urbanas identificadas nos autos. Na assembleia de condóminos realizada em 24 de Outubro de 2016 foi deliberado que fosse vedado o acesso ao prédio a quem não fosse condómino, residente ou convidado, impedindo-se o uso das frações para a atividade de alojamento local. Estribam a sua pretensão em argumentos doutrinais e jurisprudenciais.

Os réus contestaram a fls. 83, deduzindo pedido reconvencional.

Alegaram, em súmula, que as fracções se situam num condomínio fechado, sendo que a parte habitacional comporta um conjunto de comodidades como piscina, sala de ginástica e bilhar, depósito de contentores e lixo, serviços estes pagos por todos os condóminos.

As frações urbanas estão exclusivamente adstritas à função habitacional, nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal. Enumeram as consequências do maior afluxo de pessoas às partes comuns, fazendo um conjunto de considerações doutrinais e jurisprudenciais.

Deduzem pedido reconvencional pedindo que os autores sejam condenados a cessar a exploração dos estabelecimentos de alojamento local que vêm desenvolvendo nas suas frações.

Os autores replicaram (fls. 146).

Alegaram, em súmula, que o réu administrador do condomínio carece de legitimidade activa para deduzir o pedido reconvencional. Impugnaram a demais factualidade alegada pelos réus, fazendo referências doutrinais e jurisprudenciais.

Na sequência da concordância do despacho de adequação do processado, proferido em sede de tentativa de conciliação, e face à dispensa de audiência prévia, foram concedidos 10 dias aos réus para se pronunciarem sobre a matéria da réplica, antecipando-se um acto que poderia ser praticado em tal audiência, tendo as partes sido advertidas da possibilidade de prolação de saneador-sentença (fls. 275).

Efectuado o saneamento do processo, apreciada a excepção da ilegitimidade passiva dos reconvintes, deduzida pelos reconvindos, foi a mesma julgada improcedente, com a afirmação da legitimidade das partes, tendo ainda sido declarada a regularidade e validade do processo.

Mencionando conterem os autos todos os elementos necessários à apreciação do objecto da acção e conhecimento dos pedidos nela formulados, foi proferida sentença que:

- Julgou improcedente o pedido formulado pelos autores, dele o absolvendo os réus;


- Julgou procedente o pedido reconvencional deduzido, condenando os autores a cessarem a actividade de exploração de alojamento local nas suas fracções do edifício “Condomínio CCC” designadas pelas letras “AA”, “AN” e “AU”».


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Não se conformando com o decidido, interpôs o Autor BB recurso de apelação para a Relação do Porto. Apreciando o recurso o Tribunal da Relação do Porto deliberou revogar a sentença recorrida na parte em que, quanto ao recorrente, julgou a acção improcedente e procedente o pedido reconvencional contra ele formulado, «declarando-se, em consequência, ineficazes, quanto ao mesmo, as deliberações da assembleia geral de condóminos de 24 de Outubro de 2016 e julgando, também relativamente a ele, improcedente o pedido reconvencional, absolvendo-o desse pedido».

*

Inconformado veio desta feita o Condomínio CCC, interpor recurso de revista, tendo rematado as suas alegações com as seguintes


Conclusões:

«1.a Vai o presente recurso interposto do acórdão de 10/01/2019 proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, o qual, julgando a acção procedente, permitiu o exercício da actividade de alojamento local no edifício que constitui um condomínio fechado denominado “Condomínio CCC”, no Porto, com uma localização única na margem do Rio ..., acórdão que, assim que conhecido pela generalidade dos residentes da Recorrente “Condomínio CCC”, gerou uma reacção de choque e indignação!

2.a Pois que o acórdão recorrido, ao “legitimar” a actividade de “alojamento local” no Condomínio CCC, permitindo o livre acesso ao Condomínio de estranhos que, a cada dia, são pessoas diferentes de origem desconhecida, arruína as diversas valias, legitimas, de segurança e privacidade e que estiveram na essência da decisão de cada condómino de comprar uma casa no Condomínio (fechado) CCC.

3.a Apesar da jurisprudência já se ter debruçado sobre a figura do “alojamento local”, o caso trazido aos presentes autos tem características únicas - não devendo existir muitos casos idênticos em Portugal - que lhe conferem uma particular singularidade e identidade, ou mesmo novidade, que o afasta dos casos já apreciados pelos Tribunais sobre o “alojamento local”, não tendo o Tribunal “a quo” alcançado ou valorado a natureza sui generis do caso sub judice.

4.a Tal singularidade e novidade assenta na circunstância de o próprio título constitutivo do “Condomínio CCC” (por meio do Regulamento de Condomínio nele integrado) proibir o exercício da actividade de prestação de serviços de alojamento local nas fracções autónomas.

5.a Como resulta do Alvará de licença de utilização da fracção autónoma n.º 4…2 de 2001, emitido pela Câmara Municipal …, as fracções autónomas designadas pelas letras “A” a “BI”, que integram a componente habitacional do prédio denominado “Condomínio CCC”, foram exclusivamente autorizadas para a utilização “Habitação, pelo que está a fracção do Recorrido, - “AN” - licenciada pela Câmara Municipal … para “Habitação”.

6.a Como é consabido o título constitutivo é, em geral, uma declaração unilateral do proprietário (podendo, no entanto, ser uma sentença do juiz), em que se exprime a vontade ou a decisão de sujeitar o edifício ao regime da propriedade horizontal, nele sendo estabelecidos os poderes dos condóminos sobre as fracções autónomas e sobre as partes comuns, determinando o estatuto da propriedade horizontal de um prédio, tendo que as suas determinações natureza real (erga omnes) - vide doutrina citada a pág. 9.

7.a O Prédio “Condomínio CCC” foi constituído em propriedade horizontal por escritura pública de 02/02/2001, tendo sido incorporado na referida escritura pública, e dela fazendo parte integrante, o Regulamento do Condomínio relativo ao referido prédio (cfr. fls. 113 verso a 139).

8.a Foram a escritura pública de constituição da propriedade horizontal e o respectivo Regulamento do Condomínio registados na Conservatória do Registo Predial … através da apresentação 67 de 05/02/2001, estando expressamente inscrito na descrição predial: «REGULAMENTO DE CONDOMÍNIO: integrado no título constitutivo» (cfr. fls. 17 verso e 19).

9.a De acordo com a norma constante na al. b) do n.º 2 do art. 1418.º do Cód. Civil, o regulamento do condomínio quando inserido no título constitutivo pode disciplinar o uso, a fruição e a conservações quer das partes comuns quer das fracções autónomas, definindo o direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fracção autónoma -vide doutrina citada a págs. 11 a 13 supra.

10.a Em face do exposto, o Regulamento do Condomínio do edifício “Condomínio CCC”, uma vez que integra o título constitutivo e foi com este registado, é juridicamente vinculativo para os actuais condóminos - incluindo o Recorrido -, independentemente destes conhecerem ou não o seu teor, através da leitura dos exemplares guardados na Conservatória do Registo Predial - vide jurisprudência e doutrina citada a págs. 13 supra.

11.a O Tribunal “a quo” estribou-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/10/2016, o qual apreciou um concreto caso que nada tem que ver com o caso sob análise, porquanto, naquele acórdão de 15/10/2016, o Regulamento de Condomínio não integrava “ab origine” o título constitutivo da propriedade horizontal do edifício, tendo antes sido elaborado posteriormente pela assembleia de condóminos e já depois do condómino (que pretendia explorar uma unidade de alojamento local) ter comprado a fracção autónoma e utilizado a mesma àquela actividade.

12.a Preceitua a al. d) do n.º 2 do art. 1422.º do Cód. Civil estar vedado aos condóminos «praticar quaisquer actos ou actividades que tenham sido proibidos no título constitutivo» do que resulta que todas as restrições de origem negocial, quer quanto ao destino das fracções autónomas, quer quanto aos actos materiais ou jurídicos que os condóminos não podem praticar, fazem parte integrante do “estatuto real” do condomínio, o que equivale a dizer que têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes, prevalecendo sobre qualquer negócio que com elas se não harmonize - vide jurisprudência e doutrina citada a págs. 15 a 18 supra.

13.a Ora, in casu, como resulta expressamente do título constitutivo e do Regulamento de Condomínio nele incorporado, o “Condomínio CCC” foi concebido, organizado juridicamente na sua estrutura fundiária, reflectida na propriedade horizontal, como um conjunto imobiliário, uniforme e completo (ou seja, não suscetível de ser acrescentado com outros imóveis/expansões) integrado por duas componentes básicas: a comercial/serviços (ao nível térreo + um piso) e a habitacional (ao nível superior) totalmente isolado daquela componente e formando um “condomínio fechado” não existindo qualquer forma de estabelecer contacto entre a componente comercial/serviços e a componente habitacional do edifício.

14.a É neste contexto que o título constitutivo da propriedade horizontal e o Regulamento do Condomínio naquele incorporado contêm um conjunto essencial de disposições, cujo teor, reitera-se, se afigura essencial para o objecto de apreciação deste recurso e que se manifestam ao nível (i) da definição de quem é considerado Condómino (art. 5º); (ii) ao nível do uso das fracções da Parte Habitacional (art. 6.º n.º 1); (iii) ao nível de quem pode aceder à Parte Habitacional do edifício (art. 6.º n.º 2); (iv) ao nível de quem pode utilizar as zonas e serviços comuns da Parte Habitacional (art. 13.º e 14.º); (v) ao nível de obrigações especiais dos condóminos (art. 17.º n.º1 al. xiii)) - cfr fls. 128, 129, 130 verso a 131 verso, e 133).

15.a Pelo menos, desde o primeiro semestre de 2016, que o Recorrido tem vindo a afectar ou a permitir a afectação da sua fracção autónoma à prestação de serviços de alojamento local.

16.a Como resulta do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto (RJAL), consideram-se estabelecimentos de alojamento local «aqueles que prestem serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei», o que é reforçado pelo art. 4º n.º 1 do RJAL o qual preceitua que «para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento».

17.a Temos assim que o dado relevante a tomar em consideração é que o alojamento local é uma prestação de serviços. Foi o próprio legislador que o qualificou como tal impondo-se esta qualificação ao intérprete e impedindo que se faça qualquer consideração sobre o objectivo concreto da prestação de serviços, pois o que caracteriza o alojamento local é, precisamente, o exercício de uma actividade de prestação de serviços organizada com vista ao fornecimento de alojamento - vide doutrina e jurisprudência citadas a págs. 24 a 27 supra.

18.a O título constitutivo, por via do regulamento de condomínio nele incorporado, proíbe expressamente que os condóminos destinem as suas fracções autónomas:

i. à actividade de pensão ou equivalente - art. 6.º do regulamento do condomínio (fls. 129);

ii. ao exercício de qualquer actividade comercial ou de prestação de serviços nas fracções ou partes comuns do Edifício, salvo tratando-se das fracções destinadas ao comércio - art. 17.º n.1 xiii do regulamento do condomínio (fls. 133).

19.a O Decreto-lei n.º 39/2008 de 07 de Março (RJET), que consagrou o Regime Jurídico dos Empreendimentos Turísticos em Portugal, procedeu à simplificação das tipologias de alojamento turístico nomeadamente com a extinção de tipologias como as Pensões e criado a figura do alojamento local.

20.a Ou seja, a figura de pensão foi, em 2008, substituída pelo alojamento local, pelo que numa interpretação actualista - a única admissível in casu -, do Regulamento do Condomínio (elaborado em 2001) integrado no título constitutivo da propriedade horizontal, ao referir-se à «actividade de pensão ou equivalente» deve hoje ser entendido como se referindo à actividade de alojamento local ou equivalente, já que qualquer outra interpretação implicaria fazer “letra morta” do referido Regulamento de Condomínio e do título constitutivo da propriedade horizontal - vide doutrina e jurisprudência citadas a págs. 29 e 30 supra.

21.a Quer isto significar que o Recorrido ao afectar, ou ao permitir a afectação, a sua fracção autónoma à actividade de prestação de serviços de alojamento local está, simplesmente, a violar o título constitutivo da propriedade horizontal e respectivo Regulamento do Condomínio nele incorporado, concretamente o art. 6.º n.º 1 deste no segmento em que proíbe expressamente que os condóminos destinem as suas fracções autónomas à actividade de pensão ou equivalente.

22.a Sem prescindir da conclusão anterior, o art. 17.º n.º 1 al. xiii) do Regulamento de Condomínio integrado no título constitutivo da propriedade horizontal proíbe o exercício de qualquer actividade comercial ou de prestações de serviços nas fracções autónomas do edifício “Condomínio CCC” que se integrem na sua componente habitacional, pelo que sendo a actividade de alojamento local uma actividade de prestação de serviços - nomeadamente serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração - resulta com evidência que ao explorar (ou permitir que explorem) um estabelecimento de alojamento local na fracção autónoma do Recorrido, são realizadas nesta fracção prestações de serviços de alojamento temporário a turistas mediante remuneração.

23.a É, pois, evidente e manifesto que o Recorrido, ao destinar a sua fração autónoma à exploração de estabelecimento de alojamento local, isto é, à prática da actividade de prestação de serviços de alojamento local, tem vindo a violar de forma directa e reiterada as proibições constantes do título constitutivo da propriedade horizontal (referidas no Regulamento do Condomínio integrante deste).

24.a Se dúvidas existissem quanto ao sentido e alcance que deve ser atribuído à locução à actividade de pensão ou equivalente” ou à proibição de prestar serviços nas fracções, constante do Regulamento do Condomínio incorporado no título constitutivo da propriedade, sempre se dirá no que respeita à interpretação do regulamento contido no título constitutivo, deverem seguir-se as regras gerais em sede de interpretação dos negócios jurídicos - vide doutrina citada a págs. 32 e 33 supra.

25.a Destarte, lançando mão do critério do art.º 236 do Cód. Civil, em que a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir, o resultado da exegese das disposições do Regulamento do Condomínio em causa incorporado no título constitutivo da propriedade horizontal, só pode conduzir ao sentido de que a vontade que presidiu à constituição da propriedade horizontal foi no sentido de excluir o alojamento temporário de turistas ou outros, vulgo alojamento local.

26.a Em sede de integração de lacunas, mesmo que se considerasse que a questão do alojamento local não está expressamente contida na regulamentação do Regulamento do Condomínio e respectivo título constitutivo - o que, de todo, não se concorda - e que, portanto, estaríamos perante uma situação não regulada (uma lacuna), apelando ao critério da integração dessa eventual lacuna previsto no artigo 239.º do Cód. Civil, caberá perguntar qual teria sido a vontade hipotética ou conjectural da entidade promotora que em 2001 aprovou e registou o regulamento do condomínio, se àquela data existisse a figura legal do alojamento local? Seguramente, e dentro dos ditames da boa fé que norteiam o artigo 239.º do Cód. Civil, o regulamento de condomínio teria sido expresso em proibir, a par das actividades de pensão ou equivalente, a actividade de alojamento local.

27.a No caso trazido aos autos com facilidade se constata que, ao destinar (ou permitir que terceiro destine) a sua fracção autónoma ao desenvolvimento da actividade de alojamento local, está o Recorrido a violar expressamente o título constitutivo da propriedade horizontal do edifício “Condomínio CCC” e o respectivo Regulamento de Condomínio nele incorporado - vide doutrina citada a pág. 34 supra.

28.a Isto é, está o Recorrido a violar a norma contida na al. d) do n.º 2 do art. 1422.º do Cód. Civil (primeira parte), pelo que terá, necessariamente, que interromper a afectação que vem fazendo da sua fracção autónoma à actividade de prestação de serviços de alojamento local.

29.a Vale dizer, as deliberações registadas na acta n.º 35, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, são existentes, são válidas, são eficazes, vinculando juridicamente todos os condóminos do edifício “Condomínio CCC”, incluindo o aqui Recorrido.

30.a Torna-se, assim, evidente a natureza especial e sui generis do caso sub judice, o que, todavia, o Tribunal “a quo” não alcançou, limitando-se praticamente a reproduzir um outro acórdão referente a um concreto caso material e objectivamente distinto do caso sob análise, pelo que, sem mais, deverá ser revogado o acórdão recorrido, e confirmada a decisão constante da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

31.a E, diga-se, o Tribunal “a quo” dispunha de todos os factos para aplicar correctamente a Lei, porquanto se tratam de factos titulados por documentos escritos autênticos (e cuja falsidade nunca foi, nem podia ser, invocada pelo Recorrido).

32.a Porém, caso este Douto Supremo Tribunal entenda que a decisão da causa está prejudicada pela omissão de factos considerados relevantes, desde já se requer, sob a égide do preceituado no art. 682.º n.º 3 (primeira parte) do Cód. do Processo Civil, seja ordenada a remessa dos autos ao Tribunal “a quo” para que neste se proceda à ampliação da matéria de facto.

33.a Mesmo apreciando o caso sub judice à luz da jurisprudência que se tem formado em torno na figura do “alojamento local”, é convicção jurídica da Recorrente que deverá ser, no caso em apreço, revogado o acórdão recorrido.

34.a Da parte final da norma constante do art. 1305.º do Cód. Civil decorre que o direito de propriedade não é um direito ilimitado, mas antes um direito sujeito a restrições decorrentes da lei, sendo que uma dessas restrições ocorre quando estamos em face de fracções autónomas de um prédio constituído em propriedade horizontal e resulta do estatuído no art. 1422.º n.º 2 al. c) do Cód. Civil, ao vedar imperativamente aos condóminos dar à fracção autónoma um uso diverso do fim a que a mesma é destinada

-    vide doutrina citada a pág. 37 supra.

35.a O sentido de actividade comercial a ter em conta, para efeitos de afectação de fracção autónoma, não é o sentido normativo decorrente do art. 230.º do Cód. Comercial, mas sim o sentido de actividade económica, nomeadamente na sua vertente de serviços

-    vide doutrina e jurisprudência citadas a pág. 38 supra.

36.a A actividade de alojamento local não se afasta substancialmente da atividade hoteleira nem do serviço de apartamentos turísticos previstos e disciplinados pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 07 de Março (RJET), sendo que ninguém discute que estes estabelecimentos exercem uma actividade comercial no seu sentido económico - vide doutrina citada a pág. 38 supra.

37.a Ora, a diferença da actividade desenvolvida por estas empresas (que prestam serviços de alojamento turístico) e o estabelecimento de alojamento local reside, essencialmente, no facto de este último não reunir os requisitos para ser considerado como empreendimento turístico em conformidade com os termos do RJET - cfr. art. 2.º n.º 2 do RJAL - pois que, na sua materialidade, a prestação de serviços destinados à exploração de um estabelecimento de alojamento local e a prestação de serviços de alojamento turístico - nos termos em que está definido no art. 11.ºnº 1 do RJET - são semelhantes.

38.a O que significa que, na sua substância, ambos desenvolvem uma actividade de natureza comercial (no sentido económico do termo), embora com dimensão e estrutura distintas, do que resulta que a prestação de serviços inerentes à exploração de um estabelecimento de alojamento turístico e a prestação de serviços inerentes à exploração de um estabelecimento de alojamento local, integram-se ambas no exercício de uma actividade comercial em sentido económico - vide jurisprudência e doutrina citadas a pás. 40 a 43 supra.

39.a Ora, acontece que, in casu, a fracção autónoma do Recorrido tem vindo a ser afecta um uso (actividade comercial em sentido económico) diverso do fim a que, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, ela é destinada (habitação), o que significa que o Recorrido ao permitir que a sua fracção autónoma seja afecta à actividade de alojamento local tem violado a proibição constante no art. 1422.º n.º 2 al. c) do Cód. Civil.

40.a Contrariamente ao referido pelo acórdão recorrido os presentes autos fornecem elementos seguros que permitem, por via interpretativa, atingir a vontade que presidiu à constituição da propriedade horizontal.

41.a Desde logo, o caso em apreço permite, sem grande esforço de exegese, responder com segurança à questão enunciada pelo acórdão recorrido da seguinte forma: quando o regulamento de condomínio incorporado no título constitutivo da propriedade horizontal proíbe a afectação de qualquer fracção autónoma à actividade de pensão ou equivalente ou ao exercício de qualquer actividade comercial ou actividade de prestação de serviços, aquele título queria excluir o alojamento temporário de turistas nas fracções autónomas habitacionais que compõem o “Condomínio CCC”.

42.a Por outro lado, no caso sub judice, para além de “dormida”, o Recorrido coloca à disposição dos turistas “serviços complementares” integrados numa oferta de serviços turísticos, designadamente proporcionando a “recepção” a turistas por via dos serviços de portaria do Condomínio CCC, o uso de piscina interior salão de jogos, ginásio, salão de convívio, espaços exteriores e segurança 24 horas por dia - cfr. arts. 13.º e 14.º do Regulamento de Condomínio integrado no título constitutivo da propriedade horizontal, a fls. 130 verso a 131 verso.

43.a Por fim, o edifício “Condomínio CCC” é um condomínio fechado, destinado a habitação familiar, não sendo compatível com uma frequência constante de estranhos, pois essa utilização desvirtua o que é um condomínio fechado, sendo que, como resulta do art. 43.º do CIMI, os condóminos já suportam o IMI substancialmente agravado por o prédio ser qualificado como um condomínio fechado.

44.a Vale isto por dizer que o caso apreciado pelo Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão de 15/09/2016 e transcrito pelo acórdão recorrido nada tem que ver com o caso sub judice, pelo que a doutrina firmada pelo citado acórdão, várias vezes referida pelo acórdão recorrido para fundamentar a sua decisão, não se aplica in casu - vide doutrina citada a pág. 46 supra.

45.a Não desconhece a Recorrente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/03/2017 e a orientação pelo mesmo adoptada. Porém, e com o devido respeito - que é devido e é muito - a Recorrente não se revê na fundamentação jurídica do mesmo porquanto a actividade de alojamento local se desenvolve através da prática de actos objectivamente comerciais - na medida em que tal actividade se encontra expressamente prevista no RJ AL - e, também, através da prática de actos subjectivamente comerciais, na medida em que são praticados por empresários, presumindo-se que são praticados no exercício ou em ligação com o seu comércio - cfr. art. 2.º do Cód. Comercial.

46.a De igual modo, e sempre com o devido respeito que é todo, não se revê a Recorrente na doutrina firmada pelo citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça na medida em que tratando-se se alojamento local, a actividade mercantil de serviços em que se executem tais contratos de alojamento local terá necessariamente que ocorrer no interior fracção autónoma a tal afectada e não noutro local - vide doutrina citada a págs. 46 a 53 supra.

47.a Por tudo quanto vai supra alegado, pode-se com facilidade concluir que - independentemente de se qualificar actividade de alojamento local como uma actividade comercial ou de mera prestação de serviços -, o Recorrente está a dar à sua fracção autónoma um uso diverso do fim a que a mesma é destinada - habitação -, em clara violação do estatuído na al. c) do n.º 2 do art. 1422.º do Cód. Civil, pelo que, também por esta outra razão, deverá interromper a afectação da sua fracção autónoma à exploração da actividade de estabelecimento de alojamento local.

48.a É sabido que o Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, foi objecto de uma alteração legislativa decorrente da publicação da Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto, e cuja entrada em vigor ocorreu em 22/10/2018.Todavia, o caso sub judice visa apreciar a eficácia das deliberações tomadas na Assembleia de Condóminos do edifício “Condomínio CCC”, realizada no dia 24/10/2016, e registadas nos ns.º 1 e 2 do ponto 1 da ordem de trabalhos da acta n.º 35, do que resulta não poder aplicar-se ao caso trazido aos autos a referida alteração legislativa, nem dela extrair qualquer sentido aplicável ao caso sub judice, pois se assim fosse estaríamos a aplicar retroactivamente a nova lei, em clara violação da norma contida no art. 12.º n.º 1 do Cód. Civil.

49.a Não se compreende a argumentação expendida pelo acórdão recorrido em torno da equiparação do alojamento local ao disposto no art. 1093.º do Cód. Civil, pois trata-se de um argumento alegado pelo Recorrido que a Recorrente repudiou fundamentadamente e que o Tribunal “a quo” também adopta o entendimento pugnado pela Recorrente, o qual está inclusivamente conforme com a doutrina citada na pág. 54 supra.

50.a A actividade de alojamento local desenvolvida na fracção autónoma do Recorrido integrada no edifício “Condomínio CCC” tem prejudicado o direito dos demandados (e dos demais condóminos) ao gozo normal das utilidades e comodidades do Condomínio, para além de os obrigar a receber dentro do condomínio, com enorme regularidade, novas pessoas, com constantes entradas e saídas.

51.a Deste modo, ainda que se entendesse que ao Recorrido assiste o direito de exercer nas sua fracção autónoma a actividade de exploração de alojamento local, na presente acção está também em causa a colisão entre um alegado direito do Recorrido de explorar economicamente a sua fracção e o direito dos demandados - a larga maioria dos demais residentes do Condomínio CCC - à paz, ao descanso, ao sossego, à privacidade, à segurança, ao conforto do gozo das suas casas e, em particular, ao gozo das partes e serviços comuns para os quais contribuem nas suas prestações de condomínio.

52.a Entre esta colisão de direitos, de um lado um direito de exploração meramente económico-lucrativa e patrimonial do Recorrido, e do outro lado, os direitos dos demandados com um pendor essencialmente de protecção da personalidade, não restarão dúvidas da prevalência dos direitos dos demandados, conforme resulta do artigo 335º n.º2 do Cód. Civil - vide doutrina e jurisprudência citadas a págs. 57 e 58 supra.

53.a Destarte, ao decidir como decidiu, não fez o Tribunal “a quo” a correcta interpretação e aplicação das normas constantes dos arts. 1418.º n.º 2 al. b), 1422.º n.º 2 al. d), 1422.º n.º 2 al. c) e, por fim, da norma contida no art. 335.º n.º 2, todos do Cód. Civil, pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido e proferido novo acórdão que confirmando a decisão do Tribunal de 1.ª Instância, julgue a presente acção improcedente e o pedido reconvencional deduzido procedente.

Nestes termos e nos mais, de Direito, deve ser proferido acórdão que, julgando procedente o presente recurso de Revista, revogue o acórdão recorrido e confirme a decisão constante da sentença de 1.ª Instância….».


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Respondeu o recorrido pedindo a improcedência da revista.

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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do  novo Cód. Proc. Civil).

Das conclusões acabadas de transcrever pode retirar-se que o objecto do recurso se circunscreve à questão de saber se é legal um condómino instalar um estabelecimento de alojamento local numa fracção habitacional dum prédio constituído em propriedade horizontal e em que, do título constitutivo e do regulamento que o integra, consta que é proibido aos condóminos «destinar no todo ou em parte qualquer fracção autónoma …as pensão ou equivalente….) e bem assim «exercer quaisquer actividade comercial ou de prestação de serviços nas fracções ou partes comuns do edifício, salvo tratando-se de fracções destinadas ao comércio».


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Dos factos


Nas instâncias mostra-se consolidada a seguinte factualidade:

A) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial …, freguesia de …, sob o n.º 251, um prédio urbano denominado Condomínio CCC, composto por um edifício de 11 pisos, inscrito na matriz urbana sob o n.º 13, sito na Rua … 370, 382, 384, 400, 402, 418, 420, 428, 430, 442, 444, 452, 456, 458, 464, 466, 472, 476, 484, 486, 506, 508 e Calçada … 1.

B) Em 24 de Outubro de 2016 realizou-se uma assembleia geral de condóminos do Edifício CCC, nos termos e com o conteúdo constantes a fls. 32 verso a 35 verso dos autos onde, além do mais, foi deliberado que “Conferem-se poderes ao sr. administrador do condomínio para, em representação dos condóminos, intentar acção judicial e eventual procedimento cautelar, decorrido que seja o prazo definido na proposta número três, tendo em consideração que a abertura ao público do edifício, através da actividade de alojamento local, põe em causa a segurança dos condóminos e residentes”.

C) A autora AA, Lda., é proprietária da fração autónoma designada pela letra AA, Habitação 51, destinada a habitação tipo T4 Duplex, no 5.º e 6.º piso do Edifício D, com 2 aparcamentos automóveis 27 e 28 e arrecadação 27, no piso 5.º, sito na Rua …, 370, 402, 472, e Calçada … n.º 1, …, …, descrita na Conservatória do Registo Predial … sob o n.º 2…1/20010205-AA, freguesia de … e inscrita na matriz urbana sob o n.º 13 da União de freguesias de …, concelho … .

D) O autor BB é proprietário da fração autónoma designada pela letra AN, Habitação 34, destinada a habitação, tipo T3 Duplex, nº 9.º e 10.º piso do Edifício E, com 2 aparcamentos automóveis 17 e 18 e dois arrumos 18 e 22 no piso 5, sita na Rua …, 370, 402, 472 e Calçada … n.º 1, … …, descrita na Conservatória do Registo Predial … sob o n.º 2…1/19981216, freguesia de … e inscrita na respetiva matriz urbana sob o art.º 13 da União de freguesias de …, concelho …, e da fracção autónoma designada pela letra Q, Habitação 53, destinada a habitação tipo T5 Triplex, no 4.º, 5.º e 6.º piso, do Edifício B, sito na Rua …, 370, 402, 472 e Calçada … n.º 1, … …, freguesia de … e inscrita na respetiva matriz urbana sob o artigo 13 da União de freguesias de …, concelho … .

E) Os autores CC e DD são proprietários da fração autónoma designada pela letra AU, Habitação 22, destinada a Habitação tipo T3, no 7.º piso do Edifício F, com 2 aparcamentos automóveis identificados com os números 70 e 71 e duas arrecadações 18 e 71 no piso 4, sita na Rua …, 370, 402, 472 e Calçada … n.º 1, … …, descrita na Conservatória do Registo Predial … sob o n.º 2…1/20010205-AU, freguesia de … e inscrita na respectiva matriz urbana sob o artigo 13, da União de freguesias de …, concelho … .

F) A 1.ª Autora e os 3.º e 4.º Autores exercem a actividade de alojamento local nas fracções autónomas referidas nas alíneas C) e E), estando devidamente licenciados para o efeito (alterado na 2ª instância).

F.1) Relativamente às fracções de que o 2º Autor é proprietário – alínea D) -, o exercício da actividade de alojamento local ocorre somente na fracção autónoma designada pela letra AN, sendo que a titularidade da licença para o exercício de alojamento local foi atribuída a DDD, na sequência da celebração de contrato de comodato entre esta e o 2º Autor, relativo à referida fracção (aditado pela 2ª instância).

G) O Condomínio CCC rege-se por um regulamento de condomínio nos termos e com o conteúdo constantes de fls. 37 a 49.

H) Por escritura pública lavrada em 2 de Fevereiro de 2001, nos termos e com o conteúdo constante a fls. 113 verso a 139 foi constituída a propriedade horizontal do Edifício Condomínio CCC.


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Do Direito


A figura do alojamento local foi introduzida no ordenamento jurídico português em 2008[4], estando expressamente assumido, pelo legislador, que então apenas se procurou enquadrar uma série de realidades que ofereciam serviços de alojamento a turistas sem qualquer formalismo e à margem da lei, acautelando, ao mesmo tempo, que alguns dos empreendimentos extintos pelo DL nº 38/2008 e que não reuniam condições para serem empreendimentos turísticos, pudessem ainda assim continuar a prestar serviços de alojamento, por forma a evitar o respectivo encerramento com todas as consequências negativas associadas [5].

Como se salienta no Estudo desenvolvido pela Nova School of Business and Economics e pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa para a Associação Hotelaria de Portugal[6] , «na sua origem, a figura do alojamento local apareceu reconhecida pelo legislador como uma figura de alcance limitado, visando apenas dar cobertura legal a um fenómeno (então expressamente assumido, e pretendido, como "residual") que vivia à "margem da lei" e, bem assim, evitar que a profunda alteração, verificada em 2008, no regime aplicável aos empreendimentos turísticos, tivesse por efeito imediato o necessário encerramento de um conjunto de empreendimentos então em operação e que, por qualquer razão, não satisfaziam os requisitos (mais exigentes) impostos pela nova legislação que, então, entrou em vigor.

A verdade é a de que, desde 2008, esta situação se alterou radicalmente e, aquilo que apareceu reconhecido, pelo legislador, como um "fenómeno residual", deixou claramente de o ser, constituindo-se como um "fenómeno consistente e global", que levou o legislador, em 2014, a optar "pela criação de um regime jurídico próprio, que [pretendeu dar] conta, precisamente, dessa circunstância"». Esse regime consta do DL 128/2014 (abreviadamente adiante designado por RJAL), foi posteriormente alterado pelo DL 63/2015 e recentemente alvo de nova alteração introduzida pela lei nº 62/2018. São estes diplomas que no essencial, regulam o alojamento local. O Com o DL nº 128/2014, a figura do alojamento local deixa de ser uma categoria residual na oferta de alojamento para passar a ser uma categoria autónoma, reconhecendo-se-lhe a relevância turística, que inicialmente lhe estava vedado invocar (nº 6 do art.º 3º do DL nº 38/2008).

O objectivo prosseguido em 2014 foi o de reconhecer a importância crescente, e consolidada, do alojamento local e, nesse novo contexto, de procurar a sua integração coerente no ordenamento português, atribuindo-lhe um regime jurídico que fosse adequado em função das semelhanças e das diferenças que o alojamento local apresenta em relação às demais ofertas turísticas. Acontece que, como se observa no estudo citado, esse objectivo de coerência não foi alcançado com esses diplomas nem posteriormente com as alterações introduzidas e que embora clarificando alguns aspectos do regime, deixaram outros por definir com a clareza que se impunha, como é o caso do relação do alojamento local com o regime da propriedade horizontal, quando era de todos conhecido, tratar-se de uma realidade com grande potencial de litigiosidade.

A presente acção reflecte essa realidade!

Como se disse supra está em causa saber se fazendo parte integrante do Título constitutivo da propriedade horizontal, um regulamento do condomínio que além do mais estabelece «que é especialmente vedado aos condóminos e residentes de todas as fracções:

«exercer quaisquer actividade comercial ou de prestação de serviços nas fracções ou partes comuns do edifício, salvo tratando-se de fracções destinadas ao comércio».

E que «…é, nomeadamente proibido destinar no todo ou em parte qualquer fracção autónoma a colégio, pensão ou equivalente, sociedade ou clube recreativo, discoteca, casa de jogo, dependências ou instituições politicas ou religiosas…..»

A instalação dum estabelecimento de alojamento local numa das fracções habitacionais viola ou não o título constitutivo da propriedade horizontal e na afirmativa se deve ou não ser encerrado.

A propriedade horizontal é a propriedade que incide sobre as várias fracções componentes de um edifício, fracções essas que têm de estar em condições de constituírem unidades independentes (artigo 1414º do Código Civil).

Trata-se de um direito real complexo que combina no âmbito dos direitos reais: a propriedade singular, (sobre a fracção autónoma e a compropriedade, sobre as partes comuns do edifício (artigo 1420° do Código Civil).

Nos termos do disposto no art.º 1417º do CC «a propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário».

Em regra a propriedade horizontal é constituída por negócio jurídico e tanto pode ocorrer antes da construção do edifício[7] como depois da sua conclusão. Na maioria dos casos isso acontece no final da construção, e é precedida de duas vistorias, uma destinada à emissão da licença de utilização que especificará o tipo de aplicação que lhe pode ser dado (habitação, comércio, indústria ou serviços) e outra destinada a verificar se as futuras fracções autónomas se ajustam ao destino fixado e reúnem os requisitos legais para se constituir a propriedade horizontal (cf. Art.º 1418º nº 3 do CC; 4º nº 2 al. i, do RJUE e art.º 59º do C. Notariado).

Os negócios jurídicos são actos jurídicos constituídos por uma ou mais declarações de vontade, dirigidas à realização de certos efeitos práticos, com intenção de os alcançar sob tutela do direito, determinando o ordenamento jurídico a produção dos efeitos jurídicos conformes à intenção manifestada pelo declarante ou declarantes[8]. A vontade dirigida à formalização da constituição da propriedade horizontal consubstancia-se normalmente numa declaração de vontade unilateral, que tanto pode ser individual[9],[10] como colectíva[11], consoante provem de uma ou de várias pessoas, mas neste último caso as várias vontades encontram-se unificadas para satisfação do mesmo interesse e direccionadas para alcançar o mesmo objectivo. Trata-se de uma declaração negocial não recipienda ou não receptícia que se toma eficaz logo que manifestada na forma adequada - n.º 1, do artigo 224.º -, isto é, no título constitutivo da propriedade horizontal, sem necessidade de comunicação a quem quer que seja.[12]

Os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela realçam que há toda a vanta­gem em admitir que a constituição da propriedade horizontal possa ter por objecto prédios em construção ou a construir. A delimitação prévia das frac­ções autónomas e a definição de pontos essenciais do regime do futuro con­domínio possibilitam que todo o candidato à aquisição de unidades indepen­dentes do imóvel conheça antecipadamente (isto é, antes da celebração do contrato promessa, que constitui normalmente o termo da primeira fase da negociação das fracções autónomas) os seus direitos e obrigações, bem como as limitações a que, como condómino, ficará sujeito[13].

Sobre o Título Constitutivo da propriedade horizontal, dispõe o art.º 1418º do CC que :

«1. No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.

2. Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente:

a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum;

b) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas;

c)Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio.

3. A falta de especificação exigida pelo n.º 1 e a não coinci­dência entre o fim referido na al. a) do n. º 2 e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade püblíca competente determinam a nulidade do título constitutivo»[14].

Decorre do preceito transcrito, que há especificações que obrigatoriamente devem, sob pena de nulidade, constar do título constitutivo, como sejam as referidas no seu nº 1 e outras, as referidas no nº 2 serão facultativas. De entre as menções facultativas ressalta pela sua importância e pelas consequências da sua desconformidade com o licenciamento de utilização feito pela autoridade pública competente (Câmara municipal) a indicação do fim a que se destina cada fracção ou parte comum. Em regra o Título constitutivo no que respeita à indicação do fim, limita-se a reproduzir o que consta da licença de utilização[15], mas se o não fizer será o fim constante do licenciamento que prevalecerá, por força do disposto entre outros do nº 3 do art.º 1418º do CC[16].

O regime jurídico de um edifício constituído em pro­priedade horizontal é regulado por diversas fontes[17]:

Em primeiro o fixado pela lei (o legislador fixa um conjunto de normas inderrogáveis pelos particulares);

Em segundo, pelo título constitutivo da propriedade horizontal;

Em terceiro pelo regulamento do condomínio e

Em quarto pelas deliberações da assembleia de condóminos.

Como já se disse supra, na maior parte das vezes, a propriedade horizontal constitui-se através de um negócío jurídico unilateral: é o proprietário único do edifício que determina a sua divisão, seja aquando da construção, seja numa fase posterior. É entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência que o título constitutivo determina o estatuto da propriedade horizontal, isto é, as suas determinações têm natureza real, sendo eficaz erga omnes[18]. Nas palavras de HENRIQUE MESQUITA[19]: "Trata-se de um dos poucos casos em que a autonomia da vontade pode intervir na fixação do conteúdo dos direitos reais, o qual nesta medida, deixa de ser um conteúdo típico".

Estas regras, constantes do título constitutivo, embora resultantes de uma declaração negocial, adquirem força normativa ou reguladora vinculando, desde que registadas, os futuros adquirentes das frações, independentemente do seu assentímento. Como já referiam Pires de Lima e Antunes Varela, a existência de um título constitutivo, integrado por um regulamento tem a vantagem de permitir ao adquirente de uma fração autónoma, num edifício constituído em propriedade horizontal, saber, antecipadamente e com certeza, o estatuto do imóvel que escolheu adquirir, e, simultaneamente, dá-lhe a confiança de que aquele estatuto se manterá (a não ser que ele próprio consinta na sua modificação), porquanto a alteração do Título constitutivo, nos termos da lei (art.º 1419º do CC, apenas pode ser feita, para além do mais, com o acordo de todos os condóminos). Trata-se no dizer de Pinto Furtado de estipulações convencionadas, lex privata,  que se impõem a todos os condóminos, com força de lei e não podem deixar de ser respeitadas por nenhuma Câmara Municipal ou por outro Poder Constituido[20]. No entender deste Ilustre mestre essa força está duplamente reconhecida pelo que dispõe o  art.º 406º nº 1 do CC, quando o título resulta de negócio jurídico e bem assim pelo que se estatui no art.º 1422º nº 2 do mesmo diploma.

Importa salientar pelo relevo que tem no caso sub judicio, que a amplitude normativa conferida pelo legislador ao regulamento do condomínio que faça parte do Título constitutivo da propriedade horizontal e a sua força vinculativa é muito maior do que a que é conferida a regulamento que seja aprovado pelos condóminos em momento posterior à constituição da propriedade horizontal. Para além de outras diferenças que não interessam ao caso importa realçar que o regulamento integrante do título pode regular e disciplinar não só a utilização das partes comuns, mas também o uso e fruição das fracções autónomas. Ou seja, ao contrário do que sucede com os regulamentos aprovados pelos condóminos posteriormente à constituição da propriedade horizontal, que só podem dispor sobre o uso fruição e a conservação das partes comuns (art.º 1429-a , nº 1 do CC). O regulamento integrante do titulo constitutivo, pode dispor inclusive sobre o uso e fruição das proprias fracções autónomas, limitando-o [art.º 1422º nº 2 al. B) do CC], sendo que essa limitação não ofende nem belisca o direito de propriedade do condóminio sobre a fracção que lhe pertence, porquanto, para além do direito de propriedade não ser um direito absoluto e ser passível de limitações ao seu exercício, mesmo nas situações de propriedade plena[21], o regime da propriedade horizontal admite e consente outras limitações aos condóminos[22], em virtude da própria natureza da propriedade horizontal «ditadas, antes de mais, pela relação de próximidade e comunhão em que vivem»[23]

Feito este esquiço ao regime da propriedade horizontal importa agora analisar o caso concreto que se nos depara.

Vem demonstrado nos autos [ al. G) e h) da decisão de facto e certidão de fls.16 a 28 e doc de fls 113 a 140] que do título constitutivo da propriedade horizontal do edíficio «denominado Condomínio CCC, composto por um edifício de 11 pisos, inscrito na matriz urbana sob o n.º 13, sito na Rua … 370, 382, 384, 400, 402, 418, 420, 428, 430, 442, 444, 452, 456, 458, 464, 466, 472, 476, 484, 486, 506, 508 e Calçada … 1, faz parte integrante um regulamento de condomínio que além do mais e no que ao caso interessa estipula o seguinte:

Cl.ª 6. Uso das Fracções autónomas e partes comuns

6.1 As fracções autónomas e as respectivas partes comuns têm as finalidades e afectações de uso previstas no título constitutivo da propriedade horizontal sendo expressamente proibido a qualquer condómino ou a entidade a que a qualquer título ocupe as referidas fracções (destaque e sublinhado nosso) dar utilização diferente daquela que é prevista no título, ou dar utilização diversa a partes comuns do edifício ainda que se tratem de partes comuns de utilização exclusiva de uma ou várias fracções. É nomeadamente proibido destinar no todo ou em parte, qualquer fracção autónoma a colégio, pensão ou equivalente , sociedade ou clube recreativo, discoteca, cas de jogo, dependências ou instituições politicas ou religiosas e, em geral a quaisquer actividades ilícitas susceptíveis de ofender os bons costumes.

Clª 17 – Obrigações especiais

17.1 É especialmente vedado aos condóminos e residentes de todas as fracções:

….

Xiii – Exercer qualquer actividade comercial ou de prestação de serviços nas fracções ou partes comuns do edifício, salvo tratando-se das fracções destinadas ao comércio.

Está assente que a fracção designada pela letra AN, pertencente ao 2º autor (BB) consta do Título constitutivo da propriedade horizontal como destinada à habitação. Está também provado que o referido condómino, por contrato de comodato celebrado com DDD, cedeu-lhe o uso da mesma e esta vem destinando a referida fracção ao exercício da actividade de alojamento local, sendo que a titularidade da licença para o exercício de alojamento local foi atribuída à referida DDD, na sequência da celebração do referido contrato entre esta e o 2º Autor, relativo à referida fracção.

São estes os factos mais relevantes para o enquadramento do problema e para a correspondente aplicação do direito e solução do litígio.

A questão do alojamento local na sua relação com a propriedade horizontal tem suscitado reflexão na doutrina e tem sido alvo de pronunciamento por parte dos nossos Tribunais, que chamados a dirimir os conflitos que vêm surgindo, não têm tido entendimento uniforme sobre o assunto, em particular sobre a questão de saber se o conceito de alojamento local cabe dentro do conceito de habitação para efeitos de aferir da conformidade do uso de uma fracção autónoma que no título constitutivo é destinada à habitação e vem a ser usada para alojamento local.

Os Tribunais da Relação têm produzido arestos em sentido divergente, de que são exemplo os acs. da Relação do Porto de 16-09-2016 (Processo n.º 4910/16.5T8PRT-.A...P1) no sentido da licitude da afectação a alojamento local; da Relação de Lisboa, de 20-10-2016 (Processo n.º 12579-16.OTSLSB.Ll-8) no sentido contrário – ilicitude do uso como alojamento local por não caber no conceito de habitação) e ainda o Ac. da Relação do Porto de 27/04/2017 (Proc. nº 13721/16.7T8PRT.P1), no mesmo sentido do de Lisboa.

Este Tribunal Supremo, apreciando o recurso de revista interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, acabado de referir, veio a revoga-lo, considerando que

«I - Constitui violação do conteúdo do título constitutivo da propriedade horizontal o exercício de actividade comercial ou industrial na fracção que ali está destinada a habitação (art. 1418.º do CC).

II - O arrendamento da fracção a turistas por curtos períodos, designado por alojamento local, não é um acto de comércio, nem consta do art. 2.º do CCom, onde já podia ter sido incluído dadas as sucessivas alterações legislativas desde o DL n.º 39/2008, 07-03, e Portaria n.º 517/2008, de 25-06, que o referencia, até ao seu actual regime jurídico estabelecido no DL n.º 128/2014, de 29-08.

III - Na cedência onerosa de fracção mobilada a turistas, a fracção destina-se à respectiva habitação e não ao exercício de actividade comercial.

IV - Respeita o conteúdo do título constitutivo da propriedade horizontal onde consta que determinada fracção se destina a habitação, se essa fracção for objecto de alojamento local.

V - ……………..»

O legislador teve oportunidade de por termo às dúvidas e controvérsias sobre esta questão quando aprovou a alteração ao regime do alojamento local operado pela lei nº 62/2018. Porém manifestamente não quis tomar posição expressa no sentido de considerar carecida de autorização dos condóminos a instalação de um alojamento local em fracção destinada a habitação. Efectivamente, da análise dos trabalhos preparatórios, verifica-se que dos projectos de lei apresentados pelo grupo parlamentar do PS e do PCP (respectivamente Projectos de lei nº 524/XIII e 574/XIII) estava prevista a necessidade de tal autorização. O do Bloco de Esquerda não era explícito embora a admitisse. O PSD não apresentou qualquer projecto. Surpreendentemente a lei que veio a ser aprovada deixou cair essa necessidade de autorização dos condóminos para o caso do alojamento local e apenas a manteve para os alojamentos locais na modalidade de hosteis (vide art.º 6º nº 2 al. f) do DL nº 128/2014, na redacção dada pelo art.º 2º da Lei nº 62/2018). Implicitamente o legislador tomou posição no sentido de, não havendo, norma legal ou convencional que o imponha, não ser necessária a autorização dos condóminos de um prédio em regime de propriedade horizontal, destinado á habitação, para algum deles poder instalar na respectiva fracção um estabelecimento de alojamento local.

Mas a questão que nos é colocada na revista é substancialmente diferente da que tem sido abordada nos arestos referidos e não é resolvida à luz da nova lei, pela posição assumida pelo legislador.

Aqui o que está em causa, conforme acima se explicitou, não é saber se o exercício da actividade de alojamento local cabe no conceito de habitação, constante do titulo constitutivo da propriedade horizontal, mas sim saber se o exercício de tal actividade contende e viola o estatuído no regulamento de condomínio que faz parte integrante do Título constitutivo, designadamente quando este estipula que é «proibido destinar no todo ou em parte, qualquer fracção autónoma a colégio, pensão ou equivalente ….», ou que é especialmente vedado aos condóminos e residentes de todas as fracções, «Exercer qualquer actividade comercial ou de prestação de serviços nas fracções ou partes comuns do edifício». Por isso, porque não faz parte do objecto do recurso e para não dar azo a especulações sobre eventuais contradições jurisprudenciais, não tomaremos posição sobre se aquela questão que tem dividido a jurisprudência.

Os estabelecimentos de «alojamento local» são definidos no art.º 2º do respectivo regime jurídico, aprovado pelo DL nº 128/2014, (RJAL) na sua redacção actualizada pelas alterações impostas pela lei nº 62/2018, como « 1- … aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei.

2 - É proibida a exploração como estabelecimentos de alojamento local de estabelecimentos que reúnam os requisitos para serem considerados empreendimentos turísticos, nos termos do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de março, na sua redação actual».

No seu art.º 3º aquele diploma define e qualifica as diferentes modalidades que pode revestir a actividade de alojamento local estabelecendo o seguinte:

1 - Os estabelecimentos de alojamento local devem integrar-se numa das seguintes modalidades:

a) Moradia;

b) Apartamento;

c) Estabelecimentos de hospedagem;

d) Quartos.

2 - Considera-se «moradia» o estabelecimento de alojamento local cuja unidade de alojamento é constituída por um edifício autónomo, de caráter unifamiliar.

3 - Considera-se «apartamento» o estabelecimento de alojamento local cuja unidade de alojamento é constituída por uma fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente.

4 - Considera-se «estabelecimento de hospedagem» o estabelecimento de alojamento local cujas unidades de alojamento são constituídas por quartos, integrados numa fração autónoma de edifício, num prédio urbano ou numa parte de prédio urbano suscetível de utilização independente.

5 - Sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 33.º, os «estabelecimentos de hospedagem» podem utilizar a denominação «hostel» se obedecerem aos requisitos previstos no número seguinte e na portaria a que se refere o n.º 5 do artigo 12.

6 - Considera-se «hostel» o estabelecimento cuja unidade de alojamento predominante seja o dormitório, considerando-se predominante sempre que o número de utentes em dormitório seja superior ao número de utentes em quarto.

7 - Consideram-se «quartos» a exploração de alojamento local feita na residência do locador, que corresponde ao seu domicílio fiscal, sendo a unidade de alojamento o quarto e só sendo possível, nesta modalidade, ter um máximo de três unidades».

No caso em apreço apenas nos interessa a modalidade de «apartamento», por ser a realidade subjacente, uma vez que estamos perante um estabelecimento instalado numa fracção de um edifício constituído em propriedade horizontal.

O alojamento local é inquestionavelmente uma prestação de serviços. Foi o próprio legislador que insofismavelmente o qualificou como tal ao definir os estabelecimentos de alojamento local como «aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração..» (Art.º 2º nº 1 do RJAL) e reforçou essa vertente de prestação de serviços no art.º 4º n.º 1 do mesmo diploma de forma absolutamente clara, ao estipular que «para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento».

Também a Autoridade Tributária, assim a qualifica[24]. Efectivamente como bem se salienta no ac. da Relação do Porto de 27/472017, acima citado, «neste novo conceito de estabelecimento de alojamento local há, sem dúvida, o exercício de uma actividade de prestação de serviços de alojamento que, para além da locação do espaço (temporariamente e por curtos períodos), inclui serviços complementares como a limpeza e a recepção. E como se trata de actividade de prestação de serviços de alojamento, exercida por pessoas singulares, no âmbito da categoria B de IRS, é sempre exigido a apresentação da declaração de início de actividade nas .finanças, ou a sua alteração para quem já tenha outra actividade. Este enquadramento na categoria B de IRS, em detrimento da categoria F (arrendamento residencial) determina uma alteração na forma de determinação dos rendimentos tributáveis, passando a ser possível a dedução de todos os encargos relacionados com o imóvel, incluindo a depreciação do valor de aquisição do imóvel e encargos .financeiros com essa aquisição, quando se opte pelo regime de tributação com base na contabilidade. Em alternativa,ficando enquadrado no regime simplificado de tributação, o rendimento tributável é de 15 por cento do valor dos serviços prestados de alojamento. E o enquadramento na categoria B de IRS, com o respectivo início de actividade, implica um aumento de obrigações fiscais e acessórias, nomeadamente a nível de IVA e de facturação. Com o exercício de uma actividade no âmbito da categoria B de IRS, o empresário em nome individual, que opera o estabelecimento de alojamento» local, passa a ser obrigado a estar registado para efeitos de IVA (ao contrário do que acontece com a categoria F de IRS). Este regime fiscal acentua a diferença entre o alojamento local e o arrendamento residencial. Enquanto este é considerado uma locação passiva, aquele é considerado uma locação activa, que inclui prestações de serviços complementares à mera locação do espaço».

Fernanda Paula Oliveira, Sandra Passinhas e Dulce Lopes, no seu estudo sobre Alojamento Local e uso de Fracção Autónoma[25], sustentam que a qualificação do «alojamento local» como uma actividade de prestação de serviços, se impõe inelutavelmente. Mas mais, «impede que se faça qualquer consideração sobre o objetivo concreto da prestação de serviços: relevante não é que o adquirente do serviço de alojamento vá fazer no estabelecimento local aquilo que faz na sua habitação (instalar-se e pernoitar); o que distingue o alojamento local é precisamente o exercício de uma atividade organizada com vista ao fornecimento de alojamento".

No mesmo sentido se pronuncia J. Pinto Furtado[26], quando afirma que «o alojamento local constitui uma actividade económica de controlo sucessivo da câmara municipal territorialmente competente, mediante mera comunicação prévia, convenientemente instruída, de quem se proponha exercê-la.

Esta actividade destina-se a acolher remuneradamente, por curtas estadas, não apenas turistas, mas o público, em geral, em instalações não construídas de raiz, mas com aptidão para o efeito e preparadas, à sua escala, à semelhança do que é exigido para hotéis ou pousadas.

À sua imagem, com efeito, o alojamento é prestado em instalações mobiladas, com roupas de cama, mesa e banho, cercado de serviços destinados a torna-lo aprazível e cómodo, como o de camareira, luz, águas quentes e frias, televisão e rádio, bar e pequenos-almoços, tentando proporcionar ao cliente uma estada o mais possível confortável.

Trata-se, com efeito, de estabelecimentos com obrigatória afixação de tabuleta no exterior do edifício, junto da entrada principal, que poderíamos denominar de mini-pousadas e se destinam a captar, por baixos preços, uma categoria de clientela economicamente menos abonada, mas numerosa, que se encontrava, na prática, a ser servida à revelia de qualquer controlo oficial e, como preocupadamente o revelou o legislador, no relatório do decreto-lei, "num contexto de evasão fiscal",

Em qualquer das suas modalidades, da moradia ao estabelecimento de hospedagem, passando pelo apartamento, o alojamento local proporciona sempre, uma dupla componente: a habitação breve e os serviços de acolhimento, construindo deste modo uma verdadeira e própria hospedagem.

O cliente não recebe pois, apenas, um lugar de simples dormida ou habitação breve, mas uma série de serviços envolventes, relacionados com a sua estada.

Por seu turno, o sujeito que proporciona o lugar de acomodação, reúne e organiza todo um complexo de bens e de serviços, forma assim uma empresa de alojamento local que, como expressamente se classifica no Decreto-Lei n.º 128/2014 [(artigo 6.º-2, al. e)], realiza uma atividade económica que se insere na Classificação das Atividades Económicas-Rev. 3, na secção I, como uma das figuras de Alojamento, restauração e similares aí classificadas.

Segundo Pereira Coelho, citado por Pinto Furtado «importa distinguir a locação da hospedagem ou albergaria, em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra, não apenas habitação, mas também serviços relacionados com esta ou outros, mediante retribuição». E, prosseguindo, ensina ainda que a destrinça «reveste-se de grande interesse» e que «a hospedagem constitui um contrato misto a que não se aplicam as normas do arrendamento, mas as da prestação de serviço - a componente que absorve os restantes elementos».

É pacificamente aceite que, na interpretação do título constitutivo, deve seguir-se as regras gerais de interpretação do negócio jurídico, nos termos do artigo 236º do Código Civil. Assim o título valerá, pois, com o sentido que dele possa retirar um declaratário normal. Sendo o título constitutivo um negócio formal, não pode ser feito valer um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no seu texto, ainda que esse sentido seja imperfeitamente expresso ( cfr, artigo 238º, nº 1)[27] . Também a jurisprudência tem vindo a considerar que na interpretação a dar ao título constitutivo - naquela grande maioria das situações em que este é manifestação da autonomia da vontade do proprietário que, dividindo o prédio, lhe cria um regime jurídico-real próprio -, que as utilizações permitidas pelo título constitutivo não podem ser entendidas no seu sentido técnico-dogmático, mas antes têm de ser consideradas segundo o critério· económico[28].

Revertendo ao caso dos autos verifica-se que a fracção AN, consta do Título constitutivo como destinada à habitação. Fazendo parte integrante do referido Título e simultaneamente com ele foi objecto de registo e depósito na Conservatória, existe um regulamento de condomínio que prescreve a proibição aos condóminos habitacionais de usar as respectivas fracções para instalação de «colégio, pensão ou equivalente ….», ou para  «exercer qualquer actividade comercial ou de prestação de serviços nas fracções ou partes comuns do edifício». Estas normas são perfeitamente claras no sentido de proibir qualquer actividade comercial ou de prestação de serviços, restringindo assim o conceito de habitação, ao ponto de se poder entender que no caso nem sequer são permitidas as excepções, que, em regra são consentidas, como sejam a chamada indústria doméstica, consentida ao arrendatário habitacional (art.º 1092º nº 1 do CC) e por maioria de razão ao proprietário.

Esta actividade de alojamento local é uma actividade lucrativa, que pode considerar-se sucedânea das chamadas pensões ou hospedarias, entretanto extintas, pelo que não constituirá abuso interpretativo se a enquadrarmos na previsão da Cl.ª 6ª do Regulamento, quando proíbe aos condóminos destinar a fracção a … pensão ou equivalente. Mas ainda que não se entenda assim e como se demonstrou supra, é indubitável que a actividade de alojamento local, consiste essencialmente numa prestação de serviços de hospedagem e outros conexos, mediante retribuição, caindo assim indiscutivelmente na alçada da proibição normativa, constante da Clª 17ª al. XIII do Regulamento do Condomínio, integrante do Título constitutivo da Propriedade Horizontal do edifício referido sob a al. A dos factos provados e de que faz parte a fracção AN, pertencente ao recorrido e como tal não pode deixar de se considerar violadora daquela proibição e consequentemente ilícita (art.º 1418º, 1422º nº 1 e 2 al. d) do CC).


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Concluindo

Pelo exposto, na procedência da revista, acorda-se em revogar o acórdão recorrido e repristina-se a decisão proferida na sentença, quanto ao pedido reconvencional, agora limitada à fracção AN, porquanto relativamente às restantes já houve acatamento da referida decisão.

Custas pelo recorrido.

Notifique.

Lisboa, em 7 de Novembro de 2019.

José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo

António Abrantes Geraldes

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[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa – 1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[4] Art.º 3 do DL nº 39/2008 de 7/03/2008, que definia o alojamento local nos seguintes termos:
1 - Consideram-se estabelecimentos de alojamento local as moradias, apartamentos e estabelecimentos de hospedagem que, dispondo de autorização de utilização, prestem serviços de alojamento temporário, mediante remuneração, mas não reúnam os requisitos para serem considerados empreendimentos turísticos.
2 - Os estabelecimentos de alojamento local devem respeitar os requisitos mínimos de segurança e higiene definidos por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do turismo e da administração local.
3 - Os estabelecimentos de alojamento local que reúnam os requisitos previstos no presente artigo são obrigatoriamente registados na câmara municipal da respectiva área.
4 - Apenas os estabelecimentos de alojamento local registados nas câmaras municipais da respectiva área podem ser comercializados para fins turísticos quer pelos seus proprietários, quer por agências de viagens e turismo.
5 - As câmaras municipais devem facultar ao Turismo de Portugal, I. P., o acesso informático ao registo do alojamento local.
6 - Os estabelecimentos referidos no presente artigo devem identificar-se como alojamento local, não podendo, em caso algum, utilizar a qualificação turismo e ou turístico, nem qualquer sistema de classificação.

[5] Cfr. preâmbulo do DL 128/2014,
[6] Disponível in:
 http://www.hoteis-portugal.pt/docs/content/twgQoT7vP6TAxRGMJSCG3w7BLEOyRVd5.pdf
[7] Cfr. artigo 92.º do Código de Registo Predial, que dispõe que são pedidas como provisórias por natureza as inscri­ções de constituição da propriedade horizontal, antes de concluída a constru­ção do prédio [n.º 1 al. b)] e de factos jurídicos respeitantes a fracções autónomas, antes do registo definitivo da constituição da propriedade hori­zontal [al. c)].
[8] Carlos Mota Pinto in Teoria Geral do Direito Cívil, 3." ed., 379 e 387
[9]  Ac. da Relação de Lisboa de 3/10/1996, Col. Jur. XXI. 4, 109: I - A propriedade horizontal pode ser constituída por negócio unilateral ou bilateral (ou obviamente plurilateral) mas sujeita à condição suspensiva da alienação da primeira fracção. Il - Torna-se de impossível cumprimento o arrendamento efectuado pelo construtor de parte do prédio, posteriormente considerado parte comum no título constitutivo.
[10] Ac. da Relação de Lisboa de 31/5/1983, Col. Jur.,VIlI, 3, 135: I - O regime jurídico da propriedade horizontal não é afectado pela circunstância de todas as fracções autónomas pertencerem à mesma pessoa. II - Uma vez constituída o prédio, como um todo que era deixou de ser coisa jurídica, para dar lugar às fracções autóno­mas que daquela resultaram, passando estas e não já aquele a ser objecto de direito. III - Tendo a recorrida declarado no processo de notificação para o exercício do direito de preferência que desejava preferir na aquisição da fracção de que é arrenda­tária, não pode a recorrente recusar-se a vender-lhe essa fracção com o fundamento de que pretende somente alienar o prédio na sua totalidade, uma vez que tal venda em bloco nem sequer já é possível, por inexistência jurídica do seu objecto.
No mesmo sentido, veja-se Ac. da Relação do Porto de 6/11/1986, Col. Jur. Xl, 5, 204: I - A declaração de querer sujeitar o prédio ao regime de propriedade horizontal e o registo dessa declaração não tiram ao dono do edifício a qualidade de proprietário pleno. II - O título constitutivo gera a autonomização das fracções do imóvel e define o estatuto da projectada propriedade horizontal, sempre que nele se estabeleçam regras que comple­tem o regime legal ou dele se afastem. III - Estas regras adquirem força normativa, vinculando, desde que legisladas, os futuros adquirentes das fracções, independente­mente do seu assentimento.
[11] Parecer do Conselho Técnico da DRGN de 18 de Dezembro de 1968, Proc. 280, Código do Registo Predial, ed, do Ministério da Justiça, 1970, 121: Entre os meios de constituição de propriedade horizontal, previstos no artigo 1417.º do CC, conta-se o negócio jurídico, expressão que pressupõe uma manifestação de vontade susceptível de vir a produzir efeitos jurídicos e que conceitualmente abrange a decla­ração da vontade unilateral. A destinação do prédio, construído ou em construção, à venda de fracções autónomas, desde que titulada, pelo seu dono, por escritura pública, é, pois, modo legal de constituição de propriedade horizontal. A circunstância de o prédio, no momento da constituição da propriedade horizontal, pertencer a um único proprietário é irrelevante. A lei (artigo 1415.º do CC) apenas condiciona a possibili­dade de um prédio urbano constituir objecto de propriedade horizontal pela exigência de as respectivas fracções, além de constituírem unidades independentes, serem distin­tas e isoladas entre si, com saída própria para a parte comum do prédio ou para a via pública; e só a falta destes requisitos importa nulidade do título constitutivo (artigo 1416.0).
[12] Aragão Seia, Propriedade Horizontal - Condóminos e condomínios, 2ª ed. Art.º 1417
[13] CC Anotado, III, 2.ª ed,, 408.
[14] Os n.ºs 2 e 3 foram introduzidos pelo artigo 1.º, do Dec. Lei n.º 267/ /94, de 25 de Outubro, com entrada em vigor no dia 1 de Janeiro de 1995.
[15] Ac. do STJ de 12/6/1991, Bol. 408, 552: I - O destino das fracções autónomas tanto pode ser estabelecido no título constitutivo da propriedade horizontal mediante declaração expressa. como resultar da forma como elas se encontram ali descritas, designadamente pelo que respeita às características das divisões que as integram, tendo sempre em conta o que constar da respectiva licença de habitação ou de utiliza­ção.
[16] J.Pinto Furtado, in Do alojamento local, na sua relação com a propriedade horizintal – Revista de Direito Civil, Ano II,3 pag. 550.
[17] Borges de Araújo, A Propriedade Horizontal e o Notariado, 45, afirma que :
«O regime da propriedade horizontal é definido em cada caso concreto pelo seu título constitutivo. Mas, nada impede que além deste estatuto se aprove um ou mais regulamentos, que regulem certos pormenores. Teremos estão a lei como normativo fundamental do regime, cujas disposições só podem ser alteradas obedecendo a um sistema rígido constitucional, os estatutos ou título constitutivo que requerem para a sua modificação a forma solene de escritura pública e a intervenção dos condóminos nos termos indicaoos na lei, e finalmente o regulamento ou regulamentos, que não exigem a redução à forma autêntica e poderão ser alterados com mais facilidade. As circunstân­cias determinarão o modo de agir em cada caso concreto, deixando para o título constitutivo ou para o regulamento o que mais convier, sabendo-se que o estatuto é mais rígido, com um mínimo de menções obrigatórias, e o regulamento mais maleável permitindo uma alteração mais fácil daquilo que estiver estipulado, se houver neces­sidade.
[18] Vide entre outros :
Ac. do STJ de 11/6/1986, Bol. 358, 529:
I - O título constitutivo da proprie­dade horizontal só pode ser modificado por escritura pública, havendo acordo de todos os interessados(m. 1419.º, n.º 1, do CC), não podendo ser alterado por decisão judicial. II - Constituindo o título constitutivo um acto modelador do estatuto da propriedade horizontal com eficácia real, prevalece sobre quaisquer factos que tenham ocorrido antes de ter sido constituída a propriedade horizontal, designadamente o acordo que, porventura, tivesse existido entre o vendedor e os compradores acerca da natureza comum de determinada fracção que, no título, esteja qualificada como autónoma…..
e
Ac. do STJ de 27/5/1986, Bol. 357, 435:
I - Para a determinação do destino das fracções autónomas de um prédio em regime de propriedade horizontal, o título constitutivo é o acto modelador do respectivo estatuto e só e ele há que atender para esse fim, sendo irrelevantes as negociações anteriores, sem prejuízo de poderem ser consideradas para a exigência da indemnização, se for caso, a haver do instituidor da propriedade horizontal….
[19] A propriedade horizontal no Código Civil Português", ín RDES, ano XXIII, nºs 1-4 (1976), p. 94.
[20] Essa força resulta por um lado do disposto no art.º 406º nº 1 do CC, quando estipula que «O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei» e por outro do disposto no art.º 1422º nº 2 aal. C) e d) do CC.
[21] Vide J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1992, pág. 332) onde se reconhece a constitucionalidade de diversas limitações:
Teoricamente, o direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: (a) o direito de adquirir bens; (b) o direito de usar e fruir dos bens de que se é proprietário; (c) o direito de os transmitir; (d) o direito de não ser privado deles. Aparentemente, só o segundo aspecto não está contemplado de forma explícita neste preceito constitucional.
Revestindo o direito de propriedade, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, ele possui natureza análoga aos «direitos, liberdades e garantias», compartilhando por isso do respectivo regime específico (cfr. art. 17º), isto na medida em que ele é garantido pela Constituição. A este propósito interessa ter em conta, não apenas os limites explícitos (sobretudo em matéria de propriedade de meios de produção) mas também os limites imanentes, decorrentes implicitamente de outras normas e princípios constitucionais, que vão desde os princípios gerais da constituição económica e financeira (entre os quais as obrigações fiscais: art. 106º), até aos direitos sociais (defesa do ambiente, do património cultural, etc.).
[...]
De uma forma geral, o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade, quer a favor de terceiros) das liberdades de uso, fruição e disposição.
[...]
A Constituição não menciona expressamente, entre os componentes do direito de propriedade, a liberdade de uso e fruição. Todavia, mesmo que se entenda que ele integra naturalmente o direito de propriedade, fácil é verificar que são grandes os limites constitucionais, especialmente em matéria de meios de produção – que vão desde o dever de uso (art. 89º) até ao seu condicionamento (cfr. especialmente o art. 96º-2) -, podendo a lei estabelecer restrições maiores ou menores, credenciada nos princípios gerais da Constituição, particularmente nos da Constituição económica.

Limites particularmente intensos a este aspecto do direito de propriedade são os que ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do território, a ponto de se questionar se o direito de propriedade inclui o direito de construir – jus œdificandi – ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo (licença de construção).

[22] Cfr. Henrique Mesquita, in Obrigações Reais e ónus reais, Almedina, pág. 295, onde afirma que «quando, por exemplo, num título constitutivo de propriedade horizontal se sujeitem os condóminos a determinadas restrições (crf. a alínea d) do n.º do artigo 1422), não se criam relações entre eles: apenas se delimita, diminuindo a respectiva amplitude, o conteúdo de soberania que cada um pode exercer sobre a sua fracção autónoma ou sobre as partes comuns do imóvel» .
[23] Ac. do Tribunal Constitucional nº 44/99 de 19-01-1999.
[24] Veja-se http://info.portal dasfinancas.ggv.pt/NR/rdonlyres/FE12E092-AS44-4BD3-A93E-F0048ERFE89D/0/ Of circ 20180 2015.pdf.
[25] Alojamento Local e uso de Fracção Autónoma, almedina , 2017, pag. 64
[26] J.Pinto Furtado, in Do alojamento local, na sua relação com a propriedade horizintal – Revista de Direito Civil , Ano II,3 pag. 544 e seg.
[27] Neste sentido, o acórdão do STJ, de 11 de dezembro de 2014, Processo: 833/11.2 TVPRT.Pl.Sl, disponível in in www.dgsi.pt;
 E acórdão do STJ de 28-01-2016, proc. 076/06.3TVLSB.L1.S1 in www.dgsi.pt, onde se decidiu que “O título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado à luz das regras constantes dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil”
També no  acórdão da Relação de Lisboa, de 17 de dezembro de 1992, inCJ V, pp.162 e ss., se entendeu que o título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado de acordo com o significado corrente das expressões nele utilizadas, considerando que numa fração autónoma destinada a escritório não pode ser instalado e funcionar um cen­tro clínico.
Já no acórdão do STJ, de 19 de fevereiro de 1998, in CJ I, pp. 92 e ss., se decidiu que é consentâneo com o destino de profissão liberal o destino dado à fração autónoma objetivado em prestação de serviços médicos e auxiliares de diagnóstico. Já assim não é "quando  estas atividades são organizadas e desenvolvidas por empresa mercantil, pelo que neste caso foi dadso fim diverso ao uso da fração"
[28] O acórdão do STJ, de 22 de novembro de 1995, inCJ III, pp. 123 e ss., decidiu que o· termo "comércio" constante da cláusula referida à fração autónoma em causa, do título· constitutivo da ·propriedade horizontal "só pode ter o sentido vulgar e corrente, de mediação nas trocas, coincidente com o seu sentido económico, aquele que um declaratárlo normal deduz. A noção vulgar e corrente de comércio não abarca a atividade de produção e transformação de mercadorias, o que é urna indústria no seu sentido vulgar e corrente, destino este que não encontra no texto da cláusula um mínimo de corres­pondência, ainda que imperfeitamente expresso.