Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6626/09.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
RECURSO DE APELAÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 10/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 640.º, N.ºS 1 E 2, 665.º, 674.º, N.º3, 679.º, 682.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 5 DE FEVEREIRO DE 2004, PROC. Nº 03B4145, WWW.DGSI.PT ;
-DE 12 DE JULHO DE 2008, PROC. Nº 07S4752, WWW.DGSI.PT ;
-DE 9 DE OUTUBRO DE 2008, PROC. Nº 07B3011, , WWW.DGSI.PT ;
-DE 18 DE JUNHO DE 2009, PROC. Nº 08B2998 WWW.DGSI.PT ;
-DE 9 DE JULHO DE 2015, PROC. Nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, WWW.DGSI.PT ;
-DE 9 DE JULHO DE 2015, PROC. Nº 284040/11.0YIPRT.G1.S1, WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Resulta da conjugação dos arts. 665.º e 679.º do NCPC (2013) que ao STJ é vedado tomar conhecimento de questões que a 2.ª Instância não conheceu, pelo que lhe é inviável apreciar o requerimento de junção de documentos apresentado na Relação.

II - Estando a apreciação dos documentos juntos dependente, desde logo, da sua admissão e sendo os poderes do STJ em matéria de facto limitados à ocorrência de ofensas a disposições legais expressas que fixem a exigência de um meio de prova para a demonstração da existência de um facto ou a força probatória de certo meio de prova (n.º 3 do art. 674.º e n.º 2 do art. 682.º, ambos do NCPC), não cabe, igualmente, a este Tribunal apreciar tais meios probatórios.

III - Para determinar se a Relação pode ou não controlar a decisão da 1.ª Instância sobre matéria de facto há apenas que saber se a impugnação foi concretizada e fundamentada nos termos legalmente impostos, não havendo, pois, que atender à maior ou menor extensão da discordância patenteada pela apelante com essa impugnação.

IV - A impugnação da matéria de facto não se destina a que a Relação reaprecie global e genericamente a prova apreciada em 1.ª Instância, não sendo admissível, como se extrai do preâmbulo do DL n.º 39/95, de 15-02, um ataque genérico à decisão da matéria de facto e impondo-se, ao invés, ao recorrente um especial ónus de alegação no que respeita à definição do objecto do recurso e à sua fundamentação, em decorrência dos princípios da cooperação, lealdade e boa fé processuais, por forma a assegurar a seriedade do próprio recurso e a obviar a que este seja usado para fins dilatórios.

V - O ónus de alegação referido em IV contempla, desde a sua criação em 1995 e até à actualidade, a indicação precisa dos pontos da matéria de facto que se pretende questionar e a especificação dos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão diversa, tendo a al. c) do n.º 1 do art. 640.º do NCPC (2013) aditado a exigência de que o recorrente especificasse a decisão que deverá ser tomada sobre as questões factuais impugnadas, sob pena de rejeição do recurso de facto.

VI - Tendo a recorrente, nas alegações e nas conclusões, identificado os concretos pontos de facto que tem como mal julgados, indicado os meios de prova que deveriam ter conduzido a um resultado probatório diverso e transcrito parte dos depoimentos, não se pode manter a decisão de rejeição do recurso sobre matéria de facto, pelo que os autos devem baixar à Relação a fim de o apreciar e, bem assim, de tomar posição sobre o requerimento referido em I e, se for caso disso, de apreciar os documentos que se pretende juntar.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA - Actividades Hoteleiras, Ldª, instaurou uma acção contra BB Imobiliária, SA, pedindo a sua condenação no pagamento de € 572.746,15, com juros de mora contados desde a citação até integral pagamento, como indemnização pelos prejuízos causados com o incumprimento de um “contrato de licença de utilização no Centro Comercial Carrefour de …”, celebrado em 31 de Maio de 2005, na sequência de vários outros contratos celebrados entre as partes desde 1991.

Segundo a autora, e em síntese, a ré não cumpriu os deveres que assumira com o contrato, nomeadamente os deveres de “assegurar com eficiência quer a segurança externa quer interna do centro comercial”, de “promover a animação e publicidade do Centro Comercial”, de realizar “as obras imprescindíveis e absolutamente necessárias (…) para que A. pudesse ter a sua loja em pleno funcionamento” e as “benfeitorias na galeria que a R. deveria ter levado a cabo”; para além disso, as circunstâncias em que o contrato foi celebrado alteraram-se significativamente com a “venda do hipermercado (pela R.) ao grupo Continente”, tendo a ré passado a tratar os diversos lojistas de forma desigual e discriminatória, perante essas alterações. Disse ainda que a ré não tinha actuado de boa fé nas negociações do contrato tendentes à alteração do espaço ocupado pela sua loja, que a afluência ao centro comercial baixou drasticamente desde 2005, por desinteresse da ré, o que impediu a autor a de cumprir integralmente um contrato de fornecimento de café, devendo a ré ressarci-la do custo do incumprimento.

A ré contestou e requereu a intervenção de Continente Hipermercados, SA. Sustentou ser totalmente alheia à aquisição da Carrefour pela Sonae, ser apenas proprietária de diversas fracções do prédio onde se situa o centro comercial e sucessora da Carrefour em vários contratos de cedência a lojistas, “no qual se inclui o contrato entre a cedente e a autora”, que foi renovado em 2005; que não é proprietária da fracção onde se encontra o hipermercado; que sempre cumpriu devidamente os deveres a que estava obrigada e que não tem nenhum fundamento a acusação de ter agido de má fé. Concluiu no sentido de que a acção deve ser totalmente improcedente.

A autora replicou. Por entre o mais, afirmou que a ré “transmitiu uma imagem (de administradora do Centro) que não corresponde à verdade, o que demonstra uma postura de continuada má fé”, requereu a intervenção principal, como réus, dos administradores da ré e das sociedades Continente Hipermercados, SA e Carrefour SA, e dos administradores de ambas e pediu a condenação da ré como litigante de má fé.

A ré treplicou. Pediu que fosse a autora a ser condenada por litigância de má fé.

Apenas foi admitida a intervenção de Continente Hipermercados, SA, que veio contestar.

A acção foi julgada improcedente pela sentença de fls. 4170. A sentença considerou que a autora não tinha demonstrado qualquer incumprimento e que, quer a primitiva ré, quer a interveniente, provaram que tinham cumprido; e que não procediam os demais fundamentos invocados.

A autora interpôs recurso de apelação, arguindo diversas nulidades da sentença e incorrecções da base instrutória, e impugnando a decisão sobre a matéria de facto,

O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. 7177, negou provimento ao recurso. Indeferiu a arguição de nulidades, bem como a alegação de irregularidades da base instrutória e negou a reapreciação da prova pretendida pela autora, nestes termos:

«Pretende a autora, ora apelante, impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, com vista à reapreciação da prova gravada, devendo ser dados como integralmente provados os quesitos 2°, 3°, 5°, 6°, 7º, 9º, 15°, 16°, 180, 19°, 21º, 23°, 25°, 28°, 29°, 32°, 33°, como não provado o quesito 17° e como parcialmente provados os quesitos 22°, 24° e 26°.

Alegou que o tribunal a quo, a régua e esquadro, deu como não provados, tout court, todos os quesitos cuja prova era pertinente à autora.

E como, o mesmo tribunal deu como provados, tout court, ou provado apenas todos os

quesitos cuja prova era pertinente à ré.

Realçou que a sentença assumiu uma dualidade de critérios visto, na maior parte dos casos, terem apenas sido valorados os depoimentos das testemunhas arroladas pela ré e só muito pontualmente os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora.

Disse ainda que a autora apresentou nove testemunhas dos mais variados quadrantes (clientes, lojistas, fornecedores, contabilistas, terceiros, funcionárias etc) enquanto que a ré apresentou, apenas e só, os seus funcionários e administradores, os quais, obviamente, dependem economicamente dela.

Cumpre decidir. A apelante centrou integralmente as suas conclusões, nesta parte, na impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, limitando-se a concluir que “o tribunal a quo decidiu em violação flagrante do princípio da proporcionalidade e da equidade com o que cometeu flagrante denegação de justiça”.

Praticamente, toda a matéria de facto foi impugnada, propondo a apelante que se dê como integralmente provados os quesitos respeitantes à matéria de facto alegada pela autora e como não provado o quesito 17° e parcialmente provados os quesitos 22°, 24° e 26° referentes à matéria de facto alegada pela ré.

O artigo 640° do Código de Processo Civil (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto), preceitua o seguinte:

 (…)

Daqui resulta, para a parte que impugna a matéria de facto, o cumprimento de diversas regras ou formalismos processuais.

A este propósito, no seu acórdão de 14.3.2002 o Tribunal Constitucional decidiu o seguinte:

"As formalidades processuais ou, se se quiser, os formalismos, os ritualismos, os estabelecimentos de prazos, os requisitos de apresentação das peças processuais e os efeitos cominatórios são, pois, algo de inerente ao próprio processo. Ponto é que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vá representar um excesso ou uma intolerável desproporção, que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática, sem conteúdo útil a garantia postulada pelo n" I do art. 20° da Constituição" [Diário da República, II, de 29.5.2001].

Incumbe, assim, ao recorrente relativamente ao pedido de reapreciação da matéria de facto:

– A necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento o "ponto" ou "pontos" da matéria de facto da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento.

– O ónus de fundamentar as razões por que discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados.

No caso sub judice a apelante não estruturou desta forma a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não obedecendo ao formalismo acima referido.

Tal como se decidiu no Acórdão do STJ de 5.2.2004, que mantém actualidade, entendemos que, se a parte quiser que sejam reapreciados pelo Tribunal da Relação os depoimentos gravados, não pode pretender a reapreciação de toda a matéria de facto, ou seja, da realização de um novo julgamento.

Escreveu-se, de relevante e a este propósito, em tal douto aresto o seguinte:

" O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa um julgamento ex novo e global dessa matéria, mas sim a possibilidade do tribunal de 2ª instância fiscalizar os erros concretos do julgamento já realizado. Dupla jurisdição não quer dizer forçosamente repetição. É o que o legislador pretendeu assinalar no preâmbulo do DL 35/95 de 15.02, quando aí consignou, que o duplo grau de jurisdição visava "apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso".

Apesar de ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados em audiência, não é possível proceder à reapreciação da prova uma vez que a recorrente, nas conclusões do recurso, pretende decisão diversa com base num novo julgamento neste tribunal de recurso.

O que lhe é vedado pela interpretação da norma processual em análise, que apenas lhe possibilita fundamentar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, demonstrando que entre a passagem que indica se encontram aqueles pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento abrangidos na previsão do julgador.

Ora, o exercício desta faculdade fiscalizadora sobre pontos concretos da decisão da matéria de facto não é possível quando a pretensão da recorrente se cinge a toda a matéria de facto, com vista a um novo julgamento, ou a uma nova convicção diferente da formulada em 1ª instância.

Improcedendo as conclusões tendentes a obter a modificação da decisão sobre a matéria de facto (XXXIII a LXIIII), improcede igualmente a conclusão LXIX que daquelas dependiam, confirmando-se a douta sentença recorrida.»


2. A autora interpôs recurso de revista excepcional e apresentou alegações, tendo as recorridas contra-alegado.

Mas, já no Supremo Tribunal de Justiça, a formação a que se refere o nº 3 do artigo 672º determinou que o recurso fosse distribuído como revista normal, por não se verificar o obstáculo da dupla conformidade das decisões das instâncias.

Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes conclusões (eliminam-se as que respeitam aos requisitos específicos da revista excepcional, que agora não relevam):

«I. O presente recurso de revista excepcional e prende-se com a questão de saber qual a correcta interpretação jurídica do artigo 640.º do Código de Processo Civil.

II. Na sequência do recurso interposto pela Recorrente, então Apelante, o Tribunal a quo decidiu não reapreciar a matéria de facto uma vez que a impugnação de praticamente toda ela, conduziria a um novo julgamento,

III. Decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa escusar-se a proceder à reapreciação da prova, por entender que “A Recorrente nas conclusões do recurso depende decisão diversa, com base num novo julgamento neste tribunal de recurso" (sic)


[NOTA: o que consta do acórdão recorrido é que a “a recorrente, nas conclusões do recurso, pretende decisão diversa com base num novo julgamento neste tribunal de recurso”].

IV. O mesmo tribunal acrescenta mais à frente que,

Tal é vedado à recorrente pela interpretação da norma que "apenas lhe possibilita fundamentar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto demonstrando que entre a passagem que indica se encontram aqueles pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento abrangidos na previsão do julgador".

Ora,

V. Erra o Tribunal recorrido, desde logo, porque a recorrente não pediu ao Tribunal da Relação de Lisboa a sua faculdade fiscalizadora "cingida"? (sic) "a toda o matéria de facto"?

Pese embora tivesse a recorrente deixado de questionar, como se lhe impugna, muita dessa matéria.

VI. Porque o entendimento perfilhado no douto acórdão não tem qualquer suporte na lei nem na doutrina.

Com efeito,

VII. Entendimento contrário foi perfilhado no douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 02-07-2008, no processo n. 0754752, cujo relator foi o Exmo. Sr. Dr. Juiz Conselheiro Sousa Grandão, onde se preconiza que o recorrente pode impugnar, um a um, todos os pontos da matéria de facto, desde que cumpra os ónus exigidos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil.

VIII. Ónus que a Recorrente cumpriu escrupulosamente nas suas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do artigo 640.º do CPC, que o Tribunal Recorrido violou frontalmente.

 (…)

XI. Por último, relativamente à questão concreta, é do entendimento da recorrente que para a correcta interpretação do artigo 640.º do CPC deverão presidir as regras do artigo 9.º do Código Civil, sendo certo que, em sua modesta opinião, a interpretação conferida à norma pelo Tribunal a quo, não parte da letra da lei, não obedece ao espirito do sistema nem tão-pouco tem em atenção o pensamento do legislador.

Pelo que o Tribunal Recorrido violou a norma ostensivamente.

XII. Deverá ser adoptada a interpretação preconizada por esse Supremo Tribunal no douto acórdão supra referido, que modestamente pensamos estar conforme à lei e à Constituição, e por isso deverá ser anulada a douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação, ordenando-se a baixa do processo devendo ser reapreciada a matéria de facto impugnada pela Recorrente, como se impunha ao Tribunal da Relação fazer.

Sem prescindir,

 (…) XV. Reitera-se a posição anteriormente sustentada dizendo que a interpretação conferida pelo Tribunal a quo não é conforme à lei, designadamente o artigo 9.2 do Código Civil, nem tão pouco conforme à constituição.

XVI. Invoca-se, desde já, que esta interpretação do Tribunal a quo não se coaduna com os artigos 20.2, n.º 2 do artigo 18.2, n.º 2 do artigo 202.2 e 209.2, 210.2 e 215.2, entre outros da Constituição da República Portuguesa: o Princípio da Tutela Jurisdicional, o direito de defesa, direito de boa administração da justiça e ainda o Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13.2, finalmente, os artigos 2.2 do mesmo Diploma Fundamental por violação dos Princípios e direitos aí consagrados do Estado de Direito.

XVII. De qualquer forma, impõe-se frisar que a Recorrente, então Apelante, requereu a apreciação de cerca de metade dos quesitos, pelo que nos parece manifestamente exagerado a afirmação de que impugnou "Praticamente toda a matéria de facto" ou, como inexplicavelmente se refere no douto acórdão que "a pretensão da recorrente se "cinge'? "a toda a matéria de facto”.

XVIII. Finalmente, mas não menos importante, a Recorrente, então Apelante requereu nas suas alegações de recurso a junção de 4 documentos ao abrigo do n.º 1 do artigo 651.2 do Código de Processo Civil.

XIX. Esse pedido foi feito tendo em conta a forma intolerável e, consequentemente, imprevisível como se decidiu no julgamento em 1ª Instância, onde perante documentos públicos e notórios, factos revelados pelo próprio administrador da Ré, entre outros, o Tribunal decidiu dar como não provados factos constantes dos quesitos 29.2, 33.2, 32.2, 15.2, 18.2,19.2 e 35.º (cfr. artigos 63 a 69 das presentes alegações).

XX. E onde perante factos, cuja prova era apenas susceptível de ser feita por meios técnicos idóneos (cfr. referido nos artigos 81 e 82 das presentes alegações), o tribunal decidiu dá-los como provados com a simples audição de duas testemunhas.

Foi isto mesmo que aconteceu na 1ª Instância.

Com efeito,

XXI. É notável, o que se regista, a forma como o Tribunal a quo, a regra e esquadro, deu como não provados, tout court, todos os quesitos cuja prova era pertinente à Autora/Recorrente.

E como, em contrapartida, o mesmo Tribunal deu como provados, tout court, todos os quesitos cuja prova era pertinente à Ré.

XXII. Viu-se, então, obrigada a Recorrente a juntar 4 documentos que fazem prova inequívoca dos referidos quesitos, a saber: 1) Excertos de Revistas publicadas em território nacional pela Associação Portuguesa de Centros Comerciais (associação de que a Ré, Recorrida é associada e o seu administrador, Sr. Dr. Luís Pires é vogal, cfr. se depreende desses mesmos documentos com número 4); 2) Facturas; 3) Carta de Interpelação recebida depois deste processo judicial ter sido intentado; 4) Elementos de contabilidade.

Na esperança, vã, de que o Tribunal da Relação, no exercício da sua acção fiscalizadora se dignasse a avaliá-los e procedesse à reapreciação da prova.

XXIII. Trata-se, pois, de uma questão de conhecimento oficioso, que esse Supremo Tribunal se deverá pronunciar por via das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 5.º e do artigo 411.º do Código de Processo Civil.


Nestes termos e nos mais de direito que Esse Venerando Supremo Tribunal certamente suprirá se requer-se que dê provimento ao presente recurso, com as legais consequências.

Assim se fará a esperada JUSTIÇA!»

Contra-alegou a ré BB Imobiliária, SA, sustentando a confirmação do acórdão recorrido.

Interessa agora, em particular, salientar que alegou que a recorrente não cumpriu “os pressupostos da impugnação da matéria de facto a que se reporta o artigo 640º do Código de Processo Civil”, pois não concretizou “os precisos e pontuais pontos da matéria de facto que considerava encontrarem-se erradamente julgados”, antes “entendeu recorrer (impugnando) da praticamente totalidade da matéria de facto alegada nos presentes autos e provada em seu desfavor”, sustentou não ser admissível discutir a junção de documentos requerida à Relação, desde logo por ter sido indeferida por decisão individual não reclamada, e observou que o Supremo Tribunal de Justiça não tem competência para alterar a decisão de facto, nos termos pretendidos pela recorrente – e que aliás, se tivesse, sempre seria infundada a alteração pretendida.

3. Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

«A) A ora A. "AA - Actividades Hoteleiras, Limitada" é uma sociedade comercial que se dedica à actividade hoteleira (comércio de produtos alimentares) – e, a ora R. "BB - IMOBILIÁRIA, S.A.", uma sociedade que se dedica à realização de negócios sobre imóveis (locação e gestão de bens imóveis) – (A).

B) Em escritura pública de "PROPRIEDADE HORIZONTAL" outorgada em 28 de Agosto de 2003 (fls 245 a 251), "CARREFOUR (PORTUGAL) - SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO DE CENTROS COMERCIAIS, S.A." (ora interveniente) declarou "que constitui o regime de propriedade horizontal" no prédio descrito na 1" C.R.P. de Vila Nova de Gaia com o n" … – sendo a fracção "A" descrita como "Hipermercado, armazéns, laboratórios, áreas técnicas e sociais, sito no piso zero, com a área de 15. 196m2" - (B).

C) Em escritura pública de "COMPRA E VENDA E CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL" outorgada em 19 de Dezembro de 2003 (fls 237 a 244), "CARREFOUR (PO R TU G A L) - SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO DE CENTROS COMERCIAIS, SA" declarou vender à ora R. as fracções "B", "C", "O", "E","F", "G", "H" ,"I" ,"J", "K" ,"L" e "M" do prédio descrito na la C.R.P.de Vila Nova de Gaia com o n° …, e ceder-lhe "a posição contratual de que ( ... ) é titular nos contratos de cedência de utilização em vigor para as lojas das fracções supra referidas do mencionado Centro Comercial" – tendo a ora R. declarado "aceitar as presentes vendas, nos termos exarados - (C).

D) Em escritura pública de "COMPRA E VENDA E MÚTUO COM HIPOTECA E FIANÇA" outorgada em 13 de Julho de 2006 (fls 109 a 116), "Escritórios da CC ­Investimento Imobiliário, S.A." e "Estabelecimentos Hoteleiros da DD Investimento Imobiliário, S.A." declararam vender a EE, pelo preço de 76.000 €, a fracção "DL" do prédio descrito na la C.R.P. de Vila Nova de Gaia com o n" … - tendo o comprador declarado "Que aceita o presente contrato, e que a fracção se destina a habitação própria permanente" - (D).

E) Em 14 de Janeiro de 2008 (fls 504) foi registada a alteração de firma da CARREFOUR (PORTUGAL) - SOCIEDADE DE EXPLORAÇÃO DE CENTROS COMERCIAIS, S.A." para "CONTINENTE HIPERMERCADOS, S.A." (ora interveniente principal) - (E).

F) A ora interveniente principal é proprietária da fracção "A" do prédio B) desde, pelo menos, 12 de Novembro de 2003 (fls 528 a 531) - (F).

G) Em 8 de Setembro de 2009 EE enviou à R. a carta junta a fls 187-188 (cujo teor se da aqui por reproduzido) - (G).

H) A R. explora a "galeria comercial" do centro comercial- (H).

I) De 1991 a 2005 a Loja da A. ocupava uma área de 65m2 - (resposta ao quesito 1°).

J) A Autora efectuou obras na sua loja, diminuindo o espaço interior da mesma e aumentando a área da esplanada, mas mantendo a área de 65 m2 - (2°).

K) Em 31 de Maio de 2005 a R. e a A. assinaram o "CONTRATO DE LICENÇA DE UTILIZAÇÃO DE LOJA EM CENTRO COMERCIAL" junto a fls 35 a 101, onde se lê: "10. ADMINISTRAÇÃO DO CENTRO COMERCIAL. A administração do CC, a direcção dos respectivos serviços de interesse comum e a fiscalização da aplicação do Regulamento Interno incumbem à Primeira Contratante, como entidade responsável pela gestão do CC.", e "A área da Loja é de 65 m 2 - (4°)

L) A loja da A. não possuía balneários - (6°).

M) As cinco empregadas da A. ganhavam, em média, € 500,00 mensais - (70).

N) No ano de 2008 a R. executou diversas acções de animação e publicidade – campanhas de saldos, e actividades de promoção associadas ao dia dos namorados, dia mundial da criança, dia internacional da mulher, Carnaval, dia do pai, Verão, regresso às aulas, e Natal – (12°).

O) No ano de 2009 a R. executou diversas acções de animação e publicidade – actividades de promoção associadas ao dia da criança, dia da mãe, Páscoa, dia dos namorados, Carnaval, Verão, e Natal - (13°).

P) No Natal de 2009 a R. contratou, para animação do Centro, a banda juvenil "Just Girls" e a "Leopoldina" - (14°).

Q) A R. implantou as lojas 'McDonalds' e 'Optivisào" - (15°).

R) As lojas "Worten" e "Babou" estiveram instaladas no Centro, sendo que também o Centro possuía lojas de crianças - (17°).

S) A R. assegura um serviço de segurança com elementos que circulam no Centro Comercial para vigilância, das 6h às 24h no interior e 24h diárias no exterior - (20°).

T) O vidro da porta da entrada do Centro Comercial foi substituído pela Administração do Condomínio – a pedido da R. (fls 279 a 282) - (22°).

U) O ar condicionado por vezes avaria - (23°).

V) A R. diligenciava pelo arranjo do ar condicionado quando este avariava – (24º).

W) O telhado foi reparado pela Administração do condomínio, a pedido da R. – (26º).

X) A R. não instalou um elevador que ligue o parque de estacionamento inferior e o Centro – (27º).

Y) O Hipermercado “Continente” passou a ter no interior da sua estrutura um quiosque de café/snack-bar – (28º).

Z) Em 16 de Março de 2007 "FF, LDA" e a A. assinaram o "CONTRATO" junto a fi s 133 a 13 7 (cujo teor se dá aqui por reproduzido), que a A. não conseguiu cumprir – (29°).

AA) Em 10 de Julho de 2008 a A. enviou à R. a carta j unta a fls 181 - 182 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) tendo a R. respondido, em 19 de Setembro de 2008 pela carta junta a fls.183 - 184 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – (30°).

BB) A facturação da A entre 2006 e 2009 variou entre os € I6.000,00 e os € 8.900,00 – (32º).

CC) A ora R. não explora ou gere o "Hipermercado Continente" – (34°).

DD) No ano de 2009 deslocaram-se ao Centro Comercial 2.381581 pessoas – (35°).

EE) A zona designada "food court" (constituída por esplanadas que dão apoio a outros estabelecimentos) não coincide com a zona do Centro onde a A. explora o seu estabelecimento – (36°)»

4. A questão principal que está em causa neste recurso consiste em saber se a recorrente cumpriu ou não os ónus definidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil, quando impugnou parte significativa da decisão sobre a matéria de facto, no recurso de apelação.

A recorrente suscita ainda a questão de ter requerido à Relação a junção de documentos, sem que o acórdão recorrido se refira a tal requerimento, pretendendo que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie. Recorde-se a este propósito que, no corpo das alegações, a recorrente afirma que o Supremo Tribunal de Justiça “deverá mandar baixar o processo ordenando o Tribunal da Relação de Lisboa a pronunciar-se sobre a referida junção documental ou, se (…) entender, decidir ele próprio sobre a questão”.

5. Antes de mais, cumpre esclarecer dois pontos:

– O Supremo Tribunal de Justiça não pode substituir-se ao Tribunal da Relação de Lisboa, nem na apreciação do requerimento de junção de documentos, nem na apreciação dos documentos em si mesmos.

Quanto ao primeiro aspecto, porque o Supremo Tribunal de Justiça não pode apreciar questões das quais a Relação não conheceu; compare-se o resultado da conjugação entre os actuais artigos 679º e 665º, com aquele que decorria da conjugação entre os anteriores artigos 726º e 715º, preceito do qual apenas se excluía a aplicação do respectivo nº 1.

Quanto ao segundo, desde logo porque a apreciação dos documentos está dependente da sua admissão; para além disso, sempre subsistiria o obstáculo resultante do disposto nos actuais artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2, que limitam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da matéria de facto, ao conhecimento de eventuais ofensas de disposições legais expressas quanto à exigência de “certa espécie de prova para a existência do facto” ou que fixem “a força de determinado meio de prova”. Não estamos perante nenhuma dessas duas hipóteses.

No recente acórdão de 9 de Julho de 2015, www.dgsi.pt, proc. nº 284040/11.0YIPRT.G1.S1, recordou-se o seguinte: “Significa isto (cfr., apenas a título de exemplo, o acórdão de 27 de Setembro de 2007, www.dgsi.pt, proc. nº 07B2028 e jurisprudência nele citada, ou ainda o acórdão de 16 de Janeiro de 2014, www.dgsi.pt, proc. nº 695/09.0TBBRG.G2.S1) que é preciso que o tribunal recorrido tenha ofendido “uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” para que, na revista, o Supremo Tribunal possa corrigir qualquer “erro na apreciação das provas” ou na “fixação dos factos materiais da causa” (acórdão de 27 de Setembro de 2007 cit. e acórdão de 8 de Maio de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 3036/04.9TBVLG.P1.S1 e jurisprudência indicada); nessa eventualidade, está ainda em causa a correcção da aplicação de regras de direito, relativas à admissibilidade ou ao valor (abstractamente fixado) dos meios de prova, e não a apreciação dos factos”;

– Para o efeito de saber se os tribunais da Relação podem ou não controlar a decisão proferida em 1ª Instância sobre a matéria de facto, não tem relevo saber se foram impugnados muitos ou poucos pontos dessa decisão, ou, dito de outra forma, se a discordância do recorrente incide sobre todos, quase todos ou muitos dos factos que foram julgados. Interessa sim saber se essa impugnação foi concretizada e fundamentada nos termos legalmente impostos. Neste sentido, cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal que a recorrente invoca, de 12 de Julho de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07S4752.


6. Recorde-se que a Relação observa que a recorrente impugnou “praticamente, toda a matéria de facto”, pretendendo que se dessem “como integralmente provados os quesitos respeitantes à matéria de facto alegada pela autora e como não provado o quesito 17° e parcialmente provados os quesitos 22°, 24° e 26° referentes à matéria de facto alegada pela ré”. Mas que, na impugnação, a (então) apelante não cumpriu “diversas regras ou formalismos processuais” impostos pelo artigo 640º do Código de Processo Civil (não circunscreveu ou delimitou “o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento o "ponto" ou "pontos" da matéria de facto da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento”, nem fundamentou “as razões por que discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados.”

O acórdão recorrido cita o que se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de Fevereiro de 2004 (www.dgsi.pt, proc. nº 03B4145), reportando-se ao (então) artigo 690º-A do Código de Processo Civil, sendo que a questão central era, ali, a de saber se as especificações exigidas deviam constar das conclusões das alegações:

“O artº 690º do C.P.Civil estabelece a obrigatoriedade de serem elaboradas conclusões das alegações de recurso, sob pena deste não ser conhecido.

Após o estabelecimento da gravação da prova e da consequente possibilidade da matéria de facto poder ser alterada em recurso, foi acrescentado o artº 690º - A, que determinou que, sob pena de rejeição, o recorrente que impugne aquela matéria deverá especificar os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que levam a decisão diversa da recorrida

A história do preceito e a sua inserção sistemática levam-nos a concluir que a referida especificação deverá obrigatoriamente constar das conclusões do recurso.

Nem significa tal exigência um excesso de formalismo.

É que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, não significa um julgamento ex novo e global dessa matéria, mas sim a possibilidade do tribunal de 2ª instância fiscalizar os erros concretos do julgamento já realizado. Dupla jurisdição não quer dizer forçosamente repetição. É o que o legislador pretendeu assinalar no preâmbulo do DL 35/95 de 15.02, citado pelo Acórdão recorrido, quando aí consignou, que o duplo grau de jurisdição visava "apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso".


Ora, o exercício desta faculdade fiscalizadora sobre pontos concretos da decisão da matéria de facto só é possível, não com o arrazoado da alegação, mas sim com a rigorosa delimitação desses pontos nas conclusões do recurso. Bem como dos meios de prova que lhes respeitam.

Nas conclusões da apelação a recorrente refere que a dita posse era de má fé, dado que o possuidor sabia que, ao adquiri-la, lesava os interesses de terceiros, o que viera ao seu conhecimento por diversas fontes que nomeia.

Não há aqui uma referência, ainda que imperfeita, a quaisquer pontos concretos da matéria de facto: não se pede a alteração em concreto de nenhum deles e as realidades de que se fala "má fé" e "lesão de interesses de terceiros" são meramente conclusivas. E, por isso, não pode haver também uma referência aos correspondentes meios de prova.”

 

E o acórdão recorrido afirmou que “Apesar de ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados em audiência, não é possível proceder à reapreciação da prova uma vez que a recorrente, nas conclusões do recurso, pretende decisão diversa com base num novo julgamento neste tribunal de recurso”.~

Não parece que se devam interpretar dessa forma, nem as conclusões das alegações – que por diversas vezes remetem para pontos concretos do corpo respectivo, onde se desenvolveu o que se sintetiza nas conclusões – nem as alegações, globalmente consideradas. Mas vejamos.


7. O Supremo Tribunal de Justiça já tratou inúmeras vezes da questão central deste recurso. No recente acórdão de 9 de Julho de 2015, www.dgsi.pt, proc. nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, escreveu-se o seguinte, que aqui se reitera e, por comodidade, se transcreve: «Como este Supremo Tribunal tem repetidamente recordado (cfr. por exemplo o acórdão de 4 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 e jurisprudência nele citada, e ainda os acórdãos de 29 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 39/2002.E1.S1 ou de 30 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1), a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão.

Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.”

Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.

Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no [então] artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do [então] artigo 705”

O ónus especificamente criado foi pois justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma “delimitação do objecto do recurso” e uma “fundamentação”, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998).

O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, “especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”. Mas, se “os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados”, passou a caber-lhe, “sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC”.

O artigo 690º-A veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que em sua substituição acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo os ónus referidos (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que implicassem decisão diversa da proferida, se for possível, “indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.

A reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt .

Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente, aplicável ao recurso de apelação que agora nos interessa:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b), exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder optar pela apresentação da “transcrição dos excertos” relevantes.

Cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, então caberá à Relação julgar o recurso, dispondo para o efeitos dos poderes reforçados do actual artigo 662º (correspondente ao anterior artigo 712º, com alterações).»


7. Ora, resulta das alegações apresentadas no recurso de apelação que a recorrente identificou os pontos de facto que considera mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, indicando os concretos meios de prova que deveriam ter conduzido a um resultado probatório oposto, transcrevendo parte dos depoimentos e fornecendo as indicações que permitem localizar, na gravação, as passagens a que se refere.

Fornece essas indicações no corpo das alegações e, por remissão para os pontos desse corpo, nas conclusões do recurso.

Não pode assim manter-se o acórdão recorrido, na parte em que rejeitou a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

8. Assim sendo, não há que apreciar a alegação de violação de princípios constitucionais, por parte do acórdão recorrido.

9. Nestes termos, concede-se provimento ao recurso, anulando-se o acórdão recorrido, na parte em que não apreciou a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e determinando que o processo volte à Relação para que, por intermédio dos mesmos juízes, se possível:

a) Se aprecie o recurso da decisão sobre a matéria de facto, nos pontos impugnados;

b) Se aprecie o requerimento de junção de documentos, com as alegações da apelação e, se for deferido, se apreciem os documentos.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 01 de Outubro de 2015

Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego