Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11701/15.9T8LSR-A.L1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DÍVIDAS HOSPITALARES
LESADO
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
PRESCRIÇÃO
INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / PRESCRIÇÃO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p, 61-62;
- Adriano Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, Boletim do Ministério da Justiça, 1961, n.º 105, p. 190;
- Ana Filipa Morais Antunes, Algumas questões sobre prescrição e caducidade, AA.VV., Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume III, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 36-37;
- Brandão Proença, Natureza e prazo da prescrição do 'direito de regresso' no diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, Cadernos de Direito Privado, 2013, n.º 41, p. 29 e ss.;
- João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 2000, p. 95;
- José Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-brasileira, Coimbra Almedina, 1993, p. 548;
- Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991 (6.ª edição), p. 375;
- Paulo Ramos de Faria, A dispensa do ónus da prova e o direito constitucional a um processo equitativo (O caso das 'dívidas hospitalares'), Julgar Online, Dezembro de 2016, p. 35, in http://julgar.pt/a-dispensa-do-onus-da-prova-e-o-direito-constitucional-a-um-processo-equitativo;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Responsabilidade civil e prescrição, Revista de Direito da Responsabilidade, 2019, p. 761 e ss. ; in http://revistadireitoresponsabilidade.pt/2019/responsabilidade-civil-e-prescricao-pedro-pais-de-vasconcelos;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 278 e 504;
- Reinhard Zimmermann, Comparative Foundations of European Law of Set-off and Prescription, Cambridge, Cambridge University Press, 2004, p. 129 e ss.;
- Rita Canas da Silva, Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 1250.º), Coimbra, Almedina, 2017, p. 374.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 306.º, N.º 1, 795.º, N.º 2 E 498.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 71.º.
COBRANÇA DE CRÉDITOS HOSPITALARES DO SNS, APROVADO PELO DL N.º 218/99, DE 15.06: - ARTIGO 3.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 22-05-2018, PROCESSO N.º 2565/16.6T8PTM.E1.S2, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-07-2018, PROCESSO N.º 1507/10.7TBPNF.P1.S1;
- DE 03-07-2018, PROCESSO N.º 2445/16.5T8LRA-A.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-04-2019, PROCESSO N.º 2142/16.1T8PT.M-A.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT.


-*-


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 13-09-2007, PROCESSO N.º WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O estabelecimento hospital que contribuiu para o tratamento ou assistência da vítima é titular de um direito de indemnização que tem origem no facto ilícito, logo é um lesado nos termos e para os efeitos do artigo 495.º, n.º 2, do CC.

II. O disposto, em especial, no artigo 3.º do DL n.º 218/99, de 15.06., quanto ao início da contagem do prazo de prescrição do direito de indemnização de que são titulares as entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde não afasta a aplicabilidade dos princípios e das regras gerais sobre a prescrição em tudo o que com ele não contenda.

III. Configurando o facto gerador do direito de indemnização um ilícito criminal, é aplicável, em princípio, a extensão do prazo de prescrição prevista no artigo 498.º, n.º 3, do CC, beneficiando tanto o ofendido / lesado principal como os restantes lesados.

IV. Estando, por força do princípio da adesão do pedido indemnizatório à acção penal (cfr. artigo 71.º do CPP), todos os lesados impedidos de deduzir aquele pedido, em separado, nos tribunais cíveis, a contagem do prazo de prescrição do direito de indemnização não se inicia antes de proferido o despacho de acusação / de arquivamento, em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 1, do CC.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. O Centro Hospitalar AA, E. P. E., em 1 de Setembro de 2015, intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB - Companhia de Seguros, S.A., e CC - Companhia de Seguros, S.A., actualmente DD - Companhia de Seguros, S.A.[1], pedindo o pagamento de quantia pecuniária emergente de crédito hospitalar.

Para tanto , alegou, em síntese, que :

- Na sequência de acidente de viação que ocorreu em 28 de Abril de 2010, veio um dos passageiros — o EE - dos veículos intervenientes a sofrer ferimentos, necessitando de assistência médica e medicamentosa, vindo a dar entrada em estabelecimento hospitalar do autor;

- Tendo o autor prestado a devida assistência médica e medicamentosa que lhe foi solicitada, acontece que os respectivos custos e despesas carecem ainda de pelas rés ser liquidadas/pagas, o que pretende o autor que seja feito.

- É que, tendo deduzido pedido de indemnização cível no processo crime que veio a ser despoletado e a correr termos em razão do acidente de viação supra referido, o certo é que por despacho de 29.04.2015, foi o ora demandado remetido para os tribunais cíveis quanto à apreciação do referido pedido indemnizatório.


2. Citadas ambas as rés pelo autor demandadas, vieram ambas apresentar contestação, sendo que, a ré DD - Companhia de Seguros, S.A., deduziu oposição por excepção e por impugnação motivada e , no âmbito da primeira, arguiu a excepção peremptória de prescrição, com fundamento no facto de o alegado acidente de viação ter ocorrido já há mais de 3 anos e, por consequência, o prazo prescricional previsto no artigo 498.°, n.° 1, do CC se mostrar já ultrapassado.

Invocou ainda a ré DD - Companhia de Seguros, S.A., não olvidando que fora notificada através de notificação judicial avulsa que o autor lhe dirigiu, que a verdade é que à data o prazo prescricional já se mostrava esgotado e, por consequência, a sua interrupção não se operou.


3. Após resposta do autor (no âmbito da qual invoca esta que beneficia do prazo previsto no artigo 498.°, n.º 3, do CC, e , ademais, que o prazo de prescrição apenas começou a correr após a notificação do despacho de arquivamento e/ou de acusação, nos termos do artigo 306.°, n.° 1, do CC), veio, em sede de despacho saneador, o tribunal a conhecer do mérito da excepção de prescrição invocada pela ré DD - Companhia de Seguros, S.A., decidindo, em 30.01.2018, que :

Pelo exposto, julgo a excepção peremptória procedente e, consequentemente, absolvo a ré DD - Companhia de Seguros, S.A., do pedido”.


4. Inconformado com a referida decisão proferida em sede de saneador/sentença, da mesma apelou então o Centro Hospitalar AA, E.P:E., pedindo a revogação da decisão do Tribunal de 1.ª instância.


5. Apreciando as questões suscitadas no recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu Acórdão em 11.04.2019 contendo a seguinte decisão:

Em conclusão e em face do exposto, impõe-se que a apelação seja julgada improcedente e, em conformidade, seja a decisão apelada confirmada, isto é, bem decidiu o tribunal a quo ao julgar procedente a excepção peremptória de prescrição arguida pela Ré Seguradora DD -  Companhia de Seguros, S.A., e ora apelada.

Improcedem, em suma, in totum, as conclusões da apelação”.


6. Ainda irresignado, vem agora o Centro Hospitalar AA, E.P:E., recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela revogação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

O recurso é interposto ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al, d), do CPC, invocando o recorrente oposição entre o Acordão recorrido e outro Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, e, subsidiariamente, ao abrigo do artigo 672º, n.º 1, als. a), b) e c) do CPC (revista excepcional).

Conclui as suas alegações de revista do seguinte modo:

“I. Vem o presente recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a decisão da 1.ª instância que julgou procedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela DD - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., absolvendo-a do pedido de pagamento das despesas hospitalares de EE, decorrentes do tratamento de lesões sofridas, enquanto passageiro, no acidente de viação ocorrido em 28/04/2010.

II. Com efeito, e não obstante o Recorrente pugnar pelo alargamento do prazo prescricional para cinco anos, por força do disposto no art. 498.º, n.º 3, do Código Civil, dado ter alegado factos integrantes do crime de homicídio negligente ou, pelo menos, do crime de ofensas à integridade física, e pela interrupção do prazo prescricional durante a pendência do processo-crime (inquérito) instaurado pelo falecimento de EE, após o acidente, e consequente início do curso da prescrição com a notificação do despacho de acusação proferido em 29/03/2012, nos termos do art. 306.º, n.º 1, do Código Civil, foi entendimento quer do Tribunal da 1.ª Instância, quer do Tribunal da Relação de Lisboa, que sendo o art. 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, uma norma especial relativamente ao art. 498.º do Código Civil afasta a sua aplicação, sendo o prazo de prescrição aplicável o de três anos a contar da data de cessação da prestação de cuidados de saúde.

III. Relativamente à interrupção do prazo prescricional durante a pendência do processo-crime (inquérito) entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que “em rigor o principio da adesão não é in casu aplicável á demandante/apelante, porque não é a mesma lesada (ou a vítima/ofendida), ou, dito de uma outra forma, a titular do direito imediatamente afectado pelo ilícito criminal que integra o objecto do processo crime”.

IV. Ora, não pode o Recorrente conformar-se com esta decisão, tendo a presente revista por fundamento a violação de lei substantiva, por errada interpretação do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99, violando o disposto nos artigos 9.º, 306.º, n.º 1, e 498.º, n.º 3, todos do Código Civil, dos art. 71.º e 72.º do Código de Processo Penal e art. 3.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 218/99, conduzindo, consequentemente, a erro de determinação na norma aplicável.

V. Pese embora o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, é admissível recurso de revista, nos termos do art. 671.º, n.º 1 e n.º 2, conjugado com o art. 629.º, n.º 2, al. d) CPC, já que o mesmo se encontra em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 13/09/2007 (Processo n.º 0733811; N.º Convencional: JTRP00040579), disponível em www.dgsi.pt e cuja cópia se anexa, proferido sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, conforme resulta dos respectivos sumários:

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Sumário):

4.1. O art. 3.º do DL n.º 218/99, de 15-06, ao dispor que os créditos relativos à prestação de cuidados de saúde, por parte de instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, prescrevem no prazo de três anos, contados da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem, estabelece um regime especial quer quanto ao prazo de prescrição dos mesmos, quer quanto ao momento a partir do qual tal prazo é contado.

4.2. Em razão do referido em 4.1, e em sede de prescrição de créditos relativos à prestação de cuidados de saúde [ainda que decorrentes de lesões sofridas em acidentes de viação], por parte de instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, não que lançar mão do disposto no art. 498.º, do CC.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Sumário):

I. O DL n.º 218/99, de 15.06, visando a cobrança dos créditos referentes aos cuidados de saúde, não contém um regime substantivo de responsabilidade civil, mas, antes, um regime processual para o aludido fim.

II. Emergindo o crédito hospitalar de crime de ofensas à integridade física do assistido, o respectivo prazo prescricional não pode deixar de ser o previsto, para a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, no art. 498.º, n.º 3, do CC, tido em conta o disposto nos art. 118.º, n.º 1, al. c) e 143.º, ambos do C. Penal.

VI. E ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se admite, sem conceder, sempre seria admissível recurso de revista excepcional, nos termos do art. 672.º CPC, por se encontrarem preenchidos todos os requisitos aí elencados, ainda que estes não sejam cumulativos.

VII. Com efeito, e tendo em consideração que:

i) Resulta do próprio preâmbulo do DL 218/99 que, com a sua aprovação, se pretendeu “simplificar os procedimentos, mas sem afastar os princípios gerais de direito relativamente ao reconhecimento e execução dos direitos”,

ii) Os art. 71.º e ss. CPP não fazem qualquer distinção do tipo de lesados, sendo as instituições hospitalares lesados, nos termos do art. 495.º CC,

iii) O art. 6.º do Decreto-Lei n.º 218/99 impõe a notificação oficiosa do despacho de acusação às instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, para, querendo, deduzirem o pedido de indemnização civil em processo penal,

E que

iv) O entendimento plasmado no acórdão recorrido obstará, grosso modo, à dedução de pedido cível em processo-crime, dado o habitual hiato temporal entre o inicio da fase de inquérito e o despacho de acusação ou arquivamento do processo, ao arrepio do estabelecido no art. 6.º do Decreto-Lei n.º 218/99, gerando uma contradição/incongruência que colide com a unidade do sistema e com a mens legislatoris,

Forçoso se torna concluir que a sua apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito nos inúmeros processos em que as várias instituições hospitalares deduziram ou deduzirão pedido cível.

VIII. À relevância jurídica acresce a relevância social, estando em causa créditos das instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e, por conseguinte, interesses do erário público, numa área tão sensível como a saúde e num significativo universo de processos, já que, por cada crime de ofensas corporais haverá, grosso modo, uma assistência em estabelecimento de saúde público.

IX. Como evidencia o reduzido número de acórdãos dos tribunais superiores sobre esta matéria, o alargamento do prazo prescricional por via do art. 498.º, n.º 3 do CC, e a interrupção do mesmo por força da pendência do processo de inquérito criminal têm sido questões pacíficas nos Tribunais da 1.ª instância, não obstando à condenação dos demandados civis (quer arguidos, quer responsáveis meramente civis), pelo que, sempre que notificado nos termos do art. 6.º do DL 218/99, o Recorrente deduz pedido de indemnização.

X. Porém, o acórdão ora proferido (já antecedido pelo acórdão datado de 18/05/2010) faz perigar as expectativas legítimas das instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em face da praxis judicial até à presente data, impondo-se a intervenção deste Tribunal enquanto guardião dessas mesmas expectativas.

XI. Por fim, estão igualmente preenchidos os requisitos gerais de recorribilidade exigidos pelo art. 629.º, n.º 1, do mesmo Código, tendo a causa valor superior à alçada do tribunal de que se recorre (€ 30.880,23) e sendo a decisão impugnada desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, dada a sua total improcedência.

XII. A presente revista tem por fundamento a violação de lei substantiva, entendendo o Recorrente, com o devido respeito, que o Tribunal a quo ao decidir da forma como decidiu, faz uma interpretação errada do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99, violando o disposto nos artigos 9.º, 306.º, n.º 1, e 498.º, n.º 3, todos do Código Civil, dos art. 71.º e 72.º do Código de Processo Penal e art. 3.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 218/99, conduzindo, consequentemente, a erro de determinação na norma aplicável.

XIII. Com efeito, entende o Recorrente que se impunha considerar quer o alargamento do prazo prescricional, por via do disposto no art. 498.º, n.º 3, do Código Civil, quer a sua interrupção, nos termos do art. 306.º, n.º 1, do Código Civil, e, por conseguinte, a improcedência da excepção arguida pelo Recorrido, desde logo porque com o Decreto – Lei n.º 218/99 se pretendeu “simplificar os procedimentos, mas sem afastar os princípios gerais de direito relativamente ao reconhecimento e execução dos direitos”, tendo o legislador reconhecido “a necessidade de estabelecer um regime processual específico para a cobrança dos créditos referentes aos cuidados de saúde”– cf. preâmbulo (nosso sublinhado).

XIV. Para além de estabelecer um regime meramente processual, e não substantivo, restringindo-se a relação de especialidade entre o art. 3.º do referido diploma e o n.º 1 do art. 498.º CC, ao momento do início da contagem do prazo prescricional, previsto no n.º 1, não se pode concluir pela exclusão da norma do art. 498.º, n.º 3, do Código Civil, por razões de índole teleológica e sistemática, nomeadamente, a imposição da notificação oficiosa do despacho de acusação às instituições e serviços integrados no SNS, para, querendo, deduzirem pedido de indemnização civil, desta forma concretizando o princípio da economia processual (cfr. preâmbulo do referido diploma).

XV. Assim, apesar de o legislador prever, no art. 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99, que os créditos hospitalares prescrevem no prazo de três anos, o legislador prevê, especifica e igualmente, a possibilidade de formulação do pedido de indemnização em processo penal, de onde resulta que não quis afastar a aplicação do disposto no art. 498.º, n.º 3, do Código Civil, norma que, a inexistir (ou a julgar-se inaplicável), inviabilizaria, na maioria das vezes, a formulação do pedido cível em processo penal e, consequentemente, a concretização do principio da adesão obrigatória, consagrado no art. 71.º do Código de Processo Penal e reforçado no art. 6.º do Decreto – Lei n.º 218/99.

XVI. Nesse sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/05/2010, supra identificado no qual se refere: “resulta da ratio legis do n.º 3 do art. 498.º do CC, que o alongamento do prazo prescricional está directamente relacionado com a especial gravidade do facto ilícito, que determina, quer a sua tipificação como ilícito penal e a instauração do respectivo procedimento criminal, quer o alargamento do prazo prescricional previsto na norma cível, permitindo, desse modo, que a obrigação de indemnizar decorrente da aplicação das normas de direito civil não prescreva em momento anterior àquele em que se pode apurar a responsabilidade criminal. Consequentemente, e tal como se escreveu num acórdão do STJ, “… o acolhimento do prazo mais longo de prescrição criminal, nos termos do n.º 3 do artigo 498.º do C. Civil, depende da qualificação do facto ilícito como criminoso e da gravidade dos danos sofridos pelo lesado.” [2] Acresce, ainda, que a letra do referido preceito não permite que sejam aplicados os diferentes prazos prescricionais em função do tipo de responsáveis, privilegiando, assim, as razões gerais subjacentes ao instituto da prescrição certeza e segurança jurídicas e reacção contra a inércia e desinteresse do titular do direito mas também razões de fundo, que radicam essencialmente, na unidade do sistema jurídico (aplicar a todos os responsáveis o mesmo prazo de prescrição art. 9.º, n.º 1 do CC), coadjuvada pela ideia que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento quando apenas estabeleceu como único pressuposto do alargamento do prazo prescricional, a natureza criminal do facto (art. 9.º, n.º 3 do CC), sendo certo que onde a lei não distingue, também o intérprete não deve distinguir” (nosso sublinhado).

XVII. Em igual sentido, em acção de cobrança de despesas hospitalares, se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão supra identificado, datado de 13/09/2007: “alegou o autor, na petição inicial, factos integrantes de crime de ofensas à integridade física, p.p. pelo art. 143.º CP. E perante o exposto, facilmente se deduzirá que a causa de pedir da acção não é apenas e a prestação de serviços de saúde ao agredido C…, mas, sim (também), o facto que motivou a prestação de tais serviços. E esse facto preenche uma situação de responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito (ut arts. 143.º CP e 483.º, 495.º/2 e 562.º segs. CC) (1) (…) Por isso, cremos que razão assiste à apelante, ao sustentar que diferentemente do que foi defendido na sentença a responsabilidade civil do demandado não assenta no art. 3.º do Dec.-Lei n.º 218/99, de 15.6, mas, sim, na responsabilidade extracontratual, em conformidade com os citados normativos (…) parece evidente que, atenta a natureza dos factos geradores dos serviços prestados pelo autor e cujo ressarcimento ora pretende satisfazer --, o prazo prescricional a ter em conta no caso sub judice não pode deixar de ser o previsto, para a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, no art. 498.º, n.º 3 CC.

XVIII. Da mesma forma, alegou o Autor, ora Recorrente, na sua petição inicial, factos integrantes do crime de ofensas à integridade física/homicídio negligente, pelo que não se pode concluir tout court que a causa de pedir assente apenas na prestação de cuidados de saúde.

XIX. O Tribunal Constitucional também assim entendeu, como resulta do acórdão datado de 12/03/1997 (supra citado), onde pode ler-se “não fora a norma do artigo 9.º, acabado de transcrever, tais dívidas prescreveriam, como se viu, no prazo de dois ou de três anos, consoante o seu pagamento fosse exigido do próprio assistido ou de familiares seus [cf. Artigo 317.º, alínea a), do Código Civil], ou antes, do terceiro responsável pelas lesões corporais ou de quem, por sub-rogação, tivesse assumido essa responsabilidade (cf. Artigo 498.º, n.º 1, do mesmo Código). Isto, a menos que, constituindo o facto ilícito crime, a lei não estabeleça para ele um prazo de prescrição mais longo, pois, em tal caso, é esse prazo mais longo que se observará (cf. Artigo 498.º, n.º 3, do Código Civil).” (nosso sublinhado).

XX. Ao argumento decorrente da lógica e da unidade do sistema jurídico, acresce ainda outro relacionado com a própria finalidade da norma contida no art. 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99: equiparar o prazo ao previsto no art. 498,º do Código Civil, evitando, no entanto, a necessidade das instituições do SNS intentarem sucessivas acções em relação a cada um dos serviços prestados, estando subjacente a preocupação do legislador com o financiamento do sistema de saúde, bem como a (já referida) razoabilidade da utilização dos recursos (públicos) em termos de custo-benefício, o que, naturalmente, não implica coarctar (antes pelo contrário) a faculdade destas instituições deduzirem pedido cível no âmbito do processo penal – solução que, no nosso entender, privilegiou, em nome não só da economia processual, mas também da racionalização de recursos públicos, ao impor a notificação oficiosa do despacho de acusação (cfr. art. 6.º do Decreto-Lei n.º 218/99).

XXI. A evidente preocupação do legislador em acautelar os direitos de crédito dos hospitais públicos, atenta a sua específica natureza e finalidade, não é de todo compatível com a exclusão do alargamento do prazo prescricional, nos termos do n.º 3 do art. 498.º do Código Civil, e que resulta num regime mais desfavorável aos hospitais públicos relativamente a qualquer outro lesado, que tenha direito, nos termos do art. 495.º, n.º 2, do Código Civil, a indemnização em virtude de ter contribuído para o tratamento ou assistência da vítima, nomeadamente, para efeitos de dedução do pedido cível no âmbito do processo-crime respectivo, com evidentes benefícios no que respeita à economia processual.

XXII. A unidade do sistema jurídico e os princípios da adesão obrigatória e da economia processual impõem, assim, que a aplicação do art. 498.º, n.º 3, do Código Civil abranja todos os responsáveis, incluindo os meramente civis, como é o caso das seguradoras, e todos os lesados, sem distinção (e as instituições do SNS são lesados nos termos do art. 495.º, n.º 2, do Código Civil).

XXIII. O que nos leva à questão da exclusão da interrupção do prazo prescricional durante a pendência do processo-crime (inquérito), assente no entendimento de que “o principio da adesão não é in casu aplicável á demandante/apelante, porque não é a mesma lesada (ou a vítima/ofendida), ou, dito de uma outra forma, a titular do direito imediatamente afectado pelo ilícito criminal que integra o objecto do processo crime”.

XXIV. Conforme escreve o Prof. Germano Marques da Silva, em obra citada, “o lesado não se confunde com o ofendido, no sentido do art. 68.º, n.º 1, al. a). Este é apenas o titular dos interesses que a lei penal especialmente quis proteger com a incriminação, enquanto o lesado é toda e qualquer pessoa que, segundo as normas do direito civil, tenha sido prejudicada em interesses juridicamente protegidos, ou seja, todos aqueles que sofreram danos e que, segundo as regras do direito processual civil tiverem, legitimidade para formular o pedido de indemnização. O lesado é um conceito lato ou extensivo de ofendido e que abrange todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal.

XXV. Assim se entende a expressão verbal do n.º 1 do art. 74.º: «ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente». Com efeito, o lesado pode confundir-se com o ofendido titular dos interesses especialmente protegidos com a incriminação quando o ofendido sofra danos indemnizáveis segundo o direito civil, mas pode haver pessoas lesadas com o crime e, por isso, titulares do direito a indemnização civil, que não sejam titulares dos interesses especialmente protegidos com a incriminação. Pense-se, por exemplo, numa ofensa corporal, em que a pessoa ofendida é a vítima da agressão, mas em que são lesados os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima (art. 495.º do CC).”. (nosso sublinhado).

XXVI. A qualidade de titular do direito imediatamente afectado pelo ilícito criminal releva apenas para efeitos de constituição de assistente, não para efeitos de dedução de pedido de indemnização civil por parte de lesados, enquanto titulares desse direito.

XXVII. A lei processual penal, aliás, não faz qualquer distinção entre lesados, directos ou indirectos, para efeitos de dedução de pedido cível, devendo considerar-se lesado “aquele que, perante o Direito Processual Civil, tiver legitimidade para formular o pedido de indemnização”.

XXVIII. Nestes termos, é o Recorrente, efectivamente, lesado, por força do disposto nos art. 483.º e 495.º, n,º 2, do Código Civil, conjugado com os art. 23.º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei n.º 11/93, de 15/1, e na Base XXXIII, n.º 2, al. b), da Lei n.º 48/90, de 24/8, e 6.º do DL 218/99, pelo que, integrando o art. 306.º, n.º 1, do Código Civil, o regime geral da prescrição, o prazo prescricional apenas se iniciará com a notificação do despacho de acusação/arquivamento, já que, conforme tem sido entendimento jurisprudencial pacífico, a pendência do processo-crime (inquérito) representa, por força do princípio da adesão, uma interrupção continuada que apenas cessará nesse momento.

XXIX. Acresce que tal interrupção ocorre, independentemente de se verificar alguma das circunstâncias previstas no art. 72.º do Código de Processo Penal, ou seja, independentemente do lesado poder deduzir o pedido em separado, conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 03/12/2009 (supra citado): “a pendência de processo crime interrompe a prescrição: enquanto se mantiver pendente essa lide ainda que em sede de inquérito não pode ocorrer a contagem do prazo prescricional, como que representando uma interrupção contínua ou continuada do prazo de prescrição do direito à indemnização contra o civilmente responsável. Quer o pedido de indemnização cível possa, quer não possa, ser deduzido em separado cf. Acs. de 16-01-2003, de 22-01-2004 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), de 27-01-2005, e de 31-01-2007, ambos publicados na CJ STJ, Anos XIII, I, págs. 97 e ss., e XV, I, págs. 54 e ss., respectivamente” (nosso sublinhado).

XXX. No caso sub judice, em face do acidente ocorrido em 28/04/2010, o sinistrado veio a falecer no dia 01/06/2010, o que deu origem ao processo de inquérito supra identificado.

XXXI. Tratando-se de uma colisão entre dois veículos e sendo o sinistrado passageiro, poderia, em abstrato, vir a ser proferido despacho de acusação contra qualquer um dos condutores ou, inclusive, ambos, pelo que, nessa medida, e na esteira do entendimento supra referido, não há qualquer inacção por parte do ora Recorrente ao decidir aguardar o desfecho do processo-crime, para, então, deduzir pedido cível, ao abrigo do principio da adesão.

XXXII. Só com o despacho de acusação proferido em 29/03/2012 ficou definido contra quem poderia o ora Recorrente, enquanto lesado, deduzir pedido cível no âmbito do processo-crime, e, portanto, só a partir dessa data se iniciou a contagem do prazo prescricional, interrompido até então, nos termos supra expostos.

XXXIII. E não se diga que poderia o ora Recorrente “deduzir pedido de indemnização civil também ad cautelam contra a CC Companhia de Seguros”, conforma aventado, já que, tendo sido proferido despacho de acusação apenas contra o condutor da BB, estava impedido de o fazer por força do princípio da adesão.

XXXIV. Com efeito, se o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem de se fundar na prática de um crime, nos termos do art. 71.º CPP, tendo os demandados e os intervenientes posição processual idêntica à do arguido quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo, nos termos do art. 74.º, n.º 3, CPP, não se alcança com que fundamento poderia o ora Recorrente deduzir pedido cível contra a CC – Companhia de Seguros, a qual seria necessariamente parte ilegítima.

XXXV. Por todo o exposto, e considerando que o Autor, ora Recorrente, alegou factos integrantes do crime de homicídio negligente ou, pelo menos, do crime de ofensas à integridade física, ambos puníveis, em abstracto, com penas de prisão máxima iguais ou superiores a 1 ano e inferiores a cinco anos, cujo prazo de prescrição é de cinco anos, nos termos do art. 118.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, forçoso se torna concluir que o mesmo não terminaria antes de 29/03/2017, tendo sido interrompido em 04/03/2015 com a notificação judicial avulsa da Ré DD.

XXXVI. E, ainda que assim não se entendesse quanto à aplicabilidade do art. 498.º, n.º 3, do Código Civil, e consequente alargamento do prazo prescricional, o que, por mera cautela de patrocínio se admite, sem conceder, o prazo de três anos previsto no art. 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99 também não estaria prescrito, já que não se poderia deixar de considerar interrompido nos termos do art. 306.º, n.º 1, do Código Civil.

XXXVII. Neste caso, apenas se iniciando em 29/03/2012, completar-se-ia em 29/03/2015, não fora a interrupção operada pela NJA, em 04/03/2015, nos termos do art. 323.º, n.º 1, do Código Civil.

XXXVIII. Com efeito, e reiterando que resulta inquestionável que o legislador privilegiou a formulação do pedido cível referente às despesas hospitalares, no âmbito do processo penal, não só por expressamente referir tal hipótese, mas também, e em especial, por impor a notificação oficiosa do despacho de acusação, em prossecução do princípio da economia processual (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 218/99), entender o contrário comportaria uma contradição e uma incongruência do sistema que, para além de não ter um mínimo de correspondência com a letra da lei, colidiria com a unidade do sistema jurídico e com a mens legislatoris.

XXXIX. A decisão recorrida padece, assim, nos termos expostos, de erro na determinação da norma aplicável, impondo os art. 306.º, n.º 1, e 498.º, n.º 3, do Código Civil, decisão oposta, que julgue improcedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela DD - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”.


7. A DD - Companhia de Seguros, S.A., vem apresentar também contra-alegações, concluindo o seguinte:

“1. A qualificação do recurso ora interposto pelo Recorrente como recurso de revista, ao abrigo dos artigos 629.º, n.º 2 alínea d) e 671.º do CPC, é inexacta uma vez que se está perante uma situação de “dupla conforme” que, nos termos conjugados do artigo 671.º, n.º 3 e 672.º do CPC, só admite, em abstracto, recurso de revista excepcional.

2. Não obstante, e ainda que o presente recurso fosse interposto a esse título, sempre se imporia a sua rejeição, por não estarem verificados os pressupostos enunciados no artigo 672.º, n.º 2 do CPC.

3. Mesmo que assim não se entendesse e se considerasse admissível o presente recurso - o que só por mera cautela de patrocínio se concebe - a verdade é que o seu objecto está necessariamente limitado às concretas questões em relação às quais se verifica um conflito entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido.

4. Ora, na medida em que o acórdão fundamento não versa sobre a eventual interrupção do prazo de prescrição por força da pendência da fase de inquérito em processo-crime, o douto Tribunal ad quem nunca poderia conhecer dessa questão, o que importa a rejeição parcial do presente recurso.

5. De resto, sempre se diga que os desígnios de uma melhor aplicação do direito impõem a prevalência da solução alcançada pelo douto tribunal de 1.ª instância e confirmada pelo douto acórdão recorrido, no sentido de os créditos hospitalares prescreverem no prazo especial de três anos previsto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, assim se afastando a aplicação do regime geral previsto no artigo 498.º do CC.

6. Com efeito, tal como evidencia o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 18-05-2010, proc. n.º 3355/08.5TBFUN.L1-1 (GRAÇA ARAÚJO), ao aprovar o regime específico para a cobrança dos créditos referentes aos cuidados de saúde prestados por instituições e serviços integrados no SNS, cfr Decreto-Lei n.º 218/99,de15 de Junho, designadamente estabelecendo no seu artigo 3.º um prazo especial de prescrição, o legislador pretendeu afastar, nesta sede, a aplicação do regime geral constante do Código Civil.

7. Antes consagrando um regime de cobrança diferenciado, especificamente adaptado à realidade das instituições e serviços integrados no SNS, pelo que falecem os argumentos aventados no sentido de aquele diploma ser dotado de uma suposta vocação harmonizadora dos prazos de prescrição.

8. Por outro lado, e uma vez que a ratio do artigo 498.º, nº 3 do CC se prende com a especial gravidade do facto ilícito e das lesões sofridas pelo ofendido, não é de aceitar que uma instituição hospitalar pública possa ou deva beneficiar do alargamento de prazo concedido, na medida em que, enquanto estabelecimento integrado no serviço nacional de saúde, se limitou a prestar um serviço para o qual se encontra legalmente obrigado, não suportando por isso um verdadeiro dano, directo e imediato, que justifique o aproveitamento daquela prerrogativa.

9. De resto, e ainda que se trate de matéria que extravasa o objecto do presente recurso, sempre se diga que, pelos motivos anteriormente expostos, improcede também a argumentação aduzida pelo Recorrente, no sentido de merecer aplicação o disposto no artigo 306.º, n.º 1 do CC, assim se concluindo que a contagem do prazo prescricional do seu crédito apenas se iniciou com a notificação do despacho de acusação proferido em sede de processo-crime a 29-03-2012.

10. Com efeito, desconsidera, por mais uma vez, a natureza especial do regime prescricional previsto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, ignorando que, ao estabelecer que o prazo de prescrição teria início na “data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem”, o legislador pretendeu afastar a aplicabilidade do regime geral do Código Civil, em especial, da norma do mencionado artigo 306.º.

11. Por fim, sempre se refira que a jurisprudência dominante de que o Recorrente se socorre para sustentar a referida interrupção do prazo de prescrição, assenta no pressuposto de que o lesado tenha manifestado, ainda que de forma indirecta, a sua intenção de exercer o seu direito à indemnização contra o lesante, o que aquele não fez, já que a sua intervenção em sede processual penal se limitou à dedução de pedido de indemnização cível contra a Ré BB – Companhia de Seguros S.A.

12. Assim, não só o ora Recorrente não manifestou a intenção de fazer valer o seu direito contra a ora Recorrida, como demonstrou a sua vontade em demandar tão-somente a Ré BB – Companhia de Seguros S.A, não obstante ter o Ministério Público suscitado a hipótese de concorrência de culpas no âmbito do próprio despacho de acusação.

13. Nesta medida, considerando que a data da cessação da prestação de cuidados de saúde remonta a 01-06-2010 e não se tendo verificado qualquer outra causa de interrupção do prazo de prescrição prevista no artigo 323.º do CC, resta concluir, como bem o fez o douto tribunal de 1.ª instância e o douto Tribunal a quo, que o terminus do prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho se verificou a 01-06-2013, pelo que o direito do ora Recorrente se encontrava prescrito à data da propositura da presente acção, a saber, 01-09-2015”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, posto que verificada a admissibilidade do recurso, é a de saber se deve julgar-se procedente, in casu, a excepção peremptória de prescrição, invocada pela ré / ora recorrida DD - Companhia de Seguros, S.A.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. O acidente a que se reportam os presentes autos — intentados a 1.09.2015 –, ocorreu no dia 28.04 2010 e nele foram intervenientes veículos segurados em ambas as rés seguradoras;

2. Do referido acidente, decorreram para um dos passageiros - o EE – de veículo nele interveniente, lesões corporais;

3. Na sequência do referido em 2., o autor veio a prestar assistência médica e medicamentosa a EE, o qual veio, porém. a falecer a 1.06.2010;

4. O acidente ocorrido em 28.04.2010, em razão das suas causas e consequências, deu origem a processo de inquérito de natureza criminal, vindo, em 29.03.2012, a nele ser proferido despacho de acusação;

5. Em 4.03.2015, foi a ré DD - Companhia de Seguros, S.A., notificada — no âmbito de instrumento de notificação judicial avulsa — da pretensão indemnizatória do Centro Hospitalar AA, E. P. E.

6. No seguimento do referido em 4., veio o Centro Hospitalar AA, E. P. E., a deduzir, no processo crime, pedido de indemnização contra a seguradora do veículo conduzido pelo arguido/acusado, a ré BB – Companhia de Seguros, S.A.;

7. Não obstante o referido em 6., foram as partes civis remetidas, a pedido, para os tribunais civis, ao abrigo do artigo 82.°, n.º 3, do Código de Processo Penal.


O DIREITO


Da questão prévia da admissibilidade de recurso

Como se disse, o recorrente interpõe o presente recurso de revista ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d) do CPC e, subsidiariamente, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, als. a), b), e c), do CPC. Cabe, então, analisar da sua admissibilidade nos termos invocados a título principal.

Dispõe-se no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC que “[i]ndependentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso (…) [d]o acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”. Para que o presente recurso seja admissível é, assim, preciso que se verifiquem os requisitos especialmente referidos, ou seja, a impossibilidade de recurso unicamente por motivos estranhos ao valor da alçada da Relação e a contradição de acórdãos[2].

Sustentando a admissibilidade da revista (cfr. conclusões I a XI das alegações) e, em particular, a existência de uma oposição nos termos exigidos pela norma, o recorrente invoca como Acórdão fundamento o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.09.2007, Proc. 0733811[3], onde se afirmou que “[o] DL nº 218/99, de 15.06, visando a cobrança dos créditos referentes aos cuidados de saúde, não contém um regime substantivo de responsabilidade civil, mas, antes, um regime processual para o aludido fim. Emergindo o crédito hospitalar de crime de ofensas à integridade física do assistido, o respectivo prazo prescricional não pode deixar de ser o previsto, para a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, no art. 498º, nº3, do CC, tido em conta o disposto nos arts. 118º, nº1, al. c) e 143º, ambos do C. Penal”.

Imediatamente se vê que o referido Acórdão está em oposição frontal com o Acórdão proferido pelo Tribunal recorrido relativamente a uma questão essencial, já que se entendeu, diversamente, neste último, que o regime especial do DL n.º 218/99, de 15.06., porque especial, afasta a aplicação do regime aplicável, em geral, à prescrição do direito de indemnização no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos. Afirma-se aí, precisamente, que “[o] art. 3.° do DL n.° 218/99, de 15-06, ao dispor que os créditos relativos à prestação de cuidados de saúde, por parte de instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, prescrevem no prazo de três anos, contados da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem, estabelece um regime especial quer quanto ao prazo de prescrição dos mesmos, quer quanto ao momento a partir do qual tal prazo é contado. Em razão do referido [] e em sede de prescrição de créditos relativos à prestação de cuidados de saúde (ainda que decorrentes de lesões sofridas em acidentes de viação), por parte de instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, não há que lançar mão do disposto no art° 498.°, do CC”.

Não há, assim, qualquer dúvida de que a revista é admissível por via normal, ao abrigo do artigo 629.º, n.º 1, al. d), do CPC, ficando prejudicada a apreciação, pela Formação a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do CPC, da admissibilidade da revista por via excepcional.

Justifica-se ainda esclarecer que, contrariamente ao que alega a recorrida (cfr. conclusões 1 a 4 das contra-alegações), sendo este um caso em que o recurso é sempre admissível [cfr. artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC], é irrelevante a conformidade das duas decisões (como, aliás, claramente decorre do artigo 671.º, n.º 3, do CPC: “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”) [4], devendo ser apreciada a única questão que é suscitada e que está presente no conflito de julgados: se o regime geral da prescrição do direito de indemnização decorrente de responsabilidade por factos ilícitos é ou não inaplicável, procedendo ou improcedendo a excepção de prescrição.


Da excepção peremptória de prescrição

Decorre das alegações de recurso (cfr. conclusões XII a XXXIX das alegações), essencialmente, que o recorrente entende que o DL n.º 218/99, de 15.06., estabelecido, em especial, para a “cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestado” (cfr. artigo 1.º, n.º 1, do DL n.º 218/99, de 15.06.) não afasta a aplicabilidade do regime estabelecido, em geral, para a prescrição do direito de indemnização no âmbito da responsabilidade civil por factos ilícitos. Pretende, em suma, o recorrente que o prazo de prescrição do seu direito seja, in casu, objecto da extensão prevista no artigo 498.º, n.º 3, do CC e da “interrupção contínua ou continuada” ao abrigo do artigo 306.º, n.º 1, do CC.

Como é sabido, a prescrição, tradicionalmente considerada como uma causa de extinção das obrigações, confere ao devedor o poder de se recusar a cumprir[5] e está regulada, em geral, nos artigos 300.º a 327.º do CC. Ela “tem a natureza de excepção, com base na qual o devedor poderá recusar, legitimamente, o cumprimento de uma obrigação[6].

O instituto serve interesses diversos: a probabilidade de ter sido feito o pagamento; a presunção de renúncia do credor; a consolidação de situações de facto; a protecção do devedor contra a dificuldade de prova do pagamento; a necessidade de segurança jurídica e certeza dos direitos; o imperativo de sanear a vida jurídica de direitos praticamente caducos; e, finalmente, a exigência de promover o exercício oportuno dos direitos e a sanção da inércia ou da negligência injustificada do credor. O que sucede nesta última hipótese, é que “[a] passividade [do credor] sugere que já não está interessado na invocação do direito, por isso se considera que, em tais casos, deixa de merecer tutela jurídica[7]. Em conformidade com isto, entre os princípios gerais que informam o instituto da prescrição conta-se o princípio de que o prazo de prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido[8] e o princípio de que a prescrição não deve correr se o credor não tem possibilidade de agir (agere non valenti non currit praescriptio)[9], consagrados, respectivamente, nos arts. 306.º e 321.º do CC[10].

A prescrição do direito de indemnização decorrente de responsabilidade por factos ilícitos está regulada no artigo 498.º do CC, preceituando-se logo no n.º 1 que o prazo geral de prescrição do direito de indemnização é de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete. Este é um prazo relativamente curto, o que bem se compreende, uma vez que “se decorre muito tempo sobre os factos, aumenta o risco de a prova, mormente a testemunhal, ser mais difícil e incerta [11]. Estabelece-se, no entanto, uma ressalva na hipótese de o facto ilícito configurar crime, dispondo-se no n.º 3 que “[s]e o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”.

Como este não é um qualquer terceiro mas sim um hospital público, há que dar atenção ao DL n.º 218/99, de 15.06. (alterado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30.12.), que regula a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados. Este constitui, indiscutivelmente, uma lei especial relativamente às disposições gerais sobre prescrição e sobre prescrição do direito de indemnização decorrente de responsabilidade por factos ilícitos[12]. Terá sido estabelecido, porventura, com o intuito de assegurar o financiamento das entidades hospitalares integradas no Serviço Nacional de Saúde[13]. Mas isso não significa necessariamente o afastamento de todas as normas que regulam, em geral, o exercício do direito de indemnização.

Diz Karl Larenz que “sempre que as consequências jurídicas das proposições jurídicas concorrentes são entre si compatíveis, trata-se de saber se as consequências da norma especial só complementam, nos termos da intenção reguladora da lei, a norma mais geral, a modificam, ou, ao invés, a devem substituir no seu âmbito de aplicação. Esta é uma questão de interpretação (teleológica e sistemática). Só quando as consequências jurídicas se excluem é que a relação lógica d especialidade conduz necessariamente ao afastamento da norma mais geral, já que no caso contrário s norma especial não teria qualquer âmbito de aplicação[14].

Trata-se de um problema de confluência de regulações, que se resolve descobrindo como se intersectam as normas da lei especial e as normas da lei geral, o que pressupõe a análise do alcance e do fim da lei especial. A aplicabilidade das regras gerais só deve ser definitivamente afastada quando da lei especial – ou do escopo da lei especial – resulte algum impedimento a isso.

Começando pela leitura do preâmbulo do diploma, que antecede o articulado, verifica-se que o objectivo desta lei especial é a “procura[] [de] meios rápidos e eficazes de cobrar as dívidas hospitalares”, justificada pela consciência da “[maior importância] [das] receitas próprias dos serviços e estabelecimentos de saúde”.

Relativamente à natureza e ao alcance das medidas, diz-se que “[]a perspectiva [é a] de simplificar os procedimentos, mas sem afastar os princípios gerais de direito relativamente ao reconhecimento e execução dos direitos” e que “[se] entendeu proceder à alteração das regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares”. Ilustra-se com o “estabelec[imento] [de] uma regra sobre formulação do pedido em processo penal, com o dever de notificação oficiosa, para que as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde possam reclamar os seus créditos, concretizando assim o princípio da economia processual”[15]. Deduz-se que as medidas contidas no diploma são eminentemente processuais, sendo mesmo algumas designadas assim pela lei (cfr. artigos 5.º a 8.º do DL n.º 218/99, de 15.06.) [16].

Em particular quanto à prescrição estabelece-se, no artigo 3.º do DL n.º 218/99, de 15.06., que os créditos prescrevem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem.

Relativamente ao facto relevante para o início da contagem do prazo, é evidente que esta norma não é compatível com o disposto no n.º 1 do artigo 498.º do CC. Ambas regulam este aspecto do prazo e estabelecem coisas diversas: enquanto nesta se estabelece que o prazo de três anos começa a contar-se da data do conhecimento do direito à indemnização naquela estabelece-se que ele começa a contar-se da data da cessação da prestação dos serviços[17]. É inegável que o legislador pretendeu criar uma regra especial para a cobrança das dívidas hospitalares, adequada ao propósito de maximizar a eficácia desta cobrança. A solução não pode deixar de ser, portanto, a prevalência da regra especial.

No que respeita, no entanto, a outros aspectos do prazo, nada se dispõe no DL n.º 218/99, de 15.06. O legislador não terá tido a intenção de regular exaustivamente o prazo de prescrição mas apenas a de consagrar algumas especialidades. Encontrar-se-á entre elas alguma razão para afastar a ressalva contida no n.º 3 do artigo 498.º do CC?

Olhando de novo para o DL n.º 218/99, de 15.06. – e para o escopo do DL n.º 218/99, de 15.06. –, nada mostra que tenha sido intenção do legislador atribuir à regra contida no artigo 3.º o carácter de regra absoluta ou de regra que não suporta os desvios que é habitual encontrar na lei geral. Estes radicam nas necessidades de tutela dos interesses do titular do direito, pelo que não seria razoável entender que decaem automaticamente perante o propósito especial do DL n.º 218/99, de 15.06. Mas veja-se mais de perto um destes desvios – a ressalva do n.º 3 do artigo 498.º do CC[18].

A razão de ser do n.º 3 do artigo 498.º do CC é a necessidade de adaptar o pedido de responsabilidade civil à acção penal, considerando os casos em que, por força do princípio da adesão[19], aquele pedido é deduzido no contexto desta última. Não faria sentido, de facto, que o direito do titular à indemnização civil (a exercer no processo criminal) pudesse ser afectado pela prescrição quando estivesse ainda a decorrer o prazo de prescrição do procedimento criminal, que, em certos casos, é mais longo do que o fixado no n.º 1 do artigo 498.º do CC.

Por isso existe hoje alargado consenso, na jurisprudência, quanto à inaplicabilidade da norma na hipóteses de exercício de direito de regresso (rectius: “direito de reembolso”, na expressão de Brandão Proença[20]), seja pela seguradora contra o lesante / seu segurado[21], seja pela entidade empregadora do lesado contra a seguradora do lesante[22]. A seguradora / entidade empregadora é uma entidade distinta do lesado e o seu direito não é um direito de indemnização em sentido próprio mas um direito distinto, que promana da sub-rogação dela (normalmente por força da lei) nos direitos do lesado [23] [24].

Sucede que o caso dos autos não opõe a seguradora ao lesante ou a entidade empregadora do lesado à seguradora do lesante.; opõe, sim, o hospital à seguradora do lesante. O direito do hospital encontra o seu fundamento normativo no n.º 2 do artigo 495.º do CC, na parte em que ele se refere à indemnização dos estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima.

É incontestável, em suma, que o direito do hospital é um verdadeiro e próprio direito de indemnização[25], não valendo portanto, no que respeita a este direito, os argumentos favoráveis à exclusão imediata da extensão do prazo de prescrição do artigo 498.º, n.º 3, do CC[26].

Acontece que o direito de indemnização do hospital tem por fonte um facto ilícito que configura a prática de crime (ofensas à integridade física ou mesmo homicídio negligente). Basta olhar para os factos provados e logo se vê que o acidente, em razão das suas causas e das suas consequências, deu origem a processo de inquérito de natureza criminal, na sequência do qual veio a ser proferido o despacho de acusação de fls. 33 a 37 (cfr. facto provado sob o ponto 4.)[27].

Mas, para compreender integralmente a posição do hospital, é preciso convocar ainda o disposto no artigo 6.º do DL n.º 218/99, de 15.06.

Este, com a epígrafe “[f]ormulação de pedido em processo penal”, tem seguinte teor:

1. As instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde podem constituir-se partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação de cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas”.

2. Para os efeitos previstos no número anterior, o despacho de acusação ou, não o havendo, o despacho de pronúncia é oficiosamente notificado às instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, para, querendo, deduzirem o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias”.

Ao contrário do que possa parecer, o artigo 6.º do DL n.º 218/99, de 15.06., não vem dar às entidades integradas no Serviço Nacional de Saúde uma faculdade de opção entre a dedução do pedido indemnizatório no processo crime ou em acção cível , quando o facto gerador da indemnização configure crime – não vem consagrar, numa palavra, a “adesão facultativa”.

Se assim fosse, haveria uma diferença assinalável e absolutamente injustificada entre os poderes processuais destas entidades e os do ofendido / lesado principal[28].

Como é sabido, quando o facto ilícito gerador da responsabilidade civil configure a prática de crime, o ofendido / lesado principal está, em princípio, sujeito ao princípio da adesão. Segundo este princípio, “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei” (cfr. artigo 71.º do CPP).

Apesar de, aparentemente, consubstanciar uma restrição, a verdade é que dela resultam diversos benefícios. Alguns são de natureza processual e relacionam-se com certos interesses públicos como a economia processual, a uniformidade de julgados e a celeridade na realização da justiça; outros são de natureza substantiva e revertem para o titular do direito, como o arbitramento oficioso da reparação dos danos, “quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham” (cfr. artigo 82.º-A, n.º 1, do CPP) e a garantia da indemnização pelo Estado em caso de condenação na prática de crime, “sempre que não puder ser satisfeita pelo agente” (cfr. artigo 130.º, n.º 1, do CP).

Pelas mesmas razões que justificam a sujeição do ofendido / lesado principal ao princípio da adesão, também as entidades hospitalares, quando sejam titulares de um direito de indemnização fundado na prática de ilícito criminal, estão – têm de estar – impedidas de propor a acção em separado, nos tribunais cíveis.

Em contrapartida desta restrição, também elas têm – têm de ter – o poder de deduzir o pedido indemnizatório no processo crime. O artigo 6.º do DL n.º 218/99, de 15-06., deixa isto muito claro, desempenhando duas funções: a primeira, de criar as condições para o exercício daquele poder (ao estabelecer, no n.º 1, que as entidades podem constituir-se partes civis no processo penal); a segunda, de facilitar o exercício daquele poder (ao determinar, no n.º 2, que o despacho de acusação ou, não o havendo, o despacho de pronúncia é oficiosamente notificado às entidades).

Ficam, assim, aquelas entidades habilitadas a “acompanhar” o ofendido/ lesado principal, tendo, do mesmo modo que ele, a possibilidade de deduzir o pedido indemnizatório directamente contra o lesante no processo crime e usufruindo das vantagens, já referidas, que se associam a tal posição processual.

Estando o hospital nesta posição processual, que é a mesma do ofendido / lesado principal, faz sentido que o “acompanhe” nos “benefícios” do prazo legalmente previstos para o exercício do direito de indemnização neste tipo de circunstâncias.

Faz sentido, em primeiro lugar, que, tal como acontece com o prazo do ofendido / lesado principal, o prazo do hospital seja objecto da extensão prevista no artigo 498.º, n.º 3, do CC. Os requisitos de aplicabilidade da norma estão preenchidos e a extensão – pode comprovar-se – é justificada, estando presente a necessidade que ela satisfaz (a necessidade de adaptar o pedido de responsabilidade civil à acção penal, considerando os casos em que, em resultado do princípio da adesão, aquele pedido é deduzido no contexto desta última).

Faz sentido, em segundo lugar, que, tal como acontece com o prazo de que dispõe o ofendido / lesado principal, o prazo de que dispõe o hospital se considere interrompido, nos termos do artigo 361.º, n.º 1, do CC, até ao proferimento e à notificação do despacho de acusação, atendendo a que só com isto se torna possível o exercício do direito[29]. Se não veja-se.

O princípio plasmado no artigo 306.º, n.º 1, do CC impõe que o prazo de prescrição só comece a correr quando o direito puder ser exercido. Tratando-se, como se disse atrás, de um dos princípios gerais da prescrição, não está em causa, exactamente, saber se ele tem aplicação ao caso. As necessidades de tutela que justificam esta regra fazem-se, naturalmente, sentir independentemente de quem seja o titular do direito de indemnização, sendo, em qualquer caso, desrazoável que o prazo se iniciasse antes de o sujeito ter a possibilidade de exercer o seu direito. Está, sim, em causa saber a partir de que momento deve considerar-se que o recorrente tinha o poder de exercer o direito contra a recorrida. Só se poderá responder à questão quando se compreender de que forma ele é afectado pelo princípio da adesão.

Como já se disse e é sabido, quando o facto ilícito configura crime, o titular do direito a indemnização fica sujeito, em regra, ao princípio da adesão, vigorando, no ordenamento jurídico português, um princípio de adesão obrigatória mitigado por excepções (cfr. artigos 71.º e 72.º do CPP). Significa isto que a adesão do pedido civil ao processo penal é normalmente obrigatória (normalmente, o sujeito fica obrigado a deduzir o pedido indemnizatório no processo penal) e, excepcionalmente, facultativa (excepcionalmente, não existe aquela obrigação, podendo o sujeito deduzir o pedido indemnizatório, em separado, nos tribunais cíveis).

Os casos em que é permitido ao sujeito deduzir o pedido indemnizatório nos tribunais cíveis encontram-se taxativamente elencados no artigo 72.º do CPP, devendo rejeitar-se qualquer hipótese de ver no artigo 6.º do DL n.º 218/99, de 15.06., a consagração de um desvio à adesão obrigatória.

Como já se disse, a norma não dá àquelas entidades o poder de recorrerem ao tribunal civil se não quiserem deduzir o pedido indemnizatório no processo penal; dá-lhes o poder de, se quiserem, deduzirem o pedido indemnizatório no processo penal, sendo certo que lhes está – continua a estar-lhes – vedado deduzir o pedido em separado perante o tribunal civil.

Retirando deste raciocínio as consequências devidas para o caso em apreço, verifica-se que, por força do princípio da adesão, até à notificação do despacho de acusação, o hospital estava impedido de exercer o seu direito. Atendendo a isto, o prazo de prescrição só deve começar a contar-se só a partir desta data, conforme previsto no artigo 306º, n.º 1, do CC[30].

Tem, assim, razão o recorrente quando afirma que era necessário aguardar o desfecho do processo crime para deduzir o pedido cível, ao abrigo do principio da adesão, ocorrendo, até então, o que designa como “interrupção contínua ou continuada” do prazo[31] (cfr. conclusões XXXI e XXXII das alegações).

Tudo visto, é chegada a altura de enunciar a solução aplicável ao caso.


Tendo em consideração que:

- ao abrigo do artigo 498.º, n.º 3, do CC, em articulação com os artigos 118.º, n.º 1, al. c), e 143.º, n.º 1, do CP [32], o recorrente dispunha do prazo de cinco anos a contar da data do acidente (ocorrido em 28.04.2010, de acordo com o facto provado sob o ponto 1.);

- ao abrigo do artigo 306.º, n.º 1, do CC, este prazo esteve interrompido até à notificação do despacho de acusação ao recorrente (proferido em 29.03.2012, de acordo com facto provado sob o ponto 4.)

- ao abrigo do artigo 323.º, n.ºs 1 e 4, este prazo voltou a interromper-se por força da notificação da pretensão indemnizatória do recorrente à recorrida[33] (ocorrida em 4.03.2015, de acordo com facto provado sob o ponto 5.),

conclui-se que a acção (proposta em 1.09.2015, de acordo com o facto provado sob o ponto 4.) foi proposta com antecedência “confortável” relativamente ao termo do prazo, sendo, portanto, a excepção peremptória de prescrição improcedente.


A terminar, deve salientar-se que, como decorre de anteriores considerações sobre os requisitos do artigo 483.º, n.º 3, do CC, a circunstância de o despacho de acusação ter sido proferido, a final, apenas contra o sujeito que era segurado da Lusitânia e não também contra o sujeito que era segurado da Ageas é irrelevante para a conclusão acima enunciada. A única coisa que daí resulta é que o pedido de indemnização contra o último nunca poderia, evidentemente, ser formulado no processo penal, implicando sempre a propositura de uma acção nos tribunais cíveis, posto que dentro do prazo que nesse momento começou a correr – o que foi feito.



*

III. DECISÃO


Pelo exposto, concede-se provimento à revista e revoga-se o acórdão recorrido.



*


Custas pela recorrida.



*



LISBOA, 21 de Novembro de 2019


Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

________

[1] A mudança de denominação ocorreu em 2016.

[2] O que, por sua vez, pressupõe identidade da questão e identidade do quadro normativo em que ela foi apreciada nos dois arestos. Cfr. sobre os pressupostos especialmente exigidos nestes casos Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp, 61-62.

[3] Disponível em http://www.dgsi.pt.

[4] Esclarece Abrantes Geraldes (Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 59), que o disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC “não se confunde com o art. 672.º, n.º 2, al. c), que regula as situações de dupla conformidade decisória. Em primeiro lugar, porque os casos a que se reporta a revista excecional pressupõem precisamente que seja admitido, em abstrato, recurso de revista, quer em função do valor ou da sucumbência, quer em função da ausência de outro impedimento legal, sofrendo a revista apenas uma limitação – que não uma exclusão absoluta – por via da dupla conforme. Em segundo lugar, porque a al. d) tem aplicação mesmo quando o acórdão da Relação de que se pretenda recorrer tenha confirmado a decisão da 1.ª instância, do modo que, tratando-se de acórdão que esteja em contradição com outro acórdão (da Relação ou do Supremo), é admitida a revista sempre que esteja vedada por razões diversas das que emergem do n.º 1 do art. 629.º” (sublinhados nossos).

[5] Para a defesa da tese de que a prescrição não extingue o direito mas se limita a conferir ao beneficiário o poder jurídico de se recusar a cumprir cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, “Responsabilidade civil e prescrição”, in: Revista de Direito da Responsabilidade, 2019, pp. 761 e s. (disponível em http://revistadireitoresponsabilidade.pt/2019/responsabilidade-civil-e-prescricao-pedro-pais-de-vasconcelos/).

[6] Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, “Algumas questões sobre prescrição e caducidade”, in: AA.VV., Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume III, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 36-37.

[7] Cfr. Rita Canas da Silva, in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 1250.º), Coimbra, Almedina, 2017, p. 374.

[8] Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 278. Cfr. ainda Adriano Vaz Serra, “Prescrição e Caducidade”, in: Boletim do Ministério da Justiça, 1961, n.º 105, p. 190.

[9] Admitindo que um dos fundamentos do instituto é o objectivo de sancionar a inércia injustificada do credor, é lógico que ele deixe de correr, além das situações que o direito não possa ser exercido, sempre que circunstâncias particulares dificultem o seu exercício ou justifiquem aquela inércia. Cfr., neste sentido, Rita Canas da Silva, in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 1250.º), cit., pp. 379-370.

[10] Este princípio não é, naturalmente, exclusivo do Direito português, sendo a suspension in cases of impediment regulada em muitos outros ordenamentos jurídicos. Cfr. Reinhard Zimmermann, Comparative Foundations of European Law of Set-off and Prescription, Cambridge, Cambridge University Press, 2004, pp. 129 e s.

[11] Cfr. Ana Prata, in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, volume I (Artigos 1.º a 1250.º), Coimbra, Almedina, 2017, pp. 651-652.

[12] Explica João Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 2000, p. 95) que “[a]s normas especiais (ou de direito especial) não consagram uma disciplina directamente oposta à do direito comum; consagram todavia uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações” (sublinhado do autor). Também José Oliveira Ascensão (O Direito – Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-brasileira, Coimbra Almedina, 1993, p. 548) diz que “[u]ma regra é especial em relação a outra quando, sem contrariar substancialmente o princípio nela contido, a adaptar a circunstâncias particulares”.

[13] Cfr., neste sentido, Paulo Ramos de Faria, “A dispensa do ónus da prova e o direito constitucional a um processo equitativo (O caso das 'dívidas hospitalares'), in: Julgar Online, Dezembro de 2016, p. 35 (disponível em http://julgar.pt/a-dispensa-do-onus-da-prova-e-o-direito-constitucional-a-um-processo-equitativo/).

[14] Cfr. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991 (6.ª edição), p. 375

[15] Sublinhados nossos.

[16] Foi mais longe o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 13.09.2007 (Acórdão fundamento indicado pelo recorrente), ao concluir mais irrestritamente que “o aludido Dec.-Lei nº 218/99, visando a cobrança dos créditos referentes aos cuidados de saúde, não contém um regime substantivo de responsabilidade civil, mas, antes, um regime processual para o aludido fim”.

[17] Note-se que a duração do prazo é agora igual à fixada no artigo 498.º, n.º 1, do CC (três anos), residindo a especialidade do artigo 3.º, exclusivamente, na fixação de uma data diferente para a contagem deste prazo. Mas nem sempre foi assim. Durante a vigência do artigo 44.º do DL 46 301, de 27.04.1965, o prazo de prescrição durante era de quinze anos a contar do fim do último prazo para pagamento. Com o DL n.º 194/92, de 3.04. (antecessor directo do DL n.º 218/99, de 15.06.), este prazo passou a ser de cinco anos contados da data em que cessou o tratamento (cfr. artigo 9.º). Esclarecendo que a expressão “prestação de serviços”, usada no artigo do 3.º do DL nº 218/99 de 15.06., “abrange todo o processo assistencial médico e medicamentoso até o lesado alcançar a alta médica” e, portanto não estabelece, no que toca ao início da contagem do prazo da prescrição, um regime diferente do estabelecido no DL n.º 194/92 de 8.09., cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.04.2010, Proc. 484/07.6TBSRE.C1.S1 (sumário disponível em http://www.dgsi.pt). Cfr., ainda, com interesse sobre o facto relevante pata o inicio da contagem do prazo fixado no DL nº 218/99 de 15.06., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.09.99, Proc. JSTJ00040759 (sumário disponível em http://www.dgsi.pt).

[18] Sobre ela pronunciaram-se Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), cit., p. 504], dizendo que “[a] sujeição ao prazo de prescrição da lei penal só se verifica (…) se esta fixar um prazo mais longo. A prescrição do crime não importa, pois, necessariamente, a prescrição do direito à indemnização”.

[19] O princípio da adesão, consagrado no artigo 71.º do CPP, obriga a que “[o] pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime [seja] deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

[20] Cfr. Brandão Proença, “Natureza e prazo da prescrição do 'direito de regresso' no diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, in: Cadernos de Direito Privado, 2013, n.º 41, passim.

[21] Cfr., para dois exemplos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.2016, Proc. 645/12.6TVLSB.L1.S1, e de 3.07.2018, Proc. 2445/16.5T8LRA-A.C1.S1 (ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt).

[22] Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.04.2019, Proc. 2142/16.1T8PT.M-A.E1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).

[23] Cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2011, Proc. 1507/10.7TBPNF.P1.S1: "estas razões não colhem quando se está perante o direito de regresso da seguradora, realidade jurídica inteiramente distinta e autónoma em relação ao direito de indemnização do lesado; por isso mesmo é que no primeiro caso o prazo de prescrição se conta a partir da data do cumprimento da obrigação e no segundo do conhecimento do direito pelo lesado. Porque o direito de regresso nada tem que ver com a fonte da obrigação que a seguradora extinguiu ao cumprir o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil celebrado com o lesante não se justifica, em tal eventualidade, o alongamento do prazo de prescrição previsto no nº 3 do artº 498º, antes devendo prevalecer o interesse da lei na rápida definição da situação e na consequente punição da inércia da seguradora num lapso de tempo mais curto, que é o do nº 2 do mesmo preceito”. O raciocínio é integralmente subscrito, por exemplo, no Acórdão, mais recente, do Supremo Tribunal de Justiça de 3.07.2018, Proc. 1507/10.7TBPNF.P1.S1.

[24] A questão foi também abordada na doutrina. Destaca-se Brandão Proença (“Natureza e prazo da prescrição do 'direito de regresso' no diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”, cit., pp. 29 e s.), em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2012, Proc. 56/10.8TBCVL-A. C1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt). De forma clara e bem fundamentada, em que convoca o autor, além de numerosa jurisprudência e doutrina, argumentos ponderosos, como os trabalhos preparatórios da lei, e conclui pela inaplicabilidade do prazo (excepcional) previsto no n.º 3 do artigo 498.º do CC ao direito exercido pela seguradora Cfr. ainda Ana Prata [in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, volume I (Artigos 1.º a 1250.º), cit., p. 653], que justifica a mesma solução dizendo, simplesmente, “pois a razão da extensão do prazo não procede relativamente à seguradora”.

[25] Repare-se, pois, em primeiro lugar, que o artigo 495.º do CC é uma norma da disciplina da responsabilidade civil por factos ilícitos. Repare-se, depois, que a epígrafe do artigo 495.º do CC é “[i]ndemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal”. Repare-se, por fim, que do n.º 3 do artigo 495.º do CC resulta claríssimo que aquilo que se regula na norma é um “direito de indemnização” e, se fosse necessário, isso seria confirmado tanto pelo disposto no n.º 1 como pelo disposto no n.º 3, dizendo-se neste último que “[t]êm igualmente direito de indemnização (…)”.

[26] Não se acompanha, portanto, o Tribunal a quo quando diz que “o princípio da adesão não é in casu aplicável à demandante/apelante, porque não é a mesma lesada (ou a vítima/ofendida), ou ,dito de uma outra forma, a titular do direito imediatamente afectado pelo ilícito criminal que integra o objecto do processo crime”.

[27] Note-se, de qualquer forma, que a extensão prevista no artigo 498.º, n.º 3, do CC não depende de o processo penal ter sido ou vir a ser iniciado, mas apenas da qualificação dos factos. Cfr., neste sentido, Ana Prata, in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, volume I (Artigos 1.º a 1250.º), cit., p. 653, e, ainda, Gabriela Páris Fernandes, in: AAVV, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2019, p. 379. Cfr., na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.11.1999, Proc. 99B831 (disponível em http://www.dgsi.pt), onde se diz: “o acolhimento do prazo mais longo de prescrição criminal, nos termos previstos no n. 3 do artigo 498 do C.Civil, depende da qualificação do facto ilícito como criminoso e da gravidade dos danos sofridos pelo lesado”.

[28] Designa-se assim o titular dos interesses que a lei penal pretende especialmente proteger com a previsão de certo tipo legal de crime.

[29] Comentando o artigo 498.º, n.º 3, do CC, esclarece Gabriela Páris Fernandes (in: AAVV, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, cit., p. 379) que o preceito, “verificados os seus pressupostos, considera aplicável o prazo de prescrição do procedimento criminal: quanto aos demais aspectos do regime da prescrição, designadamente os que se referem ao momento em que a contagem do razõ se inicia e às causas de interrupção e suspensão do prazo, continua a ser aplicável a lei civil” (sublinhados da autora).

[30] Note-se, de qualquer forma, que tem sido defendido neste Supremo Tribunal de Justiça que, mesmo nos casos previstos no artigo 72.º do CPP, em que a lei não impõe a obrigação de formular o pedido cível no processo penal, o prazo fica interrompido durante a pendência do inquérito assistindo ao titular do direito de indemnização a faculdade de aguardar o termo deste (o arquivamento ou a dedução da acusação), se não quiser recorrer logo à acção cível em separado. Cfr., neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2004, Proc. 03B4084, de 13.10.2009, Proc. 206/09.7YFLSB, e, mais recentemente, de 22.05.2018, Proc. 2565/16.6T8PTM.E1.S2 (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt). Destaca-se parte do sumário contido no primeiro aresto: “[o] pedido de indemnização civil em separado, admissível quando verificados os casos contemplados no art. 72.º do CPP, constitui uma faculdade concedida ao lesado que ele pode exercer verificada qualquer das situações a que alude o art. 72.º do CPP; essa opção ficaria inviabilizada em muitos casos se a pendência do inquérito não impedisse o início do decurso do prazo de prescrição (art. 306.º, n.º 1, do CC) implicando entendimento contrário desrespeito do princípio da adesão contemplado no art. 71.º do CPP. Assim sendo, com o desfecho do inquérito, ou por arquivamento ou por acusação, inicia-se o prazo de prescrição, pois, a partir desse momento, o não exercício da acção cível em separado ou conjuntamente, conforme os casos, é da responsabilidade do lesado, não existindo, assim, razão para não se considerar terminado o impedimento posto ao decurso do prazo prescricional”. Sempre se diga que é concebível, no entanto, um raciocínio distinto para atingir a mesma solução. Este, sem desatender os interesses do titular do direito, é mais consentâneo com a letra e a teleologia da lei. A premissa de que se parte é a seguinte: não sendo, nestas circunstâncias, rigorosamente impossível o exercício do direito, conforme se exige no artigo 306.º, n.º 1, do CC, não pode aplicar-se esta norma. Entendendo-se, porém, que o exercício do direito, nestas circunstâncias, é inexigível, considera-se aplicável a suspensão, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo, ao abrigo do artigo 321.º, n.º 1, do CC.

[31] Esta é uma expressão muita usada na jurisprudência, para referir o princípio geral segundo o qual a prescrição não deve correr se o credor não tem possibilidade de agir. Cfr, por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2004, Proc. 03B4084 (disponível em http://www.dgsi.pt).

[32] O teor do artigo 118.º, n.º 1, al c), do CP é: “[o] procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos (…): [c]inco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos”. O teor do artigo 145.º, n.º 1, do CPC é: “[q]uem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

[33] Tratava-se de uma notificação judicial avulsa, que tem aptidão para interromper a prescrição (cfr. artigo 323.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 256.º do CPC). A questão foi decidida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/98, de 26.03.1998, Proc. 519/97 (disponível em Diário da República – I Série-A, n.º 109, de 12.05.1998, pp. 2182 e s.), cujo segmento uniformizador é: “[a] notificação judicial avulsa pelo qual se manifesta a intenção do exercício de um direito, é o meio adequado à interrupção da prescrição desse direito, nos termos do nº 1 do artigo 323º do Código Civil”. Aplicando este entendimento cfr., por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.11.2013; Proc. 7624/12.1TBMAI.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).