Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
194/08.7TBAGN.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE
EXAME HEMATOLÓGICO
FORÇA PROBATÓRIA
OBTENÇÃO DE PROVA
DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
RECUSA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS/ PROVAS - DIREITO DA FAMÍLIA - FILIAÇÃO/ ESTABELECIMENTO DA PATERNIDADE
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTRUÇÃO DO PROCESSO - RECURSOS
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 344.º, N.º2, 350.º, N.º2, 357.º, N.º2, 1871.º, N.º1, AL. E) E N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 519.º, N.ºS 1 E 2, 712.º, N.º6, 713.º, N.º 7, 721.º-A, N.º1 AL. C) E N.º3, 722.º, N.º2, 726.º, 729.º, N.ºS 2 E 3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11-1-2001, PROCESSO N.º 3385/00, 7ª SECÇÃO, SUMÁRIOS, 47º;
-DE 23.09.2008, EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - A questão essencial que o presente recurso encerra é a de se saber se a Relação decidiu bem ao proceder à inversão do ónus da prova a que alude o art. 344.º, n.º 2, do CC, derivado da circunstância de o exame biológico não se ter realizado por culpa do réu, se bem que, pelo facto da acção ter sido julgada procedente com base na presunção de paternidade a que alude o art. 1871.º, n.º 1, al. e), do CC, sem que o réu tivesse logrado afastar esta presunção, o tema deixe de ter interesse relevante.
II - Hoje os exames hematológicos aos pretensos pai e filho dão um grau de certeza sobre a filiação, quando esta se verifique, próximo dos 100%, excluindo-a quase completamente quando não ocorra. Assim, nas acções de investigação da paternidade esses exames constituem elementos importantes e até essenciais para a descoberta da verdade, secundarizando as outras provas, designadamente a testemunhal, patentemente muito mais falível e aleatória.
III - No caso, o réu, ao faltar ao exame injustificadamente, inviabilizou a sua realização, obstaculizando, assim, a que a verdade da sua paternidade em relação ao autor fosse cientificamente investigada e determinada. Recusou-se, assim, a colaborar para a descoberta da verdade, pelo que se justificou a inversão do ónus da prova a que alude o n.º 2 do art. 344.º.

Decisão Texto Integral:                                      

           Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                   

                        I- Relatório:

                        1-1- AA, residente na Rua ........., nº .. em Arganil, propôs a presente acção de investigação de paternidade com processo ordinário contra BB, residente em Gândara, Arganil, pedindo a condenação do R. a reconhecer que teve um relacionamento amoroso com a sua mãe, durante os anos de 1965 a 1967 pelo menos, que teve a sua mãe exclusivamente relações sexuais e de cópula completa com o R. durante o período legal de concepção e que das relações sexuais de cópula completa, regulares e assíduas, que o R. tinha com a sua mãe, resultou a gravidez desta e que o seu nascimento, em 16 de Abril de 1967, sobreveio no termo da gravidez de sua mãe, CC, na sequência do trato sexual mantido entre esta e o R. pelo que este é seu pai, o que será judicialmente reconhecido.

                                                Prosseguiu o processo com contestação do R. e réplica do A.

                      

                        Foi proferido o despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e se organizou a base instrutória.

                        Na indicação dos meios de prova que se seguiu, o A. requereu «exame hematológico para comparação de ADN entre o A. e o R. com o objectivo de confirmar se o réu é ou não pai do autor».

                        Este requerimento foi admitido por despacho de fls.65.

                        O R., devidamente notificado, por duas vezes não compareceu no IML para a realização do mesmo, numa delas foi julgada justificada a falta, na outra foi a falta julgada injustificada (despacho de fls.133, que não foi objecto de qualquer impugnação judicial).

                        Foi designada data para julgamento.

                        A audiência foi, porém, suspensa (acta de fls.157) para apreciação de um requerimento do R. invocando a excepção de caducidade do direito do A. por terem decorrido, à data da propositura da acção, muito mais de dez anos sobre a sua maioridade e ter entrado em vigor a Lei nº 14/2009, que alterou a redacção do art.1817° do C.Civil, pronunciando-se o A. pela inaplicação desta lei ao presente processo e pela inconstitucionalidade do mesmo normativo legal, em nome da defesa do (seu) direito à identidade.

                        Em despacho de fls.161 a 164, datado de 11 de Fevereiro de 2010, o tribunal rejeitou a aplicação da nova redacção do art.1817º nº 1 do C.Civil ao caso e declarou improcedente a invocada excepção de caducidade do direito de acção do A.

                                               Foi marcada nova data para a realização da audiência de julgamento.

                        Concluído o julgamento, com respostas aos factos indagados nos termos do despacho de fls. 202, foi proferida a sentença que julgou a acção procedente por provada, declarando o A. como filho do R., BB, ... sendo seus avós paternos os pais deste último.

                                                1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreram os herdeiros habilitados do R. BB (entretanto falecido) de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo-se aí, por acórdão de 18 de Outubro de 2011, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

                                              1-3- O MP inconformado, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 280°, nº 1, al. a) e nº 3 da Constituição da República, por ter o acórdão recusado «a aplicação da norma que consta das disposições conjugadas do art.1817°, nº 1 do C.Civil, na redacção introduzida pelo art. 1° da Lei nº14/2009, de 01-04 e do art. 3° desta lei, declarando a inconstitucionalidade da mesma norma, por violação do princípio da confiança acolhido no art. 2° da CRP», recurso que foi admitido por despacho de fls.311.

                        Porém, o Tribunal Constitucional, em decisão sumária de fls. 422 e 423, de 27 de Janeiro de 2012, decidiu negar provimento ao recurso.

                        Os herdeiros habilitados do R. BB «verificando os pressupostos da alínea c) do nº 1 do art. 721º A do C.P.Civil, isto é, contradição de julgados com o acórdão da Relação de Guimarães, de 17.4.2008, transitado em julgado», interpuseram recurso de revista excepcional (fls.315).

                        Remetidos os autos à Formação de Juízes a que alude o art. 721º A nº 3 do C.P.Civil, por acórdão de 24-5-2012, foi admitida a revista excepcional.

                                               Os recorrentes alegaram, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

                        1ª- No caso dos autos, o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância com o mesmo fundamento.

                        2ª- Isto é, o Tribunal fez inverter o ónus da prova dos factos da al. e) do art. 1871º do CC. em virtude de o R. se ter recusado a realizar o exame biológico.

                        3ª- O mesmo é dizer que as instâncias decidiram que cabe ao R., faltoso ao exame, provar que não teve relações com a mãe do A. no período legal da concepção.

                        4ª- O presente acórdão da Relação de Coimbra, onde tal se decidiu, está em contradição com o Acórdão da Relação de Guimarães de 17 de Abril de 2008.

                        5ª- Aí se decidiu que a recusa do pretenso pai em realizar o exame biológico é livremente apreciada pelo Tribunal, não tendo nenhum efeito cominatório.

                        6ª- Isto é, a recusa em realizar o exame é apenas passível da sanção probatória prevista na 2ª parte do nº 2 do ali. 519° do CPC, ou seja, a sua livre apreciação pelo Tribunal.

                        7ª- Trata-se de questão de particular e óbvia relevância social, por se colocar no caminho da descoberta da verdade da paternidade biológica.

                        8ª- Atenta a contradição existente, no domínio da legislação aplicável, documentada em jurisprudência vária e particularmente nos dois acórdãos em confronto, a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

                        9ª- Existe identidade entre os dois arestos, qual seja a apreciação da mesma questão (valor da recusa ao exame biológico), a qual foi julgada pelo acórdão recorrido em contradição com o acórdão fundamento, como se extrai da leitura deste, do qual se junta cópia.

                        10ª- Não é de somenos importância decidir por uma via ou por outra.

                        11ª O acórdão recorrido, invertendo o onus probandi, fez recair sobre o R. a prova de que não teve relações com a mãe do A., em exclusividade para esta, no período legal,

                        12ª- quando a recusa do R. não tomou impossível a prova ao A. onerado com aquele ónus, nos termos do art. 18710 do CC.

                               13ª- Só porque as instâncias decidiram inverter o onus probandi é que o quesito 7° foi dado como provado e, mesmo assim, só em segunda instância.

                        14ª- Deverá, pois, o Supremo Tribunal pronunciar-se sobre a questão, proferindo jurisprudência uniforme que desonere o investigando da inversão do ónus da prova quando, como é o caso dos autos, não tome impossível a prova ao onerado (A.).

                        15ª- Para esta apreciação não é de somenos importância o excesso de pronúncia do Tribunal da Relação de Coimbra, ao dar como provado o quesito 7°, quando a resposta a este quesito não fazia parte do objecto do recurso e, em primeira instância, nem sequer ficou provado que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal da concepção.

                        16ª- Objecto esse que se encontra balizado pelas respectivas conclusões.

                        17ª- As respostas aos quesitos 4° a 7° deverão regressar à redacção dada pela 1ª instância, assim se suprindo a nulidade verificada.

                        18ª- Os recorrentes continuam a defender que o direito de acção do A. se encontra caducado, pelas razões e conclusões que expuseram na apelação, que aqui dão por reproduzidas e pelo doutamente decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional de 22.9.11.

                        19ª- O acórdão recorrido está também em contradição com o citado e recente Acórdão do TC, no que toca à constitucionalidade do art. 3° da Lei 14/2009.

                        20ª- Este douto Acórdão decidiu não julgar inconstitucional a norma do art. 1817°n° 1 do CC, na redacção da L. 14/2009, na parte em que prevê um prazo de 10 anos para a propositura da acção, após a maioridade ou emancipação do investigante.

                        21ª- Em conformidade e assim estando julgado pelo tribunal constitucional, deve ser declarada a caducidade do direito do A.

                        Pelo exposto:

                        Uma vez verificados os pressupostos do nº 1 do art. 721°-A do CPC, deve este Supremo Tribunal proferir decisão que fixe que o exame biológico de investigação de paternidade é um meio de prova entre outros, sendo a recusa em o realizar apreciada nos termos do nº 2 do art. 519° do CPC, ou seja, a sua livre apreciação pelo Tribunal.

                        Tudo com as legais consequências, quais sejam, a não inversão do ónus da prova dos factos do art. 1871 ° e) do CC e o regresso do julgamento da matéria de facto (mormente a resposta ao quesito 7°) à versão dada pela 1ª instância que presenciou toda a produção da prova.

                        O que implicará, necessariamente, a absolvição do R.

                        Também, em conformidade com a decisão do recente Acórdão do TC, que aqui serve também de fundamento, deve ser declarada a caducidade do direito do A..

                                                Não foram produzidas contra-alegações.

                                                Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                                                II- Fundamentação:

                        2-1- Ao presente processo deve aplicar-se as normas adjectivas decorrentes da reforma introduzida no processo cível, mais particularmente o regime de recursos do Dec-Lei 303/2007 de 24/8. Daí que existindo dupla conforme da decisão das instâncias e sem qualquer voto de vencido, o recurso de revista não seria, em princípio, admissível (art. 721º nº 3 do C.P.Civil). Contudo, no caso, foi admitido o recurso de revista excepcional pela Formação de Juízes a que alude o art. 721º A nº 3 do mesmo diploma com o fundamento estabelecido na al. c) do art. 721º A, isto é, por se ter considerado que o acórdão da Relação estava em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por outra Relação (de Guimarães), no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

                                                A questão divergente entre o acórdão da Relação proferido neste autos e o acórdão referenciado proferido na Relação de Guimarães, diz respeito à relevância, sob o ponto de vista probatório, da circunstância de o R., numa acção de investigação de paternidade, se recusar a realizar o exame hematológico requerido pela parte contrária.

                        O fundamento da revista excepcional aceite pela dita Formação, foi a enunciada contradição de julgados, pelo que só sobre esta questão este recurso deve incidir.

                        Serve isto para dizer que as outras questões levantadas pelos recorrentes nesta revista excepcional, como sejam a do excesso de pronúncia do Tribunal da Relação de Coimbra[1] e da contradição entre acórdãos do Tribunal Constitucional[2], não deverão ser conhecidas.

                        Fica-nos, assim, para apreciação e decisão a questão da relevância, sob o ponto de vista probatório, da recusa do R. em realizar o exame hematológico, mais particularmente se essa recusa deve gerar, ou não, a inversão do ónus da prova dos factos enumerados no art. 1871º do C.Civil.

                        2-2- As instâncias deram como assente a seguinte matéria de facto:

                        I- O A. nasceu no dia 16 de Abril de 1967 na freguesia e concelho de Arganil.

                         II- À data do nascimento do A., a sua mãe CC era viúva.

                         III- No seu assento de nascimento, o A. foi somente registado como sendo filho de CC, não tendo sido feita qualquer menção à paternidade.

                        IV- A mãe do A., que trabalhava na antiga Cerâmica de Arganil, conheceu o Réu, à data proprietário de uma empresa do ramo de carpintaria situada próximo do seu local de trabalho, tendo-se tornado íntimos entre si (resposta ao quesito 3º da Base Instrutória);

                        V- A mãe do A. manteve relações sexuais com o R. durante um período temporal a que se refere o quesito 7º (resposta aos quesitos 4º a 6º da Base Instrutória, com a alteração introduzida pela Relação);

                        Va- Durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor, a mãe deste manteve relações sexuais de cópula completa exclusivamente com o Réu (resposta ao quesito 7º conforme a alteração à matéria de facto introduzida na Relação).

                        VI- A própria mulher do R., já falecida, sabia do rumor público no sentido de que o A. era filho do R.. (resposta ao quesito 11º);

                        VII- Também na mesma altura, o R. conversava com a mãe do Autor, a qual morava na Barroca a cerca de 300 m da habitação e da fábrica daquele (quesito 14º);

                        VIII- Sempre o R. conviveu saudavelmente com todas as pessoas da Vila e especialmente com os vizinhos. (resposta ao quesito 15º);

                        IX- A esposa do R. era pessoa caridosa e amiga de fazer o bem, visitava e colaborava com várias instituições, como a casa do Gaiato e outras, visitando-as várias vezes por ano (resposta ao quesito 19º);

                        X- A imputação feita pelo A. ao R. através da propositura da presente acção, num momento em que o R., dada a sua avançada idade, se encontra já bastante fragilizado, física e psiquicamente, provocou nele forte abalo psíquico e moral (resposta ao quesito 20º). ------------

                        2-4- Na douta sentença de 1ª instância, para o que agora importa, considerou-se que o A. beneficia da presunção de paternidade a que alude o art. 1871º nº 1 al. e) do C. Civil (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem) já que provou de que foi praticado um acto sexual isolado com o investigado durante o período legal de concepção. Acrescentou-se que se deveria ter em atenção de que, ao contrário das presunções anteriores, em que há um juízo de forte probabilidade de o investigado ser pai, neste caso há somente uma possibilidade de o investigado ser o progenitor, assistindo a este afastar essa presunção (art. 350º nº 2), com base em “dúvidas sérias” que consiga suscitar sobre a sua alegada e presumida paternidade nessa base (nº 2 do citado art. 1871º). No caso vertente, resultou apurada a circunstância relevante de a mãe do A. ter mantido relações sexuais com o investigado BB no período temporal em que teve lugar a concepção do A., sendo que este não logrou o R. provar qualquer facto que tivesse virtualidades de beliscar tal presunção “não o fazendo seguramente o que resulta apurado e consta como facto X, a saber, que “a imputação feita pelo A. ao R. através da propositura da presente acção, num momento em que o R., dada a sua avançada idade, se encontra já bastante fragilizado, física e psiquicamente, provocou nele forte abalo psíquico e moral”, ou dos factos VIII e IX, a saber, que “sempre o R. conviveu saudavelmente com todas as pessoas da Vila e especialmente com os vizinhos” e que “a esposa do R. era pessoa caridosa e amiga de fazer o bem, visitava e colaborava com várias instituições, como a casa do Gaiato e outras, visitando-as várias vezes por ano””.

                        Por isso, não sendo afastada a presunção por parte do R., a acção procedeu.

                        Acrescentou-se que o R., por outro lado, sem justificação comprovada, recusou-se a submeter-se aos exames de sangue (depois de uma primeira falta que lhe foi justificada). Nos termos dos art. 519º, nº 2 segunda parte do C.P.Civil e art. 357º, nº 2 quando o tribunal aprecia livremente a prova, a possível recusa da parte vai relevar como princípio de prova. Aduziu-se depois ao Acórdão da Relação de Guimarães de 17-04-2008 que considerou que a recusa da realização do exame por parte do investigando é livremente apreciada pelo tribunal, só operando a inversão do ónus probatório se for injustificada e tornar impossível a prova ao investigante, situação que se considerou verificar no caso. Por isso se entendeu verificada a inversão do ónus da prova. Interrogou-se então “a que outra conclusão chegar senão essa quando, como no caso vertente, o R., culposamente, tiver tornado impossível a prova à parte onerada pelo ónus, de acordo com o disposto no art. 344º nº 2?”.

                        Assim concluiu-se, de acordo com o decidido no Acórdão deste S.T.J. de 23.09.2008, “que o R. nem ilidiu a presunção que sobre si investigado incidia, nem invertido o ónus da prova (da procriação biológica), algo logrou provar que afastasse a paternidade dele investigado em relação ao Autor”.

                        No douto acórdão recorrido, em relação à objecção dos recorrentes em relação ao quesito 7º[3] que, no seu prisma não resultaria provado, porquanto ao não realizar o exame, o R. não tornou a prova impossível, não se devendo aplicar o nº 2 do art. 344º do C.Civil, referiu-se não ser correcto este entendimento, porquanto o exame biológico, que o R. tornou impossível de realizar, face ao rigor e concludência próximos dos 100% que esses exames dão, resulta numa evidente falta de cooperação com a justiça, sendo que a omissão no comparecimento para a sua realização foi considerada injustificada por despacho transitado em julgado. Considerou-se, assim, ter sido legítima a inversão do ónus da prova a que alude aquela disposição.

                                             Salvo o devido respeito pela opinião contrária, o pretendido pelos recorrentes é absolutamente inconcludente, laborando em diversos equívocos.

                        Em primeiro lugar, a acção foi julgada procedente na 1ª instância, sem que o acórdão recorrido o tivesse desmentido, com base na presunção de paternidade a que alude o art. 1871º nº 1 al. e) do C. Civil[4], sendo que o R., a quem assistia afastar esta presunção com base em “dúvidas sérias”[5] sobre a sua alegada e presumida paternidade, não a logrou arredar. Com efeito, como nos parece claro, não é através das circunstâncias de facto que logrou demonstrar (designadamente as referidas acima sob os nºs VIII, IX e X) que o R. conseguiu afastar a presunção que contra si ocorre.

                        Significa isto que, mesmo que a alteração da matéria de facto não tivesse sido efectuada na Relação (principalmente a resultante da alteração da resposta ao quesito 7º), ainda assim a acção teria que proceder.

                        Por outro lado, a resposta ao quesito 7º não se baseou somente na inversão do ónus da prova decorrente da circunstância de o R. se ter recusado culposamente a efectuar o exame hematológico. Foram também valorizados depoimentos testemunhais, como se verifica pelo teor do aresto.

                        Evidentemente que isto já seria suficiente para tornar insubsistente a posição dos recorrentes, sabendo-se, como se sabe, que as decisões tomadas pela Relação em sede de matéria de facto são insindicáveis pelo Supremo (excepto nos casos excepcionais previstos nos arts. 722º nº 2 e 729º nº 3 – vide ainda arts. 712º nº 6 e 729º nº 2 do C.P.Civil).

                        É certo que a Relação também ponderou, para resposta ao quesito (7º), na inversão do ónus da prova a que alude o dito art. 344º nº 2, derivado da circunstância de o exame biológico não se ter realizado por culpa do R.

                        Será que a Relação decidiu bem ao tomar esta resolução?

                        Esta é a questão essencial que o recurso encerra, se bem que pelo facto de acção ter sido julgada procedente com base na presunção de paternidade a que alude o art. 1871º nº 1 al. e) do C. Civil, sem que o R. tivesse logrado afastar esta presunção, o tema deixe de ter interesse relevante.

                        Pese embora esta circunstância, não nos escusaremos a responder à interrogação.

                        Evidentemente que, por se tratar de assunto de direito (força probatória da dita omissão – art. 722º nº 2 do C.P.Civil -), este STJ tem aptidão para lhe responder. 

                        Nos termos do art. 519º nº 1 do C.P.Civil, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta de verdade. Acrescenta o nº 2 da disposição, com interesse para o caso, que se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa, sem prejuízo do preceituado no nº 2 do art. 344º do C.Civil.

                        Isto é, segundo este dispositivo, sucedendo a recusa da parte em colaborar para a descoberta da verdade, ocorrerá a inversão do ónus da prova a que alude o nº 2 do art. 344º.

                        Estabelece esta disposição que há inversão do ónus da prova “quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado”.

                        No caso dos autos, o R. não compareceu ao exame hematológico por duas vezes designado (requerido pela parte contrária), tendo sido considerada a primeira vez justificada a falta (fls. 87), mas a segunda injustificada por despacho transitado em julgado (fls. 133 a 135).

                        Actualmente, como é sabido, os exames hematológicos aos pretensos pai e filho dão um grau de certeza sobre a filiação, quando esta se verifique, próximo dos 100%, excluindo-a quase completamente quando não ocorra. Quer isto dizer que nas acções de investigação da paternidade esses exames constituem elementos importantes e até essenciais para a descoberta da verdade, secundarizando as outras provas, designadamente a testemunhal patentemente muito mais falível e aleatória.

                        Claro que o R. ao faltar ao exame injustificadamente, inviabilizou a sua realização, obstaculizando, assim, a que a verdade da sua paternidade em relação ao A. fosse cientificamente investigada e determinada.

                        Recusou-se, assim, a colaborar para a descoberta da verdade, pelo que se justifica a inversão do ónus da prova a que alude o nº 2 do art. 344º.

                        Neste sentido e em caso idêntico, exarou-se exemplarmente no acórdão deste STJ de 23-9-2008 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) que “é desnecessário – por demais evidente – o interesse que hoje revestem tais exames, pelo grau de quase absoluta certeza que tais meios de prova revelam neste tipo de acções. Estando os mesmos, na actualidade, expressamente admitidos no art. 1801º do CC. Devendo, nestas acções, ser cada vez menor o recurso à simples prova testemunhal, sempre falível - mais a mais tendo em conta o carácter em regra íntimo e a recato do relacionamento sexual entre humanos - em detrimento do uso dos exames científicos facilmente disponíveis e os quais, tendo em conta a competência e objectividade dos peritos que os efectuam e os avançados meios técnicos utilizados, lhes conferem elevado grau de idoneidade e de veracidade. Mal se compreendendo a recusa por banda dos investigados a tais exames que, de uma vez por todas, e em princípio, poderão bem deslindar a investigação a propósito efectuada. Custa, de facto, a aceitar – salvo razões que a razão humana deva acatar – que, tendo em conta o carácter tão sério e melindroso da investigação em causa – a da procriação de alguém que, no mínimo, merece o respeito de quem o gerou – que o investigado, a quem – com razão ou sem ela – é imputada a paternidade, decida, motu proprio, e sem, pelo menos aparentes razões, não se submeter à prova pericial, cujo resultado, em princípio, com a segurança exigível, tudo resolveria. Com isso obstaculizando, sem dúvida, a prova a efectuar pela autora… Resultando de tal recusa a violação do dever frontal para a descoberta da verdade, o qual é imposto pelo art. 519º do CPC…. Tendo tal recusa, obstaculizadora da desejada prova directa, o efeito de inversão do ónus da prova, tal como tem vindo este Tribunal a decidir – Acs do STJ de 22/1/02 (Afonso de Melo), Pº 02A1633, de 6/2/03 (Oliveira Barros), Pº 02B4335 e de 20/7/03, (Ponce Leão), Pº 04A1974, bem como P. Coelho e G. Oliveira, ob. cit., p. 235 e Lopes do Rego, ob. cit., p. 171 e ss.”.

                        Também no sentido da inversão do ónus da prova no caso de recusa injustificada do R. em submeter-se a exame hematológico, disse-se no acórdão deste STJ de 11-1-2001 (Pº nº 3385/00, 7ª secção, Sumários, 47º) que “é ilegítima a recusa do pretenso pai em apresentar-se a exame de sangue, por violação do dever de cooperação com a justiça, com o fundamento no seu medo das agulhas, receio de ver sangue e fobia aos hospitais, levando à inversão do ónus da prova, nos termos do art. 519º nº 2 do CPC”.

                        Quer isto dizer que o tribunal recorrido tomou posição correcta sobre o tema, pelo que a posição dos recorrentes, também aqui, é insubsistente.

                        Nos termos do art. 713º nº 7 e 726º do C.P.Civil, elabora-se o seguinte sumário:

                        A questão essencial que o presente recurso encerra é a de se saber se a Relação decidiu bem ao proceder à inversão do ónus da prova a que alude o art. 344º nº 2 do C.Civil, derivado da circunstância de o exame biológico não se ter realizado por culpa do R., se bem que, pelo facto de acção ter sido julgada procedente com base na presunção de paternidade a que alude o art. 1871º nº 1 al. e) do C. Civil, sem que o R. tivesse logrado afastar esta presunção, o tema deixe de ter interesse relevante.

                        Como é sabido, hoje os exames hematológicos aos pretensos pai e filho dão um grau de certeza sobre a filiação, quando esta se verifique, próximo dos 100%, excluindo-a quase completamente quando não ocorra. Assim, nas acções de investigação da paternidade esses exames constituem elementos importantes e até essenciais para a descoberta da verdade, secundarizando as outras provas, designadamente a testemunhal patentemente muito mais falível e aleatória.

                        No caso, o R. ao faltar ao exame injustificadamente inviabilizou a sua realização, obstaculizando, assim, a que a verdade da sua paternidade em relação ao A. fosse cientificamente investigada e determinada. Recusou-se, assim, a colaborar para a descoberta da verdade, pelo que se justificou a inversão do ónus da prova a que alude o nº 2 do art. 344º.

                                                III- Decisão:

                        Por tudo o exposto, nega-se a revista.

                        Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 16 de Outubro de 2012

Garcia Calejo (Relator) *
Helder Roque
Gregório Silva Jesus

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[1] Assunto que deveria ter sido, oportunamente, submetido à apreciação do Tribunal da Relação, como resulta dos arts. 668º nº 3 (a causa não admitia recurso ordinário) e 716º do C.P.Civil.
[2] Questão que sempre deveria ter sido submetida, em momento oportuno, ao Tribunal Constitucional.
[3]  Onde se perguntava se “durante o período legal da concepção, ou seja, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor, a mãe deste manteve relações sexuais de cópula completa exclusivamente com o Réu
[4] Disposição que refere que “a paternidade presume-se …e) Quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe no período legal da concepção”.
[5] Neste sentido estabelece o nº 2 do mesmo art. 1871º que “a presunção considera-se ilidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado”. Vide ainda sobre o ilisão das presunções legais o disposto no art. 350º nº 2.