Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1714/16.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
COISA MÓVEL
DANO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DETERMINAÇÃO DO VALOR
DECLARAÇÃO UNILATERAL
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
DIREITO COMERCIAL – SEGUROS / SEGUROS CONTRA RISCOS.
Doutrina:
-Arnaldo Costa Oliveira, Lei do Contrato de Seguro, Anotada, p. 129 e ss.;
-F. Sanches Calero, Ley de Contrato de Seguro, p. 466 e ss.;
-Francisco Rodrigues da Rocha, Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, p. 53 a 55;
-José Vasques, Contrato de Seguro, p. 211, 216 e 306;
-Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 2.ª edição, p. 802 e 803.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º 3 E 682.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 439.º, N.º 1.
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO (RJCS), APROVADO PELO DL N.º 72/2008 DE 16/04: - ARTIGOS 100.º, N.ºS 2 E 3, 128.º, 130.º, N.ºS 1 E 3, 131.º, N.º 1, 132.º E 134.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 08-06-2017, PROCESSO N.º 7087/15.0T8STB.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 5232/13.9TBMTS.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - Sem prejuízo para acordo em contrário, o valor da indemnização a pagar pelo segurador ao segurado (seguro de danos sobre coisas) não está necessariamente vinculado ao valor declarado pelo tomador do seguro.

II - O valor dos bens a segurar resulta, salvo acordo em contrário, de mera declaração unilateral do tomador do seguro, não integrando qualquer cláusula contratual vinculativa para o segurador.

III - Embora o tomador do seguro deva declarar com exatidão todas as circunstâncias que interessem ao julgamento a fazer pelo segurador quanto à aceitação ou não aceitação do risco, não existe um dever geral de verificação dessa exatidão por parte do segurador.

IV - É ao segurado, e não ao segurador, que cabe a prova da ocorrência do sinistro e do valor das coisas à data do sinistro.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA demandou, pelo Tribunal da Comarca de Lisboa (Lisboa-Instância Central) e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, BB, S.A., peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de €91.237,88, acrescida de juros de mora, bem como no pagamento da quantia de €5.000,00, e ainda do montante, a determinar posteriormente, a título de custos de proteção jurídica.

Alegou para o efeito, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de seguro (Multiriscos Habitação), nos termos do qual ficaram cobertos a casa que indica e, nomeadamente em caso de furto qualificado ou roubo, também o respetivo recheio comum da propriedade da Autora, bem como certos objetos especiais.

Sucede que veio a ocorrer um furto na residência segura, tendo a Autora sido desapropriada dos objetos seguros que discrimina, que totalizavam o valor de €91.237,88.

A Ré recusa-se, porém, a indemnizar esse prejuízo sofrido pela Autora.

Acresce que o comportamento da Ré causa à Autora dano não patrimonial, que deve ser ressarcido com a compensação de €5.000,00.

E, atentas as diligências judiciais que a Autora teve de efetuar, deve ser acionado o regime de proteção jurídica previsto na apólice e na lei, de sorte que a Ré deve ainda indemnizar a Autora pelos encargos por esta suportados a título de proteção jurídica.

Apresentou-se a contestar CC, S.A., concluindo pela improcedência da ação.

Disse, em síntese, que o sinistro não ocorreu nos termos em que foi participado, razão pela qual nada tinha que indemnizar.

Seguindo a ação seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, sendo a Ré condenada a pagar à Autora a quantia, a liquidar subsequentemente, relativa ao valor dos objetos que a mesma sentença discrimina, acrescendo juros. No mais foi a Ré absolvida do pedido.

Inconformadas com o assim decidido apelaram ambas as partes.

A Relação de Lisboa julgou improcedente a apelação da Ré e parcialmente procedente a apelação da Autora, sendo a Ré condenada a pagar à Autora a indemnização de €23.548,16, acrescida de juros.

Ainda inconformada, pede a Autora revista.

Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões:

(Da interpretação das cláusulas do contrato de seguro)

A) O contrato de seguro celebrado entre A. Recorrente e R. Recorrida é regulado quer pelo que foi livremente contratualizado pelas partes, quer pelas condições particulares e pelas condições gerais aplicáveis a essa apólice, quer, subsidiariamente, pelas normas do Código Civil, das Cláusulas Contratuais Gerais e do regime jurídico do contrato de seguro (nº 1 do art. 405º do CC, art. 7º do DL 446/85, de 26 de Outubro e arts. 4º e 11 º do DL 72/08, de 16 de Abril);

B) Aquelas cláusulas são as condições da apólice do seguro, as quais podem e devem ser objeto de interpretação, como quaisquer outras declarações de vontade;

C) Tratando-se de CCG “são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contrato de cada contexto singular em que se incluam” (art. 1º do DL 446/85, de 25 de Outubro);

D) Tais regras de interpretação são as previstas nos art. 236º e ss do CC e, salvo quanto ao apuramento da vontade real comum das partes (nº 2 do art. 236º do CC), elas reconduzem-se à fixação do sentido normativo ou juridicamente relevante das declarações negociais, o que constitui matéria de direito, da competência do tribunal de revista, pois se essas regras não tiverem sido aplicadas ou tiverem-no sido incorretamente, ocorre então “violação da lei substantiva”;

E) Entende a A. que o acórdão pecou numa determinada parte de interpretação e aplicação das normas ínsitas nos arts. 236º e 237º do CC;

F) Este tribunal não esta impedido de conhecer do objecto do recurso, mesmo que seja necessário, a determinado ponto, que proceda à interpretação das condições da apólice contratada, uma vez que a fixação do sentido normativo ou juridicamente relevante de determinadas cláusulas constitui matéria de direito, da competência do tribunal de revista.

(Do critério da determinação do valor dos bens furtados)

G) Não concorda a A. aqui Recorrente com o acórdão na parte em que o mesmo determina o valor dos bens furtados;

H) Entende a A. Recorrente que o valor dos bens furtados deve ser calculado com base nos valores indicados na relação de bens cobertos pelo contrato de seguro, relação essa constante da listagem anexa à apólice aquando da celebração da mesma (cfr. ponto 4. da matéria provada), uma vez que:

- foram esses os valores contratados e aceites por ambas as partes aquando da celebração do contrato de seguro;

- foram esses os valores que foram determinantes para o cálculo pela R. do capital seguro;

- foram esses os valores que foram determinantes para o cálculo pela R. do prémio a pagar anualmente pela A ..

I) O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual (nº 1 do art. 405º do CC), tendo carácter supletivo as regras do presente diploma, sem prejuízo de algumas regras imperativas (art. 11 º do DL 72/08, de 16 de Abril);

J) Assim, cabe ao segurador prestar todos os esclarecimento exigíveis e informar o tomador do seguro das condições do contrato, nomeadamente, do âmbito do risco que se propõe cobrir, das exclusões e limitações da cobertura, do valor do prémio, das modalidades de pagamento, etc. (art. 18º do DL 72/08, de 16 de Abril);

K) E, cabe ao segurado, antes da celebração do contrato de seguro, declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador (art. 24º do DL 72/06, de 16 de Abril);

L) A R. Recorrida aceitou a cobertura do risco tendo em consideração a listagem dos bens e os valores aos mesmos dados pela A. Recorrente aquando da celebração do contrato de seguro, a A. Recorrente aceitou o prémio exigido como contraprestação por aquela cobertura, prémio esse adequado e proporcional aos riscos a cobrir;

M) Se dúvidas a R. Recorrida tivesse quanto ao valor dos bens furtados, teria de provar o valor desses bens à data do sinistro (valor real dos bens) - o que não fez (nº 2 do art. 342º do CC);

N) Foi formalizado o contrato - apólice de seguro - o qual inclui todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis (arts. 32º e 37º, ambos do DL 72/08);

O) Do conjunto destas condições gerais e particulares do contrato de seguro, e seguindo a norma ínsita no nº 1 do art. 236º do CC (segue a teoria objectivista): “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)”;

P) Só assim se cumprirá a norma ínsita no art. 16º do DL 446/85, de 25 de Outubro (CCG), que refere: (são proibidas as CCG contrárias à boa fé - art. 15º);

Q) Sendo a declaratária uma pessoa normalmente diligente, atendendo ao teor das condições especiais, da lista de bens segurados e seus valores anexos e das condições gerais da apólice, dos interesses de ambas as partes neste negócio (os objetivos de cada uma), deduz-se que a indemnização devida pelo furto dos objetos segurados deve corresponder aos valores declarados para efeito do seguro, ou seja, ao valor do capital do seguro relativo a esses objetos (mas não pode exceder o valor real desses bens na data do furto - nº 1 da cla. 130º do DL 72/08, de 16 de Abril - sem prejuízo do ónus de prova);

R) Tal interpretação seria ainda imposta nos termos e ao abrigo do art. 11 º do DL 446/08 (CCG) e do art. 237º do CC, uma vez que, se dúvidas houvesse na interpretação das cláusulas contratuais gerais, aplicar-se-ia o “sentido mais favorável ao aderente”, visto que só assim se alcançará um “maior equilíbrio das prestações”, ou seja, equilíbrio entre o prémio pago pela A. Recorrente desde 2004, com base no valor dos bens da listagem, e da indemnização pela perda dos respectivos bens;

S) Pelo que, entende a A. que o acórdão não interpretou nem aplicou corretamente ao presente caso as normas ínsitas nos seguintes artigos e cláusulas que ora se indicam: nº 1 do art. 405º, nº 1 do art. 236º e art. 237º, todos do CC, arts. 11 º, 18º, 24º, 32º, 37º e nº 1 do art. 130º do DL 72/08 e arts. 11 º, 15º e 16º do regime das CCG.

(Do ónus da prova do valor dos bens furtados)

T) “Àquele que invocar um direito, cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado” (nº 1 do art. 342º do CC);

U) A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (nº 2 do art. 342º do CC);

V) Este valor (acordado entre as partes aquando da celebração da apólice) é um facto constitutivo;

W) A indemnização pelo dano sofrido pelo sinistro não pode exceder o valor dos bens à data do furto, por forma a que o segurado não enriqueça sem causa, recebendo um valor que já não corresponda ao valor real (facto limitativo do direito);

X)Sucede que, in casu, a R. Recorrida, para além de não ter impugnado (não o podia fazer, sob pena de estar a litigar de má fé - art. 227º do CC) os valores dos bens indicados na listagem aquando da celebração do contrato de seguro, não contestou esses valores nos autos e, sobretudo, não fez prova - como lhe competia, atendo o disposto no nº 2 do art. 342º do CC - do valor real dos bens furtados à data do sinistro;

V) Assim, não tendo a R. Recorrida feito prova do valor real dos bens furtados à data do sinistro, existe uma presunção legal de equivalência entre o valor dos mesmos acordado entre as partes aquando da celebração da apólice e o valor real dos mesmos aquando do sinistro (art. 350º do CC);

Z) Esta presunção legal não foi ilidida pela R. Recorrida, mediante prova em contrário;

AA) Pelo que entende a A. que o acórdão violou o estabelecido nos arts. 342º e 350º, ambos do CC;

(Do incumprimento contratual por parte da Recorrida e do direito da Recorrente a ser indemnizada pelo sinistro)

BB) A obrigação é o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma determinada prestação, podendo as partes livremente (dentro dos limites da lei), o conteúdo positivo ou negativo da prestação, o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (art. 397º, nº 1 do art. 398º e nº 1 do art. 405º, todos do CC e art. 11 º do DL 72/08, de 16 de Abril);

CC) E, quando celebrado, o contrato deve ser pontualmente cumprido, devendo o devedor cumprir a obrigação a que está vinculado (nº 1 do art. 406º e nº 1 do art. 792º do CC);

DD) Caso o devedor falte culposamente ao cumprimento da obrigação, torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, a não ser que prove que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua (nº 1 do art. 798º e nº 1 do art. 799º, ambos do CC);

EE) Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente (art. 1 º do DL 72/08);

FF) A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro e até ao capital seguro (nº 1 do art. 128º do DL 72/08, de 16 de Abril);

GG) Tendo em atenção os valores indicados, a indemnização devida pela R. Recorrida à A. Recorrente ascende a € 57.000,00 (cinquenta e sete mil euros);

HH) Esta indemnização - que será por sucedâneo pecuniário (nº 2 do art. 566ºdo CC) -, não tem carácter especulativo, não constituindo um meio de proporcionar o enriquecimento do lesado, mas o segurador é obrigado a pagar a importância exacta em que foram cifrados os prejuízos realmente sofridos - (sem exceder o valor máximo ajustado);

II) Pelo que, entende a A. que o douto acórdão violou as normas ínsitas nos seguintes artigos: nº 1 do art. 397º, nº 1 do art. 398º, nº 1 do art. 40Sº, nº 1 do art. 40Sº, nº 1 do art. 792º, nº 1 do art. 798º e art. 799º, todos do CC, arts. 1 º e 11 º, ambos do DL 72/08.

Termina dizendo que deve ser revogado o acórdão recorrido, julgando-se a ação “totalmente procedente”.

                                                           +

A parte contrária contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

É questão a conhecer:

- O valor da indemnização de seguro devida pelo furto dos objetos.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De Facto

Estão provados os factos seguintes, como tal descritos (após a modificação feita operar aos factos dos pontos 12º e 13º) no acórdão recorrido:

1. No dia 1 de março de 2011, entre a autora e a ré foi celebrado um contrato de seguro do Ramo Multirriscos Habitação, titulado pela apólice n° MR...;

2. (...) e que foi objeto de alteração processada no dia 22 de agosto de 2014 e assinada no dia 16 de setembro de 2014;

3. Consta das condições particulares dessa apólice, além do mais, seguinte:

«1. TOMADOR DO SEGURO

Nome: AA

(...)

2. SEGURADO

Nome: O tomador do Seguro

(...)

3. DADOS DA APÓLICE

Data início: 22/08/2014

4. OBJECTOS A SEGURAR

4.1. CONTEÚDO

Capital Seguro: 149.516,84 €

Objectos Especiais existentes no Capital de Conteúdo(s): 79.243,93 €

Local do risco

Morada: RUA …, … - …l

Localidade - …,

Coberturas                                   Franquia Limite da indemnização

Furto qualificado ou roubo (...)              149.516,84€
(...)»;

4. Daquele contrato fazia parte integrante a relação discriminada dos bens seguros e que constitui fls. 15 e 16 dos presentes autos;

5. Consta das Condições Gerais da referida apólice de seguro, além do mais, o seguinte:

6. Entre as 17 horas e 30 minutos do dia 16 de setembro de 2014 e as 10 horas e 40 minutos do dia 19 de setembro de 2014, numa altura em que a autora se encontrava no estrangeiro, pessoa, ou pessoas, de identidade não apurada, introduziram-se no interior da residência da autora, sita na Rua …, nº …, em …;

7. Para o feito, escalaram um muro que delimita a residência da autora e dirigiram-se para as traseiras da mesma, situadas num piso inferior em relação àquele muro;

8. (...) onde entortaram as lâminas da portada de proteção da porta que permite o acesso entre a piscina exterior e uma sala situada na cava da residência;

9. (...) após o que partiram o vidro dessa porta, de forma a poderem destrancar o manípulo interno da mesma;

10. (...) assim se introduzindo no interior da residência;

11. (...) onde cortaram os fios do alarme que nela se encontrava instalado;

12. (...) e de onde retiraram objetos, nomeadamente:

Quadros: 2.000,00;

Carpetes: 4.843,16;

Serviço jantar Vista Alegre: 1.350,00;

Equipamentos som e imagem: € 3.528,00;

Consolas: 1.326,00;

Objetos em ouro incluindo relógio rolex daytona réplica - € 8.145,00; 

Objetos em prata: 2.320,00.

13. (...) cujo valor corresponde a € 23.548,16.

14. No mesmo dia 19 de setembro de 2014 foi participado à Polícia de Segurança Pública o furto na residência acima identificada, tendo tal participação dado origem:

- ao auto de notícia cuja cópia consta de fls. 148-149;

- ao relatório de inspeção judiciária cuja cópia consta de fls. 152-153;

15. Nessa inspeção judiciária não foram recolhos vestígios lofoscópicos;

16. O processo de inquérito a que essa participação deu origem foi arquivado por despacho o magistrado do Ministério Público ao qual foi distribuído, por não ter sido possível determinar a identidade do sujeito, dos sujeitos que se introduziram na residência da autora;

17. A autora participou o sinistro à ré, tendo esta, por carta de 18 de fevereiro de 2015, informado aquela que na sequência das diligências efetuadas para apuramento dos factos e respetivos danos referidos na participação, não iria proceder ao pagamento da indemnização reclamada por ter concluído que o sinistro não ocorreu nos termos em que foi participado.

As instâncias consideraram não provados os factos seguintes:

1. A pessoa, ou pessoas, que se introduziram na residência da autora retiraram do interior da mesma a totalidade dos objetos mencionados no art. 18º da petição inicial, com referência aos descritos em (1) a (88) das als. A) a E) do art. 14º da petição inicial;

2. O valor de cada de cada um dos objetos mencionados no art. 18º da petição inicial, com referência aos descritos em (1) a (88) das als. A) a E) do art. 14º da petição inicial, é o ali indicado;

3. A conduta da ré que culminou na informação contida na carta referida em 2.1.1.17, provocou na autora grande instabilidade psicológica;

4. (...) na sequência do que teve de recorrer a apoio especializado ao nível psicológico.

De Direito

A discordância da Recorrente resume-se à questão do valor a indemnizar relativamente aos bens de que foi comprovadamente desapropriada.

Segundo defende, tal valor deveria ser fixado em €57.000,00, correspondente ao valor por si indicado aquando da contratação do seguro, e que seria contratualmente vinculativo para a Ré.

Mas não pode ser assim.

Diga-se, desde logo, que apenas vem dado como provado que da residência da Recorrente foram retirados “quadros”, “carpetes”, “serviço jantar Vista Alegre”, “equipamentos de som e imagem”, “consolas”, “objetos em ouro incluindo relógio daytona”, “objetos em prata”. E não já que foram retirados todos os bens dessas categorias (“quadros”, “carpetes”, etc.) que a Autora indicou nos artigos 14º e 18º da sua petição inicial (concordantemente, vem dado como não provado que tenha sido subtraída “a totalidade dos objetos mencionados no art. 18º da petição inicial, com referência aos descritos em (1) a (88) das als. A) a E) do art. 14º da petição inicial”), e que agora indica na página 15 e 16 da sua alegação (e cujo valor atingiria os tais €57.000,00). O que significa que nunca poderia este Supremo Tribunal (sabido que, por regra, apenas conhece de direito e que se tem de cingir aos factos tal como julgados pelas instâncias: v. art.s 674º, nº 3 e 682º, nºs 1 e 2, ambos do CPCivil) assimilar uma coisa (os objetos retirados) à outra (os €57.000,00 indicados pela Autora).

Mas à parte isto, é de observar (e sem prejuízo para acordo em contrário, que, porém, não existe no caso vertente) que o valor da indemnização a pagar pelo segurador ao segurado (que é como quem diz, o valor dos bens seguros) não está necessariamente vinculado ao valor declarado pelo tomador do seguro. É o que decorre, entre outros, dos art.s 128º (a prestação do segurador está limitada ao dano efetivo, não ao valor declarado), 130º (o dano atendível é o do valor ao tempo do sinistro, não ao tempo da declaração), 131º (acordo quanto ao valor do interesse a indemnizar), 132º (sobresseguro: valor declarado e valor indemnizatório são coisas diferentes) e 134º (subseguro: idem) do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo DL nº 72/2008).

A propósito desta temática do valor dos bens, observa-se o seguinte no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Junho de 2017 (processo nº 7087/15.0T8STB.E1.S1, relator Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt), entendimento que não pode deixar de ser aqui subscrito:

«Prescrevia então o art. 439º, § 1º, do Cód. Com., que “a indemnização devida pelo segurador é regulada em razão do valor do objecto ao tempo do sinistro …”, embora já então se ressalvasse que tal regra não se aplicaria quando “o valor foi fixado por arbitradores nomeados pelas partes”, caso em que o “segurador não o pode contestar”.

Neste preceito aflorava o princípio indemnizatório, nos termos do qual a prestação devida pela seguradora ao abrigo de contrato de seguro de danos está, em regra, limitada pelo valor do dano decorrente do sinistro, sendo este, por seu lado, determinado pelo valor actualizado da coisa segurada e tendo como limite máximo o capital acordado.

Aquele princípio e normas encontram algum paralelismo no que agora consta dos arts. 128º e 130º, nº 1 (quanto à regra geral) e do art. 131º, nº 1, da RJCS (quanto à referida excepção), prescrevendo este último preceito que, “sem prejuízo do disposto no art. 128º e no nº 1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado”. No Preâmbulo do diploma refere-se precisamente que “apesar de o princípio indemnizatório assentar basicamente na liberdade contratual, de modo supletivo, prescrevem-se várias soluções, nomeadamente quanto ao cálculo da indemnização …”.

Como se disse, este preceito [art. 439º do Cód. Comercial] já reflectia o princípio indemnizatório que encontra toda a justificação em sede de seguro de danos, visando impedir uma situação de enriquecimento do segurado à custa da seguradora designadamente quando a ocorrência do sinistro determinasse um resultado mais vantajoso (cfr. F. Sanches Calero, em Ley de Contrato de Seguro, págs. 466 e segs).

Segundo Menezes Cordeiro, tal princípio encontra uma tripla justificação: no plano histórico, visa esconjurar o risco da usura; numa perspectiva significativa e ideológica propõe-se arredar a outorga de seguros com objectivos de lucro; e no plano social visa a redução dos casos de fraude e de enriquecimento ilegítimo (Direito dos Seguros, 2ª ed., págs. 802 e 803).

Essa justificação é desmultiplicada por Francisco Rodrigues da Rocha, na monografia Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, págs. 53 a 55, aludindo ainda às dificuldades das seguradoras de provar a existência de comportamentos dolosos do segurado ou a má fé deste na contratação ou ainda as consequências ao nível dos cálculos actuariais”.

Na realidade, o valor dos bens a segurar é, salvo acordo em contrário, declarado unilateralmente pelo tomador do seguro, não resultando por isso em uma qualquer cláusula contratual firmada com o segurador e para ele vinculativa. Nem podia resultar, visto que tal declaração nem sequer se traduz numa declaração de vontade, mas sim numa declaração de ciência. Como nos diz José Vasques (Contrato de Seguro, p. 211), “A declaração do risco é uma declaração unilateral do proponente, a qual é aceite pela seguradora e que se destina a avaliar o risco e a permitir o cálculo do prémio. A declaração do risco não é uma declaração de vontade, mas sim uma declaração de ciência, cujo cumprimento permitirá ao segurador aceitar ou recusar essa declaração”.

E embora o tomador do seguro deva declarar com exatidão todas as circunstâncias que interessem ao julgamento a fazer pelo segurador em termos de aceitação ou não aceitação do risco (nº 1 do art. 24º do supra citado Regime Jurídico), não existe um dever geral de verificação dessa exatidão por parte do segurador (v., a propósito, Arnaldo Costa Oliveira, Lei do Contrato de Seguro, Anotada, pp. 129 e seguintes).

Sobre este assunto diz o seguinte José Vasques (com referência à lei pregressa, mas trata-se de entendimento que vale inteiramente face à lei ora vigente), a pp. 216 e 306 da supra citada obra:

“Um dos elementos que o proponente deve transmitir à empresa de seguros é o valor do seguro. Este valor é susceptível de ser apurado segundo dois sistemas: o sistema do valor declarado e o sistema do valor acordado.

Quando o valor seguro seja apurado com base da sua mera declaração pelo proponente, sem que a seguradora exerça sobre essa declaração qualquer verificação estamos perante o chamado sistema do valor declarado.

Quando aquele valor seja fixado por arbitradores nomeados pelas partes (…) o sistema designa-se por valor acordado. Este sistema apresenta vantagens para o tomador do seguro, uma vez que o segurador não o pode contestar, sendo este o valor a ser tomado em consideração para efeitos da determinação do montante indemnizatório e não o que se apure por ocasião do sinistro. (…)

A determinação do valor do objecto seguro, far-se-á, na generalidade dos casos, aquando da superveniência do sinistro, já que a declaração do risco – em que se inclui a descrição e avaliação do objecto do seguro – é uma declaração unilateral do segurado que o segurador aceita sem verificação e só para o efeito de calcular o prémio e estabelecer o valor máximo da indemnização”.

De outro lado, e visto o disposto o nº 1 do art. 342º do CCivil, é ao segurado que cabe a prova da realidade do sinistro e do valor das coisas (que perdeu) à data do sinistro (v., a propósito, José Vasques, ob. cit., p. 306).

Concordantemente com o que vem de ser dito, cite-se aqui o acórdão deste Supremo Tribunal de justiça de 13 de Julho de 2017 (processo nº 5232/13.9TBMTS.P1.S1, relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt), onde se conclui (reproduz-se, por brevidade, apenas o sumário) que “I - No âmbito de uma ação em que se pretenda a indemnização pelos danos resultantes de um sinistro coberto por contrato de seguro, incumbe ao segurado o ónus de provar, além da ocorrência e circunstâncias do sinistro, a consequente perda ou dano dos bens segurados, como factos constitutivos que são do direito invocado, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC e como decorre, de resto, do artigo 100.º, n.º 2 e 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16-04. II - No domínio do seguro de coisas, o dano a atender é o valor do interesse seguro ou da privação do uso do bem à data do sinistro, dentro dos limites do capital de seguro, nos termos prescritos nos artigos 128.º e 130.º, n.º 1 e 3, do RJCS, salvo quando as partes tenham acordado o próprio valor do interesse seguro atendível (valor acordado), que, neste caso, será o devido, em conformidade com o disposto no artigo 131.º, n.º 1, do mesmo diploma. Por sua vez, à R. seguradora cabe provar os factos excludentes da sua responsabilidade, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do CC”.

Ora, assim sendo, como efetivamente é, resulta que o que a Recorrente afirma nas conclusões H), M), Q), R), V), X), Y), Z), GG) e HH)) carece de qualquer fundamento jurídico. Diferentemente do que sustenta a Recorrente, podia a Ré discutir (ademais quando é certo que até pôs em causa a real existência do sinistro), como fez, o valor real dos bens furtados, do mesmo modo que podiam as instâncias (trata-se de matéria relativa ao apuramento dos factos, da sua exclusiva competência) decidir sobre esse valor, sem qualquer sujeição ao valor declarado pela Autora aquando da contratação do seguro (ou decorrente da sua subsequente atualização). Do mesmo passo que era à Recorrente, e não à Ré seguradora, que competia provar o valor que os bens que lhe foram comprovadamente subtraídos tinham à data do sinistro.

O que se diz nas conclusões A), B), C), D), F), I), J), K), L), N), O), P), T), U), W), BB), CC), DD), EE), FF) está, em abstrato, correto. Simplesmente, trata-se aí de asserções jurídicas que nada adiantam ao caso. Pois que não está em questão a interpretação do sentido juridicamente relevante do contrato celebrado, da mesma forma que não está em questão nem a existência e o carácter vinculativo (para a Ré) do contrato de seguro nem o seu incumprimento (dentro dos limites fixados pela matéria de facto provada) por parte da Ré.

E pelo que fica dito, resta concluir que o acórdão recorrido não pode ser censurado (repete-se que a decisão que tomou quanto aos valores se insere exclusivamente no plano da matéria de facto, insindicável por este Supremo Tribunal de Justiça).

O que significa que não se mostram violadas as disposições legais citadas nas conclusões E), S), AA) e II).

Improcede pois o recurso.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas da revista.

               

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Lisboa, 9 de Janeiro de 2018

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo