Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5664/14.5T8ENT-A.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
TÍTULO TRANSLATIVO DE PROPRIEDADE
AGENTE DE EXECUÇÃO
Data do Acordão: 06/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PROCESSO ORDINÁRIO / PAGAMENTO / VENDA / VENDA MEDIANTE PROPOSTAS EM CARTA FECHADA / ADJUDICAÇÃO E REGISTO.
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS PROCESSUAIS / ACÇÕES EXECUTIVAS.
Doutrina:
-Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 10ª edição, 2007, p. 391;
-Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª Edição, nota 5 ao artigo 88, p. 435;
-Catarina Serra, O novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 2004, p. 42;
-Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, 2003, 3.º Volume, anotação 3 ao artigo 894º, p.582;
-Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 383;
-Mónica Jardim, A actual problemática a propósito do princípio da consensualidade, p. 3 a 8, in www.cenor.fd.uc.pt;
-Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, p. 404;
-Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva, anotada e comentada, 2015, p. 539.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 827.º, N.º 1.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 88.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-04-1999, PROCESSO N.º 99B185, IN WWW.DGSIPT.
Sumário :
I - Na venda em execução, o efeito translativo do direito de propriedade só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel (art. 827.º, n.º 1, do CPC).

II - Com a declaração de insolvência, suspendem-se, necessariamente, as execuções pendentes (art. 88.º, n.º 1, do CIRE).

III - Se, não obstante a declaração de insolvência, devidamente anunciada, a execução prossegue, deve declarar-se oficiosamente a nulidade dos actos praticados após aquela declaração, onde se inclui o título de transmissão do bem imóvel, entretanto emitido pelo agente de execução.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 5664/14.5T8ENT-A.E1.S1

            REL. 39[1]

                                                                       *

      ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

A Massa Insolvente de “AA, Lda.”, instaurou acção declarativa comum contra a “BB, S.A.”, pedindo a declaração de nulidade do título de transmissão de imóvel, junto como documento n.º 3, emitido pela Agente de Execução e, em consequência, a venda operada pelo mesmo.

            Alegou, em síntese, o seguinte:

          - A Ré interpôs, na qualidade de credora/exequente, processo executivo contra a empresa “AA, Lda.”, para cobrança de dívida no valor de 274.292,40 €;

            - No âmbito desse processo executivo foi realizada, no dia 6 de Janeiro de 2016, abertura de propostas em carta fechada relativamente ao prédio urbano penhorado, composto por edifício de dois pisos para comércio e serviços, localizado no Sítio ... ou ..., em ..., Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.º ... e inscrito no artigo 2501º da matriz;

            - A Ré apresentou uma proposta no valor de 135.000,00 € para a aquisição do referido imóvel, tendo este sido adjudicado à proponente em 06.01.2016, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 821º e n.º 2 do artigo 816º, do CPC, conforme documento n.º 1;

            - No dia 3 de Fevereiro de 2016 foi declarada a insolvência da executada “AA, Lda.”;

           - No dia 26 de Fevereiro de 2016, após a declaração e publicitação da insolvência da executada, foi emitido pela Agente de Execução do processo executivo, título de transmissão relativo ao mencionado imóvel, conforme documento n.º 3;

            - Atendendo à declaração da insolvência da executada, deveriam as diligências de venda ter sido suspensas, de acordo com o disposto no artigo 88º, n.º 1, do CIRE, passando o dito imóvel a fazer parte integrante do património da massa insolvente;

           - Assim, tendo o título de transmissão sido emitido em data posterior à da declaração de insolvência da executada, tal título está ferido de nulidade e, em consequência, é também nula a venda operada pelo mesmo.

A Ré deduziu contestação, na qual defende, essencialmente, que a transmissão da propriedade se consuma com a adjudicação do imóvel pelo que, tendo esta sido realizada em 06.01.2016 (um mês antes da insolvência da executada), a acção terá de improceder.

Foi proferido saneador-sentença, em que se decidiu julgar integralmente improcedente a acção.

Inconformada, interpôs a Autora recurso de apelação.

O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 21.12.2017, concedeu provimento ao recurso e decidiu:

a)   Revogar a Sentença recorrida;

b) Declarar a suspensão, nos termos do art.º 88º do CIRE, da instância executiva desde a prolação da Sentença que decretou a insolvência da Executada AA, Ld.ª;

c) Anular todas as diligências executivas praticadas no Proc. n.º 5664/14.5T8ENT-A após a data da prolação da Sentença que decretou a insolvência da Executada AA, Ld.ª, ou seja após o meio dia de 02 de Fevereiro de 2016, nelas se incluindo a emissão do título de transmissão de propriedade para a BB do prédio penhorado na Execução, pertença da Executada AA, Ld.ª, título esse que se considera nulo, nos termos do disposto no art.º 294º do Cód. Civ..

Agora, é a Ré BB que recorre para o STJ, concluindo as alegações da revista do seguinte modo:
1. Decidiu o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de que ora se recorre, a)   revogar a sentença proferida em 1ª instância; b) declarar a suspensão, nos termos do art.º 88º do CIRE, da instância executiva da execução n.º 5664/14.5T8ENT desde a prolação da sentença que decretou a insolvência da Executada AA, Ld.ª; c) anular todas as diligências executivas praticadas na supra identificada execução, após a data da prolação da sentença que decretou a insolvência, nelas se incluindo a emissão do título de transmissão de propriedade para a aqui recorrente do prédio penhorado na execução, pertença da executada AA, Ld.ª, título esse que se considera nulo, nos termos do disposto no art.º 294º do Cód. Civil.
2. A ora recorrente não pode conformar-se com esta decisão, pelas razões seguintes:
a) A decisão a proferir nos presentes autos não depende, exclusivamente, ou sequer, maioritariamente, da resposta à questão de saber em que momento se considera efectuada a venda executiva através da modalidade de venda em propostas por carta fechada.
b) Na verdade, o que importa determinar é em que se traduz a suspensão, imposta no art. 88º do CIRE relativamente a uma execução que se encontre pendente, questão que, salvo o devido respeito, o acórdão recorrido não apreciou.
c) E a resposta à referida questão será a que resulta da aplicação, ao caso em análise, do disposto no artigo 88º do CIRE, necessariamente conjugado com o princípio subjacente à regra do art. 793º do NCPC, que reproduz, sem alterações, o anterior art. 870º, na redacção do DL 226/2008, de 20.11. Assim,
d) Entre a data da abertura das propostas, que teve lugar em 06.01.2016 (ou seja, antes da declaração de insolvência, que ocorreu em 02.02.2016), e a emissão do título de transmissão, em 26.02.2016, a Srª Agente de Execução não praticou qualquer diligência executiva relativamente a bens da insolvente, antes se limitou a emitir o título de adjudicação, após a adquirente do imóvel ter demonstrado que havia procedido ao cumprimento das obrigações fiscais.
e) A propriedade do imóvel encontra-se registada a favor da ora recorrente desde 29.02.2016 (cfr. certidão predial junta à p.i. como doc. 7 – Ap. 542, de 2016/02/29).
f) Quanto à insolvência, a mesma foi inscrita no registo predial, provisoriamente, por natureza, em 23.02.2016 e, definitivamente, em 07.03.2016 (cfr. também a certidão predial junta à p.i. como doc. 7 – Ap. 155 de 2016/02/23 e Anotação oficiosa de 2016/03/07).
g) Importa, pois, determinar se a Srª Agente de Execução podia, legitimamente, não emitir o título de transmissão, não obstante se encontrarem reunidas todas as condições previstas no art. 827º do CPC, para o dever fazer. Ou seja, importa saber se a emissão do título de adjudicação deve ser considerado uma “diligência executiva”, para efeitos de aplicação do disposto no art. 88º do CIRE.
h) Afigura-se que a resposta a esta questão não poderá deixar de ser negativa: o título de transmissão sempre teria de ser emitido, na medida em que está em causa a finalização de um trâmite processual que se iniciou com a diligência de abertura das propostas, ocorrida antes da declaração de insolvência.
i) Na verdade, a suspensão da execução não implica que o bem vendido não deva ser entregue ao comprador, uma vez que conforme resulta do art. 793º do CPC, o propósito da suspensão é, apenas, impedir o pagamento aos credores.
j) Neste sentido decidiram já o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 18/10/2011 (proc. 4010/07.9YYPRT.P1), disponível em www.dgsi.pt) e, ainda, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 27.03.2014 (proc. 17748/12.0T2SNT-B.L1-8, igualmente disponível em www.dgsi.pt).
k) Assim sendo, não poderá deixar de se concluir que não houve qualquer irregularidade na emissão do título – que, consequentemente, não é nulo – uma vez que a Srª Agente de Execução se limitou a praticar acto indispensável para a conclusão de uma venda que ocorreu – ou, em qualquer caso, se iniciou – em momento anterior à insolvência.
l) Tão pouco devem ser declaradas nulas todas as diligências praticadas na acção executiva após a data da prolação da sentença de insolvência na medida em que, além da insolvente, eram também executados CC e DD, pelo que a execução sempre teria de prosseguir quanto a estes (cfr. art. 88º, n.º 1, do CIRE).
m) Finalmente, encontrando-se a instância extinta, por inexistência de bens dos executados, por sentença há muito transitada, a questão da suspensão da mesma mostra-se ultrapassada.

A Autora Massa Insolvente contra-alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso e batendo-se, se assim não for entendido, pela sua improcedência.

                                                           *

Sendo o objecto da revista balizado pelas conclusões da recorrente, as questões que importa apreciar, para além da questão prévia da inadmissibilidade do recurso, relacionam-se com o momento da verificação do efeito real da venda executiva e com a sua repercussão em execução pendente.

                                                           *


II. FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS

Os factos que interessam à decisão do recurso são os que constam do antecedente relatório, complementados com os que abaixo se enunciarão, documentalmente provados.

O DIREITO

a) A Questão Prévia

A inadmissibilidade do recurso de revista assenta, segundo a tímida argumentação da recorrida, no facto de a recorrente não identificar as normas jurídicas violadas pelo acórdão da Relação de Évora, o que se traduziria no incumprimento dos ónus previstos nos artigos 674º e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

É verdade que se estabelece nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639º, que as conclusões do recurso devem indicar as normas jurídicas violadas e o sentido com que, no entender do recorrente, essas normas deviam ser interpretadas e julgadas.

Apesar de a recorrente não ter feito, nas conclusões, alusão discriminada às normas jurídicas violadas, fê-lo, no entanto, na segunda parte do ponto (iii) das alegações, e apontou, a final, a interpretação que devia ter sido seguida pelo tribunal em relação à aplicação de algumas dessas normas, em especial a do artigo 88º do CIRE.

Mesmo que se considerasse não existir suficiente especificação das normas jurídicas violadas – hipótese que, no caso, não se concebe –, tal nunca poderia ser, sem mais, causa de inadmissibilidade do recurso, uma vez que tal deficiência era susceptível de ser suprida através do convite ao aperfeiçoamento previsto no n.º 3 do artigo 639º.

Improcede, por conseguinte, a questão prévia suscitada pela recorrida.


b) A venda executiva e o efeito translativo da propriedade

A venda executiva não deixa de ser uma venda, mas com algumas particularidades.

Na venda voluntária de bem imóvel, tanto os efeitos obrigacionais (obrigação da entrega da coisa e obrigação do pagamento do preço), como o efeito real (transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito) operam por mero efeito do acordo das partes (artigo 408º, n.º 1, 874º, 879º e 1317º, alínea a) do CC). Celebrado o contrato, produzem-se, imediata e instantaneamente, os efeitos reais e obrigacionais da venda.

Ao invés, na venda executiva de imóvel, só os efeitos obrigacionais se produzem em simultâneo com o acordo firmado entre o Estado (no exercício de um poder de jurisdição executiva) e o adquirente, consubstanciado na aceitação da proposta. Mas, como referem Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, com a aceitação da proposta o acto da venda não fica concluído[2].  O efeito translativo do direito de propriedade[3], assim como a eventual produção dos efeitos específicos da venda executiva[4], só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel.

Veja-se o que diz o artigo 827º, n.º 1, do CPC:

“Mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados.”.

Resulta desta disposição legal que é o título de transmissão emitido pelo agente de execução que vale como título de aquisição, sendo através dele que o adquirente fica investido na propriedade do bem ou na titularidade do direito. É com base nesse título que se efectua o registo da aquisição a favor do adquirente e se procede oficiosamente ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil (cfr. n.º 2 do citado artigo 827º do CPC).

Neste registo, afirmam Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo[5]: “sendo a venda constituída por um conjunto encadeado de actos, um verdadeiro acto complexo de formação sucessiva (composto por actos preparatórios, como a avaliação dos bens penhorados, a publicitação da venda, o acesso aos bens penhorados por parte dos interessados na venda, entre outros; actos de transmissão propriamente ditos, como a abertura de propostas, a deliberação sobre as propostas apresentadas e aceitação da proposta vencedora; e, finalmente, actos de conclusão do procedimento em que a venda se traduz, como, por exemplo, o cumprimento de obrigações tributárias a que a transmissão dá lugar, emissão do título de transmissão e cancelamento dos registos dos direitos que caducam com a venda executiva), parece-nos defensável a solução de que a mesma só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão”.

Também Amâncio Ferreira[6] entende deste modo:

“(…) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução, no que toca à venda por propostas em carta fechada, e com a outorga do instrumento da venda, no que respeita à venda por negociação particular. E para que aquele título seja emitido e esta outorga se efective, terá o adquirente de pagar previamente o preço devido e satisfazer as obrigações fiscais inerentes à transmissão (…)”.

           Evidentemente que, antes da reforma da acção executiva de 2003[7], considerava-se que o acto concretizador da venda era o despacho judicial de adjudicação, o qual só deveria ser proferido depois de se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, conforme determinava o artigo 900º[8].

Com a profunda reforma da acção executiva, a preparação e efectivação da venda executiva passou a caber ao agente de execução, o que levou à supressão do despacho judicial de adjudicação que constava da norma do n.º 2 do artigo 900º.

Por isso se concorda com a conclusão a que chegou o acórdão recorrido ao considerar que o legislador pretendeu incorporar no acto de emissão do título de transmissão do bem a própria adjudicação do bem ao proponente, ou seja, a transmissão do bem ao proponente para efeitos do disposto no art.º 824º do Código Civil.

Um claro sinal disso dimana do confronto da anterior alínea a) do n.º 1 do artigo 913º, com a actual alínea a) do n.º 1 do artigo 843º, a propósito do exercício do direito de remição no caso de venda por propostas em carta fechada.

Na anterior redacção dispunha-se que o direito de remição podia ser exercido  até ser proferido despacho de adjudicação dos bens ao proponente, dizendo-se agora que esse direito pode ser exercido até à emissão do título de transmissão dos bens para o proponente.

Cremos, pois, tal como se decidiu no douto acórdão recorrido, que o efeito real de transmissão do direito propriedade para o proponente se materializa na emissão, pelo agente de execução, do título de transmissão do bem, nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 827º do NCPC.

Isto não constitui violação do princípio da consensualidade, consagrado no artigo 408º, n.º 1, do CC, pois o que tal princípio apenas impõe é que o efeito real seja uma mera consequência do contrato, não que o referido efeito seja sempre uma consequência imediata e instantânea. Portanto, o efeito real verifica-se em virtude do mero contrato, mas nem sempre no momento do contrato, podendo ser diferido no tempo, por estar dependente de um acto complementar posterior[9].


c) A suspensão da execução e a anulação dos actos praticados

Vejamos agora, brevemente, qual a repercussão da conclusão tirada no destino dos autos.

O n.º 1 do artigo 88º do CIRE dispõe o seguinte:

“A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes”.

Destinando-se a liquidação do activo, no processo de insolvência, à satisfação dos créditos reclamados e verificados, a prévia suspensão das execuções pendentes contra o insolvente revela-se um meio eficaz para assegurar que os credores concorram em condições de igualdade a este pagamento, fazendo jus ao princípio par conditio creditorum.

A suspensão das execuções pendentes constitui, pois, um efeito necessário da declaração da insolvência e não um efeito possível, como nas hipóteses a que se refere o artigo 793º do CPC[10]. Por isso, ao contrário do que sucede com este último preceito, as consequências previstas no artigo 88º do CIRE, resultantes da declaração da insolvência, são automáticas e oficiosamente decretadas.

  Voltando ao caso dos autos, temos que, quando foi declarada a insolvência da sociedade “AA, Lda.” (02.02.2016 – cfr. doc. n.º 2 junto com a petição inicial), que foi devidamente anunciada em 05.02.2016, ainda não havia sido emitido o título de transmissão pelo agente de execução (26.02.2016 – cfr. doc. n.º 3 junto com a petição inicial).

Por conseguinte, logo que conhecida a declaração da insolvência, devidamente anunciada em 05.02.2016 (cfr. doc. n.º 2), deveria ter sido suspendida a execução, nos termos do artigo 88º, n.º 1, do CIRE.

Tendo, no entanto, prosseguido, haveria que declarar-se oficiosamente a nulidade dos actos praticados após a decretação da insolvência[11], neles se incluindo, necessariamente, a emissão do título de transmissão de propriedade para a BB do prédio penhorado na execução, pertencente à executada “AA, Lda.”.

                                                                       *

Uma palavra final a propósito das conclusões l) e m), cuja inconsequência salta à vista.

Se, como a recorrente diz na alínea m), está há muito finda a instância executiva quanto aos outros dois executados, por não lhes serem conhecidos bens, não se compreende o defendido na conclusão l).

                                                                       *


III. DECISÃO

Em conformidade, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

                                                                       *

Custas pela recorrida.

                                                                       *

                                                   LISBOA, 19 de Junho de 2018

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Salreta Pereira

___________________
[1] Relator:     Henrique Araújo
  Adjuntos:  Maria Olinda Garcia
                      Salreta Pereira
[2] “Código de Processo Civil Anotado”, 2003, anotação 3. ao artigo 894º, na página 582 do Volume 3º.
Entendimento contrário é defendido por Remédio Marques, em “Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto”, página 404, para quem o contrato fica concluído com a aceitação da proposta, ficando a transmissão da propriedade condicionada ao pagamento do preço e cumprimento das obrigações fiscais.
[3] Na venda em execução este efeito consiste na transferência para o adquirente dos direitos do executado sobre a coisa vendida - artigo 824º, nº 1, do Código Civil.
[4] Efeitos extintivo, registral, represtinatório e sub-rogatório -  Miguel Teixeira de Sousa, “Acção Executiva Singular”, pág 383.
[5] “A Acção Executiva, anotada e comentada”, 2015, página 539.
[6] “Curso de Processo de Execução”, 10ª edição, 2007, página 391.
[7] DL 38/2003, de 8 de Março, e DL 199/2003, de 10 de Setembro.
[8]  Veja-se, por exemplo, o acórdão do STJ de 14.04.1999, no processo n.º 99B185 (Conselheiro Miranda Gusmão), em www.dgsipt.
[9] Mónica Jardim, “A actual problemática a propósito do princípio da consensualidade”, páginas 3 a 8, em www.cenor.fd.uc.pt.
[10] Catarina Serra, “O novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2004, página 42.
[11] Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE Anotado”, 3ª Edição, nota 5 ao artigo 88, página 435.