Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
Descritores: | EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO TÍTULO TRANSLATIVO DE PROPRIEDADE AGENTE DE EXECUÇÃO | ||
Data do Acordão: | 06/19/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PROCESSO ORDINÁRIO / PAGAMENTO / VENDA / VENDA MEDIANTE PROPOSTAS EM CARTA FECHADA / ADJUDICAÇÃO E REGISTO. DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS PROCESSUAIS / ACÇÕES EXECUTIVAS. | ||
Doutrina: | -Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 10ª edição, 2007, p. 391; -Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª Edição, nota 5 ao artigo 88, p. 435; -Catarina Serra, O novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 2004, p. 42; -Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, 2003, 3.º Volume, anotação 3 ao artigo 894º, p.582; -Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 383; -Mónica Jardim, A actual problemática a propósito do princípio da consensualidade, p. 3 a 8, in www.cenor.fd.uc.pt; -Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, p. 404; -Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva, anotada e comentada, 2015, p. 539. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 827.º, N.º 1. CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 88.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 14-04-1999, PROCESSO N.º 99B185, IN WWW.DGSIPT. | ||
Sumário : | I - Na venda em execução, o efeito translativo do direito de propriedade só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel (art. 827.º, n.º 1, do CPC). II - Com a declaração de insolvência, suspendem-se, necessariamente, as execuções pendentes (art. 88.º, n.º 1, do CIRE). III - Se, não obstante a declaração de insolvência, devidamente anunciada, a execução prossegue, deve declarar-se oficiosamente a nulidade dos actos praticados após aquela declaração, onde se inclui o título de transmissão do bem imóvel, entretanto emitido pelo agente de execução. | ||
Decisão Texto Integral: | PROC. N.º 5664/14.5T8ENT-A.E1.S1 REL. 39[1]
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ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A Massa Insolvente de “AA, Lda.”, instaurou acção declarativa comum contra a “BB, S.A.”, pedindo a declaração de nulidade do título de transmissão de imóvel, junto como documento n.º 3, emitido pela Agente de Execução e, em consequência, a venda operada pelo mesmo. Alegou, em síntese, o seguinte: - A Ré interpôs, na qualidade de credora/exequente, processo executivo contra a empresa “AA, Lda.”, para cobrança de dívida no valor de 274.292,40 €; - No âmbito desse processo executivo foi realizada, no dia 6 de Janeiro de 2016, abertura de propostas em carta fechada relativamente ao prédio urbano penhorado, composto por edifício de dois pisos para comércio e serviços, localizado no Sítio ... ou ..., em ..., Santarém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.º ... e inscrito no artigo 2501º da matriz; - A Ré apresentou uma proposta no valor de 135.000,00 € para a aquisição do referido imóvel, tendo este sido adjudicado à proponente em 06.01.2016, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 821º e n.º 2 do artigo 816º, do CPC, conforme documento n.º 1; - No dia 3 de Fevereiro de 2016 foi declarada a insolvência da executada “AA, Lda.”; - No dia 26 de Fevereiro de 2016, após a declaração e publicitação da insolvência da executada, foi emitido pela Agente de Execução do processo executivo, título de transmissão relativo ao mencionado imóvel, conforme documento n.º 3; - Atendendo à declaração da insolvência da executada, deveriam as diligências de venda ter sido suspensas, de acordo com o disposto no artigo 88º, n.º 1, do CIRE, passando o dito imóvel a fazer parte integrante do património da massa insolvente; - Assim, tendo o título de transmissão sido emitido em data posterior à da declaração de insolvência da executada, tal título está ferido de nulidade e, em consequência, é também nula a venda operada pelo mesmo.
A Ré deduziu contestação, na qual defende, essencialmente, que a transmissão da propriedade se consuma com a adjudicação do imóvel pelo que, tendo esta sido realizada em 06.01.2016 (um mês antes da insolvência da executada), a acção terá de improceder.
Foi proferido saneador-sentença, em que se decidiu julgar integralmente improcedente a acção.
Inconformada, interpôs a Autora recurso de apelação. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 21.12.2017, concedeu provimento ao recurso e decidiu: a) Revogar a Sentença recorrida; b) Declarar a suspensão, nos termos do art.º 88º do CIRE, da instância executiva desde a prolação da Sentença que decretou a insolvência da Executada AA, Ld.ª; c) Anular todas as diligências executivas praticadas no Proc. n.º 5664/14.5T8ENT-A após a data da prolação da Sentença que decretou a insolvência da Executada AA, Ld.ª, ou seja após o meio dia de 02 de Fevereiro de 2016, nelas se incluindo a emissão do título de transmissão de propriedade para a BB do prédio penhorado na Execução, pertença da Executada AA, Ld.ª, título esse que se considera nulo, nos termos do disposto no art.º 294º do Cód. Civ..
Agora, é a Ré BB que recorre para o STJ, concluindo as alegações da revista do seguinte modo:
A Autora Massa Insolvente contra-alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso e batendo-se, se assim não for entendido, pela sua improcedência.
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Sendo o objecto da revista balizado pelas conclusões da recorrente, as questões que importa apreciar, para além da questão prévia da inadmissibilidade do recurso, relacionam-se com o momento da verificação do efeito real da venda executiva e com a sua repercussão em execução pendente.
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Os factos que interessam à decisão do recurso são os que constam do antecedente relatório, complementados com os que abaixo se enunciarão, documentalmente provados.
A inadmissibilidade do recurso de revista assenta, segundo a tímida argumentação da recorrida, no facto de a recorrente não identificar as normas jurídicas violadas pelo acórdão da Relação de Évora, o que se traduziria no incumprimento dos ónus previstos nos artigos 674º e 639º, nºs 1 e 2, do CPC. É verdade que se estabelece nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639º, que as conclusões do recurso devem indicar as normas jurídicas violadas e o sentido com que, no entender do recorrente, essas normas deviam ser interpretadas e julgadas. Apesar de a recorrente não ter feito, nas conclusões, alusão discriminada às normas jurídicas violadas, fê-lo, no entanto, na segunda parte do ponto (iii) das alegações, e apontou, a final, a interpretação que devia ter sido seguida pelo tribunal em relação à aplicação de algumas dessas normas, em especial a do artigo 88º do CIRE. Mesmo que se considerasse não existir suficiente especificação das normas jurídicas violadas – hipótese que, no caso, não se concebe –, tal nunca poderia ser, sem mais, causa de inadmissibilidade do recurso, uma vez que tal deficiência era susceptível de ser suprida através do convite ao aperfeiçoamento previsto no n.º 3 do artigo 639º. Improcede, por conseguinte, a questão prévia suscitada pela recorrida.
A venda executiva não deixa de ser uma venda, mas com algumas particularidades. Na venda voluntária de bem imóvel, tanto os efeitos obrigacionais (obrigação da entrega da coisa e obrigação do pagamento do preço), como o efeito real (transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito) operam por mero efeito do acordo das partes (artigo 408º, n.º 1, 874º, 879º e 1317º, alínea a) do CC). Celebrado o contrato, produzem-se, imediata e instantaneamente, os efeitos reais e obrigacionais da venda. Ao invés, na venda executiva de imóvel, só os efeitos obrigacionais se produzem em simultâneo com o acordo firmado entre o Estado (no exercício de um poder de jurisdição executiva) e o adquirente, consubstanciado na aceitação da proposta. Mas, como referem Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, com a aceitação da proposta o acto da venda não fica concluído[2]. O efeito translativo do direito de propriedade[3], assim como a eventual produção dos efeitos específicos da venda executiva[4], só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel. Veja-se o que diz o artigo 827º, n.º 1, do CPC: “Mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados.”. Resulta desta disposição legal que é o título de transmissão emitido pelo agente de execução que vale como título de aquisição, sendo através dele que o adquirente fica investido na propriedade do bem ou na titularidade do direito. É com base nesse título que se efectua o registo da aquisição a favor do adquirente e se procede oficiosamente ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil (cfr. n.º 2 do citado artigo 827º do CPC). Neste registo, afirmam Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo[5]: “sendo a venda constituída por um conjunto encadeado de actos, um verdadeiro acto complexo de formação sucessiva (composto por actos preparatórios, como a avaliação dos bens penhorados, a publicitação da venda, o acesso aos bens penhorados por parte dos interessados na venda, entre outros; actos de transmissão propriamente ditos, como a abertura de propostas, a deliberação sobre as propostas apresentadas e aceitação da proposta vencedora; e, finalmente, actos de conclusão do procedimento em que a venda se traduz, como, por exemplo, o cumprimento de obrigações tributárias a que a transmissão dá lugar, emissão do título de transmissão e cancelamento dos registos dos direitos que caducam com a venda executiva), parece-nos defensável a solução de que a mesma só ocorre definitivamente quando se dá a emissão do título de transmissão”. Também Amâncio Ferreira[6] entende deste modo: “(…) a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução, no que toca à venda por propostas em carta fechada, e com a outorga do instrumento da venda, no que respeita à venda por negociação particular. E para que aquele título seja emitido e esta outorga se efective, terá o adquirente de pagar previamente o preço devido e satisfazer as obrigações fiscais inerentes à transmissão (…)”. Evidentemente que, antes da reforma da acção executiva de 2003[7], considerava-se que o acto concretizador da venda era o despacho judicial de adjudicação, o qual só deveria ser proferido depois de se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, conforme determinava o artigo 900º[8]. Com a profunda reforma da acção executiva, a preparação e efectivação da venda executiva passou a caber ao agente de execução, o que levou à supressão do despacho judicial de adjudicação que constava da norma do n.º 2 do artigo 900º. Por isso se concorda com a conclusão a que chegou o acórdão recorrido ao considerar que o legislador pretendeu incorporar no acto de emissão do título de transmissão do bem a própria adjudicação do bem ao proponente, ou seja, a transmissão do bem ao proponente para efeitos do disposto no art.º 824º do Código Civil. Um claro sinal disso dimana do confronto da anterior alínea a) do n.º 1 do artigo 913º, com a actual alínea a) do n.º 1 do artigo 843º, a propósito do exercício do direito de remição no caso de venda por propostas em carta fechada. Na anterior redacção dispunha-se que o direito de remição podia ser exercido até ser proferido despacho de adjudicação dos bens ao proponente, dizendo-se agora que esse direito pode ser exercido até à emissão do título de transmissão dos bens para o proponente. Cremos, pois, tal como se decidiu no douto acórdão recorrido, que o efeito real de transmissão do direito propriedade para o proponente se materializa na emissão, pelo agente de execução, do título de transmissão do bem, nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 827º do NCPC. Isto não constitui violação do princípio da consensualidade, consagrado no artigo 408º, n.º 1, do CC, pois o que tal princípio apenas impõe é que o efeito real seja uma mera consequência do contrato, não que o referido efeito seja sempre uma consequência imediata e instantânea. Portanto, o efeito real verifica-se em virtude do mero contrato, mas nem sempre no momento do contrato, podendo ser diferido no tempo, por estar dependente de um acto complementar posterior[9].
Vejamos agora, brevemente, qual a repercussão da conclusão tirada no destino dos autos. O n.º 1 do artigo 88º do CIRE dispõe o seguinte: “A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes”. Destinando-se a liquidação do activo, no processo de insolvência, à satisfação dos créditos reclamados e verificados, a prévia suspensão das execuções pendentes contra o insolvente revela-se um meio eficaz para assegurar que os credores concorram em condições de igualdade a este pagamento, fazendo jus ao princípio par conditio creditorum. A suspensão das execuções pendentes constitui, pois, um efeito necessário da declaração da insolvência e não um efeito possível, como nas hipóteses a que se refere o artigo 793º do CPC[10]. Por isso, ao contrário do que sucede com este último preceito, as consequências previstas no artigo 88º do CIRE, resultantes da declaração da insolvência, são automáticas e oficiosamente decretadas. Voltando ao caso dos autos, temos que, quando foi declarada a insolvência da sociedade “AA, Lda.” (02.02.2016 – cfr. doc. n.º 2 junto com a petição inicial), que foi devidamente anunciada em 05.02.2016, ainda não havia sido emitido o título de transmissão pelo agente de execução (26.02.2016 – cfr. doc. n.º 3 junto com a petição inicial). Por conseguinte, logo que conhecida a declaração da insolvência, devidamente anunciada em 05.02.2016 (cfr. doc. n.º 2), deveria ter sido suspendida a execução, nos termos do artigo 88º, n.º 1, do CIRE. Tendo, no entanto, prosseguido, haveria que declarar-se oficiosamente a nulidade dos actos praticados após a decretação da insolvência[11], neles se incluindo, necessariamente, a emissão do título de transmissão de propriedade para a BB do prédio penhorado na execução, pertencente à executada “AA, Lda.”.
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Uma palavra final a propósito das conclusões l) e m), cuja inconsequência salta à vista. Se, como a recorrente diz na alínea m), está há muito finda a instância executiva quanto aos outros dois executados, por não lhes serem conhecidos bens, não se compreende o defendido na conclusão l).
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Em conformidade, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.
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Custas pela recorrida.
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LISBOA, 19 de Junho de 2018 Henrique Araújo (Relator) Maria Olinda Garcia Salreta Pereira
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