Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
175/14.1TUBRG.G1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA PINTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
TRABALHADOR INDEPENDENTE
PENSÃO POR INCAPACIDADE
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
REMIÇÃO DE PENSÃO
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - ACIDENTES DE TRABALHO.
DIREITO PROCESSUAL LABORAL - PROCESSOS EMERGENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO / FASE CONTENCIOSA / SENTENÇA / REMIÇÃO DE PENSÕES.
Doutrina:
- Júlio Manuel Vieira Gomes, O Acidente de Trabalho – o acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, 168, 173, 179/181, 195/198.
- Pedro Romano Martinez, “Código do Trabalho”, 2017, Almedina.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 804.º, 805.º.
CÓDIGO DE PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGOS 26.º, N.º 1, ALÍNEA E), 74.º, 109.º, 112.º, 114.º, 135.º, 149.º, N.ºS 3 E 4, 150.º.
DECRETO-LEI N.º 159/99, DE 11 DE MAIO, ALTERADO PELO DECRETO-LEI N.º 382-A/99, DE 22 DE SETEMBRO: - ARTIGOS 1.º, 2.º, 6.º.
LEI N.º 98/2009, DE 04 DE SETEMBRO - REGIME JURÍDICO DOS ACIDENTES DE TRABALHO E DAS DOENÇAS PROFISSIONAIS (LAT): - ARTIGOS 8.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS A) E B), E 9ª, N.ºS 1, ALÍNEA A), 2, ALÍNEAS B) E E), E 3, 12.º, 23º, ALÍNEAS A) E B), 25.º, N.º 1, ALÍNEAS F) E G), ARTIGOS 48.º, 50.º, N.ºS 1 E 2, 75.º, N.ºS 1 E 3, ALÍNEA C), 78.º, 179.º, 181.º, 184.º, 186.º, ALÍNEA A).
NORMA REGULAMENTAR N.º 3/2009-R, DE 5 DE MARÇO, PUBLICADA NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, N.º 57, DE 2 DE MARÇO DE 2005 QUE APROVOU A PARTE UNIFORME DAS “CONDIÇÕES GERAIS DA APÓLICE DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE ACIDENTES DE TRABALHO PARA TRABALHADORES INDEPENDENTES”.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 25.03.2010, PROCESSO N.º 43/09.9T2AND.C1.S1, WWW.DGSI.PT .
-DE 10.07.2013, PROCESSO N.º 941/08.7TTGMR.P1.S1, WWW.DGSI.PT.
-DE 16.02.2016, PROCESSO N.º 375/12.9TTLRA.C1.S1.
Sumário :
1. O trabalhador que exerce atividade por conta própria é obrigado a fazer um seguro de acidentes de trabalho, que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei dos Acidentes de Trabalho para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares, como impõe o artigo 1º, do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 382-A/99, de 22 de setembro, entrado em vigor em 01 de outubro de 1999.

2. Deve interpretar-se o disposto nos artigos 8º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), e 9ª, n.ºs 1, alínea a) e 2, alíneas b) e e), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, como integrando no seu âmbito de aplicação o acidente ocorrido nos espaços exteriores à habitação do sinistrado, ainda antes de se entrar na via pública, independentemente de se tratar de espaço próprio deste ou de espaço comum a outros condóminos ou comproprietários, bastando que para tal já tenha sido transposta a porta de saída da residência, desde que a vítima se desloque para o local de trabalho, segundo o trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador

3. Deve ser qualificado como acidente “in itinere”, também designado de percurso e de trajeto, o atropelamento da Autora, por um veículo conduzido pelo seu marido, no logradouro da residência dos seus pais, quando esta se encontrava a deslocar-se para a agência de seguros que explorava, após ali ter almoçado, como o fazia habitualmente nos dias úteis da semana, sendo que, não havendo acesso direto dessa habitação para a via pública, tinha que passar por uma rampa que a ligava a outro prédio urbano, também propriedade de seus pais, pois só através deste segundo prédio podia aceder à via pública.

4. O artigo 135.º do Código de Processo do Trabalho consagra um regime jurídico especial para a mora no domínio das pensões e indemnizações e que se sobrepõe ao regime geral estipulado nos artigos 804.º e 805.º do Código Civil.

5. Sendo a pensão devida emergente de incapacidade permanente parcial de 15%, a qual é obrigatoriamente remida, os juros de mora são devidos desde o dia seguinte ao da alta, sobre o valor do capital de remição e até à sua efetiva entrega, pois, a partir daquela, o devedor incorreu em mora e este capital mais não é do que uma forma de pagamento unitário da pensão anual e vitalícia.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 175/14.1TUBRG.G1.S1[1] (Revista) – 4ª Secção

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

           

            - Relatório[2]:

        Frustrada a conciliação, na fase conciliatória, cuja instância se havia iniciado em 30.04.2014, Aa intentou, na Comarca de Braga, Instância Central – 1ª Secção do Trabalho, J1, a presente ação declarativa, com processo especial, para efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, contra “BB, S. A.”, agora CC, S A.pedindo a sua a condenação a pagar-lhe:
a. A pensão anual e vitalícia de € 1.470,00 (mil quatrocentos e setenta euros);

b. A quantia de € 1.315,65 (mil trezentos e quinze euros e sessenta e cinco cêntimos), a título de indemnização pelo período em que esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho;

c. A quantia de € 5.939,79 (cinco mil novecentos e trinta e nove euros e setenta e nove cêntimos) que despendeu em consequência do acidente de trabalho;

d. Os juros de mora sobre estas quantias, a calcular à taxa legal supletiva.
               
               
              Para tanto, alegou que trabalha por conta própria, como agente de seguros, sendo proprietária de uma agência de seguros e que no dia 10 de fevereiro de 2014, tendo interrompido o seu horário de trabalho, foi almoçar a casa dos seus pais, como o fazia habitualmente.
           Quando se deslocava a pé, para o seu local de trabalho e em direção à via pública, foi atropelada por um veículo automóvel, conduzido pelo seu marido, no logradouro da moradia que era a residência de seus pais.
           
           Que em consequência desse acidente, que foi de trabalho, ficou com Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde a data do acidente (10.02.2014) até ao dia 31 de março de 2014, dia em que teve alta médica e, após, com Incapacidade Permanente Parcial (IPP).
           
            Alegou, ainda, que havia celebrado, no dia 20.09.2013, com a Ré, então “BB, S. A.” um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., com o objetivo de transferir para esta as responsabilidades pelas consequências advindas de quaisquer acidentes de trabalho, que, nos dias úteis da semana, ia habitualmente almoçar a casa de seus pais e que por o acidente ter ocorrido em propriedade privada de terceiros não inviabiliza a sua caracterização como de trabalho.
 

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           A R. seguradora contestou alegando que o atropelamento ocorreu inteiramente dentro do logradouro da habitação pertencente ao pai da Autora, em espaço privado, dado que se verificou sobre a rampa pavimentada com pedra decorativa que existia dentro dos limites desse logradouro.

           Ora, não tendo o sinistro ocorrido na via pública, nem em espaço onde pudesse aceder quem quer que fosse, a não ser os proprietários do imóvel ou quem estes autorizassem, não se está perante um acidente de trabalho.

           Mais aduziu que não sabia se a Autora tinha tomado a sua refeição no prédio onde se encontrava e ignorava, também, se ela, no momento do atropelamento, se dirigia, como referiu, para o seu posto de trabalho.

           Concluiu, dizendo que o referido acidente não devia ser qualificado como de trabalho e, sem prescindir, caso o fosse, não eram devidas as importâncias peticionadas porque a Incapacidade da Autora não era a que lhe fora atribuída pelo Gabinete Médico-Legal e porque a retribuição diária deveria ser encontrada através da divisão da retribuição anual por 365 dias.

            Por fim, sustentou que só devia pagar juros de mora sobre a pensão anual desde a data do seu vencimento e  até à data da entrega do capital de remissão.

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            Realizada a audiência de julgamento, proferiu-se decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, e respetiva fundamentação.

           Por sentença de 12 de dezembro de 2016 decidiu-se julgar a ação integralmente procedente, por provada, e, em consequência, condenou-se a Ré:


1. A pagar à autora a pensão anual e vitalícia de € 1.470,00 (mil quatrocentos e setenta euros) acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva, sobre o correspondente capital de remição, desde o dia seguinte ao da alta até integral pagamento;

2. Esta quantia é devida desde o dia seguinte ao da alta e obrigatoriamente remida no correspondente capital de remição;

3. A pagar à autora as quantias de € 1.315,65 (mil trezentos e quinze euros e sessenta e cinco cêntimos) e de € 5.939,79 (cinco mil novecentos e trinta e nove euros e setenta e nove cêntimos), acrescidas de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a data da tentativa de conciliação até integral pagamento e podendo estas quantias serem pagas juntamente com a entrega do capital de remição;

4. A fornecer à autora próteses auditivas para os ouvidos direito e esquerdo sempre que tal seja necessário, designadamente por necessidade de substituição ou avaria.

            Na sentença, foi fixado à ação o valor de € 30.350,61.

II

           Inconformada com esta decisão, a Ré Seguradora interpôs recurso de revista “per saltum, nos termos do artigo 678º, do Código de Processo Civil [doravante CPC] concluindo sua alegação da seguinte forma:


I. A Ré requer, nos termos do disposto no artigo 678º do CPC, que o presente recurso seja processado como revista e suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça (Recurso Per Saltum).
II. Tal recurso é admissível, uma vez que o valor da ação (30.350,61€) é superior à alçada do Tribunal da Relação, a Ré foi condenada a satisfazer à Autora indemnizações que, na sua totalidade, ascendem a montante superior a metade da alçada do Tribunal da Relação (o capital de remição da pensão arbitrada ascende a € 23.095,17) e nas alegações de recurso serão suscitadas, apenas, questões de direito e não são impugnadas neste recurso quaisquer decisões interlocutórias.
III. Da conjugação do que dispõem os artigos 8º n.º 1, 9º n.º 1 alínea a) e n.º 2 alínea e) da LAT resulta que só o acidente ocorrido no trajeto entre o local de refeição (ou residência) e o local de trabalho será acidente de trabalho.
IV. Nem o destino final (local de trabalho), nem o ponto de partida (local de refeição), fazem parte do trajeto protegido, merecendo os acidentes ocorridos no primeiro a garantia decorrente da norma do artigo 8º n.º 1 (o que se impõe), mas excluindo-se da garantia os ocorridos no segundo (por não integrar nem um acidente de trajeto, nem um acidente ocorrido no local de trabalho).
V. A responsabilidade do empregador relativamente aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores não assenta tanto no chamado «risco profissional», mas sim no «risco económico ou de autoridade», isto é, na inclusão do trabalhador na estrutura da empresa, sujeitando-o à autoridade do empregador.
VI. A responsabilidade objetiva decorrente dos acidentes de trabalho é, já de si, um regime excecional (cf. artigo 483.º, n.º 2 do Código Civil), e os acidentes in itinere, também por via da exceção, alargam o campo de aplicação dessa responsabilidade.
VII. Assim, para se considerar a existência de um acidente in itinere, é indispensável que o trabalhador esteja, ou possa estar, sob o risco da autoridade do empregador: se o trabalhador pode dispor livremente da sua autonomia (por exemplo, se se encontra na sua residência ou no seu local de refeição), não existe qualquer “risco de autoridade” e, portanto, não se pode considerar a existência de um acidente de trabalho.
VIII. Do mesmo passo, só se pode falar em risco de autoridade nas situações em que a entidade patronal possa, de alguma forma, controlar os perigos aos quais se expõe o trabalhador.
IX. Os eventuais espaços integrados na residência de um familiar da Autora – seu pai – ou até os de um restaurante ou outro lugar onde tome a sua refeição, incluindo os seus jardins, logradouros, caminhos, etc., são privados, o que significa que se trata de espaços na disponibilidade do trabalhador ou dos proprietários desses imóveis, que só eles podem percorrer (e até gerir) como melhor entenderem.
X. A Autora poderia controlar os riscos existentes nesse espaço solicitando a seu pai que os eliminasse ou até optando por não tomar a sua refeição nesse local, se oferecesse risco.
XI. Já a entidade patronal (neste concreto caso a própria Autora, nessa qualidade) não poderia de forma alguma impedir esses riscos, sob pena de violação do direito de propriedade de terceiros e de reserva da vida privada do seu trabalhador.
XII. E, tão pouco, poderia impedir a Autora de se deslocar a esse local para tomar a sua refeição, já que no período de pausa para refeição o trabalhador pode decidir fazer o que bem entender.
XIII. Dentro do espaço privado de uma habitação ou estabelecimento ao qual o trabalhador tenha decidido deslocar-se (nomeadamente para tomar a sua refeição), a entidade patronal em nada domina ou controla os riscos aos quais o trabalhador se expõe, por lhe estar vedada a possibilidade de perturbar ou impedir o pleno exercício do direito de propriedade de terceiros sobre o mesmo, ou a reserva de intimidade privada que protege uma residência (cf. artigo 1305º, 1314º do Código Civil, 34º e 62º da CRP e 190 e 191º do Código Penal).
XIV. O espaço privado de um prédio particular inclui não só o próprio edifício, como também os espaços anexos, nomeadamente jardins, pátios e outros espaços vedados.
XV. Enquanto o trabalhador se encontrar no interior de um prédio particular onde, por sua livre e exclusiva iniciativa, entendeu deslocar-se (nomeadamente para tomar a sua refeição), a entidade patronal nada pode controlar, nem pode impedir ou mitigar os riscos que o espaço em causa possa oferecer, na medida em que aí não chega a sua “autoridade”.
XVI. Já no que toca ao trajeto trilhado na via pública, a entidade patronal pode tomar medidas tendentes a diminuir (ou controlar) os riscos a que se sujeita o trabalhador no percurso entre o local de refeição e o local de trabalha, bastando, para o efeito, dotá-lo, por exemplo, de um veículo de uso profissional que lhe garanta maior segurança, ou assegurando ela própria o transporte dos trabalhadores em condições que repute seguras.
XVII. Assim, temos de concluir que só a partir do momento em que o trabalhador sai do seu local de refeição (no caso depois de sair dos limites do prédio particular onde almoçou) e ingressa na via pública, se inicia o trajeto protegido e se pode admitir a ocorrência de um acidente de trabalho, na sua vertente de acidente in itinere.
XVIII. Tendo o acidente em apreço ocorrido ainda no interior de um prédio particular, não constitui um acidente de trabalho, pelo que deve ser revogada a douta sentença e a Ré absolvição de todos os pedidos, o que se requer.
XIX. O risco suscitado pela casa de morada dos pais da A. – onde esta, com toda a certeza, se deslocaria com regularidade, para além das situações em que aí tomava as suas refeições – não é decorrente da sua atividade profissional.
XX. Para além das situações em que tomava as suas refeições na casa de seus pais, a A estava sujeita, no âmbito da sua vida privada, aos riscos que esse local propiciava, entre eles o resultante da configuração da rampa onde ocorreu o acidente.
XXI. Não pode a entidade patronal ser responsabilizada pelos riscos aos quais o trabalhador se exporia sempre, mesmo que não trabalhasse, como são os suscitados pelas características da sua própria residência ou a de seus pais.
XXII. Pelo que, também por esta razão, se impunha que se tivesse concluído que o acidente em apreço não é um acidente de trabalho, com a inerente revogação da douta sentença e absolvição da Ré de todos os pedidos, o que se requer.
XXIII. A ninguém suscita dúvidas que o trabalhador conclui o trajeto desde o seu local de trabalho até à sua residência ou local de refeição quando ingressa no seu espaço privado ou no local de refeição, a partir do qual pode fazer o que quiser, da forma que bem entender.
XXIV. Um trabalhador que resida numa habitação com logradouro e regresse do seu posto de trabalho não tem de, depois de ingressar no espaço exterior situado dentro dos limites dessa propriedade, dirigir-se ao seu quarto, à sala de jantar ou à casa de banho para concluir o trajeto, podendo decidir o que fazer, até ficar no logradouro.
XXV. E um trabalhador que saia do seu posto de trabalho ingressa no local de refeição quando entra dentro dos limites privados deste, podendo, de seguida, fazer o que entender, desde sentar-se logo numa mesa até aguardar no exterior.
XXVI. Ora, se não se suscitam dúvidas quanto ao ponto onde termina o trajeto - que corresponde aos limites da propriedade onde reside ou onde toma a sua refeição - nenhuma pode subsistir quanto ao ponto onde se inicia, o qual tem de ser, precisamente, o mesmo.
XXVII. Aliás, se não se estabelecesse tal limite quer para o início, quer para o termo do trajeto, cairíamos uma espiral regressiva, que levaria a ter de se admitir – de forma absolutamente inaceitável – que o trajeto protegido desde a residência se inicia a partir do momento em que o trabalhador, depois de se levantar do seu leito, no seu próprio quarto, enquanto sujeito aos riscos de um mero acidente doméstico, pisa pela primeira vez o chão, só porque se poderia afirmar que, não fosse a relação de trabalho, poderia ficar deitado.
XXVIII. Ou admitir que o trajeto protegido a partir do local de refeição se inicia no momento em que, sujeita ainda a riscos totalmente alheios à relação laboral, se levanta da cadeira onde esteve a tomar a refeição.
XXIX. Alargar o trajeto protegido a tais espaços seria criar enorme incerteza e segurança em torno da delimitação dos acidentes de trabalho.
XXX. Pelo que nenhuma solução é compatível com a justiça senão o de considerar que será acidente de trabalho in itinere aquele que ocorra no trajeto percorrido entre a saída da propriedade privada que constitui a habitação do trabalhador ou local e refeição (no caso o seu logradouro), isto é, entre o local onde ingressa na via pública e o local situado imediatamente antes de entrar nas instalações que constituem o seu local de trabalho.
XXXI. Tendo o acidente em apreço ocorrido ainda no interior do prédio particular que construía o local de refeição, não integra o conceito de acidente de trabalho, pelo que a Ré deve ser absolvida de todos os pedidos contra si deduzidos, o que se requer.
XXXII. A norma do n.º 2 do artigo 50º da LAT estabelece que a pensão – e não o capital de remição dela – se vence no dia seguinte ao da alta.
XXXIII. A entidade responsável pelas consequências de um acidente de trabalho do qual resulte uma incapacidade cuja indemnização consista numa pensão obrigatoriamente remível não pode, no dia seguinte ao da alta e de forma espontânea, entregar esse capital ao sinistrado.
XXXIV. O cálculo e entrega do capital de remição devem seguir um procedimento estabelecido na Lei (cf. artigo 149º e 150º do CPT).
XXXV. Pelo que o capital de remição não se vence no dia seguinte ao da alta, mas apenas na data em que a secretaria notificar a entidade responsável para o pagar.
XXXVI. Devendo presumir-se que o legislador encontrou as soluções mais acertadas – cf. artigo 9º do Código Civil – não se pode interpretar as normas da LAT e do CPT no sentido de que são devidos juros moratórios sobre o capital de remição desde o dia seguinte ao da alta, já que esse legislador não cometeria a injustiça de penalizar a entidade responsável com o pagamento de juros moratórios calculados sobre uma prestação que a impede de cumprir na data do seu pretenso vencimento.
XXXVII. Se o sinistrado não tinha o direito de exigir, no dia seguinte ao da alta – nem a entidade responsável poderia satisfazer ao sinistrado – o capital de remição, não lhe são devidos juros desde essa data sobre esse capital.
 XXXVIII. Em contraponto a este entendimento vem sendo defendido por alguma jurisprudência que a regra do artigo 135º do CPT constitui um regime excecional ou especial, em que a mora assume um caracter objetivo, não dependente da demonstração da culpa do devedor, bastando que se verifique um atraso no pagamento, desde que não imputável ao sinistrado;
XXXIX. Ademais, vem-se defendendo que os juros são, nesse caso, uma forma de reintegrar o património do lesado, a quem não é imputável o facto de o legislador ter estabelecido regras processuais que impedem o pagamento espontâneo pela entidade patronal do capital de remição no dia seguinte ao da alta.
XL. Porém, esse entendimento não tem em consideração, por um lado, o princípio da excecionalidade da responsabilidade objetiva (cf. artigo 483º n.º 2 do Código Civil) e, por outro, o facto de a lei prever um outro caminho para acautelar os interesses do sinistrado.
XLI. De facto, ao sinistrado é devida, desde o dia seguinte ao da alta, uma pensão provisória, a qual deve ser paga pela entidade responsável independentemente de decisão judicial (cf. artigo 52º da LAT).
XLII. Assim, a obrigação pecuniária que recai sobre a entidade patronal no dia seguinte ao da alta não corresponde a um capital de remição, mas antes a uma pensão provisória.
XLIII. Caso a entidade patronal inicie o pagamento da pensão provisória no dia seguinte ao da alta, esses valores serão considerados na decisão final (cf. artigo 52º n.º 3 da LAT).
XLIV. Caso não seja alterada a incapacidade no decurso do processo, o sinistrado terá recebido, até ao momento do cálculo e entrega do capital de remição, a totalidade da indemnização que lhe era devida até então.
XLV. Nesse caso não podem existir dúvidas de que não seriam devidos juros sobre o capital de remição desde o dia seguinte ao da alta, sob pena de duplicação de indemnizações.
XLVI. Não tendo, no caso, sido paga essa pensão provisória foi essa a prestação, no montante de € 1.470,00 anuais, relativamente à qual se verifica atraso (cf. artigo 135º do CPT).
XLVII. E, assim sendo, era sobre essa pensão, desde 31/03/2014 e até à data da satisfação integral da indemnização (data da entrega do capital de remição), que eram devidos juros de mora pela Ré.
XLVIII. Esses juros serão devidos sobre cada uma das pensões parcelares (mensais), desde a data do seu vencimento até à data do pagamento (entrega do capital de remição).
XLIX. Deve, assim, ser revogada a douta sentença na parte em que condenou a Ré pagar à A. juros moratórios sobre o capital de remição desde o dia seguinte ao da alta até integral pagamento, substituindo-se essa decisão por outra que condene a Ré a pagar à A. juros, à taxa legal supletiva, sobre cada uma das pensões parcelares (mensais), desde a data do seu vencimento até à data do pagamento (entrega do capital de remição), o que se requer.
L. Na tentativa de conciliação a A. não interpelou a Ré para pagar as verbas de € 359,70 em deslocações para tratamentos, € 37,60 em consultas e tratamentos e € 5.516,49 em próteses.
LI. Quanto a despesas de transporte para o Tribunal apenas reclamou nessa diligência a verba de € 20,00.
LII. Só com a citação foi a Ré interpelada para pagar a quantia de € 5.919,79 (€ 359,70 + € 37,60 + € 5.516,49 + € 6,00).
LIII. Assim, deve ser revogada nessa parte a douta sentença, substituindo-se essa decisão por outra que condene a Ré a pagar à A juros moratórios, à taxa legal supletiva, sobre a quantia de € 20,00 desde a data da tentativa de conciliação até integral pagamento desse montante e juros moratórios, à taxa legal supletiva, sobre a quantia de € 5.919,79 desde a citação até integral pagamento, o que se requer.
LIV. A Douta sentença sob censura violou as normas dos artigos 8º, n.º 1, 9º, n.ºs 1 alínea a), e 2, alínea e), da LAT, 50º, n.º 2 e 52º, da Lei n.º 98/2009 e 804º e 805º, do Código Civil.

               

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            A Autora Aa contra-alegou, concluindo resumidamente:


1. Atendendo às disposições legais, o acidente aqui em causa tem que ser qualificado como acidente in itinere, uma vez que ocorreu no trajeto normalmente utilizado pela Autora e durante o período habitualmente gasto pela mesma, independentemente de ter ocorrido em espaço privado ou público.
2. Conclui-se que, sendo a pensão devida emergente de uma incapacidade permanente parcial inferior a 30%, a qual é obrigatoriamente remida, os juros de mora são devidos desde o dia seguinte ao da alta, sobre o valor do capital de remição e até à sua efetiva entrega, pois, a partir daquela, o devedor incorreu em mora e este capital mais não é do que uma forma de pagamento unitário da pensão anual e vitalícia.
3. Atento o predito, fácil é concluir que deve improceder o recurso em análise, posto que o Tribunal a quo aplicou corretamente o direito ao caso sub judicie, não tendo violado – antes respeitado pontualmente – qualquer disposição legal.

            Concluindo, pediu que se negue provimento ao recurso em apreço e que se confirme na íntegra a sentença recorrida.

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. Parecer do Ministério Público:

Neste Supremo Tribunal, o Ex.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, nos termos do artigo 87º, n.º 3, do CPT, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, devendo o acidente ser considerado como de trabalho, os juros de mora incidir sobre o capital de remição a partir do dia seguinte ao da alta médica, e os juros sobre a quantia de € 5.939,79 vencer-se desde a data da tentativa de conciliação e até integral pagamento [artigo 135º, do Código de Processo do Trabalho].

Notificado às partes, não houve qualquer resposta.

III

        - Revista:

           

            Nos autos a instância iniciou-se em 10 de fevereiro de 2014 e a sentença recorrida foi proferida em 12 de dezembro de 2016.

            Nessa medida, é aqui aplicável:

· O Código de Processo Civil (CPC), anexo e aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho;

· O Código de Processo do Trabalho (CPT) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro, e alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, 38/2003, de 8 de março (retificado pela Declaração de Retificação n.º 5-C/2003, de 30 de abril) e 295/2009, de 13 de outubro (retificado pela Declaração de Retificação n.º 86/2009, de 23 de novembro).

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            . Estão colocadas as seguintes questões:

- Se o acidente dos autos deve ser qualificado como acidente de trabalho;

- Se sobre o capital de remição incidem juros de mora desde o dia seguinte ao da alta:

- Se o montante de € 5.919,79, a pagar à Autora, por deslocações desta para consultas e tratamentos médicos e em próteses, vence juros de mora desde a data da tentativa de conciliação.

           Cumpre, pois, julgar o objeto do recurso.

IV

                                              

           

            Da matéria de facto:

            Foi dada como provada a seguinte factualidade:


1. No dia 10 de Fevereiro de 2014, pelas 14.00 horas, a autora foi atropelada pelo veículo com a matrícula ...IU..., o qual era conduzido pelo seu marido;
2. A autora exercia a atividade profissional de agente de seguros por conta própria;
3. No exercício da sua atividade, a autora explorava uma agência de seguros, situada na Rua … – n.º … (….), na ...;
4. Nos dias úteis, a autora almoçava habitualmente na residência dos seus pais, situada na Rua … – n.º …, na ...;
5. Quando ocorreu o acidente, a autora tinha estado a almoçar na residência dos seus pais;
6. A autora estava a deslocar-se da residência dos seus pais, após ali ter almoçado, para a agência de seguros que explorava;
7. O acidente ocorreu no logradouro da residência dos pais da autora;
8. A residência dos pais da autora não tinha acesso direto para a via pública;
9. O prédio urbano que correspondia à residência dos pais da autora tinha uma ligação através de uma rampa para outro prédio urbano que pertencia igualmente aos pais da autora;
10. Por sua vez, era este prédio urbano que permitia o acesso à via pública;
11. Como consequência direta e necessária do acidente, a autora esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho desde o dia 10 de Fevereiro de 2014 até ao dia 31 de Março de 2014;
12. Como consequência direta e necessária do acidente, a autora ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 15,00%;
13. A autora teve alta clínica no dia 31 de Março de 2014;
14. Como consequência direta e necessária do acidente, a autora ficou a necessitar de próteses auditivas para os ouvidos direito e esquerdo;
15. Como consequência direta e necessária do acidente, a autora despendeu a quantia de € 5.516,49 na aquisição de próteses auditivas para os ouvidos direito e esquerdo;
16. Como consequência direta e necessária do acidente, a autora despendeu a quantia de € 359,70 em deslocações para exames e tratamentos médicos;
17. Como consequência direta e necessária do acidente, a autora despendeu a quantia de € 37,60, em consultas e exames médicos;
18. A responsabilidade por acidentes de trabalho com a autora estava transferida para a ré por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., o qual era válido e eficaz na data do acidente;
19. Este contrato de seguro cobria a retribuição anual de € 14.000,00 (€ 1.000,00x14);
20. Os serviços clínicos da ré prestaram assistência médica à autora;
21. A ré enviou à autora um cheque no valor de € 832,40 para a ressarcir pelo período em que esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho;
22. A autora procedeu ao depósito do cheque que lhe foi enviado pela ré;
23. O pagamento deste cheque foi recusado por extravio;
24. A autora despendeu a quantia de € 26,00 em encargos bancários pela devolução do cheque;
25. Após as diligências que desenvolveu, a ré entendeu não assumir a responsabilidade pelo acidente com a autora;
26. Na altura do acidente, a autora auferia a retribuição anual de € 14.000,00 (€ 1.000,00x14);
27. A autora nasceu no dia … de … de 1974.


V

           

            Do direito:

            

- Desqualificação do acidente como acidente de trabalho:


O atropelamento da Autora ocorreu no dia 10 de fevereiro de 2014, pelas 14:00 horas, no logradouro da residência dos seus pais, quando esta, após ali ter almoçado, estava a deslocar-se para a agência de seguros que explorava.

           Estamos, pois, perante um acidente de trabalhador independente.

Pedro Romano Martinez refere que com a Lei dos Acidentes de Trabalho “[e]stabeleceu-se uma hipótese atípica de acidente de trabalho, em que a potencial vítima, sendo trabalhador independente deve assegurar a própria reparação por via de um seguro[3]”.

Na verdade, o trabalhador que exerce alguma atividade por conta própria, é obrigado a fazer um seguro de acidentes de trabalho, como impõe o artigo 1º, do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 382-A/99, de 22 de setembro, entrado em vigor de 01 de outubro de 1999, que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei dos Acidentes de Trabalho para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.

Este seguro rege-se, também com as devidas adaptações, pelas disposições da Lei de Acidentes de Trabalho, e seus diplomas complementares, conforme determina o artigo 2º, do Decreto-Lei n.º 159/99, “[s]alvo no que adiante especificamente se refere”.

Também é aplicável a Norma Regulamentar n.º 3/2009-R, de 5 de março, publicada no Diário da República, IIª Série, n.º 57, de 2 de março de 2005 que aprovou a parte uniforme das “Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes”, que ainda se encontra em vigor.


Quer o Decreto-Lei n.º 159/99 quer a Norma Regulamentar n.º 3/2009-R referem-se à Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, como sendo a Lei Reguladora dos Acidentes de Trabalho.

Contudo, quer a Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, quer o Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, foram revogados pelo artigo 186º, alínea a), da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, [doravante LAT], que aprovou o atual Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais e que entrou em vigor no dia 01 de janeiro de 2010.

Tendo o atropelamento da Autora ocorrido a 10 de fevereiro de 2014, é-lhe aplicável a LAT.

Ora, o artigo 181º, da LAT, dispõe que as remissões de normas contidas em diplomas legislativos para a legislação revogada com a sua entrada em vigor, devem considerar-se referidas às disposições do Código do Trabalho e às suas próprias disposições.

É o caso do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de maio, cuja remissão deve, agora, considerar-se feita para a LAT.

Acresce que o artigo 184º, da LAT, estipula que a regulamentação relativa ao seguro obrigatório de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes consta de diploma próprio.

Tal diploma continua a ser o Decreto-Lei n.º 159/99, que veio regulamentar o seguro obrigatório de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes.

No artigo 6º, do Decreto-Lei n.º 159/99, e na Cláusula 2ª, n.º 2, da Parte Uniforme, referente ao “conceito de acidente” de percurso, dispõe que, fora do local onde é prestado o serviço, só se considera acidente o que ocorrer no trajeto que o trabalhador tenha de utilizar nos termos da alínea a), do n.º 2, e do n.º 3, do artigo 6º, do Decreto-Lei n.º 143/99 [Decreto-Lei Regulamentar da Lei n.º 100/97, 13 de setembro], de 30 de abril, e, também, entre o local de trabalho e o local da refeição.

Nos termos do artigo 6º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei, 143/99 considerava-se como acidente “in itinere” o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho.

           

Acontece que a LAT não contém uma norma similar à do artigo 6º, n 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, isto é, não tem uma norma tão concretizadora e tão específica do conceito de acidente de percurso.

           Coloca-se então, a questão de saber se, ainda, se pode considerar como acidente “in itinere” o ocorrido nas áreas comuns de um edifício ou residência do trabalhador, transposta que seja a porta para a via pública, e, coloca-se, também, a questão de saber se esse conceito de acidente “in itinere” abrange as situações em que a porta de acesso da habitação ou do local da refeição dá para uma área exterior, própria ou particular, antes de atingir a via pública a caminho do local de trabalho, ocorrendo o acidente nessa mesma área exterior.

~~~~~~~~

A respeito da definição do início e do termo, ou seja, onde começa e onde acaba a tutela dos acidentes de percurso, Júlio Manuel Vieira Gomes afirma que[4] “[o] acidente in itinere é um acidente ocorrido fora do tempo e do local de trabalho” e em matéria de acidentes de trabalho são tutelados “ «os trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo normalmente gasto pelo trabalhador» entre a residência habitual ou ocasional deste e as instalações que constituem o seu local de trabalho. A referência a «trajetos normalmente utilizados» é ambígua e de interpretação delicada. (…) Parece-nos que, mais do que uma ideia de habitualidade, o que está em jogo é antes o carácter normal do trajeto como um trajeto razoável, racional

(…)

Em certos casos pode ser delicado saber em que local exato é que principia o trajeto protegido e, mesmo quando é que deve considerar-se findo.

O problema tem-se colocado, sobretudo quando o trabalhador reside numa fração de um prédio em regime de condomínio ou de propriedade horizontal.

Em tal hipótese deverá considerar-se que a tutela dos acidentes de trabalho só se inicia quando o trabalhador acede à via púbica ou, mesmo antes, quando abandona a fração e entra nas zonas comuns (pondo-se, é claro, o mesmo problema também quanto ao término do trajeto).
A questão é de resposta delicada, não só porque o direito comparado mostra que as duas soluções são possíveis e defensáveis (…) mas e sobretudo porque já teve resposta expressa na nossa lei, em norma entretanto revogada, sem que tenha sido substituída por outra em que o legislador tome expressamente posição sobre esta questão. Em primeiro lugar, parece-nos poder dizer que a revogação da norma não se pode inferir, sem mais, o abandono da solução preexistente. Além da hipótese de lapso, a revogação pode ficar a dever-se, ao invés, à convicção de que a solução resultaria das regras gerais e da ratio da tutela dos acidentes in itinere e da exclusão, em princípio dos acidentes ocorridos na própria residência do trabalhador”.
 (…)

Quanto aos trajetos normalmente utilizados pelo trabalhador entre o local de trabalho e o local da refeição, refere Júlio Gomes[5] que “[m]ais uma vez há que interpretar com alguma cautela a expressão «trajeto normalmente utilizado».

(…)
Por outro lado, a lei portuguesa não limita a liberdade de escolha do local da refeição pelo trabalhador (…). O nosso legislador, ao invés, e parece-me que bem, não limitou nesta matéria a liberdade do trabalhador, que será assim tutelado no trajeto percorrido entre o trabalho e o local da refeição, quer este último seja um qualquer estabelecimento de restauração, quer se trate da casa do trabalhador, ou da residência de familiares e amigos”.

~~~~~~~~

Ora, dispondo o artigo 9º, n.º 3, da LAT, que só é acidente “in itinere” aquele que ocorra no trajeto normalmente utilizado entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e o seu local de trabalho exclui do seu âmbito os acidentes verificados dentro da própria residência do trabalhador.

O mesmo acontece relativamente ao acidente que ocorra no trajeto normalmente utilizado entre o local de trabalho e o local da refeição pois, neste caso, a tutela, também se restringe ao trajeto.

Dentro dos locais em que o trabalhador consome a própria refeição, quer se trate de estabelecimentos abertos ao público quer de uma residência privada, inexiste qualquer proteção em caso de acidente.

É o que resulta do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25.03.2010[6], que conhecendo de questão similar à destes autos, mas na vigência da norma revogada, ou seja, da Lei n.º 100/97, de 16 de Setembro, e do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, decidiu:

1. A cláusula 2.ª, n.º 2, da Norma Regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal n.º 3/09, de 23/03, que aprovou a parte uniforme das condições gerais da apólice de seguros obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes, considera acidente in itinereo ocorrido no trajecto, normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador: de ida e de regresso para e do local de trabalho, ou para o local onde é prestado o serviço, entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns de edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho.”

2. Na situação prevista estão expressamente contempladas duas situações: a de condomínios ou de compropriedade (em que se haja de se passar por áreas comuns para a via pública) ou a de habitações com acesso direto à via pública.

3. Há no entanto lacuna legal relativamente às situações em que a porta de acesso da habitação dá para uma área exterior, própria ou particular, antes de atingir a via pública a caminho do local de trabalho, ou o local de trabalho se situe nessa mesma área adjacente à habitação, e que deve ser resolvida lançando mão da analogia.

4. Considera-se assim acidente “in itinere”, sob pena de violação do princípio denão discriminação”, o ocorrido nas escadas exteriores de uma habitação quando o sinistrado se desloque para o seu local de trabalho, onde recebe clientes, e este se situe em anexo à sua residência, ainda dentro de propriedade própria.

~~~~~~~~

Ora, na vigência da legislação revogada havia uma lacuna legal relativamente às situações em que a porta de acesso da habitação dá para uma área exterior, própria ou particular, antes de atingir a via pública a caminho do local de trabalho, lacuna que devia ser preenchida usando a analogia.


A definição atual do conceito de acidente “in itinere” [artigos.8º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), e 9ª, n.ºs 1, alínea a) e 2, alíneas b) e e), da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro], como sendo aquele que ocorre entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e as instalações que constituem o seu local de trabalho e entre estas e o local da sua refeição, apesar de não conter o segmento ”desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública” da norma revogada, é mais ampla, mais abrangente e mais aberta do que a definição constante da lei revogada [artigos 6º, n.ºs 1 e 2º, alínea a) da Lei n.º 100/97, e 6º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e c), do Decreto-lei n.º 143/99].

Com efeito, comparando-se a redação de todos normativos sobreditos e relativos ao conceito de acidente “in itinere”, constata-se que atualmente o acidente, para ser qualificado como de trabalho “in itinere”, não tem de ocorrer na via pública, bastando que ocorra em qualquer ponto do trajeto que liga a habitação do sinistrado e as instalações do local de trabalho, seja a via pública, sejam as partes comuns do edifico se o sinistrado habitar numa das suas frações, seja no logradouro se a habitação for numa moradia, desde que ocorram nos ”trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador”.     

Sobre esta questão e na vigência da LAT, esta 4ª Secção e Supremo Tribunal de Justiça, já se pronunciou no acórdão de 16.02.2016[7],

O seu sumário é o seguinte:


1. Nos termos conjugados do artigo 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e do artigo 6.º, n.º 2, a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, era considerado como acidente “in itinere” o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do sinistrado, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho.

2. No entanto, a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, atualmente em vigor, veio alargar o conceito de acidente de trabalho, ao estipular nos termos dos artigos. 8º e 9.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea b), que se considera acidente de trabalho o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o local de trabalho do sinistrado.

3. Atentas as referidas alterações deve interpretar-se os atuais normativos como integrando no seu âmbito de aplicação o acidente ocorrido nos espaços exteriores à habitação do sinistrado, ainda antes de se entrar na via pública, independentemente de se tratar de espaço próprio deste ou de espaço comum a outros condóminos ou comproprietários, bastando que para tal já tenha sido transposta a porta de saída da residência, desde que a vítima se desloque para o local de trabalho, segundo o trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador

~~~~~~~~


          Sendo esta a jurisprudência deste Supremo Tribunal, e concordando-se com ela, vejamos o caso concreto:

          

          Trata-se de um atropelamento de uma trabalhadora independente, pelo seu marido, ocorrido dentro do logradouro existente na habitação dos seus pais.

          A autora exercia a atividade profissional de agente de seguros por conta própria, no exercício da sua atividade, sendo que explorava uma agência de seguros, situada na Rua … – n.º … (…), na ... e nos dias úteis almoçava habitualmente na residência dos seus pais, situada na Rua ... – n.º …, na ... factos n.ºs 2 a 4.

           No dia 10 de Fevereiro de 2014, pelas 14.00 horas, a Autora foi atropelada pelo veículo com a matrícula ...IU..., o qual era conduzido pelo seu marido, altura em que já estava a deslocar-se da residência dos seus pais, após ali ter almoçado, para a agência de seguros que explorava – factos n.ºs 1, 5 e 5.

               O acidente ocorreu no logradouro da residência dos pais da autora, sendo que essa habitação não tinha acesso direto para a via pública, pelo que o prédio urbano que lhe correspondia tinha uma ligação através de uma rampa para outro prédio urbano que pertencia igualmente aos seus pais e, por sua vez, era este prédio urbano que permitia o acesso à via pública – factos n.ºs 7 a 10.

           Tendo em conta estes factos provados e dado o disposto nos artigos 8º, n.ºs 1, 2, alíneas a) e b), e 9º, n.ºs 1, alínea a), e 2 alíneas b) e e), da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, o acidente dos autos configura um acidente de trabalho “in itinere” e como tal deve ser qualificado, como, aliás o foi.

~~~~~~~~~

           - Se incidem juros de mora desde o dia seguinte ao da alta sobre o capital de remição e até à sua entrega efetiva:

Vejamos as disposições legais, atualmente em vigor, atinentes à mora nos pagamentos das pensões, indemnizações e demais despesas – transporte, medicamentos, médicas, etc.

Do Código de Processo do Trabalho [doravante CPT]:

· Artigo 26º, n.º 1, alínea e):

As ações emergentes de acidente de trabalho e de doenças profissionais têm natureza urgente e correm oficiosamente.

· Artigo 74º:

O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido (…) quando isso resulte de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho [condenação “extra vel ultra petitum”].

· Artigo 114º:

Realizado o acordo, é imediatamente submetido ao juiz que o homologa por simples despacho exarado no próprio auto (…) se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais.

· Artigo 135º:

Na sentença final o juiz (…) fixa também, se forem devidos, juros de mora pelas prestações pecuniárias em atraso.


· Artigos 149º, n.ºs 3 e 4, e 150º:

Fixada a pensão, se esta for obrigatoriamente remível, a secretaria procede ao cálculo do capital que o pensionista tenha direito a receber e, em seguida, o processo vai ao Ministério Público, que após verificar o cálculo, ordena as diligências necessárias à entrega do capital.

*******

Do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro:

· Artigo 78º:

Os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na LAT são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.


· Artigo 48º:

Se do acidente resultar redução na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado por incapacidade permanente parcial – pensão anual e vitalícia correspondente a 70 % da redução sofrida na capacidade geral de ganho ou capital de remissão da pensão termos previstos no artigo 75º - n.º 3, alínea c);

· Artigo 50º:

- A indemnização por incapacidade temporária é paga em relação a todos os dias, incluindo os de descanso e feriados, e começa a vencer-se no dia seguinte ao do acidente (n.º 1).

- A pensão por incapacidade permanente é fixada em montante anual e começa a vencer-se no dia seguinte ao da alta do sinistrado (n.º 2).


§ Artigo 75º:

É obrigatoriamente remida a pensão anual vitalícia devida a sinistrado com incapacidade permanente parcial inferior a 30 % e a pensão anual vitalícia devida a beneficiário legal desde que, em qualquer dos casos, o valor da pensão anual não seja superior a seis vezes o valor da retribuição mínima mensal garantida, em vigor no dia seguinte à data da alta ou da morte.

· Artigo 179º:

O direito de ação respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.

           Do exposto resulta que o regime substantivo e processual, relativos às prestações devidas por incapacidade emergente de acidente de trabalho, constituem um todo harmónico, sendo entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça que o artigo 135º do Código de Processo do Trabalho é uma norma especial em relação ao regime geral do Código Civil (artigos 804º e 805º) no que respeita à obrigação de pagamento de juros de mora.

            Se não fosse assim, não se antevia razão válida para o carácter imperativo do artigo 135º, do CPT, ao obrigar o Juiz a fixar, na sentença, mesmo oficiosamente, os juros de mora, desde que devidos, ou seja, desde que se verifique atraso no pagamento de pensões e indemnizações, mesmo que o sinistrado ou beneficiário não os tenha pedido e independentemente de interpelação e de culpa no atraso imputável ao devedor.

           

           Na verdade, trata-se de direitos de existência e exercício necessários, para a subsistência do sinistrado e sua família, que geralmente vive da sua retribuição e que com o acidente deixa de a receber total ou parcialmente.

           

            Por serem direitos de existência, os créditos de pensões, de indemnizações e dos seus juros de mora, quando devidos, são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis.

           

Ora, sendo o regime do artigo 135º, do CPT, um regime especial em que a mora não depende da demonstração da culpa do devedor, bastando que se verifique o atraso no pagamento, desde que este não seja imputável ao credor [sinistrado], e em que as regras do direito civil quanto à questão da liquidez da dívida são afastadas, pois o facto de o crédito não estar liquidado por razões de natureza processual não impede a constituição em mora.

           Com efeito, estando em causa direitos indisponíveis, trata-se mais de reintegrar – com os juros – o valor do capital na data do vencimento da prestação, do que propriamente da punição do devedor relapso, na ideia de que as prestações derivadas do acidente de trabalho têm natureza próxima dos alimentos, cujo valor deve ser mantido aquando do recebimento.

           Assim, sendo a pensão obrigatoriamente remível, os juros de mora são vencidos sobre o valor do capital de remição a partir do dia seguinte ao da alta e até ao seu efetivo pagamento, ou seja, da sua efetiva entrega.

           

           No mesmo sentido, o acórdão de 10.07.2013, deste Supremo Tribunal de Justiça[8], e no seguimento da sua jurisprudência, decidiu:


1. O artigo 135.º do atual Código de Processo do Trabalho consagra um regime jurídico especial para a mora no domínio das pensões e indemnizações e que se sobrepõe ao regime geral estipulado nos artigos 804.º e 805.º do Código Civil.
2. Sendo a pensão devida emergente de incapacidade permanente parcial inferior a 30%, a qual é obrigatoriamente remida, os juros de mora são devidos desde o dia seguinte ao da alta, sobre o valor do capital de remição e até à sua efetiva entrega, pois, a partir daquela, o devedor incorreu em mora e este capital mais não é do que uma forma de pagamento unitário da pensão anual e vitalícia.

           

            Ora, nos termos das normas conjugadas dos artigos 48º, n.º 3, alínea c), 50º, n.º 2, e 75º, n.º 1, todos da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, estando provado que, como consequência direta e necessária do acidente, a Autora ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 15,00% e que teve alta clínica no dia 31 de Março de 2014 – factos n.ºs 12 e 13 – e sendo a pensão da Autora obrigatoriamente remível, são devidos juros de mora sobre o capital da respetiva remição, desde o dia seguinte ao da alta clínica e até à sua efetiva entrega.   

~~~~~~~~~~~

           . Se o montante de € 5.919,79, a pagar à Autora, por deslocações desta para consultas e tratamentos médicos e em próteses, vence juros de mora desde a data da tentativa de conciliação:

          

          Diz a Ré que esta importância não foi pedida na tentativa de conciliação e que, por isso, sobre ela apenas se vencem juros de mora desde a sua interpelação, ou seja, desde a data da sua citação para a ação.

          

           Ora, como sobredito, de acordo com o disposto no artigo 78º, da LAT, os créditos provenientes do direito à reparação nela estabelecidos são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.

           Acresce que, nos termos dos artigos 23º, alíneas a) e b), e 25º, n.º 1, alíneas f) e g), da LAT, o direito à reparação compreende prestações em espécie e prestações em dinheiro, sendo que prestações em espécie compreende, nomeadamente, o transporte para observação e tratamento e o fornecimento de dispositivos técnicos de compensação das limitações funcionais.

           Assim sendo, tais preceitos são inderrogáveis e têm natureza indisponível – cf. artigo 12º, da LAT.   

           Pelo que, embora a sinistrada não tenha efetivamente reclamado tal quantia na tentativa de conciliação, dada a inderrogabilidade desses créditos, essa circunstância não impede, em obediência ao princípio “extra vel ultra petitum”, que o juiz condene a responsável no seu pagamento e nos respetivos juros de mora, a partir da data da tentativa de conciliação, por ser nela que são indicados os direitos atribuídos ao sinistrado, nomeadamente o direito à reparação - artigos 74º, 109º e 112º, todos do CPT.

          

       
VI

           Pelo exposto delibera-se negar a revista “per saltum” e, em consequência, manter a sentença recorrida.

            Custas pela Recorrente.

            Anexa-se o sumário do Acórdão.

~~~~~~~~~

                                                                                 

Lisboa, 13 de julho de 2017

Ferreira Pinto (Relator)

Chambel Mourisco

Pinto Hespanhol

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[1] - 010/2017 – (FP) – CM/PH
[2] - Negrito e sublinhado nossos.
[3] - Pedro Romano Martinez, Código do Trabalho, 2017 – 8870.ª edição, Almedina, página
[4] - O Acidente de Trabalho – o acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, páginas 168, 173, 179/181.
[5] - Mesma Obra, páginas195/198
[6] - Proferido no Processo n.º 43/09.9T2AND.C1.S1 – 1ª Secção – www.dgsi.pt.
[7] . Proferido no Processo n-º 375/12.9TTLRA.C1.S1.
[8] - Proferido no Processo n.º 941/08.7TTGMR.P1.S1 – www.dgsi.pt.
.