Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
204/13.6TBAMT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: COMPROPRIETÁRIO
LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO
LEGITIMIDADE ADJECTIVA
LEGITIMIDADE ADJETIVA
USUCAPIÃO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
TERRENO
JUNTA DE FREGUESIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
PRAZO RAZOÁVEL
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE EM GERAL / DEFESA DA PROPRIEDADE / COMPROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / PARTES / LEGITIMIDADE DAS PARTES / TRIBUNAL / COMPETÊNCIA INTERNA / COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1311.º, N.º 1 E 1405.º, N.º 2.
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (ETAF), APROVADO PELA LEI N.º 13/2002, DE 19 DE FEVEREIRO: - ARTIGO 4.º, N.º 1, ALÍNEA G).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 30.º, 32.º, N.º 2 E 64.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE CONFLITOS:


- DE 30-10-2014, ACÓRDÃO N.º 15/14;
- DE 07-07-2016, ACÓRDÃO N.º 48/15, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Configurando a presente demanda uma acção de reivindicação (art. 1311.º, n.º 1, do CC), envolvendo o reconhecimento da titularidade do direito de compropriedade sobre determinada faixa de terreno e a sua devolução aos comproprietários, não cabe na previsão do art. 4.º, n.º 1, al. g), do ETAF.

II - Não deve, por isso mesmo, ser atribuída a resolução de tal litígio à jurisdição administrativa, mas sim ao tribunal judicial, atenta a competência residual destes (art. 64.º do CPC).

III - O art. 1405.º, n.º 2, do CC é bem claro quando estabelece que cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este lhe seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro.

IV - Consagra aquela norma a legitimidade de cada comproprietário para a acção de reivindicação, numa situação manifesta de litisconsórcio voluntário activo, pelo que os autores, desacompanhados dos demais com proprietários, são parte legítima (arts. 30.º e 32.º, n.º 2, ambos do CPC).

V - Encontrando-se provado que há mais de 20 anos, reportados à data da propositura da acção, os autores e restantes proprietários das habitações usam uma determinada faixa de terreno, nela passando e estacionando, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a convicção de serem os únicos donos e de a ninguém prejudicar é de considerar que adquiriram por usucapião o direito de compropriedade sobre a questionada faixa de terreno

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA e mulher, BB, instauraram acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra CC, sua mulher, DD, e Freguesia de EE, alegando, em síntese, que:

São donos do prédio urbano descrito no artº 1º da petição inicial.

Para além do prédio urbano dos autores, foram construídos e desanexados da mesma parcela de terreno com a área de 1.000 m2, ao todo 6 prédios urbanos, mantendo-se a parte restante afecta ao uso comum dos respectivos proprietários, destinada ao trânsito de pessoas e acesso de veículos automóveis.

Dessa parte restante faz parte uma faixa de terreno com o comprimento de 30 m e largura variável, mas não inferior a 5 m, que se desenvolve entre o caminho público a poente e a parte da parcela onde foram construídas as habitações e foi destinada pelo vendedor a acesso comum dos 6 prédios à via-pública.

Do lado norte esta faixa de terreno era delimitada dos proprietários confinantes por muro de vedação e suporte de terras e, do lado sul, estava delimitada do restante terreno do vendedor FF por uma borda que foi substituída por um muro de suporte encimado por vedação em rede construído pelos donos das habitações, incluindo os autores e que, num Inverno muito chuvoso ruiu.

Foram os proprietários das 6 habitações que providenciaram pela ligação ao saneamento público no caminho a poente e pelo arranjo e pavimentação em cimento do piso.

A faixa de terreno sempre foi usada pelos proprietários das 6 habitações para acesso a pé e com veículos automóveis e para nela estacionarem os seus veículos.

No interior da faixa, junto ao caminho público, existiu até há alguns anos uma placa a assinalar que se tratava de espaço privado.

Esta faixa de terreno nunca permitiu o acesso a outros prédios que não fossem as 6 habitações.

Há mais de 20 anos que os autores e restantes proprietários das habitações a usam, passando e estacionando na faixa, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a convicção de serem os únicos donos e de a ninguém prejudicar.

Os primeiros réus são donos do prédio urbano descritos nos artºs 29º e 30º da petição inicial. Esse conjunto predial dos primeiros réus confina a sul com a referida parcela.

No início de 2011, os primeiros Réus demoliram uma parte do muro de vedação e suporte de terras na parte que confronta a sul com a faixa de terreno, de modo a abrir para a faixa uma passagem a partir do seu conjunto urbano e, aberta essa passagem, criaram um acesso que pavimentaram e vedaram desde o interior do seu prédio, passando a transitar sobre a faixa, a pé e com veículos, desde o seu prédio para o caminho público a poente.

Os Réus fizeram estes trabalhos ao abrigo da licença de obras nº 199 emitida em 10.09.10, fazendo constar que a parte restante da parcela tem a natureza de caminho público e se denomina ”Travessa GG”.

A segunda ré colocou uma placa toponímica na faixa, com os dizeres “Travessa GG”.

Com tais fundamentos, concluíram por pedir que:

a) Seja judicialmente declarado que os autores adquiriram por usucapião o direito de compropriedade da parte restante da parcela de 1.000 m2, identificada no artº 9º da petição inicial, da qual, faz parte a faixa de terreno descrita nos artºs 14º e 15º;

b) Sejam os primeiros Réus condenados a repor o muro de vedação e suporte de terras dos seus prédios, que confronta do lado sul com a referida faixa de terreno, na parte em que o demoliram, tapando o acesso que criaram a partir do seu conjunto predial, abstendo-se de qualquer trânsito de pessoas ou veículos, ou de qualquer acto de fruição sobre aquela faixa de terreno;

c) Seja a segunda Ré condenada a reconhecer o direito dos autores e a retirar a placa toponímica que colocou na mesma faixa de terreno;

d) Seja fixado um prazo de 15 dias, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, para o cumprimento pelos réus das obrigações fixadas na sentença, sob pena de fixação de uma sanção pecuniária compulsória de 2 UCs por cada dia de atraso na sua realização.

Os Réus apresentaram contestações autónomas a contraporem uma diferente versão sobre a titularidade da dita parcela, alegando os primeiros que o caminho de acesso às 6 moradias já existia antes da construção das mesmas e sempre permaneceu público e afecto à circulação de todos, sustentando a última que o topónimo “Travessa GG” foi aprovado por deliberação da Câmara Municipal de … nº 121/2007 de 12 de Fevereiro, de acordo com proposta sua, aprovada por unanimidade em Assembleia de Freguesia de 09.06.06, fazendo parte da carta toponímica de EE, nela existindo 2 postes de iluminação pública cujos encargos são suportados pelo erário público.

Replicaram os Autores a manter a sua posição inicial.

Foi proferido despacho saneador, a clarificar que a acção corre contra a Ré Freguesia de EE, representada pela respectiva Junta, seguido da identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem censura das partes.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, na total improcedência da acção, absolveu os Réus dos pedidos.

Inconformados, apelaram os Autores, com êxito, tendo a Relação do Porto, após aditar dois pontos ao elenco factual provado, revogado a sentença e decidido o seguinte:

a) Declara-se que os autores adquiriram por usucapião o direito de compropriedade sobre a faixa de terreno identificada no ponto 4 da factualidade provada;

b) Condenam-se os réus CC e mulher DD a repor o muro de vedação e suporte de terras dos seus prédios, que confronta do lado sul com a referida faixa de terreno, na parte em que o demoliram, tapando o acesso que criaram a partir do seu conjunto predial, abstendo-se de qualquer trânsito de pessoas ou veículos, ou de qualquer acto de fruição sobre aquela faixa de terreno;

c) Condena-se a ré Freguesia de EE a reconhecer o direito dos autores e a retirar a placa toponímica que colocou na mesma faixa de terreno;

d) Fixa-se um prazo de prazo de 15 dias, após o trânsito em julgado do presente acórdão, para o cumprimento pelos réus das obrigações fixadas nas als. b) e c);

e) Absolvem-se os réus do pedido de fixação de uma sanção pecuniária compulsória.

Agora inconformados, interpuseram recurso de revista os Réus, finalizando a sua alegação, com as conclusões que se transcrevem:

1 - A compropriedade tem natureza de um direito único com pluralidade de titulares.

2 - Incidindo, como é o caso, o direito de compropriedade sobre a totalidade da faixa de terreno identificada nos autos, e não sobre uma parte determinada da mesma, todos os comproprietários (autores e restantes proprietários) teriam de intervir na acção, o que não sucedeu.

3 - Assim, por preterição de litisconsórcio necessário, a decisão relativa a esse direito de compropriedade jamais poderá produzir o seu feito útil normal, conforme artigo 33º, nº 2, do CPC, uma vez que não vincula os restantes co-proprietários que não são parte na presente acção.

4 - Tal omissão gera a ilegitimidade processual dos autores, que acarreta a absolvição dos réus da instância.

5 - A decisão a proferir nos presentes autos, considerando que os recorridos estão desacompanhados dos proprietários das restantes das habitações, ao contrário do declarado no acórdão recorrido, jamais fará caso julgado, seja formal ou material.

6 - Tais proprietários podem, se pretenderem, propor uma nova acção onde se discuta o direito de compropriedade dos autores sobre a referida faixa de terreno.

7 - Os réus podem, se assim o entenderem, instaurar uma nova acção (acção popular), contra todos os proprietários das habitações, com excepção dos autores, através da qual peçam que tal caminho seja declarado público.

8 - Assim, a decisão desta acção não será oponível aos que nela não intervieram.

9 - Não vinculando a decisão a obter os outros comproprietários que não intervieram na acção, a mesma não produzirá, claramente, o seu efeito útil normal, já que a situação não ficará regulada definitivamente.

10 - ao contrário do referido pelo Acórdão recorrido, a presente acção apenas e exclusivamente terá força de caso julgado inter partes, nada mais.

11 - A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa já julgada com uma tríplice identidade: sujeitos, Causa de pedir e pedido - artigos 580° e 581º do CPC.

12 - Por este ou por um outro fundamento que Vossas Excelências doutamente entenderem ser aplicável ao caso, os autores não podem deixar e ser considerados parte ilegítima, uma vez que não são os únicos titulares da relação controvertida e esta pela sua específica natureza exigir a intervenção de todos os interessados para que a decisão, como se disse, que venha a ser proferida produza o seu efeito útil normal.

13 - A decisão que vier a ser proferida, sem dúvidas, não adquirirá a força de caso julgado quer material quer formal e, por isso, nada obsta a que a ilegitimidade dos autores seja nesta fase conhecida e declarada - artigos 577º e 578º do CPC.

14 - Pelo que, o Acórdão recorrido fez errada interpretação dos factos e aplicou erradamente o direito nesta matéria.

15 - Alguns dos moradores das habitações (nomeadamente HH e II) depuseram clara e terminantemente ao contrário do que alegaram os autores recorridos, isto é, que a mesma não é "privada" e existe lá "postes de iluminação pública", foi colocado "os avisos da toponímia" e ninguém objectou.

16 - Temos a convicção que, neste particular caso e mesmo partindo da premissa de que a alteração da matéria de facto foi correctamente efectuada, que não foi, os ora recorridos não conseguiram lograr provar os elementos constitutivos da posse necessários à aquisição do direito (compropriedade) que almejam, por usucapião.

17 - Os actos que foram dados como provados ab inicio ou alterados em sequência do recurso da matéria de facto interposto da primeira instância pelos recorridos são insuficientes como factos constitutivos de posse do direito de compropriedade conducentes à usucapião desse direito.

18 - A referida actuação apenas poderá ser compreendido como o direito dos autores e proprietários das restantes habitações de acederem aos seus respectivos prédios, aliás, é esta faixa de terreno que permite, unicamente, aos autores e àqueles de entrarem e saírem das suas habitações.

19 - Não conseguem conjecturar os ora recorrentes, possivelmente pela sua pouca ciência, apesar da douta fundamentação expendida no Acórdão recorrido, donde se possa extrair da prova produzida e de toda a prova do processo (também documental), que: "os autores exerceram, durante mais de 20 anos, uma posse originária, pública, pacifica, não titulada e de boa fé sobre a parcela de terreno ...", e assim, por isso, está verificado o elemento objectivo (corpus) da posse.

20 - Os actos que praticados foram-no apenas e exclusivamente com o referido desígnio, sem nunca terem em mente a posse conducente à aquisição originária de qualquer direito maior, propriedade ou compropriedade, foi um uso natural da coisa.

21 - O Acórdão recorrido face ao exercício de um poder de facto (que não perfilhamos) sobre a faixa de terreno em causa entendeu que era de supor que o possuidor autores possuía em nome próprio, sem necessidade de provar o elemento subjectivo da posse.

22 - Se, por simples dedução, que não se concebe, só se verificar o primeiro (que também não cremos), estar-se-á perante uma situação de detenção, que como é consabido é insusceptível de conduzir à dominialidade.

23 - Não se pode presumir a verificação do elemento subjectivo da posse, quando o poder de facto exercido pelos autores e proprietários das restantes habitações sobre a faixa de terreno em causa foi sempre nos termos acima expostos, isto é, como o único acesso a tais habitações, por conseguinte como detentores da utilizarem naturalmente a referida faixa de terreno para entrarem e saírem das suas habitações.

24 - Competia aos autores que se arrogam ser detentores da posse, provar a verificação de ambos os indicados elementos, o que não fizeram, até porque, como resulta dos autos, nem todos os proprietários das habitações em causa, continuam a ser desde a construção e habitação das mesmas, os originários, alguns, como refere o Acórdão recorrido.

25 - A alegação pelos recorridos dos actos materiais constitutivos do corpus sobre o todo (faixa de terreno), apenas pode ser havida relativamente à quota pertença dos outros possuidores, atendendo a que estes possuidores não estão na acção e se desconhece a sua posição, como possuidor precário e, por conseguinte, o direito possuído não pode ser adquirido por usucapião.

26 - Ao considerar que os factos provados importam posse e usucapião dum direito de compropriedade dos autores recorridos sobre a referida faixa de terreno, quando dos factos provados (ainda que não se concorde com alteração das respostas dada a esta matéria, por não ser isso que resulta da prova produzida, designadamente do auto de inspecção e testemunhal), unicamente conduzem à conclusão de que os autores para acederem ao seu prédio só o podem fazer através da dita faixa de terreno, foi incorrectamente decidido pela verificação dos dois apontados elementos de posse, o que acarreta errada aplicação do direito - artigos, entre outros, 342º, 1251º e 1305º do CC.

27 - A toponímia atribuída a esse caminho consubstancia efectivamente de um caminho na medida que serve de acesso (além de outros prédios, como entendem os recorrentes e realmente assim é) às habitações identificadas nos autos, é usufruída por todos aqueles.

28 - Os autores e os restantes habitantes (proprietários das habitações) usam tal toponímia como identificação da sua residência.

29 - Todas as notificações relativas aos serviços públicos que os servem, electricidade, água, telefone, impostos e outras, são efectuadas com base nessa atribuição.

30 - A toponímia foi atribuída no âmbito da competência da Câmara Municipal de …, uma vez submetida parecer da correlativa ré junta de freguesia.

31 - É à jurisdição administrativa que incumbirá em regra, o julgamento de quaisquer acções, pedidos que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.

32 - Pelo que a decisão de tal pedido incumbirá ao Tribunal Administrativo e Fiscal de ….

33 - A incompetência absoluta, como é o caso, configura uma excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa (no caso do apontado pedido), e conduz à absolvição dos réus da instância - artigos artes 576°, nº 1 e 2, 577º, alínea a), 578º, nº 1, 1ª parte e 278°, nº 1, alínea a), do CPC.

34 - É diminuto o prazo fixado na alínea d) do Acórdão, atendendo às obras que terão de ser levadas a efeito, nomeadamente a demolição das executadas e execução de novas, os réus necessitarão, para evitar despesas que podem não conseguir suportar, de pedir orçamentos, analisar os mesmos e adjudicar a obra.

35 - Pelo que, a manter-se a decisão ora impugnada, que não cremos, os réus necessitam que seja fixado um prazo razoável nunca inferior a 60 dias, para que a decisão possa ser cumprida e, assim, evitar nova acção executiva.

Recolhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1 - Os autores são donos de um prédio urbano, composto de casa de habitação de rés-do-chão e logradouro, com a área coberta de 105 m2 e descoberta de 328 m2, sito no lugar de …, Freguesia de EE, concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo 1861 e descrito na Conservatória sob o n.º 2495, registado a favor dos autores em G-1.

2 - Da descrição predial consta que o prédio dos autores confronta do norte com os 1ºs réus CC e mulher DD, do sul com caminho público, do nascente com JJ e do poente com KK.

3 - Para além do prédio urbano dos autores, foram construídos e desanexados da mesma parcela de terreno com a área de 1.000 m2, ao todo 6 prédios urbanos, mantendo-se a parte restante, após a venda das 6 habitações, afecta ao uso comum dos respectivos proprietários, destinada ao trânsito de pessoas e acesso de veículos automóveis.

4 - Dessa parte restante faz parte uma faixa de terreno com o comprimento de 30 metros e largura variável mas não inferior a 5 metros.

5 - Esta faixa de terreno desenvolve-se entre o caminho público a poente e a parte da parcela onde foram construídas as 5 habitações.

6 - E foi destinada pelo vendedor a acesso comum dos 6 prédios à via-pública e vice-versa.

7 - Do lado norte esta faixa de terreno era delimitada dos proprietários confinantes por muro de vedação e suporte de terras.

8 - Do lado sul, estava delimitada do restante terreno do vendedor FF por uma borda que foi substituída por um muro de suporte encimado por vedação em rede construído pelos donos das habitações, incluindo os autores e que, num Inverno muito chuvoso ruiu.

9 - Foram os proprietários das 6 habitações que providenciaram pela ligação ao saneamento público no caminho a poente.

10 - O piso foi arranjado e pavimentado em cimento à custa dos proprietários.

11 - A faixa de terreno sempre foi usada pelos proprietários das 6 habitações para acesso a pé e com veículos automóveis e para nela estacionarem os seus veículos.

12 - No interior da faixa mas junto ao caminho público existiu até há alguns anos uma placa a assinalar que se tratava de espaço privado.

13 - Esta faixa de terreno nunca permitiu o acesso a outros prédios que não fossem as 6 habitações.

14 - Os 1ºs réus CC e mulher DD são donos do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e andar com logradouro com a área coberta de 79 m2 e descoberta de 191 m2 inscrita na matriz sob o artigo 611 e casa de rés-do-chão e andar com logradouro, com a área coberta de 79 m2 e descoberta de 921 m2, inscrita na matriz sob o artigo 718, sito no lugar de …, Freguesia de EE, …, a confrontar do nascente com LL, do norte com MM, do poente com caminho público e do sul com terrenos que foram de FF, descrito sob o nº 3…9-….

15 - Este prédio dos réus confina a sul com a parcela.

16 - No início de 2011, os 1ºs réus demoliram uma parte do muro de vedação e suporte de terras na parte que confronta a sul com a faixa de terreno, de modo a abrir para a faixa uma passagem a partir do seu conjunto urbano e, aberta essa passagem, criaram um acesso que pavimentaram e vedaram desde o interior do seu prédio, passando a transitar sobre a faixa, a pé e com veículos, desde o seu prédio para o caminho público a poente e vice-versa.

17 - Os réus fizeram estes trabalhos ao abrigo da licença de obras nº 199, emitida em 10.09.10, fazendo constar que a parte restante da parcela tem a natureza de caminho público e se denomina “Travessa GG”.

18 - A ré Junta de Freguesia de EE colocou uma placa toponímica na faixa, com os dizeres “Travessa GG”.

19 - Existem na faixa 2 postes de iluminação pública cujos encargos são suportados pelo erário público.

20 - Os autores não estão impedidos de utilizar a faixa e a placa toponímica em nada afecta a sua utilização.

21 - Há mais de 20 anos, reportados à data da propositura da acção, que os autores e restantes proprietários das habitações usam a faixa de terreno descrita em 4, nela passando e estacionando, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a convicção de serem os únicos donos e de a ninguém prejudicar (aditado pela Relação, como se alcança de folhas 301).

22 - Até 2007, a referida faixa de terreno nunca foi objecto de intervenção pela Freguesia de EE (aditado pela Relação, como se alcança de folhas 301).


III – Fundamentação de direito

A apreciação do presente recurso de revista, delimitado pelas conclusões da alegação dos Recorrentes (artigos 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil), resume-se às seguintes questões:

1 - competência do tribunal judicial;

2 - legitimidade dos autores;

3 - Aquisição do direito de compropriedade por usucapião;

4 - Prazo para retirada da placa toponímica;

Vejamos separadamente cada uma dessas questões.

1 – Os Recorrentes afirmam que, estando em causa a titularidade de uma faixa de terreno público, a acção seria da competência do Tribunal Administrativo e Fiscal.

Não têm razão.

Com efeito, a presente demanda configura uma acção de reivindicação (artigo 1311º, nº 1 do Cód. Civil), envolvendo o reconhecimento da titularidade do direito de compropriedade sobre determinada faixa de terreno e a sua devolução aos comproprietários.

Ora, como tem sido unanimemente entendido[1], a ‘reivindicatio’ não cabe na previsão do artigo 4.º, n.º 1, al. g), do ETAF, não devendo, por isso mesmo, ser de atribuir a resolução de tal litigio à jurisdição administrativa, mas sim ao Tribunal judicial, atenta a competência residual destes (artigo 64º do Cód. de Proc. Civil).

Soçobra, pois, neste ponto o recurso.

2 – Seguidamente, os Recorrentes sustentam a ilegitimidade dos Autores, por não se encontrarem acompanhados de todos os comproprietários.

De novo, carecem de razão.

O artigo 1405º, nº 2 do Cód. Civil é bem claro quando estabelece que cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este lhe seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro. Consagrou-se naquela norma a legitimidade de cada comproprietário para a acção de reivindicação, numa situação manifesta de litisconsórcio voluntário activo, pelo que os autores, desacompanhados dos demais comproprietários, são parte legítima (artigos 30º e 32º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil), como bem decidiu o acórdão recorrido.

Improcedem, assim, a argumentação e conclusões dos Recorrentes, no tocante a esta questão.

3 – O acórdão recorrido, na parte referente à impugnação da matéria de facto, depois de escalpelizar os depoimentos testemunhais e analisar criticamente as provas produzidas, concluiu que «pelo menos desde 1980, quer os autores, quer os restantes proprietários das casas referidas em 3 utilizaram a faixa de terreno descrita em 4, desde 1980, pela forma que está descrita nos pontos 8, 10 e 11, agindo com a convicção de serem os únicos donos da mesma e de a ninguém prejudicar».

Os Recorrentes insurgem-se, nas conclusões 15 e 16, questionando essa matéria. Olvidam, no entanto, que na fixação da matéria factual relevante para a solução do litígio a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular por esse Tribunal não cabe sequer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

Este limita-se, no exercício da sua função de tribunal de revista, a definir e aplicar o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados, ou seja, apenas conhece de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto, ou se tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova (cfr. artigo 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e artigos 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

Clarificado isto, e virando o enfoque da nossa atenção sobre a reponderação da decisão da matéria de facto realizada pela Relação, traduzida no aditamento dos pontos 21 e 22 do elenco factual provado, não descortinamos (nem os Recorrentes concretizam) qualquer inobservância dessas regras probatórias. Ao invés, surge ali traçado um trilho argumentativo baseado na análise crítica das provas produzidas, no tocante aos pontos de facto impugnados, para daí, num discurso escorreito e perfeitamente lógico, coerente e convincente, concluir pelo aludido aditamento.

Em bom rigor, o que revelam as conclusões da alegação recursória é que os Recorrentes discordam da apreciação crítica e conjugada da prova feita pela Relação e da convicção que, com base nessa prova e no princípio da livre apreciação, a mesma formou.

Todavia, não se enquadrando tal discordância em quaisquer das excepções a que antes se fez referência, o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa. E, perante esses, em especial os que constam dos pontos 21 e 22 (Há mais de 20 anos, reportados à data da propositura da acção, que os autores e restantes proprietários das habitações usam a faixa de terreno descrita em 4, nela passando e estacionando, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a convicção de serem os únicos donos e de a ninguém prejudicar e até 2007, a referida faixa de terreno nunca foi objecto de intervenção pela Freguesia de EE.”), temos como acertada a decisão da Relação de considerar que os Autores adquiriram por usucapião o direito de compropriedade sobre a questionada faixa de terreno.

Diz o artigo 1287º do Cód. Civil que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.

Daquele preceito e de outras disposições do Cód. Civil, em especial do preceito do artigo 1253º (que discrimina os casos dos que não são havidos como possuidores, mas como meros detentores) deriva que a posse se desdobra em dois elementos: o corpus, ou seja, a relação material com a coisa, e o animus, ou seja, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.

Pode dizer-se que a usucapião é a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à sua posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei. A usucapião tem sempre na sua base uma situação de posse, que pode ter sido constituída ex novo pelo sujeito a quem a usucapião aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor desse sujeito, de posse anterior.

No caso, como bem evidencia o acórdão recorrido e os factos apurados comprovam, não há dúvidas que os autores e os restantes moradores dos prédios referidos no ponto 3 exerceram, durante mais de 20 anos, uma posse originária, pública, pacífica, não titulada e de boa fé sobre a parcela de terreno referida no ponto 4 – cfr. os pontos 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 21 e 22 - , pelo que, contrariamente ao que dizem os Recorrentes, adquiriram, por usucapião, o direito de compropriedade sobre a faixa de terreno descrita no ponto 4.

Improcede, pois, também quanto a esta questão, toda retórica argumentativa arquitectada pelos Recorrentes tendente a refutar a aquisição por usucapião desse direito, decisão da Relação que merecer ser sufragada.

4 – Por fim, questionam os recorrentes a justeza do prazo de 15 dias, após o trânsito em julgado, fixado no acórdão recorrido, para o CC e mulher DD reporem o muro de vedação e suporte de terras dos seus prédios, que confronta do lado sul com a referida faixa de terreno, na parte em que o demoliram, tapando o acesso que criaram a partir do seu conjunto predial e a Freguesia de EE a retirar a placa toponímica que colocou na mesma faixa de terreno.

As obrigações impostas pelo acórdão recorrido são de fácil execução e mostram-se compatíveis com o prazo fixado, não descortinando razão para o ampliar, como pretendem os Recorrentes.

Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas as conclusões dos Recorrentes, a quem não assiste razão em se insurgirem contra o decidido pela Relação que, frise-se, equacionou devidamente a situação em apreço e fez correcta leitura, interpretação e aplicação das atinentes disposições legais, devendo, assim, tal veredicto subsistir.


IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.


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Anexa-se sumário do acórdão (artigos 663º, n.º 7, e 679º, ambos do Cód. Proc. Civil).

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Lisboa, 11 de Abril de 2019


António Joaquim Piçarra (relator)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado

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[1] Cfr, entre outros os acórdãos do Tribunal de Conflitos 48/15 de 07-07-2016 e 15/14 de 30-10-2014, e demais jurisprudência e doutrina neles citadas, acessíveis em www.dgsi.pt.