Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5658/07.7TBALM.L2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
INTERPRETAÇÃO
ARRENDAMENTO
ENFITEUSE
EXTINÇÃO DA ENFITEUSE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO / ENFITEUSE.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 1063.
- Manuel Rodrigues, A Posse, 192.
- Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil", Anotado, 2.ª Edição, III, 580.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1252.º, N.º2, 1287.º, 1492.º, N.º2, 1497.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 62.º, N.º1, 204.º.
LEIS N.º22/87, DE 24-6 E 108/97, DE 16-9, QUE CONFERIRAM SUCESSIVAMENTE NOVAS REDAÇÕES AO CONSTANTE DO DECRETO-LEI N.º 195-A/76, DE 16-3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 9.4.2013, PROCESSO N.º 79/06.1TBODM.E1.S1, EM WWW.DGSI.PT.
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ASSENTO DE 14.5.1996, TRANSCRITO NO BMJ N.º 457.º, PÁGINA 55.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.ºS 14/84, 329/99 E 159/2007.
Sumário :
1 . A palavra “rendeiro” não equivale a “enfiteuta”.

2 . Pedindo a autora que se declare, em pedido principal, ser “rendeira” e “enfiteuta”, a petição inicial é inepta, a menos que se entenda que pretende, face às Leis n.ºs 22/87, de 24.6 e 108/97, de 15.9, beneficiar da conversão do arrendamento em enfiteuse.

3 . Em qualquer caso, estando sanada a eventual ineptidão e resultando do demais texto do pedido, que se reporta à enfiteuse e sua extinção com a constituição do direito de propriedade em favor dela, é sobre a existência de tal direito real e sua extinção que o Tribunal tem de se pronunciar.

4 . Não se chegando – mesmo considerando a via presuntiva – ao “animus” próprio da qualidade de titular do domínio útil, inexiste posse prescricional e, face às normas do Código Civil, não se pode ter a autora como enfiteuta.

5 . São inconstitucionais as Leis referidas em 2, por terem alargado o conceito de enfiteuse para efeitos extintivos quando a extinção desta, nos termos que vinham do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16.3, contrariava as disposições constitucionais relativas à proteção da propriedade privada e aos princípios da igualdade e da proporcionalidade e quando já vigorava disposição constitucional que extinguia aquele direito real.

6 . Não pode, pois, com base nelas, a autora ser considerada enfiteuta.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1 . AA intentou contra:

O Município de Almada;

A presente ação declarativa.


Alegou, em síntese, que:

Em virtude de contrato verbal celebrado há mais de 100 anos, é  “arrendatária/enfiteuta/cultivadora directa” de uma "courela" com edificações, que identifica, das chamadas "Terras da …".

Vem-na possuindo, de modo pacífico, ininterrupto, titulado, de boa-fé e sem qualquer turbação.

E vem pagando a respectiva renda.

O réu comprou aquelas “Terras da …” em 1971/1972.


Pediu, em conformidade:

Que se declare ser ela proprietária das parcelas e edificações que refere;

Que se condene o réu a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer atos turbadores do ser exercício.

“Em consequência” que se declare:

Ser a autora legítima enfiteuta/rendeira/utilizadora/possuidora dos “seus invocados direitos”:

Se condene o réu a reconhecer estes e, “por via desse reconhecimento, a declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se depois os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando a autora na situação de pleno proprietário, radicando a propriedade plena no enfiteuta…”

…………………….



2 . Contestou o réu.

Impugnou a generalidade dos factos alegados;

Negou expressamente que a autora seja, por si e seus antecessores, arrendatária das referidas terras;

Mais referiu que:

Sempre se recusou a receber rendas;

A autora há muito que não explora quaisquer terras no local denominado "Terras da Costa", tendo entregue a terceiros a exploração dos terrenos mediante o recebimento de rendas.

As "construções edificadas no local" nunca forma autorizadas por ele, réu, que sempre se opôs à sua implantação, sendo, assim, ilegais.


…………………………..



3 . A ação prosseguiu a sua tramitação, cujos detalhes agora não importam, e, na altura oportuna, foi proferida sentença.


Julgou-se aquela procedente, declarando-se o direito de propriedade da autora sobre a mencionada parcela e condenando-se o réu a reconhecer esse direito.


Entendeu a Sr.ª Juíza, no essencial, que:

A autora adquiriu, por usucapião, a enfiteuse;

Que, nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16.3, deu origem ao direito de propriedade a favor dela.


…………………..



4 . Apelou o réu e com êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa revogou a decisão recorrida, julgando improcedente o pedido da autora, dele absolvendo o réu.


Baseou-se a Relação, fulcralmente, na negação de que estejam verificados os pressupostos da constituição da enfiteuse por usucapião, estando, consequentemente, prejudicada a questão da constitucionalidade daquele Diploma e dos que o alteraram, enquanto aboliram tal direito fazendo reverter a propriedade para o titular do domínio direto.


………………………..



5 . A folhas 123 e seguintes a autora juntou um Parecer dum Ilustre Professor, com as seguintes conclusões:


“I. Com os elementos disponíveis, resta concluir. Assim:


1.ª A enfiteuse apresenta, nos dois últimos milénios, uma feição multifacetada; como traço distintivo, ela contrapõe-se seja à compra e venda (uma vez que pressupõe um domínio desmembrado) seja à locação (uma vez que tem natureza real, tendencialmente perpétua).

2.ª A evolução nacional traduziu-se em incrementar os direitos e a estabilidade do enfiteuta, firmando, desde 1867, a sua perpetuidade.

3.ª Na determinação da natureza enfitêutica de determinada situação, há que privilegiar os indícios materiais, em detrimento das meras qualificações vocabulares que os interessados lhes tenham atribuído.

4.ª Em 1976, um diploma legal extinguiu a enfiteuse de prédios rústicos, radicando a propriedade plena no enfiteuta; trata-se de uma linha expressamente confirmada pela Constituição.

5.ª A mens legislatoris era, naturalmente, a de beneficiar o verdadeiro enfiteuta, fosse qual fosse a designação que se lhe atribuísse.

6.ª No tocante a enfiteuses de pretérito: elas podem ser provadas por qualquer meio, não dependendo nem de forma, nem de registo.

7.ª A enfiteuse pode-se constituir em moldes unilaterais e, designadamente, por usucapião.

8.ª As Leis n° 22/87, de 24 de Junho e n° 108/97, de 16 de Setembro, vieram alterar o diploma de extinção da enfiteuse no sentido de permitirem uma modalidade específica de usucapião.

9.ª Na versão em vigor, tal usucapião opera perante o cultivo remunerado de terra alheia, desde 15 de Março de 1946, contanto que tenham sido feitas determinadas benfeitorias.

10.ª Tal situação é, assim e dentro da margem do legislador, considerada enfitêutica, podendo transmitir-se em vida e por morte, de modo informal.



II. Os rendeiros das Terras da … reúnem, claramente, todos os requisitos para poderem invocar a enfiteuse, por usucapião, nos termos explicitados.

Quedará fazer declarar judicialmente tal situação, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa.”




A folhas 509 e seguintes a ré juntou dois Pareceres.


No primeiro, dum Ilustre Professor, em colaboração com outrem, concluiu-se:



Em face de tudo o que anteriormente se disse, permitimo-nos extrair, em seguida, algumas conclusões essenciais, de uma forma tão breve quanto possível, adoptando, para o efeito, o critério que presidiu à arrumação da matéria abordada neste nosso trabalho.


A) - DA ANÁLISE DO CASO "SUB JUDICE" AO NÍVEL DO DIREITO CONSTITUCIONAL

I - A Constituição da República, desde a sua versão originária, pretendeu, na sequência de legislação pré-constitucional, a liquidação radical dos encargos e obrigações relacionados com a enfiteuse que impendiam sobre o enfiteuta (titular do domínio útil), dando por assente quem podia, ou não, ser considerado como tal, à luz do regime de enfiteuse estatuído nos artigos 1491.º e seguintes, da versão primitiva do Código Civil de 1966.

II - Mesmo no contexto da "Reforma Agrária" recebida pela Constituição, não se vislumbra qualquer abertura para a extensão do âmbito normativo da enfiteuse sobre prédios rústicos a quem não reunia, na data da entrada em vigor do decreto-Lei n° 195-N76, a qualidade de enfiteuta.

III - A Lei n° 108/97 consagra uma perspectiva radicalmente diversa. A julgar pela interpretação que dela fazem alguns autores, ela impõe a extensão do âmbito normativo da disciplina enfitêutica a "domínios de realidade" que nunca estiveram incluídos no programa normativo constitucional.

IV - Da extensão da enfiteuse a outros âmbitos empíricos resulta uma disciplina legal retroactivamente extensiva do âmbito de proibição do regime enfitêutico.

V - Esta nova disciplina é claramente inconstitucional dados os seus efeitos jurídicos: expropriação ou confisco por utilidade particular de direitos de propriedade protegidos pela Constituição.

VI - E protegidos nos termos do regime dos direitos, liberdades e garantias, pois trata-se de garantir o direito de propriedade contra ingerências ablatórias (cf. arts. 17.º e 18.°/3 da CRP).

VII - Em rigor, em vez de se proceder à extinção da enfiteuse procurou-se recortar uma enfiteuse sem extinção, pois procura-se fazer revivescer um instituto jurídico que está constitucionalmente proibido.

VIII - Com efeito, o legislador de 1997 (Lei n° 108/97) introduziu retroactiva e inovadoramente três maldades congénitas: (l) através do alargamento do âmbito normativo e da "realidade" normativa da enfiteuse; (2) através de transmutação de outros institutos jurídicos em enfiteuse (ex: arrendamento de longa duração); (3) através da constituição de regimes enfitêuticos a favor do titular do domínio útil e com completo desprezo dos interesses do titular directo.

IX - Além de proceder a um confisco ou expropriação retroactiva de "propriedade não enfitêutica", o legislador não curou de saber também do regime indemnizatório por privação desta propriedade.

X - Está em manifesta contradição com as actuais regras e princípios constitucionais ficcionar um novo direito real de enfiteuse a fim de legitimar a expropriação do titular de propriedade plena, sem qualquer indemnização.

XI - A criação de figuras à margem da taxatividade ou do "numerus clausus" dos direitos reais, mas com a pretensão dos mesmos efeitos explicitamente tipificados no Código Civil – designadamente a enfiteuse de prédio rústico cultivado por quem não era proprietário, a "enfiteuse iniciada com posse em termos de arrendamento", "equiparação à enfiteuse do arrendamento de longa duração" - é, portanto, duplamente inconstitucional. Por um lado, cria novas figuras desapropriativas sem assento constitucional. Por outro lado, legitima actos ablatórios da propriedade sem qualquer previsão do regime de indemnização (CRP, art. 62.ª/2).


B) - DA ANÁLISE DO CASO "SUB JUDICE" NO PLANO DO DIREITO CIVIL


I - A existência de uma irremissível dimensão histórico-cultural do Direito constitui, hoje em dia, um tópico pacífico, quer a nível geral, quer no plano do Direito Civil e, dentro deste, dos Direitos Reais (ou Direito das Coisas) em particular.

Todavia, não deve sobrevalorizar-se o relevo desta dimensão, pois, na compreensão das normas vigentes, a História “ajuda e coopera, mas não escraviza”.


II - A “leitura” da História e do jurídico nela quanto à génese, evolução e sentido da enfiteuse no nosso ordenamento permite afirmar que esta apresenta-se, entre nós, pelo menos a partir do Código Civil de 1867 ('Código de Seabra") – se não antes, no essencial, já desde as Ordenações Afonsinas – , como um instituto perfeitamente definido e consolidado, quer a nível conceptual e jurídico, quer mesmo no plano terminológico.

III - E, obviamente, é neste quadro, e só nele, que o caso sub judice deve ser analisado. Pelo que, na nossa opinião e salvo o devido respeito, carece de sentido chamar à liça, a propósito do caso dos autos- e, primo conspectu pelo menos, com o intuito de tirar vantagem disso – e eventuais manifestações, concepções ou denominações remotas da enfiteuse ou com esta de algum modo associadas, que, a terem existido, se encontram há muito perimidas.

IV - Assim, na experiência jurídica portuguesa, a concepção de enfiteuse (emprazamento ou aforamento) que se consagrou – primeiro, no “Código de Seabra" (cfr. o artigo 1653.°), e depois, no Código Civil de 1966 (cfr. o artigo 1491.°), foi a do desmembramento ou fraccionamento do direito de propriedade em dois domínios paralelos que versam sobre o mesmo prédio - o "domínio directo" e o "domínio útil" –, perfeitamente autónomos e separados entre si, “funcionando cada um deles vi sua e nessa medida in re sua, com o seu próprio conteúdo, inconfundível com o do outro.


V - E a nível terminológico, temos que: o titular do domínio directo só por tradição histórica se denomina "senhorio"; ao titular do domínio útil dá-se, tão-somente, o nome de "foreiro " ou "enfiteuta"; e à obrigação a satisfazer por este ao "senhorio" chama-se, apenas, "foro" (ou "cânon", como também se dizia no "Código de Seabra").


VI - Neste quadro de fundo, o regime da enfiteuse em ambos aqueles nossos Códigos Civis é, nos seus traços essenciais, idêntico, descontando alguns aspectos atinentes à modernização da figura introduzidos pelo Código Civil de 1966 (na sua versão primitiva), a saber: a emancipação do instituto em face do contrato de aforamento; a eliminação da transferência do domínio útil como único processo de gestação da relação enfitêutica; a afirmação inequívoca da natureza real do direito enfitêutico.


VII - Na sequência da aludida concepção de enfiteuse, a qualificação de uma pessoa como enfiteuta no aspecto que, in casu, interessa especialmente realçar pressupõe e implica, entre o mais, que ela tenha o poder de usar e fruir o prédio como coisa sua, em termos que, neste campo, a equiparam ao proprietário pleno, autorizando-a, vi sua et sponte sua, a alterar a forma e a substância da coisa e a modificar mesmo o seu destino económico (cfr. a alínea a) do artigo 1501.° do Código Civil de 1966, na sua versão originária).


VIII - Além disso, há um outro aspecto que, entre nós, marca indelevelmente o regime enfitêutico em ambos aqueles Códigos Civis e que assume particular relevância no caso dos autos: a perpetuidade da enfiteuse (cfr. os artigos 1654.° do "Código de Seabra" e 1492,° do actual Código Civil, na sua versão primitiva).

Dai que, sendo a perpetuidade uma característica essencial ou indefectível do instituto, ambos aqueles Códigos considerem como arrendamento todos os contratos que, no futuro, fossem celebrados por tempo limitado, com o nome e a forma de enfiteuse (cfr. os artigos 1654.º, n.º 2, do "Código de Seabra" e 1492.º,n.º 2, do Código Civil de 1966, na sua versão originária).


IX - Deste modo, a perpetuidade constitui, por si só, um “índice seguro” do carácter real do direito enfitêutico, que permite, desde logo, a distinção, no comércio jurídico, entre a posição jurídica do enfiteuta e a do arrendatário.

Isto, porque o direito obrigacional do arrendatário é sempre, por definição, temporário, quer se trate de um arrendamento a curto ou a longo prazo e por mais prorrogações (voluntárias ou automáticas) que haja do vínculo locatício e, em consequência, por mais que este se prolongue no tempo.


X - Ora, no caso sub judice - e, atendo-nos, como se impõe, aos elementos constantes dos autos –, não pode deixar de considerar-se juridicamente significativo que a Autora demonstre ter um perfeito conhecimento daquilo que distingue a enfiteuse do arrendamento (cfr. o artigo 5° da Petição Inicial).

Pondo em evidência não só que a enfiteuse “pressupõe um domínio desmembrado”, mas também, e sobretudo, a perpetuidade enquanto nota essencial do carácter real do direito enfitêutico, em contraste com o direito obrigacional do arrendatário, que é, por definição, temporário.



XI - Coisa que, a uma luz mais funda, não surpreende, atendendo, apertis verbis e além do mais, a que, por um lado, a enfiteuse constitui um “tipo corrente” de direito real de gozo, e, por outro, o contrato de arrendamento apresenta-se, há muito, com uma acentuada “tipicidade social”, com tudo o que isto pressupõe e implica.

O que, na nossa perspectiva, toma incomum, se não impossível, qualquer fusão-confusão, pelo vulgo, entre a enfiteuse e o arrendamento.


XIl - Neste contexto – e apesar de a tarefa de qualificação jurídica dos factos articulados pelas partes ser, em último termo, uma competência exclusiva do juiz (cfr. o artigo 664.° do Código de Processo Civil) –, pensamos que não pode deixar de atribuir-se relevância jurídica ao facto de a Autora sabendo, com exactidão, que a enfiteuse se diferencia do arrendamento – afirmar (confessar), de uma maneira assertiva e reiterada, que o exercício do(s) direito(s) que se arroga sobre os terrenos objecto do litígio era efectuado na qualidade de arrendatária/rendeira.


XIII - Mais concretamente: com base em " um contrato de arrendamento" com uma duração anual, iniciando-se a 1 de Outubro e cessando em 30 de Setembro seguinte; "renovável "; que teria sido celebrado verbalmente com um anterior proprietário e alvo de sucessivas prorrogações (voluntárias ou automáticas), mantendo-se, ainda hoje, em vigor (cfr., entre outros, os artigos 36º, alínea c), e 50º da Petição Inicial).



XIV - Ademais, verifica-se que a Autora, ao assumir insistentemente a veste de arrendatária/rendeira dos terrenos objecto do litígio, proporciona todos os elementos necessários para caracterizar, sem margem para qualquer dúvida, este seu alegado vinculo como locatício.

Fazendo-o, seja utilizando repetidamente teimas e conceitos exclusivos da relação jurídica de arrendamento, seja pondo em relevo, para lá do pagamento em dinheiro de uma “renda anual”, a duração limitada desse vínculo, identificando, ao dia, o respectivo início e termo.



XV - Ora, a nosso ver, é a própria Autora que fornece, deste modo, um " indício material" (na sua terminologia) ... - visto tratar-se de uma mera descrição fáctica de uma realidade naturalística (a duração de um contrato ou o prazo de um vínculo), e não de uma qualificação jurídica -, que, em si e por si, toma lícito concluir, com segurança e independentemente do resto, que:

i) ela não é, nem poderá ter sido vez alguma, enfiteuta;

ii) nem se considerou, ou poderia considerar-se, como tal, não obstante reclamar agora, sob essa capa, o direito de propriedade sobre os terrenos litigados, ao abrigo do regime de extinção da enfiteuse sobre prédios rústicos (cfr. o Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei n° 22/87, de 24 de Junho, e pela Lei n° 108/97, de 16 de Setembro).



XVI - Cingindo-nos, como se impõe, aos elementos constantes dos autos no estádio processual em que o caso sub judice se encontra, a posição jurídica do Réu (Município de A/mada) quanto aos terrenos objecto do litígio é a de que, desde 1972, é o legitimo titular registal do direito de propriedade plena sobre tais terrenos [Cfr. a alínea A) dos "Factos Assentes'], com tudo o que isto pressupõe e implica, designadamente por força do disposto no artigo 1305.° do Código Civil e no artigo 7.° do Código do Registo Predial.



XVII - Sendo certo que a Autora:

i) não põe minimamente em causa a existência, validade e procedência dos contratos-títulos mediante os quais o Réu (Município de Almada) adquiriu o direito de propriedade plena sobre esses terrenos: as escrituras públicas de compra e venda celebradas em 16/11/1971 e 17/03/1972 (cfr. os artigos 408.°, n.º1, 879.°, alínea a), 1316.° e 1317.°, alínea a), todos do Código Civil);

ii) e também não questiona, sequer de uma forma longínqua, a validade do registo definitivo de tal aquisição a favor do Réu (Município de Almada), invocando alguma das causas de inexistência ou ele nulidade do mesmo, previstas, respectivamente, nos artigos 14.º e 16.º do Código do Registo Predial.



XVIII - Donde é forçoso concluir, na nossa óptica, que, cabendo à Autora, enquanto parte interessada, o ónus de ilidir o efeito da presunção (juris tantum) de titularidade do direito de propriedade plena resultante do registo (cfr. o artigo 7.º do Código do Registo Predial) de que goza o Réu (Município de Almada), “mediante prova em contrário” (cfr. o artigo 350.°, n.º 2, do Código Civil), aquela não o fez.



XIX - Nem vemos como possa fazê-lo, em face de uma “leitura” atenta dos elementos constantes dos autos, sabendo-se, ademais, que tal “prova em contrário” exige a alegação e prova, de um modo positivo, de que a titularidade desse direito não pertence ao Réu (Município de Almada), nos moldes oportunamente referidos,



XX - Por seu turno, a posição jurídica da Autora quanto aos terrenos objecto do litígio, como já se antecipou, flui, desde logo, do facto de a Autora, de uma maneira assertiva e reiterada, se afirmar - e, mais do que isso, confessar, na nossa opinião -, sem qualquer sombra ou reserva, como arrendatária/rendeira desses terrenos – muito embora se intitule, aqui e ali, "enfiteuta/rendeira/utilizadora/possuidora", ou "rendeira/enfiteuta/cultivadora directa", ou "enfiteuta/arrendatária"[sic].



XXI - Assim, considerando apenas a duração limitada desse alegado vinculo claramente identificada e demarcada, ao dia, pela Autora -, resulta, sob qualquer prisma, que, a ter existido tal vínculo, entre a Autora - ou seu(s) antecessor(es) - e o anterior proprietário dos terrenos litigados não se poderia ter estabelecido qualquer relação enfitêutica.



XXII - Entre outras, pelas seguintes razões essenciais:

i) - para que isso ocorresse, seja a título contratual – a natureza que, como se viu, emergia do instituto da enfiteuse à luz do "Código de Seabra" –, seja a título de direito real – faceta que, como também vimos, o Código Civil de 1966 (na sua versão originária) emancipa do contrato de aforamento e enfatiza -, exigia-se que o vínculo fosse perpétuo;

ii) - contudo, a vontade das partes, descrita pela própria Autora, nunca foi a de criar um qualquer vínculo perpétuo - fosse enfitêutico, ou de outra natureza -, mas, sim, a de estabelecer uma relação jurídica de duração limitada(anual ), passível (eventualmente) de renovação por igual período;

iii) - e que esse mesmo alegado vínculo contratual tenha sido sucessivamente prorrogado não pode, como é óbvio, transmitir-lhe a nota de perpetuidade, constitutiva e indefectível da enfiteuse, por mais prorrogações (voluntárias ou automáticas) que dele tenha havido e, em consequência, por mais que ele se tenha prolongado no tempo.



XXIII - Ora, o facto confessado pela Autora – na qualificação que dele fazemos, pelos motivos oportunamente indicados – de ter exercido sobre os terrenos litigados o(s) direito(s) que invoca com base num contrato (acordo) de duração anual impossibilita, em definitivo, classificar a posição jurídica que se arroga como sendo a de enfiteuta.



XXIV - Com efeito:

i) mesmo que, a ter existido tal vínculo, as partes houvessem classificado tal contrato como enfitêutico, a lei é, em absoluto, clara: se estipulado por tempo determinado, o contrato celebrado com o nome de enfiteuse (emprazamento ou aforamento) seria tido como arrendamento (cfr. os artigos 1654.º,n.º 2, do "Código de Seabra" e 1492.º,n.º, do Código Civil de 1966, na sua versão primitiva);

ii) acresce, no que toca em particular à Autora, que esta, como já se adiantou, revela conhecer perfeitamente os institutos em causa - a enfiteuse e o arrendamento -, assim como os seus principais traços constitutivos e distintivos (cfr., desde logo, o artigo 5.º da Petição lnicial);

iii) e, justamente por se considerar arrendatária/rendeira, alega, entre o mais, que fez nos terrenos litigados diversas “benfeitorias» com “autorização” (ou “sem oposição”) do Réu (Município de Almada) – independentemente de tais “benfeitorias” e “autorização” terem existido, pois trata-se, relembre-se, de matéria de facto considerada controvertida e, por isso, levada à “Base lnstrutória";


iiii) sendo certo que o enfiteuta tem a faculdade de usar e fruir o prédio como coisa sua em termos equiparáveis ao proprietário pleno, podendo alterar, vi sua et sponte sua, a forma e a substância da coisa e modificar mesmo o seu destino económico, sem necessidade, é claríssimo, de autorização seja de quem for.



XXV - Por outro lado, há que atender, como frisámos a seu tempo, às consequências (efeitos) de direito que, na nossa opinião, podem (devem) extrair-se das alíneas C) e D) dos "Factos Assentes", de acordo com a “leitura” que delas fazemos no contexto significativo em que se inserem.



XXVI - Assim, pensamos, desde logo, que:

i) o ora Réu (Município de Almada), ao denunciar para o seu termo (30 de Setembro de 1972) o contrato de arrendamento, ao abrigo do qual entendia que a ora Autora – ou seu(s) antecessor(es) – cultivava as parcelas de terreno objecto do presente litígio, mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 17 de Julho de 1972, procedeu de uma forma regular, tempestiva e plenamente eficaz, à luz do regime jurídico então aplicável;

ii) pelo que tal contrato - a ter existido, pois trata-se, relembre-se, de matéria de facto considerada controvertida e, por isso, levada à "Base Instrutória"-- cessou no fim do respectivo prazo (30 de Setembro de 1972);

iii) a posição assumida pela Autora ante essa comunicação de denúncia foi, tão-só, a de que, considerando-se arrendatária (cultivadora directa) de tais parcelas de terreno, se recusava a entregá-las porque tinha um direito de retenção sobre as mesmas enquanto não fosse paga do montante das benfeitorias que nelas alegadamente realizara;

iiii) atitude esta que configura da sua parte um reconhecimento inequívoco, ao menos de uma forma tácita, de que o direito de propriedade plena sobre essas parcelas de terreno pertencia ao ora Réu (Município de Almada);

iiiii) e, além disso, permite concluir - para que não se colida de todo com a experiência da vida e até o senso comum - que a Autora não invocou, então, a qualidade de titular do domínio útil - ou seja, o direito em que alicerça agora o seu pedido simplesmente porque não se considerava enfiteuta, mas, sim e apenas, arrendatária/rendeira, como, aliás, se declara (confessa) ainda hoje.



XXVII - Centrando-nos no plano actual ou empírico em que a posse se localiza. a Autora apenas poderá ter tido, quando muito e no limite, sobre as parcelas de terreno objecto do litígio posse nos termos correspondentes ao exercício do direito de retenção, com o sentido e o alcance muito restritos a que oportunamente se aludiu.



XXVIII - Acontece, porém, que a Autora, em sede de pedido, reclama que o Tribunal: (i) declare que ela é " legítima enfiteuta/rendeira/ utilizadora/possuidora" [sic] dos terrenos objecto do litígio; (ii) e, em consequência, condene o Réu (Município de Almada) a reconhecer tais direitos; (iii) "e, por via desse reconhecimento, declare judicialmente a enfiteuse, por usucapião"; (iiii) e, ainda, que, com a subsequente extinção da enfiteuse, a coloque na posição de proprietária dos terrenos litigados, ao abrigo do regime legal de abolição do direito enfiteutico.



XXIX - Contudo, salvo o devido respeito, tal pretensão carece, na nossa perspectiva, de qualquer fundamento.

Entre outras, pelas razões a seguir enunciadas, com a brevidade possível:

i) como se sabe, a aquisição, por usucapião, baseia-se, em primeira linha, na existência de posse de uma coisa nos termos correspondentes ao direito de propriedade (uti dominus) ou de outro direito real de gozo não excluído, ope legis, da usucapião (cfr. os artigos 1251.°, 1287.° e 1293.° do Código Civil), e com uma intenção de domínio que não deixe dúvidas quanto à sua autenticidade, confomme a posse ad usucapionem exige;

ii) por conseguintete, a invocação pela Autora de uma hipotética constituição, por usucapião, da enfiteuse (antes da sua abolição, em 1976) sobre os terrenos obiecto do litígio apenas teria algum senso, independentemente do resto, se aquela tivesse exercido poderes de facto ou empíricos em termos de pleno uso e fruição do prédio (corpus) com intenção de agir como titular do domínio útil (animus emphytheutae);

iii) ora, como vimos, a Autora descreve, qualifica e assume - na nossa opinião, confessa – reiteradamente a sua qualidade ele arrendatária/rendeira de tais terrenos e, por isso, é uma mera detentora ou possuidora em nome de outrem (cfr. o artigo 1253.°, alínea c), do Código Civil vigente, a que pertencem as normas a seguir citadas, salvo indicação em contrário), e não possuidora em sentido verdadeiro e próprio (cfr. o artigo l251.º);

iiii) verificando-se que não se encontra sequer minimamente alegado que tenha havido inversão do título da posse (cfr. os artigos 1263.°, alínea d), e 1265.°), de modo a configurar por parte da Autora a aquisição (originária) de posse em termos do domínio útil- ou seja, o direito no qual alicerça o seu pedido - sobre os terrenos objecto do litígio;

iiiii) muito pelo contrário, a Autora acentua, expressis verbis, que cultivava esses terrenos com “autorização expressa” do ora Réu (Município de Almada) c que as obras (“benfeitorias”) aí alegadamente feitas foram realizadas com “autorização e consentimento” deste, o que, por si só, evidencia que não houve qualquer inversão do título da posse independentemente de tais “benfeitorias” e “autorização” terem existido, pois trata-se, repete-se, de matéria de facto considerada controvertida e, por isso, levada à "Base Instrutória";

iiiiii) donde flui que a simples detenção por parte da Autora na qualidade de arrendatária/rendeira é, em si mesma, totalmente incompatível, por definição, com a posse em nome próprio dos tet1'enos litigados e, logo, com a constituição, por usucapião, da enfiteuse (até à sua abolição, em 1976) sobre eles (cfr. o artigo 1287.°), por não se ter invertido o título da posse (cfr. o artigo 1290.° ).



XXX - Acresce que, como já se antecipou, a atitude ela Autora - ou seu(s) antecessor (es) – ante a mencionada comunicação de denúncia do contrato de arrendamento que lhe fora dirigida pelo ora Réu (Município de Almada), em 17 de Julho de 1972, foi, tão-só, a de que era arrendatária (cultivadora directa) das parcelas ele terreno objecto do presente litígio.

E, ao proceder assim, reconheceu, ao menos tacitamente, que o direito de propriedade sobre estas pertencia ao Réu (Município de Almada).



XXXI - O que obstaria, de per si, à possibilidade de a Autora reunir as condições para adquirir, por usucapião, o domínio útil de tais parcelas, aquando da extinção do regime enfitêutico, operada pelo Decreto-Lei n° 195-A/76, de 16 de Março – no qual, relembre-se, alicerça o seu pedido – mesmo que, sem conceder, se considerasse, hipoteticamente, que a Autora tinha posse em termos daquele direito.



XXXII - Pelas razões em seguida enunciadas, com a brevidade possível:

i) como se sabe, nos termos previstos no artigo 325.° do Código Civil – a que pertencem os preceitos a seguir citados, salvo indicação em contrário aplicável à usucapião, com as necessárias adaptações, ex. vi do disposto no artigo 1292.º o reconhecimento do direito provoca a interrupção do prazo necessário para usucapir;

ii) e, no caso em apreço, temos por seguro que o reconhecimento, mesmo que apenas tácito, é relevante, porquanto resulta, sem dúvida alguma, de factos que inequivocamente o exprimem (cfr. o n° 2 do artigo 325.º);

iii) sucede que, como é também sabido, a interrupção inutiliza para a usucapião todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo (cfr. o n.º1 do artigo 326.°, aplicável à usucapião, com as devidas adaptações, por força do disposto no artigo 1292.°) - ou seja, in casu, a comunicação de denúncia do contrato dirigida pelo Réu (Município de Almada) à Autora, em 17 de Julho de 1972 – e, além disso, acarreta a alteração superveniente da eventual boa-fé do possuidor em má-fé (ex vi das disposições conjugadas do artigo 481.°, alínea a), do Código de Processo Civil c do artigo 325.ºdo Código Civil);

iiii) pelo que, sem prejuízo do que se disse relativamente à inexistência de posse em termos de domínio útil (ou, aliás, de qualquer direito real de gozo) por parte da Autora sobre as parcelas de terreno em causa, quando a enfiteuse sobre prédios rústicos foi abolida pelo Decreto-Lei n° 195-A/76, de 16 de Março, ainda não teria decorrido o prazo legalmente necessário para a Autora poder usucapir tal direito.



XXXIII - Ora, do regime de extinção da enfiteuse sobre prédios rústicos – consagrado no Decreto-Lei n° 195-A/76, de 16 de Março, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 22/87, de 24 de Junho, e pela Lei n.º 08/97, ele 16 de Setembro –, na nossa “leitura» e em apertada síntese, resulta – cingindo-nos aos aspectos que aqui interessa particularmente frisar -, entre o mais, o seguinte:

i) em primeira linha – e sem prejuízo da verificação (cumulativa) dos requisitos estabelecidos nas alíneas a) e b) do n° 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, na redacção dada pela Lei n.º 108/97, de 16 de Setembro –, só pode “pedir o reconhecimento da constituição da enfiteuse por usucapião” ao abrigo do regime especial para o efeito previsto na lei quem, à data da extinção da enfiteuse sobre prédios rústicos - ou seja, 16 de Março de 1976, que é a data da publicação e entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, através do qual se operou tal extinção - tinha posse (ad usucapionem em termos do domínio útil sobre o prédio (ou sua parcela) em causa – cfr. o n.º 6 do Decreto-Lei n.º 195-/1/76, de 16 de Março, aditado pela Lei n° 108/97, de 16 de Setembro;

ii) a necessidade ele tal posse se ter mantido durante, pelo menos, o período de trinta anos que antecede imediatamente a data da extinção da enfiteuse sobre prédios rústicos (16 de Março de 1976) - ou seja, entre 15 de Março de 1946 e 15 de Março de 1976 -, podendo o interessado (no sentido exposto), para tanto, socorrer-se do mecanismo da acessão da posse, nos termos gerais (cfr. o artigo 1256.° do actual Código Civil) – cfr. a alínea a) do n° 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei n° 195-A/76. de 16 de Março, na redaccão dada pela Lei n.º 108/97, de /6 de Setembro, em conjugação com o n° 6 da mesma norma, aditado por esta lei;

iii) prazo mínimo este que corresponde ao prazo de trinta anos previsto no Código Civil de 1867 (cfr. o artigo 529.°) para a “prescrição aquisitiva” (hoje, usucapião) de imóveis, no caso de, inexistindo registo da posse, faltar o justo titulo e a boa-fé;

iiii) e que era aplicável à situação possessória prototípica, em 16 de Março de 1976, dos potenciais interessados na “constituição da enfiteuse por usucapião” - e que, em concreto, seria, no caso dos autos, a situação da Autora, se tivesse posse (ad usucapionem) em termos do domínio útil, que não tinha -, por força, entre outras, das disposições conjugadas dos artigos 12.º, 297.n.º1, e 1296.° do Código Civil vigente e dos artigos 476.º, 517.°, 518.° e 529.° do Código Civil de 1867 a que se teria ele recorrer;

iiiii) donde flui em suma, que tal regime especialmente previsto para a constituição por usucapião da enfiteuse sobre prédios rústicos contempla apenas quem, à data ela extinção desta figura (16 de Março de 1976) e sem prejuízo da verificação (cumulativa) dos requisitos acima aludidos, tinha posse (ad usucapionem) em termos deste jus in re e estava, nessa altura, em condições de invocar a respectiva constituição por usucapião, mas, por qualquer motivo, não o fez ou não conseguiu fazê-lo antes daquela extinção

iiiiii) pois, caso contrário, não se colocava o problema, ou, dito de outra maneira, não havia necessidade de estabelecer o mencionado regime especial de “reconhecimento da constituição da enfiteuse por usucapião”.



XXXIV - Há que reconhecer, porém, que tudo isto está muito pouco explícito na letra da lei.

De todo o modo, conquanto esta seja realmente um mau ponto de partida, não vemos como dela possa inferir-se outro entendimento, a não ser que se abstraia em absoluto do complexo normativo e significativo em que as alterações introduzidas no Decreto-lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, seja pela Lei n° 22/87, de 24 de Junho, seja pela Lei n° 108/97, de 16 de Setembro, se inserem.



XXXV - Urgindo, a este respeito, ter presente, desde logo e inter alia, que:

i) as alterações introduzidas por estes dois últimos diplomas no Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 ele Março, visaram, a seu tempo e a seu modo, apenas “facilitar aos foreiros a prova do seu direito” nos casos de aforamentos sem título nem registo, ultrapassando as dificuldades existentes na prática, c não dispensá-los ou liberá-los, de forma alguma, da prova da constituição da enfiteuse por usucapião;

ii) na interpretação-aplicação das normas resultantes de tais alterações, não pode (deve) abstrair-se da ratio legis subjacente à abolição ela enfiteuse sobre prédios rústicos, operada pelo Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, que, conforme se depreende do respectivo preâmbulo, teve um claro e primordial escopo emancipatório dos “pequenos agricultores” enfiteutas;

iii) sendo manifesto que a mens legislatoris foi a de beneficiar, tão-só, quem era enfiteuta, à data ela entrada em vigor do citado Decreto - Lei n.º 195-A/76 - ou seja, 16 de Março de 1976 -, dando por assente quem podia, ou não, ser considerado como tal, à luz do regime da enfiteuse estatuído nos artigos 1491.° e seguintes da versão primitiva do Código Civil de 1966;

iiii) por outro lado, é óbvio que, a partir de 16 de Março de 1976, deixou de ser legalmente admissível a enfiteuse sobre prédios rústicos, sendo nulos os actos tendentes à sua constituição para futuro, ex vi das disposições conjugadas dos artigos 1306.º, n° 1, e 294.°, do Código Civil;

iiiii) e é também evidente que essa inadmissibilidade legal se estende à constituição da enfiteuse por usucapião com base em situações de facto surgidas no terreno após 16 de Março de 1976 e que consubstanciem, ainda que de uma maneira camuflada, um renascimento ou uma revivescência da figura

iiiiii) pela meridiana razão de que tais situações não configuram a existência de posse nos termos correspondentes a um direito real de gozo previsto na lei – sem a qual não há, consabidamente, usucapião (cfr. o artigo 1287.º do Código Civil) -, como passou a ocorrer com a enfiteuse, depois de esta ter sido abolida.



XXXVI - Acresce que com a ulterior proibição do “regime de aforamento” consagrada na Constituição da República Portuguesa de 1976, a referida abolição da enfiteuse sobre prédios rústicos passou a dispor de uma explícita credencial constitucional.

Com os inerentes reflexos ao nível do Direito Civil, atendendo, sobretudo, ao princípio da taxatividade ou do "numerus clausus" dos direitos reais (cfr. o artigo 1306.º n° 1, do Código Civil), de entre os quais sobressai a impossibilidade, de jure Constitutionis, de o legislador ordinário:

i) não só reintroduzir a enfiteuse como tipo legal de direitos reais de gozo, mas também legitimar ou caucionar, seja a que pretexto for, as mencionadas situações de facto surgidas no terreno após 16 de Março de 1976 e que consubstanciem, ainda que veladamente, um renascimento ou uma revivescência da figura:

ii) nomeadamente, dando cobertura jurídica, através da usucapião – ou, rectius, sob a capa tão-só formal deste instituto – a tais situações de facto, sob pena ele se violar quer a lei ordinária, quer (materialmente) a Constituição.



XXXVII - Na linha do exposto, e salvo o devido respeito, dissentimos por completo da tese segundo a qual nas duas alíneas do n° 5 do artigo 1.º do Decreto - Lei n0195-A/76, de 16 de Março, na redacção dada pela Lei n° 108/97, de 16 de Setembro, se consubstanciam “indícios" de usucapião”, que, uma vez reunidos, dispensam “os requisitos "normais" da usucapião, com relevo para a posse em nome próprio” – ou seja, os requisitos plasmados nos artigos 1287.° e seguintes do Código Civil vigente.

Pelo que tratar-se-ia de uma “modalidade específica de usucapião” ex lege, em que, pura e simplesmente, não se exige que haja posse.

Sendo que, para nós, só é possível, e inteligível – tanto em termos histórico-culturais e jurídico-dogmáticos como de Direito Comparado – falar de usucapião quando há posse, e posse em nome próprio, pois é sabido que aquela constitui, ab origine e natura sua, um efeito (defectível) desta.



XXXVIII - Na mesma ordem de ideias, e salvaguardando de novo o devido respeito, não pode aceitar-se, igualmente, a opinião de acordo com a qual sendo o interessado em afirmar-se enfiteuta um mero detentor – ainda que com uma detenção qualificada (in terminis juris) enquanto arrendatário – o disposto no citado n.º 5 do artigo 1.º do Decreto - Lei n.º 195-A/76, na redação dada pela Lei n° 108/97, dispensa em relação a ele “qualquer inversão do título e, ainda, o próprio animus emphytheutae”, a fim de poder beneficiar do aludido regime especial de constituição, ex lege, da enfiteuse por “usucapião”.

O que, a nosso ver, traduz, desde logo e para além do mais, uma inexacta compreensão do que é o instituto da posse.

Atendendo a que há uma relação biunívoca ou de interdependência entre os dois elementos que a posse coenvolve no sistema possessório subjectivo que vigora entre nós, tradicionalmente designados por corpus e animus, não existindo, pois, corpus sem animus, nem animus sem corpus.



XXXIX - Urge também deixar bem claro que, salvo o devido respeito, divergimos em absoluto do entendimento de harmonia com o qual o n° 5 do artigo 1.º do Decreto - Lei n.º 195-A/76, na redacção que lhe foi dada pela Lei n° 108/97, veio “permitir equiparar os arrendamentos de muito longa duração à enfiteuse, desde que tenha havido benfeitorias consideráveis, devidamente quantificadas”.



XL - Entre outras, pelas seguintes razões fundamentais:

i) na "letra" e no "espírito" da Lei n.º 108/97, não há nada que permita inferir uma tal equiparação dos arrendamentos de muito longa duração à enfiteuse, ou, por qualquer forma, a legitime ou caucione;

ii) se essa tese valesse (e temos por seguro que não), constituiria, a todas as luzes, um enorme retrocesso histórico e jurídico-dogmático, que não se poderia ter por admitido, em face de tudo quanto vimos sobre o trajecto de evolução da enfiteuse e a sua consolidação definitiva, a nível conceptual, jurídico e até terminológico, pelo menos a partir do Código Civil de 1867 –se não antes, no fundamental, já desde as Ordenações Afonsinas;

iii) maximamente, no tocante à distinção entre enfiteuse e arrendamento, a qual, como se referiu oportunamente, se tomou, porventura, ainda mais nítida a partir da altura em que os arrendamentos por dez anos ou tempo superior foram desequiparados da enfiteuse pelo Marquês de Pombal.



XLI - Por fim, na linha do que se disse e salvaguardando uma vez mais o devido respeito, não podemos também partilhar de todo em todo a ideia segundo o qual, na versão em vigor, a “modalidade específica de usucapião” que as Leis n° 22/87, de 24 de Junho, e n° 108/97, de 16 de Setembro, vieram permitir “opera perante o cultivo remunerado de terra alheia, desde 15 de Março de 1946, contanto que tenham sido feitas determinadas benfeitorias”, “devidamente quantificadas”. E que “tal situação é, assim e dentro da margem elo legislador, considerada enfitêutica”.



XLII - Entre outros, pelos seguintes motivos essenciais:


i) tal ideia não se compagina com a ratio legis subjacente ao Decreto - Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, e com a concepção de enfiteuse enquanto desmembramento ou fraccionamento do direito de propriedade em dois domínios paralelos - o "domínio directo" e o "domínio útil" -, em que o mesmo diploma se alicerça, nos termos já aludidos;

ii) concepção essa que, natura sua e independentemente do resto, é incompatível em absoluto com uma pretensa “enfiteuse” constituída mediante uma alegada “modalidade específica de usucapião” que, acentue-se, “opera perante o cultivo remunerado de terra alheia”, pelo simples facto de que, tratando-se de “terra alheia”, não estamos perante um desmembramento ou fraccionamento do direito de propriedade e, portanto, a figura da enfiteuse;

iii) ora, por certo que o legislador não se alheou, na letra e no espírito Lei n.º 108/ 97, de 16 de Setembro, deste elemento basilar, com tudo o que ele pressupõe e implica, pois, de outro modo, tal lei, conforme se sublinha logo na respectiva epígrafe, não incidiria “sobre a extinção da enfiteuse ou aforamento”;

iiii) não há, assim, qualquer “margem do legislador” da Lei n.º 108/ 97, de 16 de Setembro, que permita, digamos, uma como que transubstanciação de uma indiferenciada situação de “cultivo remunerado de terra alheia” em uma situação “considerada enfitêutica”;

iiiii) o que, se fosse o caso (e temos por seguro que não), configuraria uma insólita decisão legislativa -- e, mais do que isso, subreptícia, porque não claramente assumida -, tomada a pretexto de introduzir alterações ao Decreto - Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, mas que nada teria a ver com a enfiteuse e, ipso facto, com este diploma.



XLII - Em consequência de tudo quanto ficou dito, e voltando ao caso sub judice, pretendendo a Autora adquirir o direito de propriedade sobre os terrenos objecto do litígio, tendo directamente como causa de pedir uma lei (lato sensu) – ou seja, sob um outro prisma, um “título” em sentido amplo – que, como vimos e pelo que vimos, não lhe pode ser aplicada, o seu pedido não poderá ser atendido.

Lei (lato sensu) essa que é, aqui, o citado Decreto - Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n° 22/87, de 24 de Junho, e pela Lei n° 108/97, de 16 de Setembro.



XLIII - Ora, como se sabe, a sentença deve responder, exclusivamente, ao pedido e à causa de pedir, sendo por eles limitada, no tocante à decisão emanada.

Pelo que, em face dos termos do pedido e da causa de pedir que a Autora delimitou na presente acção, permitimo-nos acrescentar que, na nossa óptica, nada mais haverá a decidir.



XLIV - Mais precisamente, vigora nesta matéria, como se conhece, o princípio do pedido (cfr. os artigos 3.º,n.º1, 467.°, n.º1,e) e I93.º, n.º 2, a), do Código de Processo Civil), que condiciona a actividade jurisdicional.

Assim, à luz deste princípio, o Juiz não pode estender a sua actividade decisória para além do pedido (ne eat iudex ultra petita partium), pois o processo só se inicia mediante o impulso das partes que, através do pedido e da defesa, circunscrevem o thema decidendum, e não por iniciativa do Tribunal, o qual não tem que saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa de pedir.

Donde resulta que – cingindo-nos, como se impõe, aos elementos constantes dos autos no estádio processual em que se encontra o caso sub judice –, temos que não caberá às instâncias judiciais, designadamente:

i) determinar se a Autora pode, ou não, ser considerada proprietária do prédio objecto do litígio por outra via diferente da referida há momentos – pois não foi essa a solicitação que lhe foi dirigida;

ii) e, ainda, decidir se a Autora, não sendo proprietária, tem com base em outro título qualquer, outro direito (real ou obrigacional) sobre tal prédio – pois também não foi essa a solicitação que lhe foi feita.



XLV - O que vale, nomeadamente, para as pretensões formuladas na Petição Inicial pela Autora ainda que a latere, digamos – no sentido de ver reconhecida a seu favor a aquisição (originária) do direito de propriedade sobre o objecto do litígio, mediante a acessão industrial imobiliária de boa-fé (cfr. o artigo 1340.° do Código Civil), e, ainda, no sentido de ser aplicável à sua situação o instituto da superfície.

Pretensões estas cuja inconsistência, salvo o devido respeito, é, na nossa opinião, manifesta, independentemente do que se disse sobre o princípio do pedido que condiciona a actividade jurisdicional.



XLVI - Assim, no tocante à inconsistência da pretensão da Autora no sentido de ver reconhecida a seu favor a aquisição (originária) do direito de propriedade sobre o objecto do litígio, mediante o instituto da acessão industrial imobiliária (Cfr. o artigo 1340.° do Código Civil) - a que é dedicada uma parte significativa da Petição Inicial –, cumpre, inter alia, reter, em apertada síntese, o seguinte:

i) a norma constante do artigo 1340.° do Código Civil - rectius, na hipótese resultante das disposições combinadas dos seus n.ºs 1 e 4 – exige a verificação cumulativa de um conjunto de requisitos ou pressupostos de carácter substantivo, de entre os quais sobressai o da boa-fé (psicológica) do autor da incorporação (cfr. o n° 4 daquele preceito);

ii) in casu, a boa-fé (psicológica) da Autora – ou seu(s) antecessor(es) – imporia que ela desconhecesse, ao efectuar as obras (“benfeitorias”) que alega ter feito nos terrenos objecto do litígio, que as realizava em terreno alheio; ou que, em alternativa, tivesse sido autorizada para tal pelo Réu (Município de Almada);

iii) o que cabe à Autora provar, como elemento constitutivo do direito por ela invocado (cfr. o artigo 342.°, n° I, do Código Civil), resolvendo-se a dúvida sobre a realidade deste facto contra a Autora, pois é a parte a quem o mesmo aproveita (cfr. o artigo 516.° do Código de Processo Civil);

iiii) ora, é certo que a Autora alega, em vários artigos da Petição Inicial, que efectuou de “boa-fé”, nos terrenos objecto do litígio, aquilo a que chama “benfeitorias” (e, às vezes, “melhoramentos”) – “edificações”/“construções”/”casas”, especificando, amiúde, que o fez com a “autorização” ou o “consentimento” (ou, como também diz, “sem oposição”) do Réu (Município de Almada);

iiiii) sendo que a matéria de facto a que se acaba de aludir foi considerada controvertida e, por isso mesmo, levada à “Base lnstrutória”;

iiiiii) no entanto, temos por seguro que, em face de uma “leitura” atenta dos elementos factuais constantes, à data, dos autos, a autora não poderá invocar, com um mínimo de verosimilhança, que, no momento em que, alegadamente, efectuou as obras descritas na sua Petição, desconhecia que os terrenos objecto do presente litígio eram alheios ou que foi autorizada pelo dono desses terrenos – o Réu (Município de Almada) – a fazê-las.

XLVII - Na verdade, há, desde logo, diversos elementos constantes dos autos que, na nossa opinião, demonstram a impossibilidade de a Autora desconhecer o carácter alheio dos terrenos objecto do presente litígio.

Entre outras, pelas seguintes razões essenciais:

i) em primeiro lugar, relembre-se que, conforme já se salientou, a Autora, de uma maneira assertiva e reiterada, afirma .. e ,mais do que isso, confessa, na nossa opinião - que era (é) arrendatária/rendeira dos terrenos objecto do presente litígio;

ii) ora, neste contexto, o que está em jogo não é saber se esse vinculo locatício que a Autora invoca existiu, ou não; é, sim e tão-só, o facto de a Autora, ao assumir a qualidade de arrendatária/rendeira - e nos termos em que o faz – não poder manifestamente alegar que desconhecia o carácter alheio dos terrenos objecto do presente litígio;

iii) na verdade, o contrato de arrendamento, como já se frisou, para além da tipicidade legal de há muito adquirida, goza de uma “tipicidade social”, que, no mínimo, torna de fácil percepção pelo vulgo que o objecto locado não pertence ao locatário, mas, sim, ao locador (senhorio);

iiii) por isso, impõe-se concluir – até para que não se colida de todo com o senso comum – que, in casu, a Autora, ao assumir-se, nos moldes aludidos, como arrendatária/rendeira dos terrenos objecto do presente litígio, não podia deixar de saber que os mesmos eram alheios;

iiiii) em segundo lugar, importa levar em linha de conta, neste âmbito, que, como vimos, decorre das alíneas A), C) e D) dos "Factos Assentes" que a atitude da Autora ou seu(s) antecessor (es) – ante a mencionada comunicação de denúncia do contrato de arrendamento das parcelas de terreno objecto do presente litígio que lhe fora dirigida pelo Réu (Município de Almada), em 17 de Julho de 1972, configura da sua parte um reconhecimento, ao menos tácito, de que o direito de propriedade plena sobre tais parcelas de terreno pertencia ao Réu (Município de Almada);

iiiiiii) portanto, e para os efeitos agora em causa, os factos descritos e tidos como provados naquelas alíneas dos "Factos Assentes" demonstram, à evidência, que a Autora tem - se não antes, a partir de l7 de Julho de 1972 ,- perfeito conhecimento de que os terrenos objecto do litígio pertenciam ao Réu (Município de Almada).

XLVIII - Desta forma, como a Autora, na nossa óptica, não podia desconhecer, e não desconhecia, que os terrenos objecto do litígio eram alheios, restava-lhe provar que a incorporação que alega ter realizado foi autorizada pelo dono desses terrenos, ou seja, o Réu (Município de Almada).

Todavia, existem, nos autos, elementos que, na nossa perspectiva, demonstram a impossibilidade de a Autora ter sido autorizada, expressa ou tacitamente, pelo ora Réu (Município de Almada) a efectuar tal incorporação.

De entre os quais, avultam os seguintes:

i) da alínea C) dos "Factos Assentes" resulta exactamente o oposto do que a Autora alega: a única realidade que temos como provada é o facto de o Réu (Município de Almada) ter instado, em 17 de Julho de 1972 - e, já antes, em 28 de Julho de 1970,quando era apenas promitente - adquirente dos terrenos em causa, nos termos e condições a que a seu tempo aludimos – a Autora a entregar as terras que cultivava, e que são objecto do presente litígio, em 30 de Setembro ele 1972;

ii) o que, ao invés ele demonstrar qualquer autorização (ou permissão) relativa às construções e cultivos que a Autora alega ter feito, manifesta, isso sim, desaprovação pela simples permanência daquela nesses terrenos; c, por lógica maioria de razão, a realização de quaisquer obras, sementeiras ou plantações nos mesmos;

iii) verifica-se, pois, que, ab initio, a Autora teve a oposição do Réu (Município de Almada) para desenvolver qualquer actividade nos terrenos litigados, e, na Petição Inicial, não se detecta qualquer elemento que sequer indicie (e muito menos prove) uma alteração daquela atitude do Réu (Município de Almada);

iiii) acresce que, de acordo com a melhor doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, oportunamente referidas, as obras feitas pelo arrendatário, nessa qualidade, no terreno arrendado, mesmo com a autorização do respectivo dono, devem ser consideradas corno benfeitorias, não podendo conduzir, em caso algum, à aquisição do direito de propriedade sobre esse terreno por acessão industrial imobiliária (cfr. o artigo 1340.° do Código Civil);

iiii) orientação esta que se aplica ao caso sub judice, pois, corno se relembrou há pouco, a Autora, de uma maneira assertiva e reiterada, afirma – e, mais do que isso, confessa, a nosso ver que era (é) arrendatária/rendeira dos terrenos objecto do presente litígio:

iiiii) isto, sublinhe-se, mesmo que a Autora conseguisse provar, conforme alega, que o dono dos terrenos em causa – ou seja, o Réu (Município de Almada) – a tinha autorizado, na qualidade de arrendatária/rendeira, a fazer tais obras - hipótese que, pelos motivos acima indicados, arredamos de todo em todo.



XLIX - Por seu turno, a inconsistência da pretensão formulada pela Autora no sentido de ver aplicado à sua situação o instituto ela superfície ressalta, entre o mais, do seguinte:

i) como se sabe, o direito de superfície, enquanto jus in re aliena incluído na categoria dos direitos reais de gozo (ou utilização), consiste exclusivamente na faculdade de fazer ou de manter, perpétua ou temporariamente, plantação ou obra própria em um prédio alheio (cfr. o artigo 1524.° do actual Código Civil);

ii) ora, desde logo, o pretenso direito de superfície que a Autora invoca nunca poderia ter sido adquirido ao abrigo da Lei n° 2030, de 28 de Junho de 1948, peja seguinte razão meridiana: no âmbito desta lei, só o Estado, as autarquias locais e as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa podiam constituir, em terrenos do seu domínio privado, o direito de superfície; e este apenas era admitido para as construções (ad aedificandum), não para as plantações (ad plantandum);

iii) deste modo, esse hipotético direito de superfície só poderia ter sido adquirido pela Autora na vigência do Código Civil de 1966, por uma das formas neste previstas (cfr. o artigo 1528.°);

iiii) o que, atentas as circunstâncias do caso dos autos, equivale a dizer que, num plano meramente conjectural, a Autora só poderia ter adquirido tal direito ou por contrato, ou por usucapião, mas não alega seja o que for que se prenda, minimamente, com qualquer uma destas formas de aquisição;

iiiii) sendo certo que a via contratual de constituição do direito de superfície pressupunha, como requisito de validade, a exigência de escritura pública, ex vi do disposto no artigo 89.°, alínea a), do Código do Notariado de 1967, então em vigor;

iiiiii) e que, por sua vez, a aquisição por usucapião desse pretenso direito de superfície pressupunha, como é sabido, que a Autora tivesse a posse correspondente, com determinadas características (posse pacifica e pública) e por certo lapso de tempo; e, além disso, que invocasse, expressa ou implicitamente, a usucapião (cfr. o artigo 303.°, aplicável, com as necessárias adaptações, à usucapião, ex vi do disposto no artigo 1292.°, ambos do actual Código Civil ).





No segundo dos Pareceres junto pela ré, também elaborado por um Ilustre Professor, conclui-se:


19. Enunciado das conclusões


Do exposto, é possível apresentar as seguintes conclusões, que sustentam um juízo geral de inconstitucionalidade material da legislação ordinária que aboliu a enfiteuse relativa a prédios rúticos, apenas conferindo indemnizações simbólicas a um grupo restritíssimo de proprietários, na medida em que essa legislação:

a) É materialmente inconstitucional por violar a garantia constitucional da propriedade privada, ao determinar um efeito extintivo do domínio direto do senhorio desacompanhado de uma justa indemnização, nem sequer se percebendo os interesses gerais que pudessem justificar tal drástica opção;

b) É materialmente inconstitucional mesmo considerando que, a posterior, a nova Constituição Portuguesa solidificou a opção legislativa ordinária de abolir a enfiteuse porque tanto o período constitucional provisório como o período constitucional definitivo correspondem a ordens jurídico-constitucionais em que vigoram direitos fundamentais, deles não se excluindo o próprio direito de propriedade, à semelhança do que sucedeu noutros casos paralelos;

c) É materialmente inconstitucional por violar o princípio do Estado de Direito, na vertente do princípio da protecção da confiança, por esta legislação ter sido aplicada retroactivamente na determinação do efeito extintivo do domínio direto através da manipulação ex post facto dos requisitos da aquisição do direito de enfiteuse por via da usucapião, pondo em crise a regra constitucional segundo a qual as restrições dos direitos, liberdades e garantias – no caso, o direito de propriedade como um direito, liberdade e garantia análogo – não podem aplicar-se retroativamente;

d) É materialmente inconstitucional por violar o princípio do Estado de Direito, na vertente do princípio da igualdade, porque não se vislumbra a razão de ser de a enfiteuse rural não merecer uma justa indemnização, ao mesmo tempo que na abolição da enfiteuse urbana se admitiu essa possibilidade. 



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6 . Pede revista a autora.


Conclui as alegações como segue:


PRIMEIRA

Deparamo-nos no presente processo com uma análise comparativa ou "bifronte" de PARECERES DE JURISCONSULTOS:

1. Da autoria do SR. PROF. MENEZES CORDEIRO, fls. 124-198;

2. Da autoria do SR. PROF. Gomes Canotilho, do SR. DR. Abílio Vassalo Abreu, fls. 511-823;

e do SR. PROF. Bacelar Gouveia, fls. 824-902.

SEGUNDA

E, enquanto o TRLx concordou com o 2.º Parecer, o recorrente, por sua vez, e com o devido respeito, opta e acompanha a sábia posição do SR. PROF. MENEZES CORDEIRO.

TERCEIRA

A A. AA sente que está bem escudada, ancorada e segura na sabedoria do DOUTO PARECER do SR. PROF. MENEZES CORDEIRO, que prima pela brevidade, consistência e clareza histórico-jurídica.

QUARTA

Também a SENTENÇA do TJ Almada de 22-07-2013, de fls. , assentiu com o Parecer do Sr. Prof. Menezes Cordeiro, bem como com o ACÓRDÃO do TR Porto de 08-11-2010, in www.dgsi.pt.

QUINTA

Por sua vez, os interessantes estudos referidos nos Pontos 26 e 27 dão razão à recorrente.

SEXTA

A enfiteuse é de feição multifacetada e de natureza real tendencialmente perpétua, devendo privilegiar-se os indícios materiais, em detrimento de meras qualificações vocabulares atribuídas pelos interessados.

SÉTIMA

Sucessivas gerações de agricultores mais que bicentenárias da Costa de Capa rica fizeram prolongada e alargadamente dos solos estéreis, das areias, das dunas, as terras francas, areno-argilosas, as atuais hortas férteis da Costa de Caparica.

OITAVA

Outros querem-se apropriar delas!

NONA

E a A./ora recorrente, esta mulher agricultora da Costa de Caparica exerceu e continua a exercer largamente a sua ação produtiva naquela terra/solo que lhe está adstrita(o) por sucessão/transmissão de seus antecessores mais que bicentenários.

DÉCIMA

Deste modo e neste contexto temporal-espacial, a A. enraizada numa sucessão hereditária mais que bicentenária foi e é enfiteuta e preencheu/preenche cumulativamente todos os requisitos legais.

DÉCIMA PRIMEIRA

Consequentemente, a A. AA é proprietária das parcelas/talhões cultivados nas Terras da Costa da Caparica, como está corretamente reconhecido pela DOUTA SENTENÇA do TJ Almada ed 22-07-2013, de fls. .

DÉCIMA SEGUNDA

Com o documento que ora se requer a junção aos autos (Doc. n.º 1) PARECER TÉCNICO - ECONÓMICO AGRÁRIO sobre CAPITAL BENFEITORIAS EM AGRICULTURA, por Alberto de Alarcão, Investigador e Professor Coordenador fica claramente comprovada a perpetuidade da relação enfitêutica com e para além da relação contratual, porquanto o contrato não esgota nem exaure a enfiteuse.

Na verdade, o contrato não aniquila a ENFITEUSE.

DÉCIMA TERCEIRA

As normas aplicadas pela sábia SENTENÇA do TJ ALMADA de 22-07-2013, de fls. , não enfermam seguramente de qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade, louvando-se a A. AA no ACÓRDÃO do Tribunal Constitucional n.º 159/2007, de 06-03-2007, acessível no endereço seguinte: www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos200701159.

DÉCIMA QUARTA

Compete agora ao Venerando STJ desempatar a análise comparativa ou "bifronte" entre 2 pareceres e 2 Decisões do TJ Almada e do TRLx.

DÉCIMA QUINTA

No caso vertente está estabelecida toda a sequência de transmissão do domínio útil dos prédios rústicos e urbanos desde o bisavô até à própria justificante A., com comprovação plena da invocada "posse pública, pacífica e contínua da A. e antecessores, com o respetivo "animus", integrando também o alegado regime foreiro e sua extinção, radicando a plena propriedade na A. enfiteuta e justificante.

DÉCIMA SEXTA

E provada essa posse a ação teria de ser, como foi julgada procedente no TJ Almada, na sua parte útil e dinâmica, qual seja a do reconhecimento da propriedade dos ditos prédios, colocando a A. na situação de plena proprietária, radicando a propriedade plena na enfiteuta.

DÉCIMA SÉTIMA

Está ainda por apreciar e decidir a magna questão da legalidade/constitucionalidade profusamente abordada quer nos PARECERES juntos aos autos pelas partes, quer nos ACÓRDÃOS dos Tribunais Superiores expressamente referenciados pela A. e pelo Réu Município de Almada, que revelam oposição frontal.

DÉCIMA OITAVA

Donde, face às razões legais e constitucionais expendidas, deve decidir-se dar a revista, com as legais consequências.

PELO EXPOSTO, e nos mais de Direito que VV. Ex.as/COLENDOS CONSELHEIROS doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido/recebido por legal, oportuno, tempestivo e fundado, julgando-o procedente por provado, com as consequências legais, revogando o ACÓRDÃO do TRLx de 20-03-2014, de fls. , e repristinando a SÁBIA SENTENÇA do TJALMADA de 22-07-2013, de fls. , porque legal e constitucional.

 



Contra-alegou a Câmara Municipal de Almada, rebatendo, ponto por ponto, os argumentos da contraparte.



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7 . Na abordagem do presente caso, há, logo à partida, que ter em conta o constante do pedido, redigido nos seguintes termos:

“Termos em que a presente acção deve ser considerada procedente por provada e, em consequência:

a) - Declarar-se ser a A. a legítima proprietária das parcelas e edificações dos autos; e

a) - Condenar-se o Réu/Município de Almada reconvindo a reconhecer tal direito e a abster-se de quaisquer actos turbadores do seu exercício.

b) - Sempre com custas…

Em consequência,

1. Deverá declarar-se ser a A. legítima enfiteuta/rendeira, utilizadora/possuidora dos seus invocados direitos; e

2. Condenar-se o Réu/Município de Almada/CM Almada a reconhecer à A. os referidos direitos e, por via desse reconhecimento, declarar judicialmente a enfiteuse, por usucapião, seguindo-se, depois, os trâmites legais relativos à extinção da enfiteuse em causa, colocando a A. na situação de plena proprietária, radicando a propriedade plena no enfiteuta, na linha expressamente confirmada pela Constituição.”

 

Perante esta redação, das duas uma:

Ou a palavra “rendeiro” foi empregue como sinónimo de “enfiteuta” ou como de “arrendatário”.

No caso de ter sido empregue no sentido de “arrendatário”, ainda há que distinguir:

Ou o foi no sentido que lhe é conferido pelo contrato de locação, pretendendo-se que se declare subsistir tal contrato;

Ou considerando o contrato de arrendamento como “porta de entrada” para, face ao disposto nas Leis n.ºs 22/87, de 24.6 e 108/97, de 16.9 – que infra melhor se examinarão – se chegar à enfiteuse e, depois, à sua extinção em favor do titular do domínio útil.  


O sentido de que “rendeiro” equivale ou pode equivaler a “enfiteuta” não tem correspondência no n.º3 do artigo 1491.º do Código Civil, nem tradição na nossa linguagem jurídica.


Mas, se assim foi (impropriamente) usado, o resultado da interpretação do pedido não difere do que emerge da consideração do segundo daqueles sentidos.

Nem como veremos, colhe a aplicação daquelas Leis no sentido da transmutação do arrendamento em enfiteuse.


A interpretação mais consentânea do pedido, de acordo com o teor da parte narrativa da p.i., vai no sentido de que é pedida concomitantemente a declaração de arrendatário (com contrato de arrendamento subsistente) e de enfiteuta.


Como melhor veremos infra, a definição de enfiteuse constava do n.º1 do artigo 1491.º, n.º 1 do Código Civil. É o desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados direto e útil.

No artigo seguinte referia-se ter natureza perpétua, sem prejuízo do direito de remição, nos casos em que é admitido.

Mais se referindo que os contratos celebrados com o nome de emprazamento, aforamento ou enfiteuse, mas estipulados por tempo limitado, são tidos como arrendamento.


Quer em virtude do desmembramento da propriedade, quer em virtude da natureza perpétua (ainda que com uma ressalva) a enfiteuse distingue-se do arrendamento. É um direito real, contraposto a este que, no melhor dos entendimentos, tem natureza obrigacional.


Sendo assim, sobre a mesma coisa, os direitos são incompatíveis: não se pode ser, ao mesmo tempo, enfiteuta e arrendatário.

Nem o direito pode ser exercido em alternativa. Ou se tem uma qualidade ou outra.



Daqui concluímos que, se corresponder a palavra “rendeiro” a “arrendatário”, com subsistência do contrato de arrendamento, a autora, que não colocou os pedidos numa relação de subsidiariedade, cumulou pedidos substancialmente incompatíveis, integrando a previsão da segunda parte da alínea c) do n.º2 do artigo 193.º do Código de Processo Civil (artigo 186.º, n.º2 c) do NCPC).

Aliás, a ineptidão já vem, nesta hipótese, da causa de pedir, nos termos da primeira parte da mesma alínea, quando a autora – artigos 4.º e seguintes da p.i. – invoca os factos integrantes da enfiteuse e, nomeadamente nos artigos 26.º, 27.º, 28.º e 36.º, al. c), invoca os que fundamentam o arrendamento.


Certo é, porém, que a nulidade daí resultante está sanada, atento o disposto no artigo 206.º, n.º 2 daquele Código (200.º, n.º2 do NCPC).


Ora, o demais constante do pedido, nomeadamente a referência a declaração judicial da enfiteuse e a “propriedade”, afastam a ideia de que o Tribunal tem de se pronunciar, ou também de se pronunciar, sobre a relação locatícia também aludida no petitório.


Esta ideia está, aliás, em perfeita conformidade com o conteúdo das alegações de revista.


Outrossim, a pretensão relativa à declaração do direito de propriedade tem aqui contornos específicos. A petição inicial e, também aqui, as alegações da revista só traçam um caminho de surgimento desse direito: é o derivado – na construção que fazem – do direito de enfiteuse e do que emergiu da extinção desta figura. Nomeadamente a usucapião invocada não é a que, diretamente, determinaria o surgimento do direito de propriedade a favor da autora, mas a que determinaria a favor desta o surgimento do seu direito de enfiteuta, o qual, uma vez extinto, daria – sempre no seu modo de ver – origem à referida propriedade.    



Podemos, então, enunciar nos seguintes termos as questões que temos de resolver :

A autora foi enfiteuta do prédio?

Por extinção da enfiteuse, tornou-se proprietária do mesmo? 

    


………………………….



8 . Dizia o artigo 1497.º do Código Civil que a enfiteuse podia ser constituída por contrato, testamento ou usucapião.


O contrato – já o referimos – terá de ter como conteúdo o desmembramento da propriedade de modo perpétuo.

Ora os contratos invocados são referidos na mencionada alínea c) do artigo 36.º da petição como “contratos de arrendamento verbais, com início em 1 de Outubro e termo em 30 de Setembro seguinte, renováveis…”

A referência a um termo confirma a designação invocada de contratos de arrendamento, não podendo ser tidos como geradores duma relação enfiteutica, logo pelo princípio geral, supra referido, de que a temporaneidade caracteriza a relação locatícia, excluindo esta, com reforço “expressis verbis” no aludido artigo 1492.º, n.º2.

Para além disso, se necessário fosse, sempre haveria que atender faleceria a forma exigida para tal tipo de contratos (cfr-se o artigo 5.º da enumeração factual).


……………………..


9 . Seguindo o artigo 1497.º. temos que o testamento como constitutivo da enfiteuse, aqui não está em causa.


……………………………………


10 . Fica, então, a usucapião.

A usucapião deve ser encarada, “prima facie” nos seus termos gerais resultantes dos artigos 1287.º e seguintes.

Depois, há que ponderar a vinda a lume das Leis n.º22/87, de 24.6 e 108/97, de 16.9, que conferiram sucessivamente novas redações ao constante do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16.3.


…………………………..



11 . Por força logo daquele artigo 1287.º, a usucapião tem como pressuposto, além do mais, a posse.

A posse é constituída por dois elementos:

O “corpus” e o “animus”.

O “corpus” é constituído pelo poder de facto, efetivo ou virtual, sobre a coisa.

O “animus” corresponde à intenção de agir como titular do direito real em causa.


No presente caso, o constante dos pontos 5.º, 11.º a 15.º, 17.º e 20.º do elenco factual, pode integrar o “corpus” correspondente à posse do domínio útil. Como pode integrar o “corpus” correspondente a outros direitos reais, mormente ao direito de propriedade. Como pode não integrar elemento da posse, correspondendo apenas ao exercício de direitos próprios do arrendatário ou do comodatário.


……………………



12 .  É na vertente subjetiva que tem de surgir a clareza sobre a relevância daquele.

Ora, sobre esta vertente nada consta dos factos provados.


O vazio sobre os factos integrantes do “animus” poderia, atento o disposto no n.º 2 do artigo 1252.º do aludido Diploma Legal, com o sentido e alcance, que subscrevemos, conferido pelo Assento deste Tribunal de 14.5.1996, transcrito no BMJ n.º 457.º, página 55, ser colmatado com recurso à via presuntiva.

Mas tal via está aqui afastada.

Primeiro porque o “animus” que se presume – à falta de outros elementos – é o próprio do direito de propriedade (assim, Manuel Rodrigues, A Posse, 192) e aqui não está em causa a aquisição direta da propriedade pela via da usucapião, estando-o apenas pela via da usucapião do domínio útil e (invocada) extinção da enfiteuse.

Depois, porque a petição inicial alude a “posse da autora, na qualidade de rendeira e proprietária das edificações” (artigo 50.º) para, no artigo seguinte, se referir que “ a posse das parcelas de terreno e das casas…., sendo inequívoco que é direito da A., na qualidade de arrendatário/proprietário, a fruição…”, nunca invocando factos correspondentes ao “animus” de enfiteuta.

Depois ainda porque consta dos factos provados que, perante a solicitação da ora ré no sentido de lhe serem entregues as terras, os cultivadores não as entregaram por “considerarem que as podiam reter até serem pagos dos melhoramentos que nelas fizeram” (ponto 5.º).


Falta – mesmo considerando a via presuntiva – o “animus”, não se alcançando, por isso, a posse prescricional que está na base da usucapião.


Podemos, então, extrair a conclusão:


Perante as normas relativas à enfiteuse constantes do Código Civil, a autora não adquiriu a qualidade de enfiteuta.



……………………



13 . Como já aflorámos supra, o regime legal da enfiteuse sofreu profundas vicissitudes com a publicação de várias disposições, uma delas pretendendo alargar o conceito de usucapião para efeitos de aquisição do domínio útil, pelo que importa abordar, com pormenor, o que teve lugar.


Tudo começou com o Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16.3, que entrou em vigor nesse dia:

Artigo 1.º - 1. É abolida a enfiteuse a que se acham sujeitos os prédios rústicos, transferindo-se o domínio direto deles para o titular do domínio útil.

………………

Artigo 2.º - 1. O Estado, através do Ministério da Agricultura, indemnizará o titular do domínio directo quando este for uma pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional.

2. A indemnização consistirá no pagamento anual, enquanto forem vivas, de uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou no pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia.


Em 25 de Abril seguinte, entrou em vigor a Constituição da República Portuguesa, cujo artigo 101.º, n.º 2 dispunha:

Serão extintos os regimes de aforamento e colonia…

Na revisão de 1982, a redação passou a ser:

São proibidos os regimes de aforamento e colonia…, que se mantem atualmente (artigo 96.º, n.º2).


A Lei n.º 22/87, de 24.6 alterou aquele artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, passando a dispor que:

Considera-se que a enfiteuse se constitui por usucapião se quem alegar a titularidade do domínio útil provar por qualquer modo:

Que em 16 de Março de 1976 tinham decorrido os prazos de usucapião previstos na lei civil;

Que pagava uma prestação anual ao senhorio;

Que as benfeitorias realizadas pelo interessado, contitular ou seus antecessores na posse do prédio ou parcela foram feitas na convicção de exercer o direito próprio como enfiteuta;

Que as benfeitorias, à data da interposição da acção, têm um valor de, pelo menos, metade do valor da terra no estado de inculta, sem atender à sua virtual aptidão para a urbanização ou outros fins agrícolas.


Nova alteração surgiu com a Lei n.º 108/97, de 16.9 nos seguintes termos:

O n.º 5 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16.3, passa a ter a seguinte redacção:

5 – Considera-se que a enfiteuse se constituiu por usucapião se:

a) Desde, pelo menos 15 de Março de 1946 até à extinção da enfiteuse o prédio rústico, ou a sua parcela, foi cultivado por quem não era proprietário com a obrigação para o cultivador de pagamento de uma prestação anual ao senhorio.

b) Tiverem sido feitas pelo cultivador ou seus antecessores no prédio ou sua parcela benfeitorias, mesmo que depois de 16 de Março de 1976, de valor igual ou superior a, pelo menos, metade do valor do prédio ou da parcela, considerados no estado de incultos e sem atender a eventual aptidão para a urbanização ou outros fins não agrícolas.



…………………….



14 .  A conclusão que retirámos na parte final do n.º 11.º (de que, perante as normas do Código Civil, a autora não podia ser considerada enfiteuta) poupa-nos à discussão de direito constitucional intertemporal sobre se o constante da Constituição da República Portuguesa pode conduzir à inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 195-A/76 (a que se chega, com aturada fundamentação, no Parecer do Professor Bacelar Gouveia, mas a que não se chega no Parecer encabeçado pelo Professor Gomes Canotilho).


O que interessa para aqui é saber se as disposições legais que vieram a lume já na vigência da Constituição contrariam o que desta consta, porque só com base nelas a autora poderia ser enfiteuta e beneficiar do pretendido regime de extinção desta com a transferência para si do domínio direto e consequente assunção do direito de propriedade plena.


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15 . Quer a Lei n.º 22/87, quer a Lei n.º108/97 conferiram nova redação ao artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76.

Com esta alteração, e como claramente emerge dos textos respectivos, pretendeu-se:

Ampliar o conceito de enfiteuse relativamente ao constante do Código Civil;

Facilitar a demonstração da aquisição por usucapião do direito do enfiteuta.


Concomitantemente, vista a contínua inserção neste Decreto-Lei n.º 195-A/76, sem alteração das demais disposições deste, visou-se:

A extinção da enfiteuse assim constituída e demonstrada;

Com a transferência do direito do titular do domínio direto para o do domínio útil;

Sem indemnização a esta, salvo quando este for uma pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional;

Recebendo, neste caso, o pagamento anual, enquanto viver, uma quantia em dinheiro igual a doze vezes a diferença entre o salário mínimo nacional e o seu rendimento mensal ou o pagamento do valor do foro quando este for inferior àquela quantia. 


Logo perante o Decreto-Lei n.º195-A/76, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, 2.ª Edição, III, 580) chamaram “as coisas pelos nomes”: o legislador impôs “um verdadeiro confisco a muitos titulares do domínio directo.” O que é referido, em termos idênticos por Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 1063.

A entrada em vigor da CRP veio clarificar o que antes podia ser objeto de discussão.

Assim:

a) Por um lado consagrou que “serão extintos os regimes de aforamento”;

b) Por outro, integrou normas frontalmente contrárias à extinção da enfiteuse, nos termos do mencionado Decreto-Lei.


A extinção – referida em termos futuros – nada tem a ver com a aceitação do regime extintivo deste normativo.

Pressupunha, naturalmente, o respeito pelos demais princípios que ela mesma encerrava.

Ou seja, havia que extinguir uma realidade jurídica, mas em termos tais que não bolisse com os direitos que, do próprio texto constitucional resultavam para os respectivos titulares.

No artigo 62.º, n.º1 dispõe que a todos é garantido o direito à propriedade privada. Não se trata dum direito que não possa ser objeto de ablação, mas sempre com base na lei e mediante justa indemnização, com tem reafirmado o Tribunal Constitucional (cfr-se, exemplificativamente, no respectivo sítio, os Acórdãos n.ºs 14/84, 329/99 e 159/2007).

Esta referência à “propriedade privada” não pode – vista até a manifesta “ratio legis” – ser entendida como reportada apenas ao direito de propriedade, antes abrangendo os demais direitos reais (para além de outros), com inclusão, então, do direito ao domínio direto no regime enfiteutico. 

Não havendo lugar a justa indemnização, cai-se, pois, na falada figura do confisco.

Manifesta é, também a nosso ver, a violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º. Uns titulares do domínio direto receberiam indemnização, outros nada receberiam, baseando-se a distinção apenas na sua situação económica.

E mesmo relativamente àqueles que tinham direito a indemnização, aquela estava limitada em termos tais que não era justa, claramente violando também o princípio da proporcionalidade.

Tudo isto foi já dito por este Tribunal no Acórdão de 9.4.2013, processo n.º 79/06.1TBODM.E1.S1, cujo texto se pode ver em www.dgsi.pt.


As Leis n.ºs 22/87 e 108/97 assentaram, pois, em bases inconstitucionais delas dependendo, pelo que também o são.


Acresce que, tendo o legislador constitucional proibido, de futuro, a enfiteuse, elas, ao conferirem maior amplitude conceptual a esta figura, contrariaram também este preceito. Passaram a incluir-se na enfiteuse situações que antes a não integravam, quando constitucionalmente estava vedada a constituição deste direito real.



…………………………



16 . Se são inconstitucionais, há que ter em atenção o artigo 204.º da CRP, não podendo este Tribunal ter em conta a ampliação do conceito de usucapião e a facilitação da sua demonstração.

Terá de manter a conclusão já expendida em 12, parte final


Assim, a autora não teve nem tem a qualidade de enfiteuta.

Se não tem, não pode ser declarada como tal e não pode ter chegado à propriedade por extinção do que não existia.



………………………..


17 . Face a todo o exposto, nega-se a revista.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 30.10.2014

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

Serra Baptista