Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1822/18.1T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
DANOS PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

No controlo do juízo equitativo da indemnização arbitrada para compensação de dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro, afigura-se adequado e razoável o montante de € 30.000,00, atribuído a lesado que, sendo médico e professor universitário, com 35 anos de idade ao tempo do acidente, ficando a padecer como consequência do sinistro um valor de 3 pontos de “deficiência funcional permanente” da integridade físico-psíquica, ficou afectado com uma lesão cervical que, por um lado, trouxe a necessidade de realizar esforços suplementares no desempenho habitual da actividade profissional, e, por outro, ainda em resultado do sinistro, se associou a um quadro de sequelas físicas e psicológicas que, enquanto limitações relevantes que se prolongarão no futuro a título crónico e recorrente, faz ponderar, num juízo de prognose razoável, uma repercussão negativa, nomeadamente enquanto restrição das exigências do trabalho específico do lesado, em diminuição de aptidão profissional e perda de vantagens e oportunidades laborais futuras, susceptíveis de ganhos materiais no contexto do lapso temporal de vida activa (“dano de esforço” nessas duas vertentes).

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 1822/18.1T8PRT.P1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 5.ª Secção



Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. AA propôs acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra «S..., S.A.» (anteriormente, «A..., S.A.») e depois «Generali Seguros, S.A.», destinada a peticionar a responsabilidade civil indemnizatória emergente de acidente de viação com veículo automóvel, cuja ocorrência imputa à conduta ilícita e culposa da condutora do veículo automóvel de matrícula VO-..-.., segurado pela Ré através da apólice n.º ...51, pedindo a condenação da Ré no pagamento da: (i) quantia global líquida de € 632.213,83, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro; (ii) quantia a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença, referente aos danos alegados nos artigos 232º e 238º da petição inicial; (iii) acrescidas de juros de mora contados desde a data de citação até integral e efectivo pagamento.
A Ré apresentou Contestação, concluindo pela improcedência da acção e a absolvição do pedido.

2. Prosseguida a instância e realizada audiência final de julgamento, o Juiz ... do Juízo Central Cível ... proferiu sentença, que julgou parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, condenou a Ré «Generali Seguros, S.A.» a pagar ao autor AA a quantia de € 102.213,00 (danos patrimoniais emergentes = € 2.213 + danos patrimoniais futuros/dano biológico = € 100.000,00) acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento, e a quantia de € 25.000,00 (danos não patrimoniais), vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora a contar da data desta sentença até integral pagamento, com absolvição do restante pedido.

3. Inconformados, tanto o Autor como a Ré interpuseram recursos de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a, uma vez identificadas as questões decidendas (“a) saber se o montante indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sofrido pelo Autor se encontra, ou não, correctamente fixado; b) saber se o montante fixado a título de danos não patrimoniais é, ou não, excessivo.”), ser proferido acórdão no qual julgou a apelação do Autor totalmente improcedente e parcialmente procedente a apelação da Ré, em razão do que se alterou para € 20.000 a indemnização atribuída ao Autor a título de dano biológico/dano patrimonial futuro, no mais mantendo-se a decisão recorrida.

4. Novamente sem se resignar, veio o Autor interpor recurso de revista para o STJ, no respeitante ao segmento decisório em que se decidiu da indemnização em sede de dano biológico, apresentando a final as seguintes Conclusões:

“(i) Não pode o aqui Recorrente aceitar o juízo equitativo efetuado pelo tribunal recorrido, quando veio a fixar em € 20.000,00 (vinte mil euros) o montante indemnizatório pelas consequências patrimoniais da afetação da capacidade geral ou funcional de trabalho (em vez do montante de € 100.000,00 atribuído pela 1.ª instância, o qual já era em si mesmo, profundamente injusto);

(ii) Da apreciação feita pelo tribunal recorrido, e para além da dificuldade técnica de estabelecer a correspondência exata entre índice de défice funcional e percentagem de incapacidade geral, aquilo que se destaca é a circunstância não se ter tido em conta o critério que da conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias das atividades profissionais habituais do lesado;

(iii) O tribunal recorrido não atendeu, de forma específica, à factualidade dada como provada nos autos da qual resulta que, com elevada probabilidade, as lesões sofridas pelo Recorrente terão repercussão (negativa) sobre o desempenho das suas actividades profissionais de médico, formador e professor universitário, cujo exercício (quer individualmente considerado, quer no seu conjunto) exige um elevado nível de destreza e de capacidade física;

(iv) Considerando que as lesões sofridas atingiram a coluna vertebral do lesado, afetando-o com cervicalgias que o obrigam ao uso regular de medicação analgésica, as consequências das ditas lesões na capacidade de ganho do lesado serão, com elevada probabilidade, muito significativas e relevantes;

(v) Nessa conformidade, numa formulação mais completa e rigorosa, os critérios a ter em conta para se proceder à quantificação desse dano, deverão ser os seguintes: (i) a idade do lesado (a partir da qual se pode determinar a sua esperança média de vida à data do acidente); (ii) o seu grau de incapacidade geral permanente; (iii) as suas potencialidades de ganho e de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou atividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências; (iv) a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da atividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas (também aqui, tendo em conta as suas qualificações e competências);

(vi) A indemnização devida ao Autor pelo dano patrimonial decorrente do défice funcional da integridade físico-psíquica que ficou a padecer, deverá ser fixada em € 220.000,00 (duzentos e vinte mil euros);

(vii) A decisão em crise constitui uma violação do disposto nos artigos 562.º, 564.º e 566.º, n.º 2 do Código Civil.”


A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção integral do acórdão recorrido e, portanto, do valor arbitrado em 2.ª instância para indemnização do Autor Recorrente.
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Consignados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


1. Objecto do recurso


Vistas as Conclusões da Recorrente, o recurso está delimitado a apreciar a dimensão quantitativa da indemnização fixada a título de “dano biológico”, pelo facto ilícito, culposo e danoso do qual resulta para a Recorrida, enquanto seguradora, a obrigação indemnizatória nesse segmento de prejuízos sofridos pelo Autor Recorrente.
A única questão a decidir é a de saber se a decisão recorrida fez ou não adequada aplicação do direito, adoptando a correta interpretação da lei vigente em sede de equidade como critério de julgamento permitido pelo art. 566º, 3, do CCiv., em conjugação e para concretização dos arts. 483º, 562º e 564º do CCiv., quando reduz para € 20.0000 o valor que a esse título fora decretado pela sentença de 1.ª instância (€ 100.000), sendo que o Recorrente lesado considera que a indemnização a arbitrar pelo “dano patrimonial decorrente do défice funcional da integridade físico-psíquica” deveria ser no montante de € 220.000 e a Recorrida entende que se deve manter o montante fixado pelo acórdão recorrido. Em síntese: a quantificação indemnizatória do dano biológico com recurso à equidade.


2. Factualidade

Foram dados como provados pelas instâncias os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação em sede de apelação:

1. No passado dia 23.12.2015, pelas 13:40 horas, na Rua ..., na cidade ..., ocorreu um embate, no qual foram intervenientes, o veículo ligeiro de passageiros de marca Volvo, modelo V60 Cross Country, de matrícula ..-QO-.., pertencente a D..., Limitada e conduzido pelo autor e o veículo ligeiro de passageiros de marca Peugeot, modelo 205, de matrícula VO-..-.., conduzido e pertencente a BB.

2. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o autor conduzia o veículo de matrícula ..-QO-.. pela Rua ..., no sentido norte-sul, a velocidade nunca superior a 30/40 km horários, dirigindo-se para o entroncamento formado pela artéria por onde transitava e a Avenida ....

3. Entroncamento esse que era (como é) regulado por sinalização luminosa, vulgo semáforos, os quais se encontravam a funcionar regularmente.

4. Ao se aproximar da confluência desse entroncamento, o autor deparou-se com o sinal luminoso de cor vermelha, que lhe impunha a paragem.

5. E no cumprimento do mesmo imobilizou o seu veículo.

6. Entretanto, imediatamente atrás do veículo conduzido pelo autor, circulava o veículo de matrícula VO-..-.., a velocidade não concretamente apurada.

7. A sua condutora não se tendo apercebido que o veículo conduzido pelo autor se encontrava parado no cumprimento da sinalização semafórica, foi embater com a frente do seu veículo na traseira do veículo de matrícula ..-QO-...

8. Em consequência do embate, o veículo de matrícula VO-..-.. ficou com a frente destruída.

9. O embate ocorreu numa faixa de rodagem de traçado recto e de boa visibilidade e com o piso betuminoso em bom estado de conservação.

10. Em consequência do embate, o autor sofreu traumatismo cérvico-dorsal.

11. Imediatamente após o embate o autor começou a sentir dores e dificuldades na realização de alguns movimentos nomeadamente ao nível do pescoço, da cervical e lombar.

12. Atento esse quadro de dor, o autor deslocou-se pelos seus próprios meios ao Centro Hospitalar ..., E.P.E., tendo sido assistido no serviço de urgência dessa unidade hospitalar, local onde lhe foram ministrados os primeiros cuidados médicos, hospitalares e medicamentosos.

13. Realizou ainda exames complementares de diagnóstico, designadamente, raio x à coluna lombar e cervical, tendo-lhe sido diagnosticado cervicalgias e dorsalgias.
14. Por esse facto foi-lhe aplicado um colar cervical, tendo sido devidamente medicado.

15. Recebeu alta para o seu domicílio nesse mesmo dia.

16. Como o quadro de dor não se atenuava com o passar dos dias, mesmo recorrendo ao consumo de analgésicos e anti-inflamatórios, o autor voltou a recorrer à urgência do Centro Hospitalar ..., E.P.E. – Hospital ..., no dia 30.12.2015.

17. Mantendo a utilização do colar cervical, tendo alta nesse mesmo dia.

18. Regressou àquele serviço de urgência hospitalar nos dias 12.07.2016, 30.10.2016, 25.7.2019 e 12.2.2020, por cervicalgia que o incapacitavam na sua actividade profissional.

19. Recorreu, entretanto, ao Instituto de Neurociências ..., onde realizou os seguintes exames imagiológicos:

- ressonância magnética da coluna vertebral (24.02.2016): imagem sugestiva de lesão traumática do ligamento interespinhoso D2-D3; dilatação do canal do epêndima, esboçando-se cavidade siringomiélica de D7 e D8; imagem em D8 que pode corresponder a um angioma ou a contusão óssea;

- ressonância magnética da Coluna vertebral cervical e dorsal (4.11.2016): persistência de imagem sugestiva de lesão traumática do ligamento interespinhoso D2-D3; dilatação do canal do epêndima, esboçando-se cavidade siringomiélica de D7 e D8; imagem em D8 que pode corresponder a um angioma ou a contusão óssea.

20. Começou a ser acompanhado por medicina física e reabilitação a 16.03.2016 no Centro Hospitalar e Universitário ..., tendo aí feito tratamentos de fisioterapia até Setembro de 2016.

21. Fez exame de revisão em Fevereiro de 2017, sendo enviado para a Consulta da Dor por manutenção das queixas cervicais, com repercussão funcional, havendo surtos de agudização hiperálgica, muito na dependência da sobrecarga mecânica com o aumento da actividade laboral.
22. Começou a ser seguido na Unidade de Dor Crónica do Centro Hospitalar e Universitário ..., em 17.02.2017.

23. No dia 5.03.2020 foi observado pelo Dr. CC (Ortopedista), no Hospital ..., constando do relatório que apresentava cervicalgia crónica, na sequência de contusão cervical com lesão ligamentar, recalcitrante a diversas abordagens terapêuticas (medicamentosas, fisiátricas, posturais, etc.); tendo-lhe sido feitos ajustes terapêuticos, instituindo Tapentadol 50mg, Flurbiprofeno 40mg transdérmico e hidroginástica.

24. Foi também observado em consulta de Urologia, no Hospital Privado ..., constando de relatório de 24.11.2016 que apresentava queixas de disfunção sexual após acidente em 2015, tendo sido orientado para a consulta de Psiquiatria com o diagnóstico de disfunção sexual psicogénica.

25. Recorreu então a Psiquiatria (Dr. DD), em cujo relatório datado de 8.05.2019 consta que é acompanhado naquela consulta desde 2016, por síndrome depressivo-ansioso recorrente.

26. Em Maio de 2016, o autor fez endoscopia digestiva alta por queixas dispépticas, tendo sido diagnosticado com gastropatia erosiva provavelmente secundária a fármacos, tendo diminuído a toma de anti-inflamatórios.

27. Como queixas das lesões sofridas, o autor apresenta dificuldade em certas posturas, tendo por vezes de fazer ajustes devido às dores cervicais, o mesmo acontecendo quando corre ou faz algum esforço físico.

28. Sente ansiedade, maior irritabilidade e cansaço, devido às cervicalgias crónicas, que o limitam nas suas actividades da vida diária, desportivas, de lazer e profissionais.

29. Apresenta fenómenos dolorosos referidos à região cervical, despoletada pelos movimentos de hipertensão e hiperflexão, necessitando de fazer medicação regularmente.
30. E impacto ligeiro na actividade sexual, necessitando de mudar de posição por queixas álgicas e sentindo menos libido, principalmente nos dias em que se sente mais cansado.

31. Apresenta dificuldade em manter-se no computador durante mais de uma hora e quando realiza pequenas cirurgias tem necessidade de fazer paragens frequentes pela posição de flexão cervical.

32. Apresenta também dificuldade em adormecer e acorda algumas vezes durante a noite por queixas álgicas referidas à região cervical.

33. Não consegue deitar-se no sofá para relaxar como fazia regularmente, porque essa postura é causa de dores.

34. Deixou de jogar paddle, ainda que por vezes tente, mas ficando com muitas dores e mantém a corrida mas com muito menos frequência, por menos tempo e com interrupções frequentes; e continua a frequentar o ginásio mas com adaptação dos exercícios.

35. Como sequelas das lesões sofridas, o autor apresenta cervicalgias que o obrigam ao uso regular de medicação analgésica.

36. O autor obteve a sua consolidação médico-legal, no dia 23.03.2016.

37. As lesões sofridas e as sequelas delas resultantes determinaram, para o autor, um período de tempo de défice funcional temporário parcial de 90 dias.

38. O autor sofreu um “Quantum Doloris” de grau 3, numa escala de 1 a 7.

39. As supra descritas lesões acarretam para o autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, sendo as sequelas compatíveis com a actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

40. O descrito em 27 a 34, causa ao autor tristeza e desgosto, frustração e sentimentos de inferioridade.
41. Antes do embate, o autor era uma pessoa alegre, bem-disposta, extrovertido e com facilidade para as relações sociais e, após o acidente, passou a ser uma pessoa mais triste e desanimada, menos confiante, menos energética, menos activa, menos divertida, mais vulnerável, mais insegura e mais saturada, não se relacionando tão intensamente com os amigos com quem desenvolvia as actividades desportivas e de lazer.

42. O autor era (como é) médico, com a especialidade de dermatologia, trabalhando no Centro Hospitalar ..., E.P.E e ainda por conta própria em diversas instituições médicas e hospitalares.

43. De igual modo, o autor é formador e professor universitário.

44. À data do embate, o autor auferia pelo trabalho desenvolvido no Centro Hospitalar ..., E.P.E o rendimento líquido de cerca de € 2.000,00.

45. Parte da actividade laboral do autor era e é realizada por intermédio de sociedades comerciais por si constituídas, nomeadamente, através da sociedade D..., Lda.

46. Esta sociedade no período de tributação de 1.01.2015 a 31.12.2015 apresentou um total de rendimentos no valor de € 126.191,48 e no período de tributação de 1.01.2016 a 31.12.2016 apresentou um total de rendimentos no valor de € 157.153,94.

47. Em consequência do embate e das lesões sofridas, o autor suportou despesas médicas medicamentosas, no valor de € 2.063,83.

48. E em despesas com deslocações em viatura própria para consultas e tratamentos médicos/fisiátricos, portagens e parques de estacionamento, o autor gastou quantia não inferior a € 150,00.

49. O autor nasceu no dia .../.../1980, conforme documento de fls. 110 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
50. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...51, a ré seguradora assumiu a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros e emergentes da circulação estradal do veículo de matrícula VO-..-...


3. Direito aplicável

3.1. De acordo com o anteriormente delimitado, não cabe no âmbito da presente revista sindicar a viabilidade e o acerto dogmático-conceitual da categoria do “dano biológico” ou “corporal” enquanto prejuízo autónomo para efeitos indemnizatórios decorrente da lesão da saúde e da integridade psico-somática da pessoa, imputável ao facto gerador de responsabilidade civil delitual, traduzida em incapacidade geral e/ou funcional limitativa e restritiva das suas qualidades físicas e intelectuais de vida.
A jurisprudência superior, em especial a do STJ, tem nele reconhecido uma categoria autónoma de delimitação e avaliação de efeitos da lesão, seja enquanto dano patrimonial (por terem por objecto um interesse privado susceptível de avaliação pecuniária), por um lado, seja enquanto dano moral ou não patrimonial (por incidirem sobre bem ou interesse insusceptível, em rigor, dessa avaliação pecuniária e plasmando-se na clarificação de danos em esferas atendíveis da pessoa, para além das consequências típicas da dor e do sofrimento).
Quando a vertente patrimonial do dano biológico se convoca, tem a virtualidade de ressarcir não só (i) as perdas de rendimentos profissionais correspondentes à impossibilidade de exercício laboral e/ou económico-empresarial e as frustrações de proveitos existentes à data da lesão (ponderadas até um certo momento de vida activa), mas também (ii) a privação de futuras oportunidades profissionais e o esforço acrescido de reconversão (enquanto determinado pela incapacidade resultante da lesão) para o exercício profissional – num caso e noutro, danos patrimoniais futuros previsíveis, na variante de “lucros cessantes” (arts. 562º, 564º, 1 e 2, CCiv.).[1] 
Neste contexto de dualidade ressarcitória, o dano biológico sofrido pelo Autora foi apreciado na sua vertente patrimonial, enquanto “perda de capacidade de ganho”. Na verdade, os danos reapreciados pela decisão recorrida cabem ainda no âmbito de causalidade e de previsibilidade tipicamente associados ao acidente que o Autor sofreu e às suas circunstâncias de evolução normal de vida. De todo o modo, não sendo possível apurar o valor exacto desses danos para efeitos de determinação do montante indemnizatório, tal implica convocar o critério da equidade (mesmo que assistido por determinados factores de ponderação e orientação das particularidades concretas, como veremos) previsto no art. 566º, 3, do CCiv. (em articulação com o art. 4º, a)), susceptível de ser fiscalizado pelo STJ (ainda) como “questão de direito” em revista (art. 682º, 1, CPC) – em rigor, destinada à verificação dos pressupostos normativos e limites dentro dos quais se deve situar o juízo equitativo em face da individualidade do caso concreto, mediante a averiguação da razoabilidade e equilíbrio do valor encontrado em função dos princípios da proporcionalidade e da igualdade assegurados pela conformidade com os padrões e critérios jurisprudenciais racionalmente utilizados para situações do mesmo tipo de gravidade e consequências[2].

3.2. Assumindo-se este fito de controlo judicial das especificidades correspondentes ao arbitramento do montante indemnizatório para reparação dos danos resultantes da perda associada ao dano biológico, o julgador actua no círculo de uma margem de discricionariedade, mas sem resvalar para uma margem de arbítrio subjectivo, pelo que tal controlo deve ser assistido por critérios jurisprudenciais que, para casos equiparáveis ou paralelos, concretizem a segurança e a igualdade na aplicação do direito e não se fundem apenas em procedimentos objectivos (cálculos em fórmulas financeiras, aplicação de tabelas, etc.), mesmo que esses não deixem de ter valor auxiliar-indicativo e, ademais, explicativo na ponderação tendente ao arbitramento indemnizatório com base na equidade.
De acordo com a síntese feita pelo Ac. do STJ de 19/6/2019[3], com recurso ao elenco pertinente de arestos relevantes, a atribuição de indemnização por perda de capacidade de ganho/dano biológico patrimonial, segundo um juízo equitativo, tem-se baseado em função dos seguintes factores principais: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações; a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, ou da previsível actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as qualificações e competências do lesado.
Na mesma decisão do STJ, reitera-se o que há muito se refere na jurisprudência: a indemnização para reparação da perda da capacidade futura de ganho deve apresentar como conteúdo pecuniário “um capital produtor do rendimento que o lesado deixará de perceber em razão da perda da capacidade aquisitiva futura e que se extingue no termo do período de vida, atendendo-se, para o efeito, à esperança média de vida do lesado”, sem deixar de “considerar a natural evolução dos salários”. Neste âmbito, será de entender como relevante o valor líquido da remuneração auferida pelo lesado, uma vez que tal corresponde em rigor à aplicação da teoria da diferença consagrada no art. 566º, 2, do CCiv. e “não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa média de vida (…) e ao período de vida ativa (em regra, até aos 70 anos), bem como à natural progressão na carreira e ao previsível impacto na massa salarial a receber”[4].
Por fim, é ainda de registar que, “ponderando-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros”, importa “introduzir um desconto no valor achado, condizente ao rendimento de uma aplicação financeira sem risco, e que, necessariamente, deverá ser tida em consideração pelo tribunal que julgará equitativamente”[5]. No entanto, “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva atualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzido (…), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento”[6].
Refira-se que o acórdão recorrido navegou nesta mesmas águas e a sua fundamentação de base não merece reparos. Aliás, o mesmo acontece com a sentença de 1.ª instância, registando-se uma coincidência essencial de argumentação dogmática e normativa.
O aspecto nevrálgico da diferença de resultado decisório no quantitativo da indemnização resulta da especificação e aplicação ao caso concreto dos factores atendíveis para esse mesmo resultado (muito mais detalhados por parte do acórdão recorrido).
 

3.3. A decisão recorrida, ao fixar (reduzindo muito substancialmente em relação ao valor arbitrado em 1.ª instância e distanciando-se numa percentagem superior a 90% ao montante reivindicado pelo Autor lesado) o valor de € 20.000 para indemnizar esse “dano patrimonial futuro”, sustentou-se, para efeitos de atribuição desta indemnização, nas seguintes considerações, emergentes da factualidade provada:
               
“(…) Acolhendo tais directrizes (…), importa, desde logo, respigar o seguinte quadro factual:
“- O Autor tinha 35 anos à data do acidente;
- As lesões sofridas decorrentes do acidente acarretam para o autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, sendo tais sequelas compatíveis com a actividade habitual, mas implicam esforços suplementares” (cfr. pontos 39. e 49. da resenha dos factos provados).
Importa enfatizar que a propósito do factor rendimento, alguma jurisprudência vem considerando que nos casos, como o presente, em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
Em busca do tratamento paritário, no cálculo que efetue, o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todos os casos, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção, com base na equidade.
Com efeito, a integridade psicofísica é igual para todos (artigos 25.º, nº 1, da CRPortuguesa e 70.º, nº1, do Código Civil) de modo que, no cálculo da indemnização, não deve ser relevada a situação económica do lesado sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, nº 1 e nº 2 da Constituição.
O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho, determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce uma profissão remunerada com € 5.000,00 ou com € 500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.
Fazer interferir o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode até, a nosso ver gerar situações injustas.
A Portaria 377/2008 de 26 de Maio [onde se fixam «os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III do título II do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.»: art. 1º, 1] faz consignar o montante da remuneração mínima mensal garantida como valor para efetuar o cálculo do dano biológico.
Ora, considerando que o legislador faz interferir o salário como elemento fundamental para o cálculo da indemnização, temos então como mais correto que se pondere, para o efeito, o valor do salário médio nacional e não a remuneração mínima mensal garantida.
A informação estatística da base de dados da Pordata, em Portugal, in www.pordata.pt indica que o ordenado médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano de 2017 (não há valores para os anos posteriores) foi de 943,00.
Este valor é então um dos elementos a ponderar para o cálculo da indemnização do dano biológico, havendo também que considerar a idade do lesado, que era no caso de 35 anos à data do acidente e o grau de desvalorização ou incapacidade que é de 3 pontos.
Como assim, tendo por referência um rendimento anual de € 13.202,00 (€ 943,00 x 14) a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.
De acordo com os enunciados fatores, considerando que o autor ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a € 396,06 [(€ 943.000,00 x 14) x 3%], o que permitiria alcançar, ao fim de 43 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente o autor contava 35 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 78 anos de idade), o montante de € 17.030,58, apurando-se um valor de € 12.772,94 após se operar o apontado desconto de ¼.”;

pelo que:

“sopesando o quadro factual apurado, relevando especialmente que as sequelas sofridas pelo Autor demandante implicam esforços suplementares na sua atividade profissional, e que, naturalmente, pelo trabalho que desenvolve na referida sociedade, também é remunerado, parece-nos justo e equilibrado – quer na vertente da justiça do caso concreto, quer na ótica da justiça comparativa –, fixar em € 20.000,00 (vinte mil euros) o montante destinado a reparar o dano em causa.”
A lógica e os critérios objectivos usados são compreensíveis quando aplicados à lesão e ao sujeito lesado, sendo ainda complementados por montantes arbitrados em acórdãos de 2.ª instância (ainda que nivelados por baixo), no que toca à aplicação da fórmula escolhida, baseada na remuneração média líquida, no grau de incapacidade funcional fixado ao lesado e nas limitações funcionais decorrentes no exercício profissional.
No entanto.

Confrontada a factualidade ponderada com os critérios e factores que são de ponderação necessária, é de reconhecer, nomeadamente atenta a diferença significativa dos valores encontrados entre a 1.ª instância e a Relação, que, como se salientou na nossa jurisprudência, em concreto o Ac. do STJ de 10/11/2016[7], o valor mais ou menos estático da aplicação de tabelas e fórmulas conduz a um “minus” indemnizatório que só encontra verdadeira justeza com o recurso à equidade – “que naturalmente desempenha um papel corrector e de adequação do montante indemnizatório às circunstâncias específicas e à justiça do caso concreto, permitindo ainda a ponderação de variantes dinâmicas que escapam, em absoluto, ao referido cálculo objectivo: evolução provável na situação profissional do lesado, aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível e melhoria expectável das condições de vida, inflação provável ao longo do extensíssimo período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização (e que, ao menos em parte, poderão ser mitigadas ou compensadas pelo «benefício da antecipação», decorrente do imediato recebimento e disponibilidade de valores pecuniários que normalmente apenas seriam recebidos faseadamente ao longo de muitos anos, com a consequente possibilidade de rentabilização imediata em termos financeiros).”
Mais (ainda do mesmo aresto):
“A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a relevante e substancial restrição às possibilidades [de] exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar: na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades [de] exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável – e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição –, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais.”;
“E, nesta perspectiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (…), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional”.

Neste enquadramento, cremos que o factor correctivo da equidade assumido pelo acórdão recorrido ficou aquém do que seria de ajustar no caso concreto, nomeadamente tendo em conta que:

a) não obstante o baixo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, não podemos olvidar a consideração dos seguintes factos provados:

25. (“Recorreu então a Psiquiatria (Dr. DD), em cujo relatório datado de 8.05.2019 consta que é acompanhado naquela consulta desde 2016, por síndrome depressivo-ansioso recorrente”);
27. (“Como queixas das lesões sofridas, o autor apresenta dificuldade em certas posturas, tendo por vezes de fazer ajustes devido às dores cervicais, o mesmo acontecendo quando corre ou faz algum esforço físico.”);
28. (“Sente ansiedade, maior irritabilidade e cansaço, devido às cervicalgias crónicas, que o limitam nas suas actividades da vida diária, desportivas, de lazer e profissionais.”);
29. (“Apresenta fenómenos dolorosos referidos à região cervical, despoletada pelos movimentos de hipertensão e hiperflexão, necessitando de fazer medicação regularmente.”);
 31. (“Apresenta dificuldade em manter-se no computador durante mais de uma hora e quando realiza pequenas cirurgias tem necessidade de fazer paragens frequentes pela posição de flexão cervical.”);
32. (“Apresenta também dificuldade em adormecer e acorda algumas vezes durante a noite por queixas álgicas referidas à região cervical.”);
35. (“Como sequelas das lesões sofridas, o autor apresenta cervicalgias que o obrigam ao uso regular de medicação analgésica.”);

na medida em que este quadro de sequelas físicas e psicológicas, visto na sua globalidade enquanto limitações relevantes que se prolongarão no futuro a título crónico e recorrente, faz ponderar, num juízo de prognose razoável, a repercussão negativa da lesão cervical, nomeadamente enquanto restrição para a manutenção prolongada de posições corporais mais ou menos estáticas e fixas exigidas pelo trabalho específico do lesado enquanto médico, formador e docente, em diminuição de aptidão profissional, perda de vantagens e oportunidades laborais futuras (no caso, em especial, da actividade médica cirúrgica e da consequente progressão de carreira: cfr. factos provados 42. e 43.), susceptíveis de ganhos materiais no contexto do lapso temporal de vida activa – em síntese, tal quadro releva ainda um significativo (e ainda incluído no) “dano de esforço” para conseguir desempenhar as mesmas tarefas, obter o mesmo rendimento e ascender prospectivamente na actividade profissional e na carreira (ou carreiras) em que o lesado se insere[8];
 
b) é excessivo imputar um “desconto” de 25% ao valor obtido (na aplicação da fórmula matemática escolhida) para ressarcimento do dano biológico para compensar a percepção imediata do montante indemnizatório que se receberia ao longo do tempo, tendo em conta a baixíssima (ou quase nula) rentabilidade do investimento em depósitos bancários e outros produtos financeiros e a existência de inflação (aparentemente) crescente e preclusiva de um cálculo relativo ao ganho remuneratório de uma aplicação financeira equivalente[9];

c) por fim, é de sufragar o entendimento da 1.ª instância quanto ao cálculo equitativo do dano biológico: quando a lesão tem consequências directas e imediatas (vulgo, “rebate profissional”) no ganho ou capacidade de ganho do lesado, pode com mais facilidade aceitar-se o resultado do recurso às fórmulas matemáticas, ainda que sempre temperadas pela equidade; quando a lesão atinge o lesado de uma forma mais indirecta, mediata e remota, em que as repercussões são mais longínquas na possibilidade de investimento na vida profissional, no desenvolvimento de carreira, na possibilidade de alteração da profissão, etc., o recurso à equidade – que não deixa de ser a única base normativo-legal – deve assumir uma ponderação acrescida e prevalecente sobre o resultado obtido com essas fórmulas de base matemática.

Nesta consideração de factores adicionais, tudo ponderado, considera-se que a equidade implica que a compensação adequada do dano biológico ascenda a um montante superior, que se fixa em € 30.000, em substituição do arbitrado pelo acórdão recorrido.

3.4. Refira-se – o que é decisivo no controlo da aplicação do art. 566º, 3, do CCiv. – que este montante se afigura consentâneo com outras decisões deste STJ em casos com um espectro factual equiparável (também para um juízo de proporcionalidade em face dos padrões judicativos utilizados para “deficiências funcionais permanentes” próximas), em especial destacando-se os Acs. de 11/5/2017[10], 3/10/2017[11], 31/10/2017[12], 17/10/2019[13], 29/10/2019[14], 10/12/2019[15], 5/5/2020[16], 11/3/2021[17], 10/2/2022[18] e 24/2/2022[19], o que igualmente serve de fundamentação à decisão obtida neste 3.º grau de jurisdição.
Sem prejuízo, sempre diremos que cabe à jurisprudência superior, «dentro dos limites que tiver por provados» (é o critério normativo da lei), majorar com dignificação e de forma actualística as indemnizações nos casos de “danos biológicos”[20].


III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se parcialmente procedente a revista, alterando o acórdão recorrido e condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 30.000 (trinta mil euros) para indemnização do dano biológico sofrido pelo Autor Recorrente.

Custas da revista a cargo de Recorrente e Recorrida, na proporção do respectivo decaimento em face do alegado e contra-alegado nesta instância (art. 527º, 1 e 2, CPC).



STJ/Lisboa, 11 de Outubro de 2022




Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo




SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] Remetemos, por todos, para o Ac. do STJ de 29/10/2019, processo n.º 683/11.6TBPDL.L1.S2, Rel. RICARDO COSTA (in www.dgsi.pt), com as referências doutrinais e jurisprudenciais de suporte.
[2] V., neste sentido, mais recentemente, os Acs. do STJ de 15/3/2002, processo n.º 2957/12.0TCLRS.L1.S1, Rel. GRAÇA AMARAL, sendo 2.º Adjunto o aqui Relator, e de 23/2/2021, processo n.º 91/13.4TBSCD.C1.S1, Rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES, in www.dgsi.pt. Na doutrina, v. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 4º”, Código Civil Comentado, I, Parte geral (artigos 1.º a 396.º), Almedina, Coimbra, 2020, pág. 88.
[3] Processo n.º 22392/16.0T8PRT.P1.S1, Rel. OLIVEIRA ABREU, in www.dgsi.pt (mas a jurisprudência posterior do STJ tem-se afadigado em recolher e compilar esses critérios auxiliares da decisão equitativa).
[4] Agora de acordo com o Ac. do STJ de 19/9/2019, processo n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1, Rel. MARIA DO ROSÁRIO MORGADO, in www.dgsi.pt.
[5] Assim, ainda, por todos, o cit. Ac. do STJ de 19/6/2019.
[6] Ac. do STJ de 19/4/2018, processo n.º 196/11.6TCGMR.G2.S1, Rel. ANTÓNIO PIÇARRA, in www.dgsi.pt.
[7] Processo n.º 175/05.2TBPSR.E2.S1, Rel. LOPES DO REGO, com ênfase da nossa responsabilidade.
[8] Convergimos com essa qualificação de dano protagonizada pelo Ac. do STJ de 5/12/2017, processo n.º 505/15.9T8AVR.P1.S1, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt (com referência a outra jurisprudência precedente): “um dano que se irá reflectir no futuro, perfeitamente previsível, porque irá influir directamente na actividade psicossomática da Autora, não só no esforço acrescido para desempenhar a sua função normal, como também na evolução normal da sua carreira, a qual se ressentirá necessariamente, pois traduz um défice funcional permanente, repercutindo-se na sua qualidade de vida, presente e futura”.
[9] Neste sentido crítico – quanto ao montante da percentagem –, e até excludente, da percentagem de redução da quantia, tendo em vista evitar uma situação de injustificado enriquecimento, no juízo da equidade, mesmo após o recurso a uma fórmula matemática de apoio à contabilização de danos, cada vez mais dominante no STJ, v., recentemente, os Acs. do STJ de 3/3/2021, processo n.º 3710/18.2T8FAR.E1.S1, Rel. MARIA DO ROSÁRIO MORGADO, in www.dgsi.pt, 17/11/2021, processo n.º 563/18.4T8AVR.P1.S1, Rel. HENRIQUE ARAÚJO (“A jurisprudência, que vinha praticando uma redução entre os 10% e os 33%, tem ultimamente aderido à mais baixa dessas reduções, por considerar que já vai distante o tempo em que se poderia rentabilizar substancialmente o capital através de taxas de juro mais altas. A remuneração do capital encontra-se hoje em níveis rasos, mas isso não significa que essa situação dure para sempre. É impossível prever o comportamento dos mercados de capitais e a evolução da remuneração dos depósitos e das aplicações financeiras. (…) parece-nos prudente e justo fazer incidir uma redução de 10% ao valor total da indemnização que a lesada vai receber de uma só vez (…)”.), inédito, mas com Sumário (v. ponto I.) in Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis do STJ – Boletim anual de 2021 (https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/02/sumarios_civel_2020.pdf), pág. 760 (sendo 2.º Adjunto o aqui Relator), de 20/4/2021, processo n.º 1751/15.0T8CTB.C1.S1, Rel. FÁTIMA GOMES, e de 21/6/2022, processo n.º 1633/18.4T8GMR.G1.S1, Rel. ISAÍAS PÁDUA, sempre in www.dgsi.pt.
[10] Processo n.º n.445/07.5TBFLG.P1.S1, Rel. PEDRO LIMA GONÇALVES, in www.dgsi.pt – € 30.000.
[11] Processo n.º 3931/12.1TBBCL.G1.S1, Rel. ROQUE NOGUEIRA, in www.dgsi.pt – € 40.000.
[12] Processo n.º 178/14.6T8GMR.G1.S1, Rel. ANA PAULA BOULAROT, em referência ao ponto IV. do Sumário, in Os danos não patrimoniais na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça 2016-2021            (https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/03/danosnaopatrimoniais.pdf) – € 37.5000.
[13] Processo n.º 3717/16.4T8STB.E1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, in www.dgsi.pt, com o aqui Relator como 2.º Adjunto – € 40.000.
[14] Processo n.º 7614/15.2T8GMR.G1.S1, Relator HENRIQUE ARAÚJO, in www.dgsi.pt – € 36.000.
[15] Processo n.º 243/08.9TBSSB.E1-A.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, in www.dgsi.pt, ainda com o aqui Relator como 2.º Adjunto – € 30.000. 
[16] Processo n.º 30/11.7TBSTR.E1.S1, Rel. RAIMUNDO QUEIRÓS, in ECLI:PT:STJ:2020:30.11.7TBSTR.E1.S1 (csm.org.pt), sendo o aqui Relator 1.º Adjunto – € 25.000.
[17] Processo n.º 1330/17.8T8PVZ.P1.S1, Rel. BERNARDO DOMINGOS, in www.dgsi.pt – € 32.500.
[18] Processo n.º 12213/15.6T8LSB.L1.S1, Rel. VIEIRA E CUNHA, in www.dgsi.pt – € 55.000.
[19] Processo n.º 1082/19.7T8SNT.L1.S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt – € 50.000.
[20] Assim, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 566º”, Código Civil Comentado, II, Das obrigações em geral (artigos 397.º a 873.º), Almedina, Coimbra, 2021, pág. 582.