Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
707/10.4PCRGR.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONHECIMENTO OFICIOSO
DUPLA CONFORME
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
FRIEZA DE ÂNIMO
HOMICÍDIO
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 02/13/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO.
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DAS NORMAS DO PROCESSO PENAL - SUJEITOS DO PROCESSO / PARTES CIVIS - PROVA / MEIOS DE PROVA / RECURSOS.
Doutrina:
- Fernando Silva, Direito Penal, Crimes contra as Pessoas, Quid Iuris, 2005, pág. 73.
- Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pp. 26, 27, 40; Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §55, § 56, § 278, p. 211; Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime- Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.
- Germano Marques da Silva, in «Curso de Processo Penal», Tomo III, 2ª edição, Verbo, Lisboa, 2000, pp. 340, 341.
- Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado – Legislação Complementar, 17ª edição, 2009, p. 913, em anotação ao artº 400º do CPP.
- Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191.
- Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 124, 126 e 127.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 678º Nº 1, 721.º, 721.º-A.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 71.º, 72.º, 75.º, 125.º, 127.º, 400.º, 410.º, N.º2, 412.º, N.ºS 3 E 4, 414.º, N.ºS2 E 3, 420º, Nº 1, ALÍNEA B), 427.º, 428.º, 432.º, 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 40.º, N.ºS 1 E 2, 71.º, 129.º, 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, AL. J).
D.L. N.º 303/2007: - ARTIGOS 11.º, N.º1, 12.º, N.º1.
LEI Nº 52/2008 DE 28-08 (LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS): - ARTIGO 24.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 12-05-2005, PROC. N.º 1439/05 - 5.ª SECÇÃO;
-DE 07-07-2005, PROC. N.º 1670/05 - 5.ª SECÇÃO;
-DE 08-11-2006, PROC. Nº. 3102/06- 3ª SECÇÃO;
-DE 09-11-2006, PROC. N.º 4056/06 - 5.A SECÇÃO
-DE 15-11-2006, PROC. N.º 2555/06 - 3ª SECÇÃO
-DE 15-11-2006, PROC. N.º 3135/06 - 3.ª SECÇÃO
-DE 15-05-2008, PROC. N.º 3979/07 - 5.ª SECÇÃO.
-DE 19-06-2008, PROC. N.º 2043/08 - 5.ª SECÇÃO;
-DE 29-09-2010, PROC. 343/05.7TAVFN.P1.S1;
-DE 22-06-2011, PROC. 444/06.4TASEI;
-DE 30-11-2011, PROC. N.° 401/06. OG TSTR.E1. S1 – 3.ª SECÇÃO;
-DE 15-12-2011, PROC. 53/04.2IDAVR.P1.S1;
-DE 25-01-2012, PROC. N.°360/06.0PTSTB.E1.S1.
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ASSENTO N.º 1/2002, DE 14 DE MARÇO DE 2001, DESTE SUPREMO, DR 117 SÉRIE I-A, DE 2002-05-21.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 39/88;
-N.º 239/97.
Sumário :

I - O STJ, enquanto tribunal de revista, só conhece dos vícios aludidos no n.º 2 do art. 410.º do CPP, de forma oficiosa, por sua própria iniciativa, quando tais vícios se perfilem, que não a requerimento dos sujeitos processuais.
II - Se o agente intenta ver reapreciada a matéria de facto, esta e a de direito, recorre para a Relação. Se pretende ver reapreciada exclusivamente matéria de direito recorre para o STJ, no condicionalismo restritivo vertido nos arts. 432.º e 434.º do CPP, pois que este tribunal, salvo nas circunstâncias exceptuadas na lei, não repondera matéria de facto.
III - A questão de facto sobre a imputabilidade diminuída foi suscitada no recurso para a Relação. O recorrente ao não se conformar com esta decisão, questiona matéria de facto sobre a questão da imputabilidade, pondo em causa o juízo de valoração da prova efectuada pelo tribunal. Mas como do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se perfila a existência dos vícios aludidos no n.º 2 do art. 410.º do CPP, a factualidade provada mostra-se definitivamente fixada.
IV - O tipo fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade, ou que o privilegiam, por constituírem manifestação de uma diminuição de exigibilidade.
V - Os conceitos indeterminados de especial censurabilidade ou perversidade são representados por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritos como exemplos-padrão. A sua ocorrência não determina, por si só e automaticamente, a qualificação do crime, assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser qualificadores da culpa, desde que substancialmente análogos aos legalmente descritos.
VI - A frieza de ânimo é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na sua preparação, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução.
VII - O arguido alimentou animosidade para com a vítima, com quem mantivera uma relação cordial e própria de colegas de trabalho e em relação ao qual se sentiu traído, nutrindo a convicção de que este mobilizava os colegas contra si. Muniu-se da sua espingarda semi-automática, transportou-a num saco plástico e no local perseguiu a vítima, vindo, a uma distância não superior a 2,5 m, a apontar-lhe a arma à cabeça e a efectuar dois disparos quase simultâneos, com o propósito de lhe tirar a vida. Estas circunstâncias revelam especial censurabilidade e perversidade na actuação criminosa do arguido, que assim, praticou, o crime de homicídio qualificado do art. 132.º, n.º 2, al. j), do CP.
VIII - Considerando o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a gravidade das consequências, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, os fins ou motivos determinantes, as condições pessoais do agente, a conduta anterior ao facto e posterior a este, as acutilantes exigências de prevenção geral e as necessidades de prevenção especial, que se confinam à normalidade de ressocialização do agente, julga-se adequada a pena de 18 anos de prisão.
IX - A viabilidade de recurso de decisão de pedido cível, para o STJ, no domínio da lei processual civil, encontra-se também subordinada às regras do art. 721.º do CPC, que se refere às decisões que comportam revista.
X - O regime do n.º 3 do art. 721.º do CPC, ou seja, a dupla conforme prevista no regime processual civil, aplica-se ao processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP, relativamente aos pressupostos de admissibilidade de recurso para o STJ que tenha por objecto o pedido de indemnização civil.
XI - A autonomia dos recursos em processo penal, face aos recursos em processo civil, apenas significa que a sua tramitação unitária obedece imediatamente às disposições processuais penais, mas não exclui, por força do art. 4.º do CPP, em casos omissos, a aplicação subsidiária das regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal, nomeadamente quando em processo penal o objecto de recurso é de natureza cível.
XII - Como o pedido de indemnização civil foi apresentado já depois da entrada em vigor do sistema de dupla conforme (arts. 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, do DL 303/2007), como o acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido, a decisão da 1.ª instância quanto ao pedido de indemnização civil e como não está em causa a aplicação do regime excepcional do art. 721.º-A do CPP, não é admissível nesta parte recurso para o STJ, nos termos dos arts. 414.º, n.º 2, do CPP e 721.º, n.º 3, do CPC, ex vi do art. 4.º do CPP.


Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

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Nos autos de processo comum com o  n.º 707/10.4PCRGR do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Ribeira Grande, foi julgado pelo tribunal colectivo,  o arguido AA, com os demais sinais dos autos, após o que por acórdão de 12-04-2012 (cfr. fls. 712 a 721), no que agora interessa, foi decidido:

A) Condenar AA como autor de um crime de homicídio qualificado punido pelos artigos 131.º e 132.º/1/2/j, do CP, e como autor de um crime de dano qualificado punido pelos artigos 212.º/1 e 213.º/1/c, do CP, nas penas, respectivamente, de dezanove anos de prisão e cento e sessenta dias de multa à taxa diária de sete euros, sendo que aquela primeira pena será executada em estabelecimento para inimputáveis, enquanto se mantiver a sua perturbação psiquiátrica, nos termos do artigo 104.º/1/2, do CP.

B) Declarar perdida a favor do estado a espingarda pertencente AA e identificada na alínea C dos factos provados, que fica à disposição da PSP, de acordo com os artigos 109.º/1 do CP, e 78.º/1 da L 5/2006, de 23.2.

C) Condenar AA a pagar a BB a quantia de duzentos e noventa e seis mil novecentos e noventa e seis euros e cinquenta cêntimos, com juros às taxas sucessivamente aprovadas ao abrigo da Portaria 291/2003, de 8.4, sendo desde a data da notificação do pedido sobre a quantia de 146 996,50 €, e desde a data desta decisão sobre a de 150 000 €, absolvendo-o do demais peticionado.

D) Condenar AA nos encargos a que deu causa com 3 UC de taxa de justiça (artigo 8.º/5 e Tabela III do RCP).

E) Após trânsito, ordenar que se remetam boletins ao registo criminal e se proceda a recolha de amostra de ADN ao condenado, nos termos e para os efeitos do disposto dos artigos 8.º/2/5, 9.º, 10.º, 11.º, 15.º/1/e e 18.º/3, da L 5/2008, de 12/2.

F) Ordenar que, independentemente de trânsito, se extraia certidão deste acórdão e cópia das declarações do arguido e de CC e tudo se entregue ao ministério público, indiciados que estão, pelos menos, os crimes de peculato e receptação, puníveis pelos artigos 375.º e 231.º/1, do CP, tudo sem prejuízo de eventuais infracções fiscais de natureza penal.»

Inconformado com a decisão, o arguido recorreu para o tribunal da Relação de Lisboa, que, por seu acórdão de 9 de Outubro de 2012, decidiu “negar provimento aos recursos interpostos, confirmando, na sua plenitude, a decisão recorrida.”


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De novo inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões na motivação do recurso:

1ª) Pelos fundamentes constantes a fls. 24 do acórdão recorrido, apurou que o arguido recorrente padecia de «uma depressão "reactiva" às vicissitudes da vida e só mais tarde, já após do encerramento e afastamento da família, evolui (...) para uma depressão grave ou "major", e só depois desse momento com eventual potencial perturbador das suas faculdades cognitivas e/ou volitivas.

2-) Tendo, outrossim, não considerado - à semelhança da primeira instância -que o estado psíquico do arguido, fosse à data dos factos ou em momento anterior a eles, de molde a incapacitá-lo para lidar com os seus sentimentos e com o conflito e de se determinar, ou, ainda, que padeça de elevado "índice de hostilidade."

3-) Decorre do texto do acórdão recorrido, aqui em revisão que também este acórdão não teve em consideração aqueles factos, existindo, não apenas insuficiência da matéria provada para considerar que a depressão grave ou "major" apenas se verifica na pessoa do arguido, após o crime cometido e com a sua reclusão, pelo que em nosso modesto entendimento, existe erro notório nessa apreciação da prova.

4-) Sendo por isso essa decisão sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de um julgamento ampliada da matéria de facto, situação esta consentida pela 1- parte do artigo 434º do CPP.

5-) Nesse âmbito, deve o Tribunal "ad quem" considerar que o arguido padecia de uma grave perturbação psiquiátrica (Perturbação Depressiva Major Recorrente), prévia aos acontecimentos, que fragilizou significativamente a sua capacidade para lidar com sentimentos internos menos estruturados. Na verdade;

6-) Já anteriormente ao acto praticado pelo arguido este, apresentava:

Humor depressivo durante a maior parte do dia, quase todos os dias, indicado ou pelo relato subjectivo (por exemplo, sente-se triste ou vazio) ou pelo relato de outros;

•              Diminuição clara do interesse ou prazer em todas, ou quase todas, as actividades, durante a maior parte do dia, quase todos os dias, indicado ou pelo relato subjectivo ou pelo relato de outros;

•              Insónia ou hipersónia quase todos os dias;

•              Fadiga ou perda de energia quase todos os dias;

•              Sentimentos de desvalorização ou culpa excessiva ou inapropriada (que pode ser delirante) quase todos os dias (não meramente autocensura e sentimentos de culpa por estar doente);

•              Diminuição da capacidade de pensamento ou da concentração, ou indecisão, quase todos os dias (ou pelo relato, ou pela observação dos outros);

•              Pensamentos recorrentes acerca da morte (não só acerca do medo de morrer), ideação suicida sem planos específicos ou uma tentativa de suicídio ou um plano específico para cometer suicídio.

7-) De tudo se podendo concluir que o arguido estava a conviver com uma depressão Major, Prévia ao acto, e assim, com imputabilidade diminuída (o que tudo tem fundamento no Relatório do Prof. Amaral Dias, Catedrático de Psicopatologia e Médico Psiquiatra Psicanalista e da Psicóloga Clínica Magda Botelho Furtad (fls 414 a 438 dos autos.)

8-) No que se refere ao relatório do perito Dr. Paulo Vidal, considera o mesmo por reconhecer (sic.) "alguma atenuação" no comportamento do arguido), (fls. 679 a 693)

9-) Em suma, o quadro clínico apresentado pelo Sr. Perito, anterior ao acto, configurava-se como uma Depressão Major, e, é atendendo a este estado que se configura a imputabilidade diminuída. Parecendo-nos ser este o sentido único do estrito ponto de vista médico-legal. Assim face ao exposto;

10-) No âmbito dos seus poderes supra referidos de julgamento da matéria de facto, deve o Tribunal ad quem, considerar que o estado psíquico de arguido, era à data dos factos, ou em momento anterior a eles, de molde a incapacitá-lo para lidar com os seus sentimentos e com o conflito, e assim de se auto determinar, ou ainda, que padecia de um elevado "índice de hostilidade" que constituiu, no caso concreto, "factor de imputabilidade diminuída"

11-) Agir com frieza de ânimo, significa actuar com serenidade, com o espírito límpido de emoções, como de resto o reconhece o acórdão recorrido a fls. 26.

12-) O que manifestamente e em nosso entendimento, não foi o caso do arguido, pelas razões acima já explicitadas.

13-) O acórdão do Tribunal da Relação, ora recorrido, ao considerar (tal como a sentença da primeira instância) que o arguido agiu com frieza de ânimo especialmente censurável, desse modo condenando o arguido pela prática de um homicídio qualificado na pena de prisão de 19 anos a luz 132, nº 1,e nº 2, ai. j), CP, fez errada interpretação, e errada aplicação do direito.

14-) Não se podendo, como entende o recorrente, qualificar o homicídio, devia este ter sido punido pela prática de homicídio p p. pelo artigo 131º do CP.

15-) Atendendo por um lado, à imputabilidade diminuída do arguido, à sua falta de antecedentes criminais, e, às necessidades de prevenção geral e especial da pena (artigo 71º do Código Penal), entende - se como adequada a pena máxima de 10 (dez) anos de prisão.

16-) A título de compensação por danos morais e patrimoniais e escudando -se na "equidade" o Tribunal «a quo» condenou o recorrente a pagar à assistente, a quantia de 296,996€50.

17-) Trata - se de quantia manifestamente exagerada, tendo por base que equidade, não se confunde com arbítrio, e na compensação judicial dos danos (morais ou patrimoniais) deve atender-se, por razões de justiça relativa, aos padrões geralmente utilizados na jurisprudência, não podendo os mesmos ser fonte de enriquecimento sem causa, ou "enriquecimentos despropositados". Por isso;

18-) Deve a compensação/indemnização arbitrada, ser substancialmente reduzida por esse douto Tribunal «ad quem», dentro do seu prudente arbítrio.

Nestes termos, deve ser julgado procedente o presente recurso e consequentemente, ser revogado o acórdão ora recorrido, do Tribunal da Relação, e substituído por outro que:

a)            Condene o arguido, ora recorrente, pela prática de homicídio p p pelo artigo 131» do CP, fixando-se (atentos os critérios do artigo 71Q do CP) a pena máxima de prisão, em 10 anos.

b)            Ser substancialmente reduzida a compensação/indemnização arbitrada pelo Tribunal recorrido.

Tudo como é de Direito e de JUSTIÇA!


-

            Respondeu o Ministério Público à motivação de recurso, concluindo:

           

O recorrente pretende fundamentar o recurso afirmando que Acórdão recorrido tal como o Acórdão da ia instância não consideraram que o seu estado psíquico na data dos factos ou em momento anterior era de molde a incapacita-lo para lidar com sentimentos e com conflito e de se determinar.

É incompreensível que o recorrente não tendo reagido ao teor da perícia venha agora pretender que o tribunal altere as conclusões da mesma   sem   apontar   qualquer justificação   ou   razão   de   ser, ignorando até o regime legal plasmado nos antes citados artigos 158º e 163º do CPP.

Pretende o arguido que a injustificada alteração do sentido e das conclusões da perícia constituam um recurso sobre a matéria de facto portanto enquadrável no artigo 434°do CPP.

No entanto torna-se evidente que não se está em qualquer das situações previstas no artigo 410º n° 2 do CPP.

Ora não ocorre qualquer das situações previstas no artigo 410º n° 2 do CPP como pretende o recorrente.

Por outro lado a questão colocada pelo arguido constituiria se fosse devidamente fundamentada uma questão de facto porque estava em causa uma ocorrência da vida real.

Assim sendo não poderia o STJ conhecer de facto.

Nunca poderia o tribunal ignorar na medida da pena o teor do relatório pericial que prova a sua imputabilidade e igualmente não poderia deixar de relevar a frieza da sua actuação, o modo da execução do crime bem como as suas motivações censuráveis.

Deste modo a pena que foi imposta ao arguido mostra-se proporcional e equilibrada não merecendo censura.

Deve em conformidade o recurso ser rejeitado. (processei e revi) Lisboa, 13/11/2012

VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO COMO SEMPRE JUSTIÇA

            Neste Supremo, o Dig.mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto Parecer onde assinala:

2.1 – Quanto à parte penal:

                Como é por demais sabido, o objecto do recurso de revista para o STJ tem de circunscrever-se apenas a questões de direito. As questões de facto são decididas definitivamente pelos Tribunais da Relação.

                Pelo que, e vindo confinado neste segmento, como vem, ao pedido de reexame da matéria de facto[1], cremos que o presente recurso não pode deixar de ser liminarmente rejeitado.

É este, de resto, o sentido da jurisprudência contida, entre outros, no Acórdão do STJ de 19-05-2004, proferido no Recurso n.º 904/04/3.ª, cuja pronúncia pode sintetizar-se nos termos seguintes: «A recorrente apenas suscita questões relativamente à matéria de facto, discute depoimentos e o modo como a prova foi apreciada, designando como erro notório na apreciação da prova apenas a circunstância de a conclusão probatória do tribunal da Relação ser diversa daquela que, na sua apreciação, deveria ter sido a decisão sobre os factos.

            Ora, nos termos do art. 434.º do CPP, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo da apreciação oficiosa dos vícios do art. 410.º do CPP.

 Sendo tal apreciação, por oficiosa, apenas do critério do Supremo Tribunal, quando considere que há motivos para conhecer dos referidos vícios, a invocação destes não pode constituir fundamento de recurso.

E, de qualquer modo, também não vem invocado no recurso qualquer fundamento que se possa integrar em alguma das categorias que a lei de processo enuncia no referido artigo 410.°, n.° 2, do CPP.

Discutindo apenas matéria de facto, o recurso é, assim, manifestamente improcedente, e deve ser rejeitado, como determina o art. 420, n.º 1 do CPP».
Ademais, e “ex abundanti”, deve ainda enfatizar-se que, como uniforme e reiteradamente vem sendo afirmado pela Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, os vícios do art. 410.º do CPP não podem constituir, por si só, fundamento autónomo de impugnação de decisões das Relações em recurso para este STJ. Assim se decidiu por exemplo, entre outros, no Acórdão de 4-12-08, publicado na CJ (STJ), 2008, Tomo III, pág. 239, em cujo sumário pode ler-se a este propósito que «após a reforma do CPP de 1998, que pôs termo ao recurso de “revista alargada” para o STJ, criando em sua substituição um recurso em matéria de facto para a Relação, os vícios indicados no n.º 2 do art. 410.º do CPP deverão ser impugnados junto da Relação, que decide nessa matéria em última instância, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos mesmos pelo STJ, quando detectados, nos termos do art. 434.º do CPP».

No mesmo sentido apontou, mais recentemente, o Acórdão deste STJ, de 7-04-2010, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se que, citamos, «I - Não incumbe ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos vícios aludidos no artigo 410º nº 2 do CPP, como fundamento de recurso, invocados pelos recorrentes, uma vez que o conhecimento de tais vícios sendo do âmbito da matéria de facto, é da competência do tribunal da Relação. (artºs 427º e 428º nº 1 do CPP)

 II - Em recurso penal interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, há que conjugar a norma do artº 410º nº 1 do CPP [Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida] com o artº 434º do mesmo diploma: Sem prejuízo do disposto no artigo 410º nºs 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

III - O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, apenas conhece dos vícios, previstos nas alíneas do nº 2 do art. 410º do CPP, oficiosamente, se os mesmos se perfilarem no texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, uma vez que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame da matéria de direito (artº 434º do CPP)

IV - O artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, não confere a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, ou duplo grau de recurso, assegurando-se o direito ao recurso nos termos processuais admitidos pela lei ordinária».

2.1.1 – Resumindo e concluindo:

Como uniformemente vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça, após a revisão do CPP operada em 1998 (Lei 59/98), os seus poderes de cognição, quer nos recursos directos da 1.ª instância, quer das decisões das relações proferidas em recurso, são exclusivamente de direito, pressupondo em ambos os casos a prévia fixação da matéria de facto, pelo que não pode o recorrente suscitar a questão do seu reexame, ainda que a coberto da invocação dos vícios a que se reporta o art.º 410.°, n.º 2, do CPP.

Com efeito, e tal como pode ler-se na fundamentação do recente Acórdão do STJ, de 7-12-2011, proferido no âmbito do Processo n.º 830/09.8PB.C1.S1, antes de tal revisão, os recursos das decisões do tribunal colectivo eram obrigatoriamente dirigidos ao STJ, pelo que fazia sentido que os recorrentes, nesses casos de recurso directo para o STJ, como não podiam impugnar a matéria de facto por reporte à prova produzida na audiência (que nem sequer era registada ou transcrita para a acta), pudessem, de algum modo, discuti-la por invocação dos vícios referidos naquela norma do CPP. A revista «alargada» para o STJ, ao tempo, incluía, portanto, o poder deste Tribunal para mandar modificar a matéria de facto, por reenvio para o tribunal da 1.ª instância, a pedido do recorrente.

Com a reforma de 1998, o recurso do tribunal colectivo passou a poder ser interposto ou para a Relação ou para o STJ, consoante o respectivo objecto. Se o recorrente quer discutir a matéria de facto, ou por considerar que há discordância entre a prova registada em acta e a matéria de facto estabelecida na sentença, ou por entender que esta padece de algum dos referidos vícios da matéria de facto, recorre obrigatoriamente para a relação (art.°s 427.° e 428.º do CPP). Mas, se só quer abordar matéria de direito, recorre obrigatória e directamente para o STJ (art.s 432.º/c), 433.º e 434.º do CPP), caso em que não pode invocar algum daqueles vícios e se conforma inteiramente com a matéria de facto.

Do mesmo modo, tendo o recorrente optado por abordar questões de facto em recurso dirigido para a relação, o novo recurso que seja admissível para o STJ da decisão proferida por aquele tribunal superior, agora puramente de revista, pressupõe a prévia fixação da matéria de facto e o recorrente já não pode voltar a invocar questões «de facto», ainda que sob a capa dos vícios da sentença (art.º 434.º do CPP). A referência que nesta última norma é feita ao art.º 410.º, n.º 2 do CPP, é a possibilidade reservada ao STJ de poder reenviar o processo para novo julgamento da matéria de facto, quando entenda que não pode decidir de direito. Trata-se de uma válvula de escape do sistema, pois há casos em que a matéria de facto é de tal modo obscura, contraditória, ou omissa, que não é possível decidir. É, contudo, um poder oficioso, da iniciativa exclusiva do tribunal e não de um direito que assista ao recorrente de obrigar o STJ a rever a matéria de facto, pois, como se disse, as questões de facto, como objecto do recurso, ficaram definitivamente encerradas com a decisão proferida na relação.  

No caso concreto dos autos, analisando o veredicto condenatório ora impugnado, e conjugando o seu texto com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer «lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito tomada», vício que não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida[2].
De igual forma, também se não vislumbra nem contradição nem qualquer «erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores», ou seja, qualquer erro do qual «o homem de formação média facilmente dele se dá conta»[3].
Dir-se-á apenas que não traduz qualquer erro notório o facto de o tribunal ter dado credibilidade a determinadas declarações e/ou meios de prova produzidos, em detrimento de outras, tanto mais que aquelas se encontram devidamente suportadas por outros elementos de prova que foram indicados na fundamentação.
2.1.2 – Apenas uma última nota para aqui reafirmar que o recorrente não questionou, de todo, a medida concreta da pena em que foi condenado, a não ser no quadro da impugnação da decisão de facto proferida relativamente à questão da sua imputabilidade diminuída, quadro em que pugnou pela convolação da sua conduta para o crime de homicídio simples.
Ora, recusada que seja, como propomos, aquela primeira pretensão do recorrente, e fixada assim, em definitivo, a matéria de facto provada, claudica também, inexoravelmente, o pressuposto em que assentava a sua pretensão no sentido quer da requalificação jurídica da sua conduta, quer de subsequente reexame, no quadro dessa pretendida requalificação, da medida concreta da pena.

2.2 – Quanto à parte cível:
2.2.1 – De acordo com o n.º 3 do artigo 400.º do CPP, dispositivo introduzido pela Lei n.º 48/O7, de 29 de Agosto: «Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização cível».
Com tal alteração o legislador subtraiu ao regime de recursos da lei adjectiva penal as decisões relativas à indemnização civil, submetendo-as integralmente ao regime da lei adjectiva civil, o que fez, conforme afirmação assumida na motivação da proposta de Lei n.º l09/X, a bem da "igualdade" entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal.
À alteração introduzida subjaz, portanto, o propósito de colocar em pé de igualdade todos aqueles que pretendam impugnar decisão civil proferida, dentro ou fora do processo penal, ou seja, quer a respectiva causa ou pleito se desenvolva em processo penal ou em processo civil.
Daqui decorre, com meridiana clareza, que o n.º 3 do artigo 400.º veio submeter a impugnação de todas as decisões civis proferidas em processo penal ao regime previsto na lei adjectiva civil, no sentido ele que às decisões (finais) relativas à indemnização civil proferidas em processo penal é integralmente aplicável o regime dos recursos estabelecido no Código de Processo Civil.
É este o único entendimento possível face à ratio do preceito em causa .

                De acordo com o n.º 3 do artigo 721.º do Código ele Processo Civil: «Não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na Iª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte».

                No caso em apreço, e tal como sucedeu na parte criminal, verificamos que o acórdão recorrido confirmou, como vimos, a decisão sobre o pedido cível proferida em 1.ª instância, sem voto de vencido.

                Por outro lado, não se verifica qualquer das situações de excepção normativamente previstas no artigo 721.º- A, do Código de Processo Civil.

                Segue-se por isso, inexoravelmente, que o recurso interposto não é admissível nesta parte, sendo que, como é sabido e decorre do disposto nos art. 414.º, n.ºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1/b) do CPP, a decisão que, na Relação, o admitiu não vincula o tribunal superior.

                Apenas uma última nota para aditar ao aresto acima citado, todos na apontada dimensão normativa, os Acórdãos do STJ, de 7-04-2011, Processo n.º 4068/07.0TDPRT.G1.S1, da 5.ª Secção, relatado pelo Sr. Conselheiro Manuel Braz[4]; de 15-12-2011, Processo n.º 53/04.2IDAVR, da 5.ª Secção; e do passado dia 11-04-2012, Processo n.º 3989/07.5TDLSB.L1.S1, subscrito pelos Srs. Conselheiros Oliveira Mendes e Maia Costa; e a Decisão Sumária de 19-01-2012, Processo n.º 220/07.7GAVNF.P1.S1, da 5.ª Secção.  

2.2.2 – Donde, e em conclusão:

                – Nos termos do art. 721.º, n.º 1, referido ao art. 691.º, n.º 1, do CPC (versão do DL 303/2007, de 24-08), cabe recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1.ª instância que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com o n.º 3 do primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte»: é o chamado sistema da “dupla conforme”.

                – Esta norma é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP.

                – Sendo este o caso dos autos, e porque não está em causa a aplicação do regime excepcional do art. 721.º-A do CPC, o recurso não é admissível na parte cível por via da “dupla conforme” verificada.


***
 2.3 – TERMOS EM QUE, e à luz da apontada jurisprudência, o recurso interposto não pode, cremos, deixar de ser liminarmente rejeitado, (i)na sua vertente penal, e uma vez que com ele o recorrente visa, apenas, o reexame da matéria de facto apurada pelas instâncias, por manifesta improcedência; e (ii)no seu segmento cível por inadmissibilidade legal, tudo nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, alíneas a) e b), com referência ao art. 414.º, n.ºs 2 e 3, ambos do CPP.”

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            Cumpriu-se o disposto no artº 417º nº 2 do CPP

            Não tendo sido requerida audiência, seguiu o recurso para conferência, após os vistos legais em simultâneo.

            Consta do acórdão da Relação:

                “No que ora interessa, é do seguinte teor o acórdão recorrido:

 

«1 Provou-se que:

A. AA e DD eram colegas de trabalho, exercendo ambos funções no parque das Máquinas da SRCTE, ao Caldeirão, Estrada Regional da Ribeira Grande, Pico da Pedra, Ribeira Grande, sendo o último controlador e trabalhando na dependência do primeiro, controlador principal a quem nessa qualidade cabia a gestão da frota automóvel daquele parque de máquinas e que nas suas ausências era substituído pelo último. Desde altura ignota que naquele serviço funcionários diversos, entre os quais certamente aquele primeiro, procediam à venda de ferro-velho e objectos diversos em metal, pertencentes à citada Secretaria, aplicando o produto dessas vendas nomeadamente em almoços de confraternização.

B. Sobre essa conduta, DD foi o primeiro signatário de uma denúncia apresentada ao Director Regional dos Equipamentos e Transportes Terrestres (= DRETT), na qual se dava conta de que após o saída do chefe de divisão, haviam desaparecido do parque de máquinas, em objectos diversos e além de outros bens, cerca de 50 toneladas de ferro. Na sequência dessa e de anterior denúncia anónima o citado director proibiu os ditos "almoços" e cessaram as vendas. Neste contexto, e face à perspectiva de nomeação de um novo chefe de divisão, AA, apreensivo relativamente à sua posição naquele serviço, alimentou animosidade para com DD, com quem mantivera relação cordial e própria de colegas de trabalho e em relação ao qual se sentiu traído, nutrindo a convicção de que este mobilizava os colegas contra si.

C. Assim, no dia 27.12.2010, cerca das 8:45, AA muniu-se da sua espingarda semi-automática, marca Pietro Beretta, modelo 1200, com número de série T26353E, de calibre 12, com o numero M77177F gravado no cano, transportando-a num saco de plástico preto com o propósito de tirar a vida a DD – e com ela se dirigiu ao parque de máquinas. Uma vez aí, entrou nas instalações do escritório onde se encontravam a conversar DD e EE. Após olhar para ambos, abriu a porta e empunhando a espingarda apontou-a na direcção de DD disparando um tiro, cujos projécteis após terem feito ricochete na parede do escritório, atingiram aquele no flanco esquerdo, causando-lhe equimoses.

D. Logo DD fugiu para o andar superior, subindo as escadas, disparando AA segundo tiro na sua direcção sem o atingir e, de arma na mão, perseguiu-o para o piso superior onde se situam um escritório e um refeitório, sendo que na sequência da perseguição o DD acabou por descer uma escada interna do edifício e por aí passar ao exterior do mesmo, onde de novo AA disparou na sua direcção quando se dirigia para a viatura oficial, marca Peugeot, modelo 106, cor azul, com matricula ...-JJ, propriedade da SRCTE, que lhe estava afecta e que se encontrava estacionada, sendo que durante essa actuação, a quem o interpelava para cessá-la, AA disse para não interferir e empregou a expressão "não se mexam senão caem".

E. Com esse disparo, AA atingiu DD na zona posterior do terço superior do braço direito, tendo-se este último introduzido na aludida viatura e nela prosseguindo a sua fuga, continuando AA no seu encalço, apeado e efectuando mais dois disparos na direcção do veículo, com um deles atingindo-o na porta traseira e partindo os vidros das laterais traseiras direita e esquerda, e com o outro nos vidros das portas dianteiras estilhaçando os vidros laterais dianteiros direito e esquerdo.

F. DD continuou a sua marcha no carro até junto dos armazéns da Direcção de Estradas, tendo-o imobilizado e abandonado, prosseguindo a cambalear em direcção a um terreno descampado, contíguo à via pública, sito nas proximidades do parque de máquinas, mas sempre com AA no seu encalço e sendo que este ao chegar a uma distância de si não superior a 2,5 m, empunhou e apontou a arma visando-lhe a cabeça e, sempre com o propósito de lhe tirar a vida, efectuou dois disparos, sequenciais e quase simultâneos, ali o atingindo. Após, verificando que DD ficara caído no chão, regressou às imediações dos escritórios do parque de máquinas de arma na mão, entregando-a a FF, abraçando-o e dizendo-lhe "ainda falta um....!"

G. Em consequência de tais disparos, DD sofreu, nomeadamente, equimoses dispersas na base do hemitórax esquerdo, pequenas equimoses de forma circular dispersas no flanco e hipocôndrio superior esquerdo, hematoma a nível da região anterior do braço e perda irregularmente circular da pele e massa muscular na parede latero­posterior do braço no seu terço superior com perda parcial do músculo tricípete na sua zona de inserção, destruição do couro cabeludo, múltiplas fracturas com esquírolas dos ossos da fossa anterior do crânio e dos restantes ossos da base, esfenóide e rochedos dos ossos temporais, fractura dos ossos malares, destruição das meninges, perda total dos lobos frontais e perda parcial de ambos os lobos parietais, ausência do osso frontal, ausência parcial dos ossos parietais e temporal direita, sendo que essas lesões crânio-meningo-encefálicas foram causa da sua morte.

H. Por via dos disparos acima mencionados e do impacto dos projecteis a viatura da SRCTE ficou com os vidros das laterais esquerda e direita estilhaçados, o guarda lama partido, o painel exterior da porta da lateral direita furado, a pintura do lado direito riscada, tudo importando para reparação o custo de 2 047,77 €, que AA entretanto pagou àquela Secretaria.

I. Na sua conduta atrás descrita, AA agiu de forma deliberada segundo desígnio que formara de tirar a vida a DD, sabendo que o atingia em órgãos vitais com arma que era apta a matar, que no decurso dessa acção causaria também estragos como os verificados na viatura pertencente à SRCTE e afecta a serviço público e sempre consciente de que essas condutas eram proibidas e penalmente punidas.

J. DD, nascido em ..., casado desde ... com BB, de 45 anos, sua única e universal herdeira, mantinha com esta uma relação de grande proximidade e amor mútuos, quotidianamente expressos em companhia e conversas, e a sua morte causou nela grande desgosto, mágoa, angústia e desespero face à viuvez, sentimentos especialmente intensos após os factos mas que ainda hoje persistem.

L. DD tinha habitualmente boa disposição, mostrava alegria com a vida em geral e também com a sua actividade laboral. Surpreendido no dia dos factos pela conduta de AA e face à tenacidade da respectiva perseguição, durante a fuga padeceu do terror próprio da iminência da morte e suportou no corpo as dores resultantes dos disparos e da gravidade das lesões que lhe eram infligidas.

M. Do seu trabalho, DD auferia em média, entre remuneração base, subsídio de alimentação e remunerações complementares, o valor líquido mensal de cerca de 745 €, partilhando despesas com a esposa. Com o funeral do marido, BB despendeu a quantia de 1996,50 €.

N. AA tem 57 anos de idade, é casado e tem dois filhos, um com 16 e outro com 26 anos de idade, aquele estudante e este jornalista. O agregado é coeso e afectivo. AA integrou o ensino na idade própria tendo concluído a 4.ª classe aos 10 anos de idade. A partir dessa altura começou a trabalhar, primeiro com o pai num negócio de família e, já adulto, ingressou na função pública na SRCTE, paralelamente dedicando-se à criação e venda de bovinos. Era tido como um funcionário responsável e sem problemas de relacionamento interpessoal e, na comunidade, é visto como alguém activo, integrando a junta de freguesia de Ribeirinha, a comissão fabriqueira da paróquia, a banda filarmónica daquela freguesia e foi treinador de futebol. Há 11 anos contraiu um vírus que lhe afectou a capacidade de locomoção e, quando se restabeleceu, foi-lhe diagnosticada uma doença oncológica, agora em fase de completa remissão, com acompanhamento. Como reacção a essas patologias, desenvolveu e padecia à data dos factos de perturbação depressiva de gravidade moderada, caracterizada, nomeadamente, por humor deprimido, isolamento, desinteresse por actividades que antes lhe davam prazer, ansiedade e insónia com ruminação de pensamentos negativos, tendo agido na prática dos factos em tensão induzida pelo conflito com DD e com algum prejuízo da reflexibilidade. Só depois, no período de reclusão, desenvolveu sintomas depressivos de intensidade grave e de perturbação de stress pós traumático, nomeadamente transtornos do pensamento e delirante, com alguma ideação suicida, mas sempre sem perder capacidade crítica sobre os factos que perpetrou. É pessoa emocionalmente frágil e com dificuldade em lidar com situações de pressão, tensão ou frustração, é desconfiado e guarda ideias sobrevalorizadas sobre o que intendem os outros. Nunca foi condenado pela prática de qualquer crime.

2 Não se provou que:

O. Ao entregar a arma a FF, AA lhe tivesse igualmente dito "mas a verdade vai vir ao de cima e ele vai pagar por aquilo que me fez".

P. Das suas remunerações DD destinasse ao sustento e despesas com a esposa concretamente a quantia mensal de 600 €.
Q. Os colegas de AA não acatassem as suas ordens por considerarem que abusasse do seu poder retirando dividendos pessoais, tivesse sido constituído grupo de colegas para expulsá-lo das funções, que DD fosse seu "amigo" e instigasse os demais colegas contra si, AA confrontasse DD e este tivesse reagido de modo "agressivo" e "depreciativo" deixando-o "fora de si" e só então aquele fosse buscar a arma e esta nesse dia tivesse sido por ele levada para que um colega a limpasse e, ainda, que só após os factos tivesse dado conta do que fizera[5].
R. O estado psíquico de AA fosse, à data dos factos ou em momento anterior a eles, de molde a incapacitá-lo para lidar com os seus sentimentos e com o conflito e se determinar ou, ainda, que padeça de elevado "índice de hostilidade".


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            Cumpre apreciar e decidir

Invoca o recorrente não só a insuficiência da matéria provada, para considerar que a depressão grave ou "major" apenas se verifica na pessoa do arguido, após o crime cometido e com a sua reclusão mas a existência de erro notório na apreciação da prova, porque não considerou “à semelhança da primeira instância -que o estado psíquico do arguido, fosse à data dos factos ou em momento anterior a eles, de molde a incapacitá-lo para lidar com os seus sentimentos e com o conflito e de se determinar, ou, ainda, que padeça de elevado "índice de hostilidade” e, por isso alega que essa decisão sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de um julgamento ampliada da matéria de facto, situação esta consentida pela 1ª parte do artigo 434º do CPP e, nesse âmbito, deve o Tribunal "ad quem" considerar que o arguido padecia de uma grave perturbação psiquiátrica (Perturbação Depressiva Major Recorrente), prévia aos acontecimentos, que fragilizou significativamente a sua capacidade para lidar com sentimentos internos menos estruturados.

            Analisando:

Embora o nº 1 do artº 410º do CPP, refira: “Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, vem sendo entendido por este Supremo, que os vícios constantes do artigo 410º nº 2 do CPP, apenas podem ser conhecidos oficiosamente e, não quando suscitados pelos recorrentes.

È certo que dispõe o nº 2 do artigo 410º:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada,

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

É certo também que o artº 434º do CPP determina que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410º nºs 2 e 3 , - artº 434º do CPP

Mas, isto significa que sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, só conhece dos vícios aludidos no artigo 410º nº 2, de forma oficiosa, por sua própria iniciativa, quando tais vícios se perfilem, que não a requerimento dos sujeitos processuais.

Mesmo nos recursos das decisões finais do tribunal colectivo, o Supremo só conhece dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, por sua própria iniciativa, e nunca a pedido do recorrente, que, para o efeito, sempre terá de se dirigir à Relação.

Esta é a solução que está em sintonia com a filosofia do processo penal emergente da reforma de 1998 que, significativamente, alterou a redacção da al. d) do citado art. 432., fazendo-lhe acrescer a expressão antes inexistente "visando exclusivamente o reexame da matéria de direito", filosofia que, bem vistas as coisas, visa limitar o acesso ao Supremo Tribunal, sob pena do sistema vigente comprometer irremediavelmente a dignidade deste como tribunal de revista que é.(v Acórdão deste Supremo Tribunal de 09-11-2006 Proc. n. 4056/06 - 5.a Secção)

Com tal inovação, o legislador claramente pretendeu dar acolhimento a óbvias razões de operacionalidade judiciária, nomeadamente, restabelecendo mais equidade na distribuição de serviço entre os tribunais superiores e garantir o desejável duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

Esta posição nada tem de contraditório, já que a invocação expressa dos vícios da matéria de facto, se bem que algumas das vezes possa implicar alguma intromissão nos domínios do conhecimento de direito, leva sempre ancorada a pretensão de reavaliação da matéria de facto, que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado.

Como se decidiu, por ex., no Acórdão de 8-11-2006, deste Supremo Tribunal, Proc. nº. 3102/06- desta 3ª Secção: Os vícios elencados no art. 410º, nº 2, do CPP, pertinem à matéria de facto; São anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Também o apelo ao princípio in dubio pro reo respeita à matéria de facto.

Se o agente intenta ver reapreciada a matéria de facto, esta e a de direito,, recorre para a Relação; se pretende ver reapreciada exclusivamente a matéria de direito recorre para 0 STJ, no condicionalismo restritivo vertido nos arts. 432º e 434º do CPP, pois que este tribunal, salvo nas circunstâncias exceptuadas na lei, não repondera a matéria de facto.

É ao tribunal da relação a quem cabe, em última instância, reexaminar e decidir a matéria de facto. - arts. 427º e 428º do CPP.

A reforma do Código de Processo Penal operada quer pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, quer pela Lei nº 25/2010, de 30 de Agosto, não alterou esse entendimento.

O recorrente pretende convocar a discussão sobre a valoração do seu estado mental no momento dos factos

Para tal  alega (v. conclusão 6ª) que

Já anteriormente ao acto praticado pelo arguido este, apresentava:

Humor depressivo durante a maior parte do dia, quase todos os dias, indicado ou pelo relato subjectivo (por exemplo, sente-se triste ou vazio) ou pelo relato de outros;

•              Diminuição clara do interesse ou prazer em todas, ou quase todas, as actividades, durante a maior parte do dia, quase todos os dias, indicado ou pelo relato subjectivo ou pelo relato de outros;

•              Insónia ou hipersónia quase todos os dias;

•              Fadiga ou perda de energia quase todos os dias;

•              Sentimentos de desvalorização ou culpa excessiva ou inapropriada (que pode ser delirante) quase todos os dias (não meramente autocensura e sentimentos de culpa por estar doente);

•              Diminuição da capacidade de pensamento ou da concentração, ou indecisão, quase todos os dias (ou pelo relato, ou pela observação dos outros);

•              Pensamentos recorrentes acerca da morte (não só acerca do medo de morrer), ideação suicida sem planos específicos ou uma tentativa de suicídio ou um plano específico para cometer suicídio.

E, afirma – v. conclusão 7ª -,que o arguido estava a conviver com uma depressão Major, Prévia ao acto, e assim, com imputabilidade diminuída (o que tudo tem fundamento no Relatório do Prof. Amaral Dias, Catedrático de Psicopatologia e Médico Psiquiatra Psicanalista e da Psicóloga Clínica Magda Botelho Furtad (fls 414 a 438 dos autos.) e, no que se refere ao relatório do perito Dr. Paulo Vidal, considera o mesmo por reconhecer (sic.) "alguma atenuação" no comportamento do arguido), (fls. 679 a 693) – conclusão 8ª,

Alega em suma, que o quadro clínico apresentado pelo Sr. Perito, anterior ao acto, configurava-se como uma Depressão Major, e, é atendendo a este estado que se configura a imputabilidade diminuída., parecendo-lhe ser este o sentido único do estrito ponto de vista médico-legal;- conclusão 9ª - e no âmbito dos seus poderes supra referidos de julgamento da matéria de facto, deve o Tribunal ad quem, considerar que o estado psíquico de arguido, era à data dos factos, ou em momento anterior a eles, de molde a incapacitá-lo para lidar com os seus sentimentos e com o conflito, e assim de se auto determinar, ou ainda, que padecia de um elevado "índice de hostilidade" que constituiu, no caso concreto, "factor de imputabilidade diminuída"

            Ora há que separar as águas: uma coisa são os poderes de cognição do Supremo, que, em recurso, não conhece da matéria de facto, mas reexamina exclusivamente a matéria de direito, sem prejuízo do disposto no artº 410º nºs 2 e 3 do CPP, outra é a valoração da matéria de facto na interpretação do direito, concernente à decisão.

            A questão de facto posta pelo recorrente sobre a invocada imputabilidade diminuída ,já tinha sido suscitada no recurso interposto para a Relação, como resulta do disposto nas conclusões 7ª a 10ª dessa motivação, e,, quanto a tal matéria concluía

“13ª) Assim deve ser por esse douto tribunal ad quem dado como não provado que:

a) «Só depois, no período de reclusão, desenvolveu sintomas depressivos de intensidade grave e de perturbação de stress pós traumático, nomeadamente transtornos do pensamento e delirante, com alguma ideação suicida, mas sempre sem perder capacidade crítica sobre os factos que perpetuou»;

E dado como provado que:

b) O estado psíquico de AA fosse, à data dos factos ou em momento anterior a eles, de molde a incapacitá-lo para lidar com os seus sentimentos e com o conflito e se determinar ou, ainda, padecendo de elevado “índice de hostilidade”.

            A Relação, sendo o tribunal de recurso competente para conhecer de facto, conheceu da questão e explicou: “[…]importa deixar exarado que, do teor do relatório de perícia constante de fls. 679 a 693, complementado, ainda, pelos esclarecimentos em audiência prestados quer pelo psiquiatra seu autor (Dr. ...), quer pela psicóloga que elaborou a avaliação psicológica complementar dessa perícia (Dr.ª ...), quer ainda pelo consultor técnico da própria defesa (Prof. ...), decorreu, sem margem para qualquer dúvida, que o arguido, por força das vicissitudes da sua saúde, com doenças graves, e também características próprias da sua personalidade (v. g., desconfiança excessiva) vinha padecendo, entre outras sintomatologias, de depressão.

Contudo, toda a história clínica do arguido, como insistentemente sublinhou o supra mencionado perito, descarta a hipótese de a gravidade dessa afecção conduzir a estados dissociativos ou crepusculares, isto é, não sendo compatível com o compromisso das faculdades cognitivas e/ou volitivas dele.

Por conseguinte, tratava-se de uma depressão "reactiva" às citadas vicissitudes da vida e só mais tarde, já após encarceramento e afastamento da família, evoluiu, como também da perícia resulta claro e é um perigo típico das depressões prolongadas, para uma depressão grave ou "major" – actualmente sim com eventual potencial perturbador das ditas faculdades e, de resto, com ideações suicidas, mas sem historial de tentativa de materialização delas, como, de igual modo, foi esclarecido pelo sobredito perito.

Mais se verificou que o autor da perícia e o consultor técnico da defesa detalhadamente debateram, nos esclarecimentos que prestaram, o tema do eventual comprometimento da reflexibilidade do arguido, em razão do seu estado de saúde mental (depressão) e da elevada tensão emocional do momento e no contexto conflitual da relação dele com a vítima.

Com efeito, nesta vertente, não pode deixar de se aceitar, por congruente com a normalidade das coisas, que uma situação de tensão emocional como a que é própria dos extremos a que o conflito levou, para mais postos os complicados traços de personalidade do arguido e o seu estado depressivo, conduza a um prejuízo da sua capacidade de reflectir e ponderar a acção.

Todavia, coisa distinta seria dizer que esse prejuízo apresentava uma tal monta que verdadeiramente se revelasse susceptível de ser tomado em consideração, no caso concreto, como factor de diminuição e, menos ainda, de exclusão da imputabilidade.

É que, na verdade, um tal juízo não pode fazer-se apenas baseado nas características pessoais do agente e seus traços mais ou menos patológicos, sendo que, pelo contrário, reclama a concatenação disso com as demais circunstâncias do caso e o que as mesmas revelam.

Trata-se, evidentemente, de um juízo normativo e judicial ainda que nele não se possam olvidar os contributos do juízo técnico-científico dos peritos.

Portanto, nesta conformidade, torna-se forçoso, desde logo, sufragar o entendimento de que lógico-estruturalmente não é possível concatenar um prejuízo grave (no sentido de normativamente relevante) da reflexibilidade com a premeditação que, de modo inexorável, se intui da globalidade do comportamento do arguido.

E dizemos isto porque inexistem dúvidas de que o mesmo se muniu da arma e dos cartuchos, que levou para o serviço, sendo que, já nessa manhã, tinha ido antes às instalações, tal como resulta do depoimento da testemunha GG, vigilante delas.

Aliás, e pese embora as explicações que o recorrente deu para o facto, fica pelo menos a impressão de que já teria ido procurar DD.

Outrossim, de modo absolutamente tenaz e determinado, longamente o perseguiu (como se deduz das fotografias de fls. 60 a 67), no edifício, no parque, quando ele tentava a fuga num veículo, nas imediações respectivas com ele já apeado, desfechando sucessivos tiros e, por fim, abatendo-o, literalmente, à queima-roupa e com tiros na face.

Revelou, ainda, presença de espírito bastante para advertir eventuais intervenientes com clara ameaça de destino idêntico e, por último, de no termo da infausta conduta entregar a arma a um colega e telefonar a uma parente agente da P.S.P., conforme decorre das suas próprias declarações, bem como do depoimento da testemunha FF.

Convém referir que, nesta entrega da arma, disse que faltava uma morte e teria acrescentado que era a sua própria.

Esse alegado e fugaz ânimo suicida, debilmente sustentado pela supra referida testemunha FF, resulta estranho quando manifestado apenas depois da entrega da arma que dele seria instrumento eficaz.

O que tudo conjugado mais faz sobressair a bondade da conclusão de que a depressão foi ocasional (e causal) relativamente à conduta e que as motivações profundas do arguido foram tirar desforço da denúncia apresentada pela vítima, como, de forma acertada, se deixou consagrado no acórdão em crise.

Pelo que, em face do ora expendido, afigura-se-nos que pecam por despiciendas as extrapolações sustentadas pelo recorrente tão-somente com base no conteúdo da supra aludida perícia psiquiátrica e/ou teor do relatório de avaliação psiquiátrica e psicológica, do Prof. Carlos Amaral Dias, Catedrático de Psicopatologia e Médico Psiquiatra Psicanalista, e da Psicóloga Clínica, Magda Botelho Furtado, constante de fls. 414 a 438.

Sendo que, de qualquer modo, também se torna imperioso referir que não vislumbramos qualquer evidente discordância entre o relatório médico e o relatório psicológico complementar da sobredita perícia no que se reporta à verificação de uma grave perturbação psiquiátrica (Perturbação Depressiva Major Recorrente), prévia aos acontecimentos, que tenha fragilizado significativamente a capacidade do arguido para lidar com sentimentos internos menos estruturados, fora do quadro que supra se deixou assinalado.

Destarte, mais nada nos resta senão afirmar que carece de fundamento a pretensão de que não se devia ter dado como provado que «só depois, no período de reclusão, desenvolveu sintomas depressivos de intensidade grave e de perturbação de stress pós traumático, nomeadamente transtornos do pensamento e delirante, com alguma ideação suicida, mas sempre sem perder capacidade crítica sobre os factos que perpetuou» e que importava ter dado como assente que «o estado psíquico de AA fosse, à data dos factos ou em momento anterior a eles, de molde a incapacitá-lo para lidar com os seus sentimentos e com o conflito e se determinar ou, ainda, padecendo de elevado “índice de hostilidade”».  

Inexistem, pois, dúvidas de que tudo ficou terminantemente apurado, designadamente em função do Tribunal de 1ª Instância ter tido acesso a outros elementos, como o tom de voz, os gestos, a capacidade física dos intervenientes a cuja audição procedeu, que lhe permitiram estabelecer a sua convicção, a qual, por isso mesmo, não pode ser aqui liminarmente sindicável pela maneira pretendida.

Até porque a actividade do julgador não se pode resumir a uma mera recepção de declarações, uma vez que não basta que haja pronúncia num determinado sentido, designadamente por parte do arguido, para que o mesmo seja, sem mais, aceite.

Outrossim, importa sempre valorá-las segundo uma multiplicidade de factores, de que se destacam: as razões de ciência, a espontaneidade, a seriedade, a verosimilhança, as coincidências, as contradições relevantes e irrelevantes, o raciocínio, as lacunas, o tempo que medeia entre a pergunta e a resposta, as pausas e os silêncios.

Enfim, o julgamento da matéria de facto nem sempre tem correspondência directa com certos depoimentos ou segmentos de depoimentos concretos, antes resultando da conjugação lógica e global de toda a prova produzida que tenha merecido a confiança do tribunal.

Somos, ainda, forçados a salientar que, de forma absolutamente legítima, o mecanismo de impugnação da prova previsto no Art.º 412°, n.ºs 3 e 4 do C.P.Penal se destina tão só a corrigir aquilo que se constata serem erros manifestos de julgamento e que resultem ostensivos da leitura do registo de prova, mas nunca a fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do principio da livre convicção de quem tem a difícil missão de julgar.

Nestes termos, ao contrário do que defende o recorrente, a prova produzida, articulada na sua globalidade, impõe que se conclua como o fizeram os Mm.ºs Juízes do Tribunal a quo, quer no que releva para aquilo que se considerou como provado, quer como não provado.

Não tem, pois, o recorrente qualquer tipo de razão no que releva para a pretendida alteração do sentido da decisão da matéria de facto, que, assim, se dá por definitivamente assente tal como foi descrita e considerada provada em 1ª Instância.”

O recorrente ao não se conformar com a decisão, questionou matéria de facto sobre a questão da imputabilidade, pondo em causa o juízo de valoração da prova efectuado pelo tribunal.

O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2ª instância, mas dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa e não indiscriminadamente todas as provas produzidas em audiência.

O Processo Penal fundamenta-se e, é conduzido, de harmonia com as exigências legais da produção e exame de provas legalmente válidas, com vista à determinação da existência de infracção, identificação do seu agente e definição da sua responsabilidade criminal.

São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. - artº 125º do CPP

A actividade probatória consiste na produção, exame e ponderação dos elementos legalmente possíveis a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto.

Como se sabe, no sistema processual penal, vigora a regra da livre apreciação da prova, em que conforme artº 127º o CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

O artigo 127º do CPP estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e natureza completamente diferente: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar, (o caso dos documentos autênticos); outra, também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente uma outra, eminentemente subjectiva, que resulta da livre convicção do julgador.

Porém não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação do juízo e valoração do julgador com o mero arbítrio: a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser nunca puramente subjectiva ou emotiva, e, por isso, há-de ser fundamentada, racionalmente objectivada e logicamente motivada, de forma a susceptibilizar controlo.

            Da fundamentação da decisão em matéria de facto, acolhida pela Relação, não resulta que a convicção do tribunal não assentou numa valoração lógica, racional e objectiva de toda a prova que apreciou em audiência de julgamento, ou contrariou as regras legais e da experiência

A questão sendo de facto, ficou decidida na Relação, mostrando-se válida, face aos meios de obtenção de prova e provas, não proibidos por lei, e produzidos, de harmonia com o exercício do contraditório.

            Consta do alínea N) dos factos provados, além do mais, com referência ao arguido, que: ” Há 11 anos contraiu um vírus que lhe afectou a capacidade de locomoção e, quando se restabeleceu, foi-lhe diagnosticada uma doença oncológica, agora em fase de completa remissão, com acompanhamento. Como reacção a essas patologias, desenvolveu e padecia à data dos factos de perturbação depressiva de gravidade moderada, caracterizada, nomeadamente, por humor deprimido, isolamento, desinteresse por actividades que antes lhe davam prazer, ansiedade e insónia com ruminação de pensamentos negativos, tendo agido na prática dos factos em tensão induzida pelo conflito com DD e com algum prejuízo da reflexibilidade. Só depois, no período de reclusão, desenvolveu sintomas depressivos de intensidade grave e de perturbação de stress pós traumático, nomeadamente transtornos do pensamento e delirante, com alguma ideação suicida, mas sempre sem perder capacidade crítica sobre os factos que perpetrou”
Sendo que, por sua vez, consta da alínea R dos factos não provados, que: “ O estado psíquico de AA fosse, à data dos factos ou em momento anterior a eles, de molde a incapacitá-lo para lidar com os seus sentimentos e com o conflito e se determinar ou, ainda, que padeça de elevado "índice de hostilidade".”

Do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se perfila pois a existência de qualquer dos vícios aludidos no nº 2 do artº 410ºdo CPP.

A matéria de facto provada é bastante para a decisão de direito, inexistem contradições insuperáveis de fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, não se afigurando por ouro lado, que haja situações contrárias à lógica ou à experiência comum, constitutivas de erro patente detectável por qualquer leitor da decisão, com formação cultural média.

Não houve omissão de pronúncia sobre a questão, pelo Tribunal da Relação.

Inexistem pois, vícios ou, nulidades, de que cumpra conhecer nos termos do artigo 410º nº 2 e, 3, do C.PP.

A factualidade provada mostra-se por isso, definitivamente fixada.


-

O recorrente parte do pressuposto da imputabilidade diminuída, para negar a existência da frieza de ânimo, e assim desqualificar o crime de homicídio “porque o acórdão do Tribunal da Relação, ora recorrido, ao considerar (tal como a sentença da primeira instância) que o arguido agiu com frieza de ânimo especialmente censurável, desse modo condenando o arguido pela prática de um homicídio qualificado na pena de prisão de 19 anos a luz do artº ] 132, nº 1,e nº 2, al. j), CP, fez errada interpretação, e errada aplicação do direito. Não se podendo, como entende o recorrente, qualificar o homicídio, devia este ter sido punido pela prática de homicídio p p. pelo artigo 131º do CP.”- conclusões 13ª e 14ª )

Analisando:


            Desde logo poderia dizer-se como doutamente observa o Dig.mo Magistrado do Ministério Público neste Supremo em 2.1.2 do seu douto Parecer “que o recorrente não questionou, de todo, a medida concreta da pena em que foi condenado, a não ser no quadro da impugnação da decisão de facto proferida relativamente à questão da sua imputabilidade diminuída, quadro em que pugnou pela convolação da sua conduta para o crime de homicídio simples.
Ora, recusada que seja, como propomos, aquela primeira pretensão do recorrente, e fixada assim, em definitivo, a matéria de facto provada, claudica também, inexoravelmente, o pressuposto em que assentava a sua pretensão no sentido quer da requalificação jurídica da sua conduta, quer de subsequente reexame, no quadro dessa pretendida requalificação, da medida concreta da pena.”

Porém, atenta a impugnação da ilicitude, relativamente à frieza de ânimo, há que aduzir ainda o seguinte:

Desde logo e quanto à imputabilidade diminuída a mesma não se verifica, por não resultar da matéria de facto, quer por não vir comprovada em factos provados, quer porque perante os factos provados, não é possível extrair conclusão valorativa da sua existência, em termos de reflexibilidade jurídica para a definição da ilicitude,

Como já salientava a 1ª instância na motivação

§ 5 Ora, do relatório da perícia psiquiátrica regularmente ordenada (fls. 679-693), aliás complementado pelos esclarecimentos em audiência prestados quer pelo psiquiatra seu autor, quer pela psicóloga que elaborou a avaliação psicológica complementar dessa perícia, quer ainda pelo consultor técnico da própria defesa, Prof. Carlos Amaral Dias, resultou para além de qualquer dúvida que na verdade o arguido, por força das vicissitudes da sua saúde, com doenças graves, e também características próprias da sua personalidade (v. g., desconfiança excessiva) vinha padecendo, entre outras sintomatologias, de depressão. Porém, toda a história clínica do arguido, como insistentemente sublinhou o perito, descarta a hipótese de a gravidade dessa afecção conduzir a estados dissociativos ou crepusculares, isto é, não sendo compatível com o compromisso das faculdades cognitivas e/ou volitivas dele. Tratava-se de uma depressão "reactiva" às citadas vicissitudes da vida (o que – a reacção depressiva e as vicissitudes – infelizmente afecta tantos outros concidadãos) e só mais tarde, já após encarceramento e afastamento da família, evoluiu, como também da perícia resulta claro e é um perigo típico das depressões prolongadas, para uma depressão grave ou "major" – actualmente sim com eventual potencial perturbador das ditas faculdades e de resto com ideações suicidas, mas sem historial de tentativa de materialização delas (novamente, esclarecimento do Sr. perito).

§ 6 Ainda a este propósito, um tema detalhadamente debatido e sobre o qual nos seus esclarecimentos se debruçaram o autor da perícia e o consultor técnico da defesa, foi o do eventual comprometimento da reflexibilidade[6] do arguido, em razão do seu estado de saúde mental (depressão) e da elevada tensão emocional do momento e no contexto conflitual da relação dele com a vítima. O tribunal aceita, por congruente com a normalidade das coisas, que numa situação de tensão emocional como a que é própria dos extremos a que o conflito levou, para mais postos os complicados traços de personalidade do arguido e o seu estado depressivo, conduza a um prejuízo da sua capacidade de reflectir e ponderar a acção. Coisa distinta é dizer que esse prejuízo fosse de uma tal monta que verdadeiramente pudesse tomar-se em consideração, no caso concreto, como factor de diminuição e menos ainda da exclusão da imputabilidade. Caso concreto, dissemos, porque um tal juízo não pode fazer-se apenas sobre as características pessoais do agente e seus traços mais ou menos patológicos; pelo contrário reclama a concatenação disso com as demais circunstâncias do caso e o que as mesmas revelem. Breve, esse é um juízo normativo e judicial ainda que nele não se possam olvidar os contributos do juízo técnico-científico dos peritos. O próprio perito psiquiatra, sobre a questão instado expressamente (não que sobre ela nutríssemos dúvida) em tom enfático referiu que o seu "ofício" são as doenças e não os comportamentos e menos os juízos sobre eles. A essa luz, ponderou no seu relatório (ponto 5 das conclusões) a eventualidade do prejuízo da reflexibilidade como uma igualmente hipotética "atenuante" (termo este claramente em sentido não técnico).”

E, como acentuou a Relação, “toda a história clínica do arguido, como insistentemente sublinhou o supra mencionado perito, descarta a hipótese de a gravidade dessa afecção conduzir a estados dissociativos ou crepusculares, isto é, não sendo compatível com o compromisso das faculdades cognitivas e/ou volitivas dele.

Por conseguinte, tratava-se de uma depressão "reactiva" às citadas vicissitudes da vida e só mais tarde, já após encarceramento e afastamento da família, evoluiu, como também da perícia resulta claro e é um perigo típico das depressões prolongadas, para uma depressão grave ou "major" – actualmente sim com eventual potencial perturbador das ditas faculdades e, de resto, com ideações suicidas, mas sem historial de tentativa de materialização delas, como, de igual modo, foi esclarecido pelo sobredito perito.

Mais se verificou que o autor da perícia e o consultor técnico da defesa detalhadamente debateram, nos esclarecimentos que prestaram, o tema do eventual comprometimento da reflexibilidade do arguido, em razão do seu estado de saúde mental (depressão) e da elevada tensão emocional do momento e no contexto conflitual da relação dele com a vítima.

Com efeito, nesta vertente, não pode deixar de se aceitar, por congruente com a normalidade das coisas, que uma situação de tensão emocional como a que é própria dos extremos a que o conflito levou, para mais postos os complicados traços de personalidade do arguido e o seu estado depressivo, conduza a um prejuízo da sua capacidade de reflectir e ponderar a acção.

Todavia, coisa distinta seria dizer que esse prejuízo apresentava uma tal monta que verdadeiramente se revelasse susceptível de ser tomado em consideração, no caso concreto, como factor de diminuição e, menos ainda, de exclusão da imputabilidade.

[…]

Portanto, nesta conformidade, torna-se forçoso, desde logo, sufragar o entendimento de que lógico-estruturalmente não é possível concatenar um prejuízo grave (no sentido de normativamente relevante) da reflexibilidade com a premeditação que, de modo inexorável, se intui da globalidade do comportamento do arguido.

E dizemos isto porque inexistem dúvidas de que o mesmo se muniu da arma e dos cartuchos, que levou para o serviço, sendo que, já nessa manhã, tinha ido antes às instalações, tal como resulta do depoimento da testemunha GG, vigilante delas.

Aliás, e pese embora as explicações que o recorrente deu para o facto, fica pelo menos a impressão de que já teria ido procurar DD.

Outrossim, de modo absolutamente tenaz e determinado, longamente o perseguiu (como se deduz das fotografias de fls. 60 a 67), no edifício, no parque, quando ele tentava a fuga num veículo, nas imediações respectivas com ele já apeado, desfechando sucessivos tiros e, por fim, abatendo-o, literalmente, à queima-roupa e com tiros na face.

Revelou, ainda, presença de espírito bastante para advertir eventuais intervenientes com clara ameaça de destino idêntico e, por último, de no termo da infausta conduta entregar a arma a um colega e telefonar a uma parente agente da P.S.P., conforme decorre das suas próprias declarações, bem como do depoimento da testemunha FF.

Convém referir que, nesta entrega da arma, disse que faltava uma morte e teria acrescentado que era a sua própria.

Esse alegado e fugaz ânimo suicida, debilmente sustentado pela supra referida testemunha FF, resulta estranho quando manifestado apenas depois da entrega da arma que dele seria instrumento eficaz.

O que tudo conjugado mais faz sobressair a bondade da conclusão de que a depressão foi ocasional (e causal) relativamente à conduta e que as motivações profundas do arguido foram tirar desforço da denúncia apresentada pela vítima, como, de forma acertada, se deixou consagrado no acórdão em crise.

Pelo que, em face do ora expendido, afigura-se-nos que pecam por despiciendas as extrapolações sustentadas pelo recorrente tão-somente com base no conteúdo da supra aludida perícia psiquiátrica e/ou teor do relatório de avaliação psiquiátrica e psicológica, do Prof. ..., Catedrático de Psicopatologia e Médico Psiquiatra Psicanalista, e da Psicóloga Clínica, ..., constante de fls. 414 a 438.

Sendo que, de qualquer modo, também se torna imperioso referir que não vislumbramos qualquer evidente discordância entre o relatório médico e o relatório psicológico complementar da sobredita perícia no que se reporta à verificação de uma grave perturbação psiquiátrica (Perturbação Depressiva Major Recorrente), prévia aos acontecimentos, que tenha fragilizado significativamente a capacidade do arguido para lidar com sentimentos internos menos estruturados, fora do quadro que supra se deixou assinalado.”

Sobre a frieza de ânimo:

È circunstância agravante, qualificativa do crime de homicídio, de per se independente da (in)existência do estado de imputabilidade diminuída.

     Como a 1ª Instância havia considerado:

“§ 14 Na verdade, não só não se antolha qualquer obstáculo à imputabilidade do arguido pelo homicídio, como até as ditas circunstâncias desenham de modo indelével uma actuação com ânimo frígido - e em todo o caso especialmente censurável. É possível estabelecer um quadro motivacional do arguido (aliás, essencialmente por ele próprio revelado), o qual aponta para uma actuação consequente com uma vingança relativamente à vítima e por conduta desta, que mais não fora afinal do que exercício de um direito e até de um dever cívico, a mais de funcional: denunciar a rapina de proporções quase industriais - porventura digna de ser acrescentada à famosa Arte de Furtar (1652)[7] - que ocorria no local de trabalho e na qual o arguido tinha papel de relevo. Não é possível que uma tal motivação floresça lá onde se não remoam previamente os rancores e as ideias de vindicta. Além disso, o modo de execução do facto, tenaz e inexorável, como já antes se disse e aqui importa vincar, está bem longe do que se pudesse avaliar como um acto tresloucado e decorrente de um súbito impulso violento. Implicou – e só dos aspectos subjectivos agora curamos – que antecipadamente se munisse do instrumento adequado ao fim que gizara e na execução propriamente dita desse provas de uma obstinada determinação de matar que nem no transe último, após longa perseguição recheada de peripécias, lhe permitiu apiedar-se da indefensão da vítima ou sequer deixar-se motivar pelo receio das consequências da sua celerada conduta. Breve, se esse quadro subjectivo que o animou não pode ser levado à conta de uma actuação com frieza de ânimo e especialmente censurável, não vemos de que outra forma houvesse de ser preenchido o agravado tipo de culpa do artigo 132.º/1/2/j, do CP.”

Tal entendimento foi corroborado pela Relação, que acentuou:

“Na decisão recorrida considerou-se verificada a circunstância descrita na alínea j) do sobredito normativo - frieza de ânimo.

Ora, agir com frieza de ânimo significa actuar com serenidade, com o espírito límpido de emoções.

Sendo que, nesta perspectiva, se constata, desde logo, ser possível estabelecer um quadro motivacional do arguido que aponta para uma actuação consequente com uma vingança relativamente à vítima e por conduta desta, que mais não fora afinal do que exercício de um direito e até de um dever cívico, ainda para mais funcional, de denunciar a rapina de proporções quase industriais - desvio, de entre o mais, de 50 toneladas de ferro em máquinas velhas - que ocorria no local de trabalho e na qual o arguido tinha papel de relevo.

Como acertadamente referem os Mm.ºs Juízes de 1ª Instância, não é possível que uma tal motivação floresça lá onde se não remoam previamente os rancores e as ideias de vindicta.

Além disso, o modo de execução do facto, tenaz e inexorável, está bem longe do que se pudesse avaliar como um acto tresloucado e decorrente de um súbito impulso violento.

Implicou que o arguido antecipadamente se tivesse munido do instrumento adequado ao fim que gizara e na execução propriamente dita desse provas de uma obstinada determinação de matar que nem no transe último, após longa perseguição recheada de peripécias, lhe permitiu apiedar-se da situação de indefensabilidade da vítima ou sequer deixar-se motivar pelo receio das consequências da sua nefasta conduta.

E, em tudo isto, não pode deixar de se ver uma forma de realização do crime especialmente desvaliosa, “uma atitude profundamente distanciada em relação a uma determinação normal de acordo com os valores”, a fundamentar a agravação, por via da especial censurabilidade ou perversidade.

Ao contrário do sustentado, não merece, assim, censura o aresto recorrido no ponto em que considerou ser o crime de homicídio, qualificado pela circunstância da alínea j) do n.º 2 do Art.º 132º do C. Penal.”

Com efeito:

O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade.

O crime de homicídio qualificado verifica-se: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade,(…)” artº 132º nº 1 do C.Penal

As circunstâncias referidas no nº 2 do mesmo preceito, são meramente indicativas e, não taxativas, são circunstâncias de referência exemplificativa, mas não de abrangência exclusiva.

O nº 2 apenas determina que:

“É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente (….) (sublinhado nosso)

A especial censurabilidade ou perversidade, sendo conceitos indeterminados, são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. (Ac. do STJ de  07-07-2005, Proc. n.º 1670/05 - 5.ª).

No art. 132.º do CP o legislador utilizou a chamada técnica dos exemplos-padrão, estando em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente – Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 27 e Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191.

Assim sendo, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade; e, por outro lado, apesar da descrição dos factos provados apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do art. 132.º, não é só por isso que o crime de homicídio cometido, deverá ter-se logo por qualificado.

A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, com “efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 126), interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ac. do STJ de 15-05-2008, Proc. n.º 3979/07 - 5.ª Secção)

O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da acção letal do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face às circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade que integraram a acção letal do agente.

Como conclui Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 2003, p. 124:

“3.O critério generalizador do artigo 132º integra um tipo de culpa fundamental que permite caracterizar de forma autónoma a atitude especialmente censurável ou perversa do agente.

4. Só no âmbito de um conceito material de culpa susceptível de graduação, tendo como objecto de referência próprio o maior ou menor desvalor da atitude do agente actualizada no facto, a função de tipos de culpa agravadores da moldura penal pode ser inteiramente compreendida.”

O legislador apesar de optar pela técnica dos exemplos padrão, consubstanciados no artigo 132º funda-se porém “na combinação de um critério generalizador, constituído por uma cláusula geral de agravação penal, com uma enumeração exemplificativa de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático”

Mesmo na construção do Leitbild dos exemplos padrão, é a partir de cada uma das concretas circunstâncias agravantes exemplificadas que se retira não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua própria estrutura valorativa.( idem, ibidem, p. 126 e 127)

            O comportamento do arguido encontra-se compreendido no exemplo-padrão da então al. i) – que após a revisão operada pela Lei 59/2007, de 04-09, tomou a letra j) – do n.º 2 do art. 132.º: agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

Frieza de ânimo é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na “firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa” (cf. Ac. de 15-05-2008, Proc. n.º 3979/07 e jurisprudência ali citada, e Ac.19-06-2008,, Proc. n.º 2043/08 - 5.ª Secção)

A “imagem global do facto agravada” (Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I., pág. 26) pode resultar da frieza de ânimo posta na actuação; mas exactamente a propósito desta circunstância é que este autor nos diz que “a hipótese da presente alínea [a então al. i), hoje al. j)], será uma daquelas em que mais frequentemente poderá ser ilidido o efeito qualificador do exemplo padrão” (pág. 40)

«A ideia fundamental [da al. i) e, agora alínea J do n.º 2 do art. 132.º do CP] é a da premeditação, pressupondo uma reflexão da parte do agente (…). E, quando a premeditação se materializa na chamada “frieza de ânimo”, esta traduzir-se-á “numa actuação calculada, em que é de modo frio que o agente toma a sua deliberação de matar e firma sua vontade (…)”, situação em que “no fundo, o agente teve oportunidade de reflectir sobre o seu plano e ponderou toda a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto” – Fernando Silva, Direito Penal, Crimes contra as Pessoas, Quid Iuris, 2005, pág. 73» – cf. Ac. do STJ de 12-05-2005, Proc. n.º 1439/05 - 5.ª.

E, atentando na matéria fáctica apurada, conclui-se que, é bastante explícita no sentido da verificação de tal circunstância::

O arguido alimentou animosidade para com DD, com quem mantivera relação cordial e própria de colegas de trabalho e em relação ao qual se sentiu traído, nutrindo a convicção de que este mobilizava os colegas contra si.

Assim, no dia 27.12.2010, cerca das 8:45, AA muniu-se da sua espingarda semi-automática, transportando-a num saco de plástico preto com o propósito de tirar a vida a DD

E com ela se dirigiu ao parque de máquinas.

 Uma vez aí, entrou nas instalações do escritório onde se encontravam a conversar DD e EE.

 Após olhar para ambos, abriu a porta e empunhando a espingarda apontou-a na direcção de DD disparando um tiro,

 Cujos projécteis após terem feito ricochete na parede do escritório, atingiram aquele no flanco esquerdo, causando-lhe equimoses.

Logo DD fugiu para o andar superior, subindo as escadas, disparando AA segundo tiro na sua direcção

  E, de arma na mão, perseguiu-o para o piso superior onde se situam um escritório e um refeitório, sendo que na sequência da perseguição o DD acabou por descer uma escada interna do edifício e por aí passar ao exterior do mesmo,

Onde de novo AA disparou na sua direcção quando se dirigia para a viatura oficial, marca Peugeot, modelo 106, cor azul, com matricula 87-72-JJ, propriedade da SRCTE, que lhe estava afecta e que se encontrava estacionada, sendo que durante essa actuação, a quem o interpelava para cessá-la, AA disse para não interferir

 E empregou a expressão "não se mexam senão caem".

Com esse disparo, AA atingiu DD na zona posterior do terço superior do braço direito, tendo-se este último introduzido na aludida viatura e nela prosseguindo a sua fuga,

 Continuando AA no seu encalço, apeado e efectuando mais dois disparos na direcção do veículo,

Com um deles atingindo-o na porta traseira e partindo os vidros das laterais traseiras direita e esquerda, e com o outro nos vidros das portas dianteiras estilhaçando os vidros laterais dianteiros direito e esquerdo.

 DD continuou a sua marcha no carro até junto dos armazéns da Direcção de Estradas, tendo-o imobilizado e abandonado, prosseguindo a cambalear em direcção a um terreno descampado, contíguo à via pública, sito nas proximidades do parque de máquinas,

Mas sempre com AA no seu encalço

 E sendo que este ao chegar a uma distância de si não superior a 2,5 m, empunhou e apontou a arma visando-lhe a cabeça e, sempre com o propósito de lhe tirar a vida, efectuou dois disparos, sequenciais e quase simultâneos, ali o atingindo.

 Após, verificando que DD ficara caído no chão, regressou às imediações dos escritórios do parque de máquinas de arma na mão, entregando-a a FF, abraçando-o e dizendo-lhe "ainda falta um....!"

Na verdade, as circunstâncias descritas na matéria de facto provada, revelam especial censurabilidade e perversidade na actuação criminosa do arguido, que assim, praticou, o crime de homicídio qualificado por que foi condenado, por procederem os elementos objectivos e subjectivos dessa ilicitude criminal típica e punível, tendo agido com frieza de ânimo,

Dai que não procedendo causas de exclusão de ilicitude ou da culpa, teve o arguido de ser condenado pelo crime p.e p. no artº 132º nº2 al.j) do C. Penal, punido abstractamente, com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.


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O arguido foi condenado na pena de 19 anos de prisão, pelo crime de homicídio qualificado.

O recorrente, na consideração de que o crime de homicídio praticado seria na forma simples e, alegando à imputabilidade diminuída do arguido, a sua falta de antecedentes criminais, e, as necessidades de prevenção geral e especial da pena (artigo 71º do Código Penal), entende como adequada a pena máxima de 10 (dez) anos de prisão,

Também aqui, se como se viu, não procedendo crime de homicídio na forma simples por proceder o crime de homicídio na forma qualificada, poderia concluir-se que deixaria de ter interesse a apreciação do recurso quanto à pena

Porem, tendo em conta que a mesma vem questionada também pela ocorrência de circunstâncias que contribuem para a determinação da sua medida concreta - falta de antecedentes criminais, e, as necessidades de prevenção geral e especial da pena  -há que conhecer do recurso

A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artº 40º nº 1 do C.Penal.

            Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa nº 2 do artº 40º

            O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Na lição de Figueiredo Dias (Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime- Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121):“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”

Ensina o mesmo Ilustre Professor  –As Consequências Jurídicas do Crime, §55 que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’”

Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor – in ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”

Ou, e, em síntese: “A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”- v. FIGUEIREDO DIAS, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.

É no âmbito do exposto, que este Supremo Tribunal vem interpretando sobre as finalidades e limites da pena de harmonia com a actual dogmática legal.

Como resulta, v. g. do Ac. deste Supremo de  15-11-2006, Proc. n.º 3135/06 - 3.ª Secção,  o modelo de prevenção acolhido pelo CP - porque de protecção de bens jurídicos - determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

O n ° 2 do artigo 71º do Código Penal, estabelece:

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência:

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.

O acórdão recorrido, depois de se referir aos pressupostos legais da determinação da medida concreta da pena, considerou que “importa referir que o grau de ilicitude é de inequívoca gravidade, tendo em conta a fortíssima resolução criminosa que moveu o arguido, bem como o modo de execução do facto, que se revelou particularmente brutal, até porque dele resultou ter ficado a vitima desfigurada.

Sendo certo, também, que não se pode olvidar a especial relação que aquele tinha com este, uma vez que eram colegas de trabalho e com relação hierárquica.

E, de todo em todo, a personalidade rancorosa que o recorrente manifestou na prática do facto e, ainda, as consequências resultantes para a viúva que, como se apurou, mantinha com o falecido marido uma especial proximidade e que ficou prejudicada também em termos económicos, privada do amparo do mesmo.

Além de que se apurou que o predito arguido agiu com culpa elevada, revestindo a modalidade de dolo directo.

Outrossim, ressalta, sobremaneira, dos elementos dos autos prementes necessidades de prevenção geral que se prendem, sobremaneira, com a projecção negativa que o sobredito tipo de crime tem na comunidade, maxime por revelar um censurável desrespeito pela vida do próximo.

A que não pode deixar de acrescer a circunstância do ilícito ter sido perpetrado, tal como se deixou já exarado, com inquestionável frieza de ânimo.

Nestes termos, não podem deixar de merecer especial consideração os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade das normas desrespeitadas, atendendo à frequência e intensidade com que estão a ser conhecidas violações do bem jurídico em causa.

Deste modo, na perspectiva do que acaba de se expender, afigura-se-nos de pouca monta o circunstancialismo do arguido não ter antecedentes criminais, apresentar uma regular e até boa inserção familiar e social, bem como uma vida que se mostrou do ponto de vista da sua saúde algo flagelada pelo infortúnio.

Pelo que, em face do exposto e procedendo à concatenação de todo o circunstancialismo fáctico dado como provado com o direito aplicável, se entende adequado e proporcional à gravidade do crime de homicídio qualificado, ora em causa, manter a pena de dezanove anos de prisão que foi aplicada ao arguido AA pelo Tribunal a quo.”

Na verdade, há que ponderar:

O grau de ilicitude do facto é elevadíssimo, é o maior, pela privação do bem fundamental da pessoa e de qualquer sociedade: a vida humana

O modo de execução deste: com arma de fogo, concretizada em espingarda semi-automática, marca Pietro Beretta, modelo 1200, com número de série T26353E, de calibre 12, com o numero M77177F gravado no cano, que o arguido transportou num saco de plástico preto– e com ela se dirigiu ao parque de máquinas, onde se encontrava a vítima, disparando vários tiros em direcção à vítima,

O grau de violação dos deveres impostos ao agente: AA e DD eram colegas de trabalho, exercendo ambos funções no parque das Máquinas da SRCTE, ao Caldeirão, Estrada Regional da Ribeira Grande, Pico da Pedra, Ribeira Grande, sendo o último controlador e trabalhando na dependência do primeiro, controlador principal a quem nessa qualidade cabia a gestão da frota automóvel daquele parque de máquinas e que nas suas ausências era substituído pelo último

A gravidade das consequências: - Em consequência dos disparos efectuados pelo arguido, o DD sofreu, nomeadamente, equimoses dispersas na base do hemitórax esquerdo, pequenas equimoses de forma circular dispersas no flanco e hipocôndrio superior esquerdo, hematoma a nível da região anterior do braço e perda irregularmente circular da pele e massa muscular na parede latero­posterior do braço no seu terço superior com perda parcial do músculo tricípete na sua zona de inserção, destruição do couro cabeludo, múltiplas fracturas com esquírolas dos ossos da fossa anterior do crânio e dos restantes ossos da base, esfenóide e rochedos dos ossos temporais, fractura dos ossos malares, destruição das meninges, perda total dos lobos frontais e perda parcial de ambos os lobos parietais, ausência do osso frontal, ausência parcial dos ossos parietais e temporal direita, sendo que essas lesões crânio-meningo-encefálicas foram causa da sua morte.

Por via dos mesmos disparos e do impacto dos projecteis a viatura da SRCTE ficou com os vidros das laterais esquerda e direita estilhaçados, o guarda lama partido, o painel exterior da porta da lateral direita furado, a pintura do lado direito riscada, tudo importando para reparação o custo de 2 047,77 €, sendo que AA entretanto pagou àquela Secretaria

DD, nascido em 20.1.1964, casado desde 28.3.1987 com BB, de 45 anos, mantinha com esta uma relação de grande proximidade e amor mútuos, quotidianamente expressos em companhia e conversas, e a sua morte causou nela grande desgosto, mágoa, angústia e desespero face à viuvez, sentimentos especialmente intensos após os factos mas que ainda hoje persistem.

A intensidade do dolo: específico. – AA agiu de forma deliberada segundo desígnio que formara de tirar a vida a DD, sabendo que o atingia em órgãos vitais com arma que era apta a matar, que no decurso dessa acção causaria também estragos como os verificados na viatura pertencente à SRCTE e afecta a serviço público e sempre consciente de que essas condutas eram proibidas e penalmente punidas.

Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos determinantes: ostensivo desprezo e indiferença pela dignidade humana, revelados no iter criminis; a tenacidade da perseguição na consecução do propósito criminoso; durante essa actuação, a quem o interpelava para cessá-la, AA disse para não interferir e empregou a expressão "não se mexam senão caem".

Face à perspectiva de nomeação de um novo chefe de divisão, AA, apreensivo relativamente à sua posição naquele serviço, alimentou animosidade para com DD, com quem mantivera relação cordial e própria de colegas de trabalho e em relação ao qual se sentiu traído, nutrindo a convicção de que este mobilizava os colegas contra si, por DD ter sido o primeiro signatário de uma denúncia apresentada ao Director Regional dos Equipamentos e Transportes Terrestres (= DRETT),

            As condições pessoais do agente sua situação económica: AA tem 57 anos de idade, é casado e tem dois filhos, um com 16 e outro com 26 anos de idade, aquele estudante e este jornalista. O agregado é coeso e afectivo. AA integrou o ensino na idade própria tendo concluído a 4.ª classe aos 10 anos de idade. A partir dessa altura começou a trabalhar, primeiro com o pai num negócio de família e, já adulto, ingressou na função pública na SRCTE, paralelamente dedicando-se à criação e venda de bovinos. Era tido como um funcionário responsável e sem problemas de relacionamento interpessoal e, na comunidade, é visto como alguém activo, integrando a junta de freguesia de Ribeirinha, a comissão fabriqueira da paróquia, a banda filarmónica daquela freguesia e foi treinador de futebol..

A conduta anterior ao facto e posterior a este: Há 11 anos contraiu um vírus que lhe afectou a capacidade de locomoção e, quando se restabeleceu, foi-lhe diagnosticada uma doença oncológica, agora em fase de completa remissão, com acompanhamento. Como reacção a essas patologias, desenvolveu e padecia à data dos factos de perturbação depressiva de gravidade moderada, caracterizada, nomeadamente, por humor deprimido, isolamento, desinteresse por actividades que antes lhe davam prazer, ansiedade e insónia com ruminação de pensamentos negativos, tendo agido na prática dos factos em tensão induzida pelo conflito com DD e com algum prejuízo da reflexibilidade. Só depois, no período de reclusão, desenvolveu sintomas depressivos de intensidade grave e de perturbação de stress pós traumático, nomeadamente transtornos do pensamento e delirante, com alguma ideação suicida, mas sempre sem perder capacidade crítica sobre os factos que perpetrou. É pessoa emocionalmente frágil e com dificuldade em lidar com situações de pressão, tensão ou frustração, é desconfiado e guarda ideias sobrevalorizadas sobre o que entendem os outros

Nunca foi condenado pela prática de qualquer crime.

 Há ainda que ter em conta as exigências de prevenção geral, especialmente acutilantes, no caso, pela dimensão da gravidade do ilícito, e da necessidade de restabelecimento da confiança da comunidade na norma violada.

As exigências de prevenção especial, confinam-se a normalidade de ressocialização do agente.


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Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. ( Figueiredo Dias in Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste Supremo Tribunal e desta 3ª Secção, , Proc. n.º 2555/06)

Assim e, dentro do limite da medida da culpa que se revela intensa, sendo que o crime de homicídio qualificado é punido com pena de 12 a 25 anos de prisão – artº 132º nº 1 do CP -  julga-se adequada, pelo supra  exposto, a pena de dezoito anos de prisão.

Relativamente ao pedido de indemnização civil:

Alega o recorrente nas conclusões 16º e 17ª:

“A título de compensação por danos morais e patrimoniais e escudando -se na "equidade" o Tribunal «a quo» condenou o recorrente a pagar à assistente, a quantia de 296,996€50.

Trata - se de quantia manifestamente exagerada, tendo por base que equidade, não se confunde com arbítrio, e na compensação judicial dos danos (morais ou patrimoniais) deve atender-se, por razões de justiça relativa, aos padrões geralmente utilizados na jurisprudência, não podendo os mesmos ser fonte de enriquecimento sem causa, ou "enriquecimentos despropositados". Por isso;

                Assim diz na conclusão 18ª que: - “Deve a compensação/indemnização arbitrada, ser substancialmente reduzida por esse douto Tribunal «ad quem», dentro do seu prudente arbítrio.”

O arguido AA tinha sido condenado em 1ª instância a pagar a BB a quantia de duzentos e noventa e seis mil novecentos e noventa e seis euros e cinquenta cêntimos, com juros às taxas sucessivamente aprovadas ao abrigo da Portaria 291/2003, de 8.4, sendo desde a data da notificação do pedido sobre a quantia de 146 996,50 €, e desde a data desta decisão sobre a de 150 000 €, absolvendo-o do demais peticionado.

O Tribunal da Relação acordou  “em negar provimento aos recursos [em matéria de facto e em matéria de direito] interpostos, confirmando na sua plenitude, a decisão recorrida.”

            Assim sendo, surge a questão prévia da (in)admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,  uma vez que a questão dos juros não integra o objecto do recurso.

Como se sabe, o artº 129º do C.Penal, ao referir-se à responsabilidade civil emergente de crime, dispõe: “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.

Isto significa que a indemnização é regulada, quantitativamente e no seus pressupostos, pela lei civil, mas não tratando de questões processuais, que são reguladas na lei adjectiva.

Embora o processo civil defina vários aspectos do regime da acção enxertada, como da definição da legitimidade das partes, é a acção penal que verdadeiramente suporta, orienta e conforma todo o rito processual, marcando definitivamente a cadência de intervenção dos demandantes civis na causa e os principais aspectos de forma a observar no seu desenrolar, sem esquecer a diligência para que conflui todo o processo: a audiência de julgamento

Na verdade, por força do princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (artº 71º do C.P.P. quer antes quer depois da revisão operada pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto).

            A dedução do pedido cível em processo penal é a regra e a dedução em separado a excepção (v. artºs 71º, 72 e 75 do C.Processo Penal), sem prejuízo de quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal, o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis. – nº 3 do artº 72º.

Aliás, nos termos do artº 400º nº 3, do CPP. Mesmo que não seja admissível recurso quanto á matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.

Porém, o nº 2 deste preceito dispõe: Sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente.

Esta norma é idêntica ao artigo 678.º do CPC, que versando sobre decisões que admitem recurso, dispõe no seu nº 1:

1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência somente ao valor da causa.

Assim, a decisão recorrida ao manter a decisão da 1ª instância, e por conseguinte, manter a condenação do arguido quanto ao pedido cível deduzido no valor supra indicado, é, perante tal norma, passível de recurso para o Supremo, uma vez que a alçada da Relação é de 30.000€ conforme artº 24º da Lei nº 52/2008 de 28-08-2008 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), e foi desfavorável para o recorrente precisamente no aludido montante reclamado no pedido cível.

Contudo, a viabilidade de recurso de decisão de pedido cível, para o Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da lei processual civil, encontra-se ainda subordinada às regras do artº 721.º do C. Proc. Civil (CPC) que se refere às decisões que comportam revista.

Dispõe este preceito no seu nº 3 que: “Não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”

           

O artigo seguinte é o Artigo 721.º- A que permite a revista excepcional, dispondo:

1 - Excepcionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;

c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

2 - O requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição:

a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social;

c) Os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição.

            Tal regime processual civil do nº3 do artº 721º do CPC, deve aplicar-se ao processo penal, por força do disposto no artº 4º do CPP. relativamente aos pressupostos de admissibilidade de recurso para o Supremo que tenha por objecto o pedido de indemnização civil.

           

Na verdade, enquanto o artº 400º nº 1 al f) estabelece a chamada dupla conforme, em que não é admissível recurso: “De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”, nada se encontra dito para as situações de dupla conforme supra assinaladas quanto ao processo civil.

O legislador ao aditar a norma do nº 3 ao artº 400º do CPP, no sentido de que “Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil” não excluiu os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso relativa à indemnização civil, que vêm condicionados por regras processuais de natureza cível, como é o caso do disposto no nº 2 do artº 400º do CPP, - v. identicamente citado artº 678º nº 1 do CPC - que faz depender essa admissibilidade de recurso, da interligação entre o valor da alçada, ali definida e o valor da sucumbência.

A dupla conforme prevista no regime processual civil surge como complemento do nº 2 do artº 400º do CPP., e como que o reverso em termos cíveis da alínea f) do mesmo artigo em termos penais.

            Está-se perante um lacuna em processo penal que por aplicação do disposto no citado artº 4º, importa suprir, e que a harmonia do sistema jurídico e o aludido princípio da igualdade reclamam.

            A autonomia dos recurso em processo penal, face aos recursos em processo civil, apenas significa que a sua tramitação unitária obedece imediatamente às disposições processuais penais, mas não exclui, por força do artº 4º do CPP, em casos omissos, a aplicação subsidiária das regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal, nomeadamente quando em processo penal o objecto do recurso é de natureza cível.

           

            Escreve Maia Gonçalves em anotação ao artº 400º do CPP, Código de Processo Penal Anotado – Legislação Complementar, 17ª edição, 2009, p. 913:

            “3. A norma do nº 2 foi decalcada em disposição semelhante prevista para ser introduzida no CPC pela Comissão que, aquando do funcionamento da CRCPP, estava a preparar a revisão daquele diploma. A disposição representa limitação do direito de recorrer relativamente ao regime do artº 626º, nº 6, do CPP de 1929, na redacção introduzida pelo Dec-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro; perante esse regime podia haver lugar a recurso sempre que o montante do pedido excedesse a alçada do tribunal recorrido.”

            O Assento n.º 1/2002, de 14 de Março de 2001, deste Supremo, DR 117 SÉRIE I-A, de 2002-05-21, tinha fixado que: “No regime do Código de Processo Penal vigente - n.º 2 do artigo 400.º, na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto - não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal.”

           

            O nº 3 do artº 400º do CPP, veio contrariar essa jurisprudência fixada, mas como salienta Maia Gonçalves, ibidem, p. 913, nota 4: “Haja ou não lugar a recurso da matéria penal, pode haver lugar a recurso da parte relativa à indemnização civil, se o puder ser perante a lei civil, e conforme se estabelece no nº 3 “ (negrito nosso),  e posteriormente ao Dec-Lei nº 303/2007, de 24 de Setembro,  também como estabelece o nº 2 do artº 721º do CPC.

            A aplicação subsidiária do disposto no nº 3 do artº 721º do CPC, vem sendo afirmada por este Supremo, como consta dos seus acórdãos de 25 de Janeiro de 2012, Proc. n.°360/06.0PTSTB.E1.S1, de 30.11.2011, Proc. n.° 401/06. OG TSTR.E1. S1. de 29-09-2010, Proc. 343/05.7TAVFN.P1.S1 e de 22-06-2011, Proc. 444/06.4TASEI citados pelo Ministério Público junto da Relação de Évora.

Como referiu o Acórdão de 29-09-2010, Proc. 343/05.7TAVFN.P1.S1:

O legislador penal, em 2007, entendeu alterar o regime recursório em matéria de decisões proferidas sobre o pedido de indemnização civil, pondo em causa o princípio da adesão consagrado no art. 71.º do CPP, e estabelecendo posição contrária à assumida pelo STJ no Ac. n.º 1/2002, publicado no DR., I Série-A, de 02-05-2002. Com a introdução do n.º 3 daquele preceito o legislador subtraiu ao regime de recursos da lei adjectiva penal as decisões relativas à indemnização civil, submetendo-as integralmente ao regime da lei adjectiva civil, o que fez conforme afirmação consignada na motivação da Proposta de Lei 109/X, a bem da “igualdade” entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal.

 Daqui resulta, necessariamente, que o n.º 3 do art. 400.º veio submeter a impugnação de todas as decisões civis proferidas em processo penal ao regime previsto na lei adjectiva civil, no sentido de que às decisões (finais) relativas à indemnização civil proferidas em processo penal é integralmente aplicável o regime dos recursos estabelecido no CPC.

Na verdade, como se considerou no acórdão de 25 de Janeiro de 2012, Proc. n.°360/06.0PTSTB.E1.S1: A separação dos regimes de recurso, tornando autónomo o recurso da questão cível, e chamando os pressupostos – valor; alçada; sucumbência – do processo civil, revela que o legislador quis claramente alinhar o regime de recurso da questão cível com o regime do processo civil, estabelecendo que as possibilidades de recurso do pedido de indemnização civil são as mesmas, independentemente da acção civil aderir ao processo penal ou de ser proposta e seguir autonomamente como processo civil.

A intervenção dos pressupostos dos recursos em processo civil transporta o regime para área diferente dos pressupostos e do regime dos recursos em processo penal: a alçada, o valor e a sucumbência são noções estranhas ao processo penal e aos pressupostos do respectivo regime de recursos. A referência a tais elementos que conformam verdadeiramente o regime do recurso relativo à questão civil, que não têm qualquer correspondência no processo penal, determina que o recurso sobre a questão civil em processo penal, tendo autonomia, não tenha, em medida relevante, regulação no processo penal, ficando incompleto; a completude tem de ser encontrada, como determina o art. 4.° do CPP, no regime dos recursos em processo civil.

           

Desta incompletude já se tinha dado conta o Acórdão de 30.11.2011, Proc. n.° 401/06. OG TSTR.E1. S1 ao considerar que:

A norma do art. 400.º, n.º 3, do CPP, deixa em aberto, por carência enunciativa de conteúdo, a admissibilidade do recurso relativamente à indemnização cível fixada em processo penal pela via do enxerto cível sempre que, a tal respeito, se registe a confirmação em recurso, da decisão de 1.ª instância, à semelhança do que sucede, em certas condições, quanto à medida da pena, em se realizando a chamada dupla conforme.

Estamos em presença de uma lacuna de regulamentação sustentada e sugerida, desde logo, porque não se vê qualquer razão para os intervenientes processuais penais pleitando no enxerto cível usufruam de uma perspectiva de favor.

Se em matéria penal, onde se colocam questões de onde pode derivar a privação de liberdade individual, por estar em causa a ofensa a valores fundamentais de subsistência comunitária, reclamando intervenção vigorosa do direito penal, impera a regra da dupla conforme, por maioria de razão, estando em causa a ressarcibilidade do prejuízo, mediante a atribuição de uma soma reparadora em dinheiro, a solução não deve ser divergente.

Com a alteração ao CPP através do DL 48/07, de 29-08, teve-se o propósito de estabelecer a igualdade entre quem pretenda impugnar decisão cível proferida em processo penal ou cível no que respeita a matérias de indemnização.

Essa equiparação de procedimento na acção cível e penal introduz desejável parificação de procedimentos e, consequentemente, é a mais justa, tanto mais que, no caso vertente, estando já em vigor o DL 48/07, de 29-08 – o pedido cível foi interposto em– a ser instaurada a acção cível autonomamente, a inequívoca redacção actualizada do art. 721.º, n.º 3, do CPC, ser-lhe-ia aplicável.

            A preocupação com o princípio da igualdade já vinha da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X que explicitou: “Para restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal, substitui-se, no artigo 400.º, a previsão de limites máximos superiores a 5 e 8 anos de prisão por uma referência a penas concretas com essas medidas. Prescreve-se ainda que quando a Relação, em recurso, não conhecer a final do objecto do processo, não cabe recurso para o Supremo. Para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal.”

            Aliás, como salienta o Ac. deste Supremo e desta Secção, de 30-11-2011, Proc. n.º 401/06.0GTSTR.E1.S1 - 3. Se em matéria penal, onde se colocam questões de onde pode derivar a privação de liberdade individual, por estar em causa a ofensa a valores fundamentais de subsistência comunitária, reclamando intervenção vigorosa do direito penal, impera a regra da dupla conforme, por maioria de razão, estando em causa a ressarcibilidade do prejuízo, mediante a atribuição de uma soma reparadora em dinheiro, a solução não deve ser divergente.

Como referiu o Acórdão de 15-12-2011, proc. 53/04.2IDAVR.P1.S1

Em regra, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, como estabelece o art. 71.º do CPP, que consagra o denominado processo de adesão. Nestes casos, no mesmo processo em sentido material, coexistem duas acções, uma penal e outra cível, autónomas entre si. O processo penal inicia-se com um acto do MP, em regra, a abertura do inquérito. Já o processo ou acção cível tem início com a dedução do pedido de indemnização civil. O equivalente à petição inicial do processo civil não está na notícia do crime, na participação ou na queixa, figuras alheias à acção civil, mas sim no requerimento em que é deduzido o pedido de indemnização.

Como decidiu o TC no Ac. n.º 39/88, “o princípio da igualdade não proíbe (…) que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais.”.

A consideração da data da apresentação do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal como o início do processo em matéria cível, em si, não coloca qualquer questão de desigualdade. Está no mesmo plano que a consideração da petição inicial como o início do comum processo civil.

Acresce que a limitação das possibilidades de recurso em matéria civil, obedecendo a um critério racional e objectivo, não tem sido considerada pelo TC violadora do princípio da igualdade, como no caso de alteração do valor das alçadas (cf. v.g. Ac. n.º 239/97).

Em suma e parafraseando o acórdão de 22-06-2011, Proc. 444/06.4TASEI: 

Nos termos do art. 721.º, n.º 1, referido ao art. 691.º, n.º 1, do CPC (versão do DL 303/2007, de 24-08), cabe recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1.ª instância que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com o n.º 3 do primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte»: é o chamado sistema da “dupla conforme”.

Esta norma é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP.

Com a norma do art. 400.º, n.º 3, do CPP, quis-se claramente afirmar solução oposta àquela a que chegou o Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2002, estabelecendo-se sem margem para dúvidas, ao que se julga, que as possibilidades de recurso relativamente ao pedido de indemnização são as mesmas, seja o pedido deduzido no processo penal ou em processo civil – cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X.

Se o legislador do CPP quis consagrar a solução de serem as mesmas as possibilidades de recurso, quanto à indemnização civil, no processo penal e em processo civil, há que daí tirar as devidas consequências, concluindo-se que uma norma processual civil, como a do n.º 3 do art. 721.º, que condiciona, nesta matéria, o recurso dos acórdãos da Relação, nada se dizendo sobre o assunto no CPP, é aplicável ao processo penal, havendo neste, em relação a ela, caso omisso.

Até porque o legislador do CPP, na versão da Lei 48/2007, afirmou a igualdade de oportunidades de recurso em processo civil e em processo penal, no que se refere ao pedido de indemnização, numa altura em que já conhecia a norma do n.º 3 do art. 721.º do CPC (a publicação do DL 303/2007 é anterior à da Lei 48/2007).

Por outro lado, a aplicação do n.º 3 deste art. 721.º ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal não cria qualquer desarmonia; não existe, efectivamente, qualquer razão para que em relação a duas acções civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a acção civil conserva a sua autonomia.

Pode mesmo dizer-se que outro entendimento que não o aqui defendido conduziria ao inquinamento da decisão a tomar pelo lesado nos casos em que a lei lhe permite deduzir em separado, perante os tribunais civis, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime.

Este sistema da “dupla conforme” entrou em vigor em 01-01-2008, aplicando-se apenas aos processos iniciados após essa data, como se prevê nos arts. 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, do referido DL 303/2007.

 Como o presente pedido de indemnização civil foi apresentado já depois dessa data, aplicando-se-lhe por isso a lei nova, e, uma vez que o acórdão da Relação confirmou, sem voto de vencido, a decisão da 1ª instância, quanto ao pedido de indemnização civil, e, porque não está em causa a aplicação do regime excepcional do art. 721.º-A do CPC não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artºs 414.º, n.º 2, do CPP e721º nº 3 do CPC, ex vi do artº 4º do CPP.

A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior (artº 414º nº 3 do CPP)

            O recurso é pois, de rejeitar, nos termos do artºs  400º, nºs 2 e 3; 420º, nº 1, alínea b) do CPP, e 721º nº 3 do CPC, ex vi do artº 4º do CPP.


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 Termos em que, decidindo:

            Acordam os deste Supremo – 3ª secção

           

Quanto à matéria penal        

Dão parcial provimento ao recurso, apenas quanto à pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado, que reduzem para 18 (dezoito) anos de prisão, e no mais, mantêm o acórdão recorrido.

Quanto à indemnização civil:

 Rejeitam o recurso, por inadmissível, quanto ao pedido de indemnização civil, face à dupla conforme, nos termos do artºs  400º, nºs 2 e 3; 420º, nº 1, alínea b) do CPP, e 721º nº 3 do CPC, ex vi do artº 4º do CPP

Custas pelo recorrente, tributando-o em 6 Ucs de taxa de justiça, e condenando-o na importância de 8 UC pela rejeição.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Fevereiro de 2013

                        Elaborado e revisto pelo relator.

                                   Pires da Graça

                                   Raul Borges

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[1] - Como já vimos, o pedido de reapreciação da medida da pana assentava, em exclusivo, na requalificação jurídico-penal da sua conduta decorrente da imputabilidade diminuída que, por via da alteração da decisão de facto proferida, reclama.
[2] - Germano Marques da Silva, in «Curso de Processo Penal», Tomo III, 2ª edição, Verbo, Lisboa, 2000, p. 340.
[3] Ob. cit. p. 341.
[4] - Disponível em www.dgsi.pt.
[5] Uma nota. Por um lado, estamos cientes de que parte da matéria a que respondemos negativamente é conclusiva – e deste jeito foi apresentada nas peças respectivas. Ainda assim, e por cautela relativamente a certo entendimento (que não partilhamos) quanto às exigências postas na resposta sobre a matéria de facto, respondemos à mesma nos precisos termos em que nos foi colocada, em geral pondo-a entre aspas. Portanto, neste ponto, aderimos à chamada “jurisprudência de cautelas”. Por outro lado, boa parte da contestação é apresentada em termos argumentativos e não fácticos - e de outra banda faz repetidos apelos ao que o arguido terá dito no âmbito de perícia, mas em jeito de quem obliquamente faz ali, na contestação (v. g., artigo 9.º) a alegação dos correspondentes factos. Por isso a nossa análise e juízo recaiu sobre os factos objectivos e não sobre o que se disse sobre eles. Breve, curamos por exemplo de saber se AA se apercebeu do que fizera só depois de o fazer e não do que sobre isso disse ao perito ou em qualquer outra instância.           
[6] Ou “reflectibilidade”: também se pode usar, mas não é aconselhável de acordo com o útil Ciberdúvidas da Língua Portuguesa-http://www.ciberduvidas pt/pergunta.php?id=27463
[7] De autor anónimo mas que se imputa ao Padre Manuel da Costa. V. introdução e notas criticas de Roger Bismut à edição (1991) da INCM, p. 24.