Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
129/21.1YRCBR
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: REQUISITOS
EXTRADIÇÃO
NULIDADE
TRADUÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
Data do Acordão: 11/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO/ M.D.E.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Na falta de disposições legais, na Convenção Europeia de Extradição e na Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, sobre os termos de notificação ao extraditando da decisão final do pedido de extradição e de tradução desta decisão no caso daquele não dominar a língua em que foi proferida, impõe-se recorrer, subsidiariamente, às disposições aplicáveis do CPP (art .3.º, n.os 1 e 2, da Lei n.º 144/99).
II - Numa interpretação ampla do disposto no art. 92.º, n.º 2, do CPP, a intervenção de intérprete no ato de notificação de sentença pode materializar-se pela tradução, oralmente ou por escrito, do conteúdo da sentença, como se defende no acórdão do STJ, de 09-07-2015, pois interessa é que seja respeitado o direito a um processo equitativo, dando-se ao cidadão estrangeiro que não conhece ou domina a língua portuguesa, possibilidades de defender os seus direitos perante o tribunal.
III - Tendo o acórdão recorrido sido traduzido por interprete ao extraditando e sendo este também o sentido da jurisprudência do TC no acórdão n.º 547/1998, num caso paralelo de notificação de acusação a cidadão estrangeiro que desconhecia a língua portuguesa, realizada através de transmissão do seu conteúdo por tradução oral efetuada por interprete, bem como da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a propósito da interpretação e aplicação do art.6.º, n.º 3, alínea a) da CEDH, não padece o mesmo acórdão de nulidade por falta de notificação pessoal ao extraditando da decisão traduzida por escrito, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 92.º, do n.º 10 do art.113.º, a al. c) do n.º 2 do art.120.º, todos do CPP, aplicável ex vi n.º 2 do art. 3.º, da Lei de Cooperação Judiciária.
IV - Tendo o extraditando, na oposição ao pedido de extradição, juntado cinco documentos, solicitado a inquirição de uma testemunha e o envio pelas autoridades russas da segunda via do passaporte com indicação expressa das deslocações efetuadas, não padece de nulidade, por omissão de pronúncia sobre os documentos juntos com a oposição, nos termos do disposto na al. c), do n.º 1, do art. 379.º, do CPP, o despacho que ao apreciar as provas indicadas nessa oposição indefere as diligências de inquirição da testemunha e do envio pelas autoridades russas da segunda via do passaporte, sem nada referir sobre os documentos.
V - Não tendo sido ordenado o desentranhamento dos cinco documentos juntos pelo extraditando, um destinatário normal está em condições de perceber que a junção dos mesmos foi admitida implicitamente e, consequentemente, que podem vir a ser valorados na Conferência na decisão final. Se esse destinatário normal é o próprio requerente da junção dos documentos, que sabe que os mesmos permanecem nos autos para prova dos factos a que os ofereceu, não é racional referir desconhecer que a junção dos documentos foi admitida e invocar surpresa na decisão do tribunal da Relação por os ter tomado em consideração no acórdão recorrido quando apreciou a matéria de oposição.
VI - Esta arguida nulidade sempre improcederia, porque a nulidade prevista na al. c) do n.º 1, do art. 379.º, do CPP, comina apenas as omissões de pronúncia sobre questões que o tribunal devesse apreciar na sentença e a invocada omissão de pronúncia teria ocorrido em despacho prévio à prolação do acórdão ora recorrido.
VII - Só há lugar a vista do processo, por cinco dias, para alegações, nos termos estabelecidos do art. 56.º, da Lei n.º 144/99, quando haja produção de prova, obrigatoriamente com a presença do extraditando, do defensor ou advogado constituído e do intérprete, se necessário, bem como do MP.
VIII - Não tendo havido produção de prova nos termos estabelecidos do art. 56.º da Lei n.º 144/99 e tendo o extraditando tido possibilidade de apresentar os seus argumentos, primeiro presencialmente, na audição a que alude o art. 54.º da mesma Lei e posteriormente com a junção aos autos da sua oposição ao abrigo do art. 55.º, ainda do mesmo diploma, não constituem as alegações escritas uma diligência essencial à decisão, pelo que não poderia integrar a nulidade da decisão, por falta de diligências obrigatórias, arguida pelo recorrente.
IX - Não viola o disposto no n.º 1, do art. 23.º da Lei n.º 144/99 e na alínea b), do n.º 2 do art. 12.º da Convenção Europeia de Extradição, o pedido de extradição que remete uma descrição detalhada dos atos imputados ao extraditando para os documentos anexados, referentes à aplicação de medidas coativas, por integrarem esse pedido.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 129/21.1YRCBR

Extradição

*

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.

I - Pedido de extradição e termos subsequentes

1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de ... veio, ao abrigo do disposto no art.50.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, requerer a extradição para a Federação Russa de AA, devidamente identificado nos autos, atualmente detido preventivamente em Estabelecimento Prisional, apresentando, em síntese, os seguintes fundamentos:

- As autoridades Judiciárias Russas emitiram, em 3 de outubro de 2019, uma ordem de captura do requerido AA, enviada via Interpol para a sua detenção provisória, porquanto corre termos contra ele o processo-crime n.º ..., no Departamento de Investigação da Direção do Ministério da Administração Interna da Rússia, na Região de ...;

- O extraditando encontra-se ali acusado de um crime de ocupação da posição mais alta na hierarquia criminal (associação criminosa), previsto e punido pelo artigo 210.1 do Código Penal da Federação Russa, com uma pena máxima abstratamente aplicável de 15 anos de prisão, pelos factos, que descreve, praticados entre 1994 e 27 de agosto de 2019.

- Os factos imputados ao extraditando integram, segundo a lei portuguesa, o crime de associação criminosa, previsto pelo artigo 299.º n.ºs 1 e 3 do Código Penal Português e puníveis com pena de 2 a 8 anos de prisão.

- O procedimento criminal não se encontra extinto, por prescrição ou amnistia, quer nos termos da legislação portuguesa, quer nos termos da legislação da Federação Russa e portuguesa, quer nos termos da legislação da Federação Russa.

não há conhecimento de que se encontra atualmente pendente perante os tribunais Portugueses qualquer processo criminal contra o extraditando, por outros ou pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição.

- O pedido formal de extradição foi atempadamente apresentado às Autoridades Portuguesas, tendo sua Excelência o Secretário de Estado Adjunto da Justiça, por delegação da Senhora Ministra da Justiça, por despacho de 6 de agosto de 2021, considerado admissível o pedido de extradição para a Federação Russa, nos termos do artigo 2.º da Convenção Europeia de Extradição e dos artigos 4.º, 31.º e 48.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99;

f) O pedido formal de extradição, apresentado às Autoridades Portuguesas pelas Autoridades da Federação Russa, satisfaz os requisitos dos artigos 4.º, 31.º e 48.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99, estando assegurado o princípio da reciprocidade;

g) Contra o extraditando iniciou-se no Tribunal da Relação de ... o processo n.º 93/21...., da ... Secção, por o mesmo, em execução do referido mandado de captura pendente na altura no GNI e emitido pelas Autoridades da Rússia, pelos factos sucintamente atrás referidos, ter sido oportunamente detido, em 20 de Junho de 2021, na ..., tendo-lhe sido mantida a detenção, enquanto se aguardaria que as Autoridades da Federação Russa apresentassem o pedido formal de extradição, o que vieram a fazer.

Juntou os documentos tidos por pertinentes.

 

            2. Procedeu-se à audição do extraditando, nos termos e para os efeitos previstos no art.54.º da Lei n.º 144/99, tendo o mesmo se oposto ao pedido de extradição formulado pela Federação Russa e declarado não renunciar ao benefício da regra da especialidade.

            3. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 55.º da Lei n.º 144/99, veio o requerido AA deduzir oposição ao pedido de extradição, porquanto e em síntese:

- o pedido não passa de um ato de perseguição pessoal contra ele, o qual é tido como persona non grata ao atual regime político, estando a ser alvo de liquidação de carácter, ao arrepio dos mais elementares direitos humanos e princípios gerais de direito nacional e internacional, nomeadamente a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950.

- não se verificam no pedido de extradição os requisitos formais que devem obrigatoriamente acompanhar o pedido, nos termos conjugados dos artigos 24.º, 23.º n.º 1, alínea e), e 4.º, todos da Lei n.º 144/99, e do artigo 12.º, n.º 2, alínea b), da Convenção Europeia de Extradição;

- não verificam os requisitos de fundo que devem obrigatoriamente acompanhar o pedido, nomeadamente o Princípio da Legalidade constante do art.7.º, n.º 1 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, aplicável ex vi artigo 6.º, n.º 1 da Lei de Cooperação Judiciária (nullum crimen, nulla poene sine lege);

- não há garantias jurídicas de um procedimento criminal e de cumprimento da pena de prisão em condições que respeitem os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, pelo que se verifica o fundamento da recusa da extradição, por força da ressalva consagrada no art.1.º da Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, de 21 de agosto, que aprovou a Convenção Europeia de Extradição e por força disposto no artigo 2.º, n.º 1 da Lei de Cooperação Judiciária; e

- verificando-se a existência de grave prejuízo para o extraditando, há também fundamento de recusa da extradição, sob pena de violação da ressalva à Convenção prevista no artigo 2.º, n.º 1 da Lei de Cooperação Judiciária, e sob pena de violação da cláusula humanitária consagrada no artigo 18.º, n.º 2 da Lei de Cooperação Judiciária (violação de direitos humanos nas prisões).

Para prova do alegado, juntou o extraditando cinco documentos e arrolou uma testemunha.

4. Na vista a que se refere o artigo 55.º, n.º 3 da Lei n.º 144/99, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação pugnou no sentido de que seja decertada a extradição solicitada pela Federação Russa do seu cidadão nacional AA, alegando, em breve síntese, que não cabe à Relação sindicar as decisões das autoridades de um Estado requerente de extradição, mas  tão só garantir e verificar que estão reunidas no processo as condições e as garantias de respeito pela dignidade da pessoa humana próprias de um Estado de Direito, por forma a que tenha um processo e um julgamento justo no Estado que o reclama e, no caso concreto, o pedido de extradição pela prática dos factos em apreço respeita as normas dos artigos 23.º e 44.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, bem como todos os necessários requisitos formais, não violando as normas e princípios invocados pelo extraditando e que no entender deste levariam à recusa do pedido.

Apresentou, para junção aos autos, nos termos do artigo 55.º, n.º 3 da Lei n.º 144/99, informações recebidas do Estado requerente, com indicação de factos concretos que alegadamente terão sido praticados por elementos da organização criminosa chefiada pelo requerido.

5. O requerido foi notificado da resposta e dos documentos apresentados pelo Ministério Público.

6. A relatora, por despacho proferido em 10 de Setembro de 2021, indeferiu a inquirição da testemunha que o extraditando requereu, bem como o pretendido envio, pelas autoridades Russas, de segunda via do seu passaporte, com indicação expressa das deslocações efetuadas, considerando para o efeito, no essencial, que a produção de prova se deve restringir ao objeto do processo de extradição, estando vedada a prova sobre os factos imputados ao extraditando (artigo 46.º, n.º 3 da Lei n.º 144/99), revelando-se, por conseguinte, as referidas diligências desnecessárias e configurando um ato inútil, estando também, por esse motivo, vedada a sua prática (artigo 130.º do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP). Mais determinou, que os autos fossem à conferência, nos termos do art.57.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 144/99.  

II – Acórdão do Tribunal da Relação de ...

7. Por acórdão proferido em 30 de setembro de 2021, o Tribunal da Relação de ..., decidiu autorizar a extradição do requerido AA para a Federação Russa para efeitos de procedimento penal pelo crime de “ocupação da posição mais alta na hierarquia criminal”, previsto e punido pelo artigo 210.1 do Código Penal da Federação Russa, considerando para o efeito a seguinte matéria de facto provada, não provada e motivação (transcrição):

«2.1. É a seguinte a matéria de facto apurada, com interesse para a decisão da causa:

2.1.1. No processo criminal n.º ..., que corre termos no Departamento de Investigação da Direcção do Ministério da Administração Interna da Rússia, na Região de ..., o extraditando AA encontra-se acusado de um crime de “ocupação da posição mais alta na hierarquia criminal”, previsto no artigo 210.1 do Código Penal da Federação Russa, e punível com uma pena máxima abstractamente aplicável de 15 anos de prisão.

2.1.2. Crime esse consubstanciado no que ali é imputado ao requerido AA, nos seguintes termos:

a) Depois de ser libertado de instituição correccional da Região de ..., em 6 de Outubro de 1994, onde cumpriu pena, o requerido AA veio a ocupar a posição mais alta na hierarquia criminosa na Região de ..., assumindo o estatuto criminal do denominado “vor v zakone” (ou “ladrão na lei”), passando a possuir funções administrativas organizacionais, aderindo, distribuindo e preservando as tradições e costumes criminosos, passando a exercer autoridade incondicional entre as pessoas aderentes à ideologia criminosa, tendo experiência na actividade criminosa, agindo por ânimos de lucro e tendo na sua esfera de influência o território da Região de ....

 b) Assim, o requerido AA, que residia e efectivamente permanecia no território da Região de ..., no período de 1994 a 27 de Agosto de 2019, utilizando a sua autoridade do chamado “ladrão na lei”, deliberada e ilegalmente distribuiu esferas de influência para realizar os seus planos criminosos na Região de ..., definiu e nomeou por sua decisão obstinada para os “cargos mais altos da hierarquia criminosa” pessoas da sua confiança, autorizando-as a desempenhar funções organizacionais, administrativas, regulatórias e disciplinares dentro de um determinado território no campo da actividade criminosa, o que fez, nomeadamente, com:

- BB, o chamado “supervisor” da cidade de ..., Região de ...;

- CC, o chamado “supervisor” do distrito de ... da Região de ...;

- DD, o chamado “supervisor” da unidade territorial administrativa fechada “...” da Região de ...;

- EE, o chamado “supervisor” da cidade de ..., Região de ...;

- FF, o chamado “supervisor” da cidade de ..., Região de ...;

- GG, o chamado “supervisor” da cidade de ... e HH. o chamado “supervisor” da cidade de ..., Região de ...;

- HH, o chamado “supervisor” da cidade de ....

c) Além disso, o requerido AA, no período de 1994 a 27 de Agosto de 2019, estando no território da Região de ..., deliberadamente criou, organizou e apoiou o sistema do chamado de “fundo comum dos ladrões”, que é uma colecta de dinheiro e outros bens (alimentos, tabaco e outras necessidades básicas) acumulados, controlados e distribuídos por pessoas que ocupam a posição mais alta na hierarquia criminosa, a fim de fornecer recursos e apoio financeiro a representantes individuais do meio criminoso, membros de grupos do crime organizado, bem como pessoas detidas em locais de isolamento forçado da sociedade, obedecendo incondicionalmente às regras e regulamentos informais  incluídos no chamado “caminho dos ladrões (lei dos ladrões)”.

d) Criado pelo “ladrão na lei” II [AA], o "fundo comum de ladrões" é um sistema criminal de colecta permanente (sistemática) de contribuições de fundos de pessoas pertencentes à hierarquia criminal, sem base legal, bem como de pessoas que cumprem pena de prisão em instituições correccionais do Serviço Penitenciário Federal da Rússia, na Região de ..., sendo a acumulação monetária intencional de fundos de fontes legais e ilegais de receitas retiradas do controle estatal para a manutenção de pessoas pertencentes à hierarquia criminosa e a implementação de actividades criminosas por tais pessoas. II, enquanto permanecia na Região de ... (a localização mais precisa não foi estabelecida), nomeou pessoalmente o cidadão JJ como o “detentor do fundo comum dos ladrões”.

e) No período de 1 de Janeiro de 2017 a 27 de Agosto de 2019, enquanto “ladrão na lei”, AA, por meio de transferências bancárias para contas abertas em nome das pessoas que lhes foram confiadas em instituições de crédito localizadas na Região de ..., através dos chamados “supervisores” BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, outras pessoas de confiança e o “detentor do fundo comum dos ladrões” JJ, agindo por acordo prévio com ele, organizou uma colecta de fundos de pessoas do ambiente criminal da Região de ... (incluindo dos condenados cumprindo penas em  instituições correccionais: Instituição Federal Estatal Colónia Penal (FKU IK) N.º... do Serviço Penitenciário Federal da Rússia na Região de ..., Instituição Federal Estatal Colónia Penal FKU IK N.º... do Serviço Penitenciário Federal da Rússia na Região de ..., Instituição Federal Estatal Colónia Penal FKU IK N.º... do Serviço Penitenciário Federal da Rússia na Região de ..., Instituição Federal Estatal Colónia Penal FKU IK N.º ... do Serviço Penitenciário Federal da Rússia na Região de ...) e da parte da população relacionada com o ambiente criminal, fundos monetários no valor de, pelo menos, 100 milhões de rublos. Os fundos recebidos de forma criminosa e ilegal foram gastos pelo “ladrão na lei” II e o “detentor do fundo comum dos ladrões” JJ, para apoiar as actividades da hierarquia criminosa, assistência material aos condenados à prisão e seus companheiros, e também para os seus ânimos de lucro pessoal.

f) Além disso, no período desde 1994 a 27 de Agosto de 2019, II manteve laços criminais com outros “ladrões na lei” que vivem no território da Federação Russa, participou nas chamadas “reuniões de ladrões na lei”, realizando suas actividades criminosas nos territórios de outras entidades constituintes da Federação Russa, onde se discutiram as questões da distribuição das esferas de influência no ambiente criminal.

g) Apesar da adopção da Lei Federal n.º 46-FZ, de 1 de Abril de 2019, "Sobre emendas ao Código Penal da Federação Russa e ao Código de Processo Penal da Federação Russa em termos de combate ao crime organizado" (entrou em vigor em 12 de Abril de 2019), que alterou o Código Penal da Federação Russa, artigo 210.1 “Ocupação de ulna posição superior na hierarquia criminal”, ou seja, a criminalização do próprio facto de ocupar uma posição superior na hierarquia criminal, II, desejando desempenhar as funções de chamado “ladrão na lei”, percebendo a ilegalidade de suas acções, continuou a ocupar a posição mais alta na hierarquia criminal e na categoria criminal do chamado “ladrão na lei”, respeitando as regras e costumes adoptados no ambiente criminoso.

2.1.3. O pedido formal de extradição do requerido, apresentado às Autoridades Portuguesas, foi formulado pela Procuradoria-Geral da Federação Russa, que nele exarou o seguinte conteúdo:

“(…)

A Procuradoria-Geral da Federação da Rússia apresenta os seus melhores cumprimentos para a Procuradoria-Geral da República Portuguesa e informa que o Direção de Investigação do Ministério da Administração Interna da Federação da Rússia na Região de ... está realizando o processo criminal a respeito de AA acusado de cometer um crime previsto e punível nos termos do artigo Nº 210.1 (ocupando a posição mais alta na hierarquia  criminal) do Código Penal da Federação Russa.

Uma descrição detalhada dos atos incriminados para II está descrita nos documentos anexados.

Em relação a II, uma medida preventiva foi escolhida na forma de detenção e este cidadão foi colocado na lista de procurados.

De acordo com as informações disponíveis, II está atualmente detido no território de Portugal.

Com base no exposto, guiado os artigos 1º, 2º, 12º e 16º da Convenção Europeia de Extradição de 13.12.1957, peço que detenham e extraditem o cidadão da Federação da Rússia AA, nascido em XX/XX/1963, natural da ..., para o processo criminal.

A Procuradoria-Geral da Federação da Rússia garante que o pedido atual de extradição não tem objetivos de perseguição por motivos políticos ou intenções discriminativas em relação a uma raça, seguimento de uma religião, nacionalidade ou opiniões políticas.

II será concedido todas as oportunidades de defesa, incluindo uma assistência dos advogados. Ele não será submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes (os artigos 3º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, bem como as convenções pertinentes das Nações Unidas, do Conselho da Europa e os seus protocolos).

O estatuto de limitações para a responsabilização criminal de II não expirou, bem como ele não possui uma imunidade que lhe protegia da perseguição penal.

II não foi condenado ou absolvido anteriormente crime referida.

A Procuradoria-geral garante que, segundo os termos do artigo 14º da Convenção Europeia de Extradição de 13 de dezembro de 1957, o cidadão II será perseguido, julgado e detido com vista à execução de uma pena ou medida de segurança submetida a qualquer outra restrição à sua liberdade individual só pelos factos que motivaram a extradição dele e que após o fim do processo criminal, ou do julgamento, e no caso de uma condenação, depois de cumprir a pena ou ser libertado dela, ele poderá deixar o território da Rússia.

Em caso de extradição, II será mantido numa instituição que tenha em consideração as normas especificadas na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 11.04.1950 e nas Regras Penitenciárias Europeias de 11.06.2006, e os funcionários da Embaixada de Portugal na Federação da Rússia poderão visitá-lo para verificarem o cumprimento das garantias apresentadas neste pedido de extradição.

Sendo o cidadão da Federação da Rússia, II, segundo os termos da Parte I do Artigo 61º da Constituição da Federação da Rússia, não pode ser extraditado para qualquer outro país.

(…)”.

2.1.4. Por despacho de 6 de Agosto de 2021, o Exmo. Secretário de Estado Adjunto da Justiça, por delegação da Exma. Senhora Ministra da Justiça, considerou admissível o pedido de extradição para a Federação Russa, nos termos do artigo 2.º da Convenção Europeia de Extradição e dos artigos 4.º, 31.º e 48.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.

2.1.5. Nas informações recebidas do Estado requerente, já na pendência do presente processo, emanadas da Procuradoria-Geral da Federação Russa, com base em certificado emitido pelo Departamento de Investigação da Direcção do Ministério da Administração Interna da Rússia na Região de ..., este Departamento de Investigação faz constar que:

“II ocupava a mais alta posição e chefia uma organização criminosa, cujos membros em sua composição no território da Região de ... da Federação Russa, cometeram os seguintes crimes:

1) HH:

- no período de 08.10.2004 a 11.11.2004 em relação ao cidadão KK cometeu extorsão (a exigência de a propriedade de outra pessoa ou de título de propriedade ou comissão de outras acções imobiliárias) no valor de 17.000 rublos cometidos por um grupo de pessoas numa conspiração preliminar, prevista na alínea “a” da parte 2 do art. 163 do Código Penal da Federação Russa;

- no período de 01.01.2013 a 04.07.2020 em relação aos cidadãos LL, MM e NN cometeu extorsão (exigindo a transferência da propriedade de outra pessoa ou o direito propriedade ou cometendo outras ações de propriedade) no valor total de 1.820.000 rublos, cometida a fim de obter propriedade numa escala especialmente grande alínea “b” parte 3 do art. 163 do Código Penal da Federação Russa;

- no período de 15.11.2020 a 22.11.2020 em relação ao cidadão de OO cometeu extorsão (a exigência de transferir a propriedade de pessoa ou de título de propriedade ou comissão de outras ações imobiliárias) no valor de 252,000 rublos, cometida com o uso da violência, em grande escala, prevista nos parágrafos “c”, “d” parte 2 do art. 163 do Código Penal da Federação Russa;

2) PP:

- no período de 27.08.2015 contra QQ, RR, SS, TT, UU, VV, cometeu fraude (roubo da propriedade de pessoa ou aquisição do direito à propriedade de outra pessoa por engano ou abuso de confiança) no valor total de 6.171.000 rublos, cometida por um organizado, em escala especialmente grande, que resultou na privação do direito do cidadão à moradia, previsto na parte 4 do art.159 do Código Penal da Federação Russa;

3) WW:

- no período de 10.04.2014 a 22.07.2014 contra XX e YY cometeu fraude (roubo da propriedade de outra pessoa ou aquisição do direito propriedade de outra pessoa por engano ou abuso de confiança) no valor total de 1.524.000 rublos, cometida em gude escala, nos termos da parte 3 do art. 159 do Código Penal da Federação Russa;

-18.01.2015 em relação a ZZ cometeu extorsão (a exigência de transferir a propriedade de outra pessoa ou o direito propriedade ou comissão de outras ações imobiliárias) no valor de 300.000 rublos, previsto na parte 1 do art.163 do Código Penal da Federação Russa;

4) EE: 02.04.2009 cometeu suborno a funcionário em valor significativo, previsto na parte 2 do art. 291 do Código Penal da Federação Russa;

5) GG: 01.01.2007 em relação a AAA cometeu a inflição deliberada de lesão corporal cometida como parte de grupo de pessoas por conspiração prévia, prevista na alínea “a” da parte 3 do art. 111 do Código Penal da Federação Russa”.

2.1.6. O procedimento criminal não se encontra extinto, por prescrição ou amnistia, quer nos termos da legislação portuguesa, quer nos termos da legislação da Federação Russa.

2.1.7. Não há conhecimento de que se encontra actualmente pendente perante os Tribunais Portugueses qualquer processo criminal contra o extraditando, por outros ou pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição.

2.1.8. Consta da Resolução do Tribunal Distrital de ... de ..., de 3 de Outubro de 2019, e na Decisão do Tribunal Regional de ..., de 11 de Outubro de 2019, juntas com o pedido de extradição, a primeira proferida em 1.ª instância e a segunda em sede de recurso, respeitando ambas à aplicação, ao acusado AA, da medida preventiva de detenção, que este cruzou repetidamente a fronteira da Federação Russa (Decisão do Tribunal Distrital de ...) e viajou várias vezes para fora do território da Federação Russa, a última das quais em 28 de Setembro de 2018 (Decisão do Tribunal Regional de ...), tendo sido incluído na lista federal de procurados e, em seguida, em 3 de Outubro de 2019, na lista internacional de procurados.

2.1.9. Em 3 de Outubro de 2019, foi emitida pelas autoridades judiciárias Russas uma ordem de captura contra o requerido AA, a qual veio a ser enviada via Interpol, com o número de controlo A-12634/12-2019.

2.1.10. O requerido AA foi detido pelas autoridades policiais nacionais (Polícia Judiciária – UNCT), em 20 de Junho de 2021, foi presente neste Tribunal da Relação para audição, no âmbito do processo pré-extradicional de validação da detenção com o n.º 93/21...., em 22 de Junho de 2021, diligência em que foi proferida decisão judicial de aplicação de medida de coacção que o manteve detido preventivamente em estabelecimento prisional.

2.1.11. O pedido de extradição do detido AA foi apresentado em juízo no dia 11 de Agosto de 2021, a sua audição neste Tribunal da Relação teve lugar no dia 13 de Agosto de 2021 e, em tal data, foi mantida a medida de coacção de detenção preventiva do requerido.

2.1.12. De 17 a 22 de Maio de 2019, o requerido AA e a companheira BBB estiveram alojados no ... – ..., no ..., e de 22 a 24 de Maio de 2019, estiveram alojados no ..., sito na Avenida da ..., em ....

2.1.13. Em 5 de Junho de 2019, o requerido esteve na instituição clínica “...” (“...”), sita em ..., Alemanha, onde fez consulta, exames (ecografia, medição da elasticidade do fígado) e análises ao sangue, sendo o seu diagnóstico de “Infecção crónica pelo VHC, genótipo 3”.

2.1.14. De 19 a 24 de Julho de 2019, o requerido AA e a companheira BBB estiveram em gozo do seu período de férias e ficaram alojados no ..., sito em ... (...), França.

2.1.15. Entre 28 de Julho a 12 de Agosto de 2019, o requerido AA e a companheira BBB ocuparam a unidade de alojamento local da ..., sita na Rua das ..., n.º ..., em ....

2.1.16. Em dia não exactamente apurado do mês de Agosto de 2019, mas não anterior a 28 de Agosto de 2019, o requerido instalou-se definitivamente em Portugal, onde vive com a sua companheira.

                                                          *

2.2. Não se provou a seguinte matéria alegada pelo extraditando na oposição que deduziu:

2.2.1. Embora a lei russa proíba a prisão e detenção arbitrária, as autoridades envolvidas na prisão e detenção arbitrária, a verdade é que existe um clima de impunidade e essas detenções e prisões subsistem sem consequências (artigo 65.º da oposição).

2.2.2. O que se coaduna com o facto de os magistrados permaneceram sujeitos à influência do poder executivo, das forças armadas e de outras forças de segurança, particularmente em casos de grande visibilidade ou politicamente sensíveis, resultando na aparente predeterminação dos julgamentos (artigo 66.º da oposição).

2.2.3. Acresce que as condições nas prisões são desumanas e colocam em causa a integridade física dos detidos/presos (artigo 67.º da oposição).

2.2.4. Vários são os relatos e relatórios de organizações internacionais de Direitos Humanos que dão conta que a regra, i.e., o que mais comum nesse país é a sobrelotação dos centros de detenção e das prisões, dos abusos por parte de guardas e reclusos, o acesso limitado a cuidados de saúde, a escassez de alimentos, e do saneamento básico inadequado eram comuns nas prisões (artigo 68.º da oposição).

2.2.5. O requerido padece de problemas cardíacos (artigo 71.º da oposição).

2.2.6. O requerido, face à sua actual condição de saúde, caso o presente pedido de extradição seja deferido, tal implicará uma condenação automática, sem qualquer defesa, o que, na prática, se traduzirá numa pena de morte (artigos 71.º e 72.º da oposição).

2.2.7. Isto porque na Rússia os reclusos não recebem a medicação necessária e são colocados em condições desumanas, sujeitos ao frio e a tortura física e psicológica (artigo 73.º da oposição).

2.2.8. Sem prejuízo do que foi dado como assente em 2.1.12. a 2.1.15., que nos restantes períodos não referidos em tais pontos o requerido não se encontrava em território russo (artigo 40.º da oposição).

2.2.9. Sem prejuízo da consulta clínica e realização de exames apurados em 2.1.13., que, em Junho de 2019, o requerido esteve internado para a realização de tratamentos médicos na Alemanha (artigo 42.º da oposição).

2.2.10. Sem prejuízo do que foi dado como assente em 2.1.16., que o requerido e a companheira tivessem vindo instalar-se definitivamente em Portugal em data anterior a 28 de Agosto de 2019 (artigo 44.º da oposição).

                                                      *

2.3. Para a prova dos factos descritos em 2.1., a Relação baseou-se:

- Relativamente ao que foi dado como assente nos pontos 2.1.1. e 2.1.2., nos documentos de fls.11 a 27, que instruíram o pedido de extradição.

- Quanto à matéria do ponto provado 2.1.3., no documento de fls.9 a 10-v.º (pedido de extradição que a Procuradoria-Geral da Federação Russa dirigiu às Autoridades Nacionais)

- Em relação à matéria do ponto provado 2.1.4., nos documentos de fls.37 e v.º

- Em relação à matéria do ponto provado 2.1.5., nos documentos de fls.94 a 95 (certificado emitido pelo Departamento de Investigação da Direcção do Ministério da Administração Interna da Rússia, na Região de ...) e ofícios de fls.92 a 93-v.º

- Quanto ao ponto 2.1.6., no certificado relativo à prescrição do procedimento criminal de fls.29-v.º a 30, que acompanha o pedido de extradição, e no extracto das normas do Código Penal da Federação Russa de fls.27-v.º a 29, que também acompanha o pedido de extradição.

- Relativamente ao ponto 2.1.7., no desconhecimento da existência de qualquer processo criminal instaurado contra o extraditando ou de qualquer condenação de natureza penal que o mesmo tenha sofrido.

- No que concerne ao ponto 2.1.8., no teor das decisões judiciais referidas, que acompanham o pedido de extradição e constam de fls.20-v.º a 27.

- Quanto ao ponto 2.1.9., no documento que acompanha o pedido de extradição, junto a fls.18-v.º a 20, e nos documentos constantes do processo pré-extradicional apenso n.º 93/21.... (validação de detenção), relativos ao mandado de captura internacional e à detenção do requerido.

- Em relação ao ponto 2.1.10., na acta de diligência de audição de detido, realizada em 22 de Junho de 2021, constante do processo pré-extradicional apenso n.º 93/21.... (validação de detenção), e nos documentos constantes desse apenso, relativos ao mandado de captura internacional e à detenção do requerido, pela autoridade policial nacional.

- Em relação ao ponto 2.1.11., na peça processual junta a fls.2 a 6 e na acta de diligência de audição do extraditando, realizada no dia 13 de Agosto de 2021, constante de fls.51 a 53.

- Quanto à matéria do ponto 2.1.12., nos documentos n.os 1 e 2, juntos com a oposição do requerido e constantes de fls.74 e v.º e 75, respectivamente.

- Em relação à matéria do ponto 2.1.13., no documento n.º 3, junto com a oposição do requerido e constante de fls.76 a 78-v.º

- No que concerne à matéria do ponto 2.1.14., no documento n.º 4, junto com a oposição do requerido e constante de fls.79 a 80.

- Relativamente à matéria do ponto 2.1.15., no documento n.º 5, junto com a oposição do requerido e constante de fls.81.

- Relativamente à matéria do ponto 2.1.16., uma vez que a produção de prova se deve restringir ao objecto do processo de extradição, estando vedada a prova sobre os factos imputados ao extraditando (artigo 46.º, n.º 3 da Lei n.º 144/99), o teor do facto descrito em 2.1.16. (“Em dia não exactamente apurado do mês de Agosto de 2019, mas não anterior a  28 de Agosto de 2019,  o requerido instalou-se definitivamente em Portugal, onde vive com a sua companheira”) encontra-se formulado de acordo com a prova produzida (decisões judiciais que acompanham o pedido de extradição e constam de fls.20-v.º a 27, quanto à data de saída definitiva do território da Federação Russa, e documento n.º 5, junto com a oposição do requerido e constante de fls.81, sendo certo que o Ministério Público não se opôs à alegação de que o requerido veio definitivamente para Portugal, dentro dos limites e em conformidade com a proibição legal constante do citado artigo 46.º, n.º 3, na medida em que não contende com os factos incriminatórios imputados pelo Estado requerente e, ao mesmo tempo, satisfaz as necessidades de apuramento de matéria relativa à situação pessoal e familiar do extraditando.

Pelas mesmas razões decorrentes da proibição prevista no artigo 46.º, n.º 3 da Lei n.º 144/99 e inerentes à própria natureza do processo de extradição, que nesta fase judicial se destina a decidir sobre a concessão da extradição por procedência das suas condições de forma e de fundo, ficou prejudicado o conhecimento, pela Relação, do facto descrito no artigo 40.º da oposição e o período temporal indicado na primeira parte do artigo 44.º da mesma peça processual, anterior a 28 de Agosto de 2019.

                                                         *

Relativamente aos factos não provados descritos em 2.2., a sua não demonstração ficou a dever-se às seguintes razões:

- Quanto à matéria dos pontos 2.2.1., 2.2.2., 2.2.3. e 2.2.4., para além das generalizações que o requerido afirma quanto às situações que enuncia, a não demonstração resulta da insuficiência de prova sobre os mesmos, face à circunstância de a prova documental junta com a oposição consistir numa série de notícias e relatórios de várias fontes, disponíveis na Internet, essencialmente reportados aos anos 2015 e 2016, sendo certo que no pedido formal de extradição de AA, a Autoridade requerente (Procuradoria-Geral da Federação Russa) apresenta as garantias descritas no ponto assente 2.1.3., entre as quais, as de que serão respeitados os direitos de defesa e as regras e princípios de direito criminal e penitenciário consagrados em instrumentos internacionais, emanados, nomeadamente, do Conselho da Europa e das Nações Unidas, sendo que, uma vez extraditado o requerido, durante a privação da liberdade, os funcionários da Embaixada de Portugal na Federação Russa poderão visitá-lo para verificarem o cumprimento das garantias apresentadas no pedido de extradição.

Assim, face ao teor dos elementos referidos, assim como atenta a natureza das afirmações formuladas nos aludidos pontos 2.2.1., 2.2.2., 2.2.3. e 2.2.4., oriundas do articulado de posição do requerido, não poderia a Relação deixar de considerar não apurada a matéria dos pontos indicados.

- Quanto ao facto do ponto 2.2.5., não foi junto qualquer elemento clínico que suporte a sua demonstração.

- Quanto à matéria dos pontos 2.2.6. e 2.2.7., pelas razões já expostas quanto à não demostração da factualidade dos pontos 2.2.1. a 2.2.4. e ainda que, conforme melhor se explicitará em sede de apreciação jurídica (cf. 3.2.4.), da prova não resulta que a Hepatite C crónica de que o requerido padece demande tratamentos clínicos com respostas mais exigentes, como é o caso das que envolvem internamentos hospitalares e/ou terapêuticas mais complexas. De entre os eventos de 2019 que o requerido invoca (e demonstra), apenas um se refere a consulta, exames e análises em instituição clínica (cf. 2.1.13.), sendo que os restantes se reportam a alojamentos em unidades hoteleiras, no nosso país (cf. 2.1.12. e 2.1.15.) e em França, nomeadamente para gozo de férias (cf. 2.1.14.). Nada mais juntou para demostrar o seu estado de saúde actual, sendo certo que, desde os acontecimentos de 5 de Junho de 2019, descritos em 2.1.13., não há registo ou notícia de qualquer vicissitude entretanto ocorrida a esse nível.

- Quanto aos factos dos pontos 2.2.8. e 2.2.10., pelas razões probatórias acima expostas, relativamente ao ponto assente 2.1.16.

- Quanto à factualidade do ponto 2.2.9., com base no teor do documento n.º 3, junto com a oposição do requerido e constante de fls.76 a 78-v.º

             

III Recurso

8. Inconformado com o acórdão da Relação de 30 de setembro de 2021, dele interpôs recurso o extraditando AA, concluindo a sua motivação do modo seguinte: (transcrição)

1. O extraditando recorre de toda a matéria de direito por entender que a notificação da decisão é nula, por verificar-se nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nulidade por falta de diligências obrigatórias e de erro de julgamento na aplicação do Direito aos factos.

2. A notificação da decisão é nula por falta de notificação pessoal ao extraditando da decisão devidamente traduzida por escrito (nem sequer oralmente, apesar de ter sido entregue em mão por

tradutora oficial), nos termos do disposto no n.º 2 do art.92.º, do n.º 10 do art.113.º, a al. c) do n.º 2 do art.120.º, todos do CPP, aplicável ex vi n.º 2 do art.3.º da Lei de Cooperação Judiciária.

3. Uma interpretação das referidas normas no sentido de basta a mera intervenção de intérprete, cuja conduta não é sindicável pelo Tribunal, para que a notificação se considere regularmente efetuada e como tal, de que não é necessária tradução, por escrito, para a língua do extraditando da decisão final é inconstitucional por violação das garantias de defesa próprias de um processo penal consagradas no art.32.º da Constituição da República Portuguesa.

4. O Despacho datado de 10/09/2021 padece de nulidade por força da omissão de pronúncia da Mma. Juíza sobre os documentos juntos com a oposição, nos termos do disposto na al .c) do n.º 1

do art.379.º do CPP.

5. Do n.º 2 do art.56.º da Lei de Cooperação Judiciária resulta a obrigatoriedade de que terminada a produção de prova o defensor do extraditando seja notificado para em cinco dias juntar aos autos alegações finais, sob pena de violação do princípio do contraditório.

6. Tal formalidade foi completamente omitida, consubstanciando assim uma nulidade, nos termos da al. d) do n.º 2 do art.120.º do CPP e do art.56.º da Lei de Cooperação Judiciária.

7. A interpretação em sentido distinto, i.e. no sentido de o n.º 2 do art.56.º da Lei de Cooperação Judiciária não obriga a que seja o defensor do extraditando notificado para apresentar alegações escritas é inconstitucional por violação das garantias de defesa, máxime do contraditório consagrado n.º 5 do art.32.º da Constituição da República Portuguesa.

8. O Venerando Tribunal fundamentou a sua decisão final nos elementos documentais que acompanham o processo de extradição, referentes à aplicação de medidas coativas pelas Autoridades Russas e não no teor do pedido, esse sim, a que se refere o art. 23.º e o art.12.º da Convenção Europeia de Extradição.

9. No entanto, a fundamentação de que o Tribunal se socorre é manifestamente insuficiente, uma vez que a dupla negativa utilizada («não se retira que não existia lei penal anterior») aparenta revelar um desconhecimento sobre o Código Penal Russo que é incompatível com as garantias que o princípio da legalidade – como princípio estruturante de um processo penal de um Estado de Direito – deve assegurar.

10. Da factualidade que consta do ponto 2.1.2 resulta imputado a prática do alegado crime é sempre referido o período entre 1980 e agosto de 2019, e em momento algum é referida uma outra qualquer data que permite balizar quando os alegados crimes foram praticados, o que seria desde logo de uma generalidade incompatível com a natureza e relevância que o processo de extradição assume na cooperação judicial entre os Estados.

11. No seu pedido de extradição a Federação Russa não faz qualquer referência à possibilidade de os alegados crimes estarem a ser praticados fora do território como faz expressamente referência

ao facto de os mesmos estarem a ser praticados dentro das suas fronteiras, pelo que o Venerando Tribunal não poderia concluir em sede de apreciação judicial que os mesmos poderiam ser praticados noutro país.

12. Verificando-se que o assacado crime cuja prática lhe foi imputado, e a pena – em abstrato – legalmente cominada para o mesmo, não se encontravam consagrados no Código Penal Russo aquando da alegada prática dos factos e estando vedada a apreciação sobre a forma em que poderia ser praticado o crime, o Venerando Tribunal, ao decidir pela extradição violou o disposto no n.º 1 do art.7.º da Convenção Europeia de Extradição e na alínea a) do n.º 1 do art.6.º do Lei de Cooperação Judiciária.

13. Acresce que uma interpretação da al. a) do n.º 1 do art.6.º da Lei de Cooperação Judiciária no sentido de que os factos descritos no pedido não têm de estar devidamente enquadrados no tempo e lugar e que essa informação pode resultar de outros elementos do processo é inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica e da legalidade criminal, consagrados, respectivamente, nos arts. 2.º e n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

14. Não obstante o Venerando Tribunal ter dado como não provado o alegado nos arts. 62.º a 74.º da oposição, facto é que da fundamentação da decisão ora recorrida resulta que a apreciação das garantias jurídicas foi meramente formal e não material.

15. No entanto, para que seja aferido que o Estado Requerente cumpre as exigências indispensáveis de um procedimento penal internacionalmente reconhecido não basta uma qualquer suficiência formal.

16. Ao decidir que basta existir uma garantia formal – leia-se, um documento assinado por autoridade cuja competência inclusivamente se desconhece – para considerar que não se verifica a condição negativa de cooperação da extradição do art. 6.º, al. a), da Lei 144/99, de 31.08, e da reserva formulada por Portugal à Convenção Europeia de extradição com referência aos arts. 3.º e 6.º da CEDH, violou o Tribunal a quo manifestamente estas normas, bem como o art. 13.º da CEDH, colocando o extraditando em risco sério e iminente de violação daqueles seus direitos consagrados na CEDH e na nossa Lei Fundamental.

Nestes termos e nos melhores de Direito, o Recorrido está convicto de que V. Exas, Colendos Juízes Conselheiros, apreciando objetivamente o presente recurso, subsumindo-o nos comandos legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de o admitir, apreciando e decidindo pela verificação:

a) Da nulidade por falta de notificação pessoal da decisão não traduzida ao extraditando;

b) Da nulidade da decisão por omissão de pronúncia;

c) Da nulidade da decisão por falta de diligências obrigatórias;

d) Do erro de julgamento na aplicação do Direito aos factos.

E em consequência, julgar procedente o presente recurso, revogando, em conformidade, a decisão recorrida e recusando o pedido de extradição, por falta dos requisitos de forma e de fundo.

9. O Ministério Público no Tribunal da Relação de ... respondeu ao recurso interposto pelo extraditando, concluindo que as razões apresentadas pelo recorrente não constituem qualquer fundamento para a recusa de cumprimento do Pedido de Extradição e, não estando em causa qualquer vício, quer de natureza formal, quer de natureza substantiva, nos necessários pressupostos e fundamentos que conduziram à decisão em recurso, nenhuma censura merece o acórdão proferido em 30/09/2021 pelo Tribunal da Relação de ..., que concedeu a entrega do recorrente AA, razão porque entende que o mesmo deverá ser confirmado, improcedendo assim o recurso do acórdão.

10. Os autos subiram a este Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art.58.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

11. Colhidos os vistos, levados os autos à Conferência, cumpre decidir.

III - Apreciação

           

São as seguintes as questões suscitadas nas conclusões da motivação pelo recorrente AA, de que cumpre conhecer:

-  a) Da nulidade por falta de notificação da decisão traduzida ao extraditando;

-  b) Da nulidade da decisão por omissão de pronúncia;

-  c) Da nulidade da decisão por falta de diligências obrigatórias;

-  d) Do erro de julgamento na aplicação do direito aos factos;

- e) Da ausência de garantias jurídicas de um procedimento criminal, das condições de cumprimento da pena e do grave prejuízo para o extraditando.    

12. No domínio da cooperação judiciária internacional, em matéria penal, a extradição emerge como a mais antiga forma de colaboração entre Estados. Através dela um Estado (requerente) pede a outro Estado (requerido) a entrega de uma pessoa que se encontre no território deste último, para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena em que foi condenado.  

Trata-se de um instrumento de cooperação internacional que visa não só evitar a impunidade, mas também contribuir para a inexistência de territórios que se tornem locais onde os criminosos se possam refugiar.           

Com se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 30 de maio de 2012, a admissibilidade de extradição, nomeadamente quando Portugal é o Estado requerido (extradição passiva), é regulada pelos tratados e convenções internacionais, e, na sua falta ou insuficiência, pela lei relativa à cooperação internacional (Lei 144/99, de 31.08), e ainda pelo CPP, conforme dispõem o art.229.º deste diploma e o art.3.º, n.º 1, daquela Lei. A aplicação da lei interna portuguesa é, pois, subsidiária.[1]

As relações de cooperação penal entre Portugal e a Federação Russa regem-se pela Convenção Europeia de Extradição, de 1957, e seus protocolos adicionais, subscrita e ratificada por ambos os países.

No processo de extradição a “entrega”, designando a translação jurídica e física de uma pessoa e constituindo um dos elementos do processo, está sujeita à verificação de determinados requisitos, uns de ordem formal e outros substanciais.

Posto isto e retomando o caso concreto, passemos a conhecer das questões.

13.- Da nulidade por falta de notificação da decisão traduzida ao extraditando.

13.1 O recorrente AA defende, nas conclusões 2 e 3 da motivação do recurso, que a notificação do acórdão recorrido é nula por falta de notificação pessoal ao extraditando da decisão devidamente traduzida por escrito, nos termos do disposto no n.º 2 do art.92.º, do n.º 10 do art.113.º, a al. c) do n.º 2 do art.120.º, todos do CPP, aplicável ex vi n.º 2 do art.3.º da Lei de Cooperação Judiciária.

Alega, em concreto, no essencial, para fundamentar a sua pretensão:

- na sequência do despacho de 22/10/2021, da Ex.ma Juíza Desembargadora, uma tradutora oficial entregou-lhe em mão o acórdão ora recorrido, em língua portuguesa. Esta notificação da decisão em causa é nula pois só através de “tradução por escrito” desta peça processual se consegue garantir que o ora recorrente toma verdadeiramente conhecimento dos factos e dos fundamentos em que o Venerando Tribunal da Relação decidiu, uma vez que não consegue ler nem falar português;

- por outro lado, a intervenção da Sr.ª interprete, na sequência do despacho de 22/10/2021, limitou-se ao questionamento ao extraditando se tinha alguma dúvida relativamente ao texto da decisão. Naturalmente não tinha dúvidas relativamente ao texto da decisão que lhe entregou porque não o compreende e a Sr.ª interprete não procedeu à sua leitura oralmente, nem sequer dos aspetos mais relevantes.

- uma interpretação das referidas normas, no sentido de bastar a mera intervenção de intérprete, cuja conduta não é sindicável pelo Tribunal, para que a notificação se considere regularmente efetuada e como tal, de que não é necessária tradução, por escrito, para a língua do extraditando da decisão final é inconstitucional por violação das garantias de defesa próprias de um processo penal consagradas no art.32.º da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos se assim é.

13.2. Antes do mais, importa convocar, os dispositivos legais invocados pelo recorrente.

O art. 113.º, n.º 10, do Código de Processo Penal, dispõe que «as notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado; neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar.».

Impõe-se aqui acrescentar, que tratando-se de pessoa que se encontra presa, a sua notificação é requisitada, nos termos do art. 114.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ao diretor do estabelecimento prisional respetivo e efetuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado.   

Como regra geral, sobre a utilização da língua portuguesa em processo penal, estabelece o art. 92.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que «nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade».

Porém, nos termos do n.º 2, deste art. 92.º «Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao ato ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.».

Dentro das nulidades, o Código de Processo Penal distingue as nulidades insanáveis (ou absolutas), a que se refere o artigo 119.º, e as nulidades dependentes de arguição (ou nulidades relativas), a que se referem os artigos 120.º e 121.º, regulando o artigo 122.º os efeitos de declaração de nulidade.

As nulidades insanáveis são as que constam do artigo 119.º do CPP e ainda as que forem, como tal, identificadas em outras disposições do código. Os comportamentos elencados nas seis alíneas do artigo 119.º respeitam à constituição do tribunal coletivo ou às regras que regulam a sua composição (alínea a)), à falta de promoção do processo pelo Ministério Público e à ausência deste em atos a que devia estar presente (alínea b)), à ausência do arguido e seu defensor quando devam estar presentes (alínea c)), à falta de inquérito ou de instrução quando sejam obrigatórios (alínea d)), à violação das regras de competência do tribunal, com ressalva do n.º 2 do artigo 32.º (alínea e)), e, por fim (alínea f)), refere a norma, como fundamento de nulidade insanável, o emprego de forma de processo especial em casos não previstos legalmente.

De acordo com o n.º 1 do artigo 120.º, «qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte».

Entre as quatro alíneas do n.º 2, do art. 120.º do Código de Processo Penal, importa aqui considerar a alínea c), que estabelece constituir, nulidade sanável, «a falta de nomeação de interprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória.».

«Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes, a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.» ( art. 123.º, n.º 1, do C.P.P.).

A arguição deve ter lugar perante o tribunal que cometeu a irregularidade, deste modo lhe possibilitando a respetiva reparação ou, se o não fizer, permitindo ao sujeito processual afetado a interposição do competente recurso (n.º 2).

Por fim, o art.32.º da Constituição da República Portuguesa, prevê os chamados princípios materiais do processo criminal, condensados na fórmula geral do seu n.º 1: « o processo criminal assegura as garantias de defesa, incluindo o recurso.».

Enquanto «cláusula geral» que permite identificar outras possíveis concretizações judiciais do princípio da defesa não referenciadas no texto constitucional, configura o processo criminal como um due process of law, determinando a ilegitimidade das normas processuais e dos procedimentos dela decorrentes que impliquem uma diminuição inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.

13.3. Exposto o regime legal que subjaz ao recurso, interessa seguidamente recordar a sequência de atos com interesse para a decisão desta questão.

Compulsando os autos deles resulta, designadamente, que:

- Na audição do requerente, de nacionalidade ..., que teve lugar no processo de pré-extradição, e posteriormente na audição a que alude o art.54.º da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto (Lei de Cooperação Judiciária Internacional em matéria penal), foi nomeada interprete ao mesmo, por não falar, nem entender a língua portuguesa;

- O requerido AA foi notificado do Acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 30 de setembro de 2021, nos termos do art.114.º, n.º 1 do C.P.P., no Estabelecimento Prisional de ..., entregando-lhe o funcionário cópia do acórdão, redigido em língua portuguesa;

- Interposto recurso pelo requerido, em 14/10/2021, do acórdão proferido a 30 de setembro de 2021, veio o mesmo nele arguir a nulidade da decisão por falta de notificação pessoal da decisão ao extraditando, porquanto não falando nem conseguindo ler ou falar português, “tal notificação deveria ter lugar por contato pessoal, dando-lhe conhecimento do teor da mesma”. Invoca, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2015 (processo n.º 65/14.8YREVR.S1);

- Na resposta ao recurso, o Ministério Público admite que se verifica uma nulidade de procedimento, que não do acórdão e que o recorrente está em prazo para a arguir, nos termos do art.120.º e 121.º do C.P.P.;

- Por despacho de 22 de outubro de 2021, a relatora do acórdão, seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça invocada pelo recorrente, reconheceu que a notificação da decisão de extradição para a Federação Russa ao requerido AA, sem a assistência de interprete que lhe explique o respetivo conteúdo, constitui nulidade e decidiu, ao abrigo do preceituado nos artigos 414.º, n.º 4, 92.º, n.º 2, 113.º, n.º 10, 114.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, alínea c), e 122.º, todos do CPP, ex vi artigo 3.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, declarar nulo o ato de notificação do acórdão da Relação ao requerido AA, determinando a sua repetição na qual se assegurará a intervenção de intérprete, nos termos e para os efeitos já indicados, e considerar inválido o ato que depende daquela notificação e por ela é afetado, decorrendo, consequentemente, a partir da notificação a repetir, novo prazo para o requerido interpor recurso da decisão de extradição. Mais determinou que na notificação a repetir, caso não seja viável a intervenção da intérprete que antes foi nomeada nos autos, face à deslocação que o ato envolve (o requerido encontra-se detido no Estabelecimento Prisional de ...), deverá providenciar-se por outra indigitação, a levar em linha de conta na requisição prevista no artigo 114.º, n.º 1 do CPP.

- Da certidão de notificação efetuada no Estabelecimento Prisional de ..., datada de 26 de outubro de 2021, consta que o funcionário do estabelecimento entregou o documento correspondente “…após ter sido traduzido por interprete” e que o recluso recusou assinar dado que já tinha sido notificado do acórdão. A certidão mostra-se assinada pela intérprete CCC – que já anteriormente desempenhara estas funções nos presentes autos.   

- Em despacho proferido a 27 de Outubro de 2021 a Ex.ma Desembargadora relatora consignou que “Atendendo ao teor da certidão de notificação junta com a ref.ª ... e ao disposto no artigo 114.º, n.º 1 do CPP, com referência à norma do artigo 113.º, n.º 7, alínea a), do mesmo diploma, considera-se validamente notificado o requerido AA, para todos os efeitos legais, mormente os indicados no despacho que ordenou a notificação (ref.ª ...). Dê conhecimento ao Ilustre Mandatário, nos termos promovidos.

 - A Secção notificou o Ilustre Mandatário deste despacho, na mesma data, por meio eletrónico.

13.4. Sendo estes os termos em que a questão se coloca, passamos a decidir, em primeiro lugar, se a não entrega daquela peça processual devidamente traduzida por escrito, para a língua russa, que é a sua língua natal, que naturalmente compreende e domina, integra a nulidade da notificação do acórdão recorrido e consequente violação das normas supra referidas.

Na falta de disposições legais, na Convenção Europeia de Extradição e na Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, sobre os termos de notificação ao extraditando da decisão final do pedido de extradição e de tradução desta decisão no caso daquele não dominar a língua em que foi proferida, impõe-se recorrer, subsidiariamente, às disposições aplicáveis do Código de Processo Penal (art.3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 144/99).

A decisão proferida pelo Tribunal da Relação em 30 de setembro de 2021, face à definição do art. 97.º, n.ºs 1, al. a) e 2 do C.P.P., toma a forma de um acórdão e, como tal, deve ser notificado, nos termos do art. 113.º, n.º 10, do Código de Processo Penal, ao extraditando e ao seu defensor ou advogado.

No caso, encontrando-se o extraditando detido em estabelecimento prisional, não se seguem as regras gerais de notificação do mesmo pela via de «contacto pessoal» ou «via postal», previstas no art. 113.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, mas sim a regra especial prevista no art.114.º, do mesmo Código.

Dos autos resulta que o acórdão ora recorrido foi notificado ao Ex.mo Defensor do extraditando e foi ainda, por duas vezes, notificado, pessoalmente ao extraditando , através de funcionário, no estabelecimento prisional onde se encontra detido, nos termos do art. 114.º, do Código de Processo Penal.

Acontece que, como atrás vimos, o extraditando veio arguir a nulidade da primeira notificação da decisão por falta de notificação pessoal da decisão ao extraditando, porquanto não falando nem conseguindo ler ou falar português, “tal notificação deveria ter lugar por contato pessoal, dando-lhe conhecimento do teor da mesma”, invocando, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2015 (processo n.º 65/14.8YREVR.S1) e a relatora do processo, aderindo ao teor desta jurisprudência, veio por despacho de  22 de outubro de 2021, declarar a nulidade da notificação do acórdão, determinando a sua repetição na qual se assegurará a intervenção de intérprete.

Para este efeito, transcreveu as seguintes passagens do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2015:

4. Sobre a comunicação dos atos em processo penal e na lei de cooperação judiciária, em nenhum destes instrumentos se contém norma que imponha a notificação da tradução da sentença ao extraditando.

Na Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, alude-se à nomeação de intérprete para assistir o extraditando em certos atos, e o artigo 92.º do CPP, depois de estabelecer no n.º 1, que, nos «atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade», o n.º 2 preceitua que «[q]uando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada», acrescentando o n.º 3 que «o arguido pode escolher, sem encargo para ele, intérprete diferente do previsto no número anterior para traduzir as conversações com o seu defensor».

 (…)

A comunicação de atos do processo, levando ao conhecimento do destinatário atos ou peças processuais e o respetivo teor, que relevem para a sua defesa, não é incompatível com a inexistência, no ato notificação, de tradução da peça processual a comunicar, desde que o cumprimento de levar ao conhecimento do destinatário o ato processual realizado em língua que aquele não conheça nem domine, possa ser levado a efeito de outro modo, no respeito pelo processo equitativo.

5. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) consagra no artigo 6.º, n.º 3, o direito de o arguido, que não fala nem compreende a língua do processo, ser assistido, gratuitamente, por intérprete que lhe traduza ou interprete os atos do processo. Sobre o conteúdo e limites deste direito, a jurisprudência convencional não exige a tradução de todas as peças ou atos do processo. No já aludido caso Kamasinski c. Austria, o tribunal esclarece que a assistência gratuita de um intérprete aplica-se não apenas à audiência de julgamento, mas igualmente a todos os atos do processo que o arguido carecer de conhecer e compreender para a realização do processo equitativo (14) [(14) Ver sobretudo os §§ 74 e 79], mas a jurisprudência convencional não vai ao ponto de exigir uma tradução escrita de todos os elementos de prova escrita ou dos documentos oficiais do processo, devendo a assistência fornecida ser de molde a permitir ao arguido ter conhecimento do caso, e dele se defender, nomeadamente sendo capaz de expor ao tribunal a sua versão dos factos (15) [(15) Reportando-se ao ato de acusação, mas o princípio valendo também para a sentença, DDD, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem anotada, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2005, p. 166, afirma que «só a tradução da acusação evitará que a dúvida [sobre a sua compreensão] se desenhe, exigindo-se ao Estado a prova de que, apesar dessa omissão, a notificação atingiu o seu objetivo, o que nem sempre se mostrará fácil sobretudo na hipótese frequente de o acusado ou o seu defensor a terem reclamado»].

6. O Tribunal Constitucional, relativamente à notificação da acusação, mas cuja fundamentação é transponível para a notificação da sentença, ponderou se é conforme com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP e se os direitos de defesa daquele são assegurados, no caso em que aquele desconheça a língua portuguesa, e lhe é entregue cópia da acusação escrita em português, acompanhada da transmissão oral do seu conteúdo, por intérprete, na língua conhecida pelo notificando, tradução oral da acusação, por intérprete, não compromete as garantias de defesa do arguido consagradas no comando constitucional com a assinalada dimensão, tendo concluído afirmativamente, porquanto «a tradução oral da acusação, por intérprete, não compromete as garantias de defesa do arguido consagradas no comando constitucional com a assinalada dimensão», e tal forma de notificação não obstar «a que o arguido p. ex. vá colhendo da leitura as notas (escritas) que entender convenientes, peça esclarecimentos ao intérprete ou solicite repetições sobre trechos eventualmente mais complexos, tudo no sentido de uma perceção completa, minuciosa e profunda da peça acusatória», tanto mais que, «competindo ao funcionário encarregado da notificação a transmissão fiel do conteúdo da acusação, o desempenho perfeito da função de interpretação há-de permitir ao arguido os procedimentos referidos em termos que o apetrechem com o conhecimento necessário e suficiente para gizar a estratégia de defesa subsequente»”.

Em coerência com esta fundamentação, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2015 (processo n.º 65/14.8YREVR.S1), concluiu que “ A comunicação da decisão de extradição, com desrespeito pela notificação pessoal, como o exige o artigo 113.º, n.º 10, do CPP, sem intérprete que explique o conteúdo da sentença, constitui nulidade, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea c), ex vi artigo 92.º, n.º 2, ambos do CPP, invalidando o ato e reclamando a sua repetição (artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).

O extraditando, quando arguiu a nulidade da primeira notificação do acórdão da decisão final, apresentando como argumento a seu favor o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2015, em lado algum menciona que o acórdão notificando lhe devia ser traduzido por escrito.

Na segunda arguição da nulidade da notificação do acórdão da decisão final, apresentada no presente recurso interposto do acórdão, o extraditando defende, inovatoriamente, que não basta a presença de interprete para explicar o conteúdo do acórdão, exigindo-se a tradução escrita do mesmo, sob pena de violação do disposto nos artigos 113.º, n.º 10 e 92.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Algo contraditoriamente, volta a invocar como argumento a seu favor o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2015, pois neste consigna-se que para a comunicação válida de sentença basta que o intérprete explique o seu conteúdo ao extraditando.

Tendo-se já clarificado que o acórdão da decisão final foi notificado tanto ao seu Defensor, como pessoalmente ao extraditando com a entrega de cópia do mesmo em língua portuguesa, importa verificar se o art. 92.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, impõe, por aplicação subsidiária, que a notificação de acórdão final de extradição de cidadão estrangeiro que desconheça a língua portuguesa, se efetue obrigatoriamente mediante a entrega da peça traduzida por escrito na língua que aquele domina.

O art. 92.º, n.º 2 do Código de Processo Penal estabelece que todo o interveniente no processo que não dominar a língua portuguesa, máxime o arguido, tem direito a assistência gratuita de um intérprete de todos os atos processuais que ele necessitar compreender para beneficiar de um processo equitativo. Em lado algum do texto se refere em que termos (escritos ou orais) se impõe a materialização dessa assistência.      

Também o texto do n.º 6 do art. 92.º do Código de Processo Penal ao dispor que é «… nomeado interprete quando se tornar necessário traduzir documento em língua estrangeira e desacompanhado de tradução autenticada», não impõe que os documentos em língua portuguesa devam ser traduzidos por escrito para a língua do cidadão estrangeiro que desconheça a língua portuguesa.

Assim, numa interpretação ampla do disposto no art. 92.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a intervenção de intérprete no ato de notificação de sentença pode materializar-se pela tradução, oralmente ou por escrito, do conteúdo da sentença, como se defende no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-2015.[2]

O que interessa é que seja respeitado o direito a um processo equitativo, dando-se ao cidadão estrangeiro que não conhece ou domina a língua portuguesa, possibilidades de defender os seus direitos perante o tribunal.

É este também o sentido da jurisprudência do Tribunal Constitucional quando, no acórdão n.º 547/1998, num caso paralelo de notificação de acusação a cidadão estrangeiro que desconhecia a língua portuguesa, realizada através de transmissão do seu conteúdo por tradução oral efetuada por interprete, decidiu:

O art. 92.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto no art. 111.º, n.º 1, alínea c), do mesmo Código, interpretado no sentido de que a notificação da acusação deduzida contra o arguido que desconhece a língua portuguesa não carece de tradução escrita pelo interprete nomeado, não lesa as suas garantias de defesa, constitucionalmente estabelecidas nos artigos 32.º, n.º 1 e 16.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 6.º, n.º 3, alínea a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.     

Para além de esclarecer que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), na jurisprudência que indica, decidiu que o art.6.º, n.º 3, alínea a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não obriga, na comunicação da acusação ao arguido que não domina a língua usada no processo, à tradução escrita da peça acusatória, o Tribunal Constitucional conclui também que  nada de substancialmente diverso emerge do art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, escrevendo a este propósito, designadamente, o seguinte:

Num processo em que a equidade, a igualdade de armas, o acusatório, são, entre outros, princípios que os direitos de defesa reclamam, o conhecimento detalhado e esclarecido, por parte do arguido, do que (de facto e de direito) lhe é imputado na acusação reveste-se como se deixou já dito - de uma importância decisiva.

Inscreve-se, pois, nas garantias de defesa que o processo criminal, por imperativo constitucional, deve assegurar, a que se consubstancia no direito do arguido àquele conhecimento pleno da matéria constante da acusação, em termos - acrescente-se que permitam o seu estudo consciente e aprofundado, pois só assim se perfazem as condições indispensáveis para o acusado preparar a defesa que entender mais adequada.

Ora, afigura-se que a tradução oral da acusação, por intérprete, não compromete as garantias de defesa do arguido consagradas no comando constitucional com a assinalada dimensão.

Na verdade, esta forma de notificação não obsta a que o arguido p. ex. vá colhendo da leitura as notas (escritas) que entender convenientes, peça esclarecimentos ao intérprete ou solicite repetições sobre trechos eventualmente mais complexos, tudo no sentido de uma percepção completa, minuciosa e profunda da peça acusatória.

Competindo ao funcionário encarregado da notificação a transmissão fiel do conteúdo da acusação, o desempenho perfeito da função de interpretação há-de permitir ao arguido os procedimentos referidos em termos que o apetrechem com o conhecimento necessário e suficiente para gizar a estratégia de defesa subsequente.

(…)

Dir-se-á que se trata de uma forma menos cómoda de o arguido tomar cabal conhecimento da acusação, obrigando-o eventualmente a tarefas complementares que seriam desnecessárias se o texto da acusação fosse desde logo entregue na versão em língua estrangeira apropriada; mas se é de facto assim, não pode dizer-se que ocorra uma qualquer compressão, minimamente relevante, dos direitos de defesa do arguido garantidos pelo artigo 32º nº 1 da CRP.”[3]

A afirmação do ora recorrente de que a intervenção do intérprete na situação de tradução oral da decisão final comunicada ao extraditando não é sindicável pelo tribunal, está por demonstrar.

Pelo contrário, a intervenção do intérprete tanto pode ser sindicada quando procede oralmente à tradução, como quando procede à tradução escrita de um documento, designadamente da decisão final num processo de extradição.

No caso, o Tribunal da Relação sindicou mesmo a intervenção da intérprete, consignando em despacho de 27 de outubro de 2021:

Atendendo ao teor da certidão de notificação junta com a ref.ª ... e ao disposto no artigo 114.º, n.º 1 do CPP, com referência à norma do artigo 113.º, n.º 7, alínea a), do mesmo diploma, considera-se validamente notificado o requerido AA, para todos os efeitos legais, mormente os indicados no despacho que ordenou a notificação (ref.ª ...). Dê conhecimento ao Ilustre Mandatário, nos termos promovidos.”   

Perante todo o exposto, numa situação em que o funcionário do Estabelecimento Prisional certifica que foi entregue ao extraditando o acórdão de 22-10-2021, após ter sido traduzido por intérprete, o Supremo Tribunal de Justiça não reconhece a violação das garantias de defesa próprias de um processo penal consagradas no art. 32.º da Constituição da República Portuguesa. Por outras palavras, a não entrega da tradução por escrito da decisão final, não implica, no caso concreto, uma diminuição inadmissível das possibilidades de defesa do extraditando.

Como segundo motivo de nulidade de notificação do acórdão, de algum secundário face ao anterior, invoca o ora recorrente o deficiente desempenho da Sr.ª interprete, que alegadamente não procedeu à leitura (traduzida) do mesmo acórdão, nem sequer dos aspetos mais relevantes.

Esta afirmação do ora recorrente está em oposição ao que consta certificado pelo funcionário, que assinou com a Sr.ª interprete CCC, a certidão de notificação.

Consta referido na certidão que o funcionário entregou o acórdão a AA, “após ter sido traduzido por interprete” e que o recluso “recusou assinar” dado que já tinha sido notificado do acórdão por anterior ofício.

Da certidão da notificação consta referida uma recusa de assinatura do extraditando, por motivo diverso da falta de leitura (traduzida) do mesmo acórdão, nem sequer dos aspetos mais relevantes.

A função do intérprete é, como se sabe, traduzir a outrem, numa determinada língua, o que ouve ou lê noutra e foi nessa qualidade que a interprete CCC se deslocou ao Estabelecimento Prisional onde se encontra detido o extraditando, cidadão russo que não compreende a língua portuguesa no qual foi elaborado o acórdão a notificar ao mesmo.

Dos autos extrai-se que anteriormente a este ato nunca foi posta em causa a idoneidade da Sr.ª interprete CCC, que prestando compromisso legal nos termos do art. 91.º, n.ºs 2 e 3 do C. P. P., vinha já assistindo nessa qualidade o extraditando no processo.

O ora recorrente não apresenta nenhuma prova da sua alegada versão e não se vislumbra do recurso que desconhece os concretos fundamentos que determinaram a sua extradição decidida no acórdão ora recorrido.

A certidão de notificação é um documento autêntico, elaborado por um funcionário público no âmbito das suas funções, pelo que, nos termos do art. 169.º do Código de Processo Penal consideramos provado o que dele consta certificado e, assim, que lhe foi traduzido, pela Sr.ª interprete CCC, o conteúdo do acórdão ora recorrido.

Por fim, acrescentamos que a haver-se inobservado o disposto no art.92.º, n.º 2, do C.P.P., o que não aconteceu, por não ter sido entregue ao extraditando o acórdão traduzido por escrito, a situação não configurava a nulidade a que alude o art. 120.º, n.º 2, alínea d) do C.P.P., mas uma simples irregularidade que não foi arguida tempestivamente.

Pelo exposto, improcede esta primeira questão objeto de recurso.

14 - Da nulidade da decisão por omissão de pronúncia

Entende o recorrente, seguidamente, no ponto 4 das conclusões da motivação do recurso, que o “despacho datado de 10/09/2021 padece de nulidade por força da omissão de pronúncia da Mma. Juíza sobre os documentos juntos com a oposição, nos termos do disposto na al.c) do n.º 1 do art.379.º do C.P.P.”.

Argumenta que, em nenhum momento, a Mma. Juiz se pronunciou sobre a admissão (nomeadamente da legalidade e/ou pertinência) dos cinco documentos juntos com a referida peça, nem no sentido de serem todos admitidos ou todos rejeitados, ou pela admissão de uns e pela rejeição de outros, só tendo conhecimento de que sobre os mesmos tinha sido feita cabal prova e que tinham sido valorados pela Mma. Juiz aquando da notificação do Acórdão, do qual resulta que serviram de fundamento aos factos provados nos pontos 2.1.12, 2.1.13, 2.1.14, 2.1.15, 2.1.16 e aos factos não provados 2.2.6., 2.2.7, 2.2.8, 2.2.9, 2.2.10.

Apreciando.

O art. 97.º, n.º 1, do Código de Processo Penal distingue, entre os atos decisórios dos juízes, as sentenças e os despachos. Os atos decisórios tomam a forma de «sentenças» quando conhecerem a final do objeto do processo (alínea a); tomam a forma de «despachos» quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior (alínea b).[4]

Enquanto as nulidades dos despachos estão sujeitas ao regime geral de invalidades, as nulidades de sentença têm um tratamento específico no art. 379.º do Código de Processo Penal.

Os casos que geram nulidade de sentença, encontram-se taxativamente enunciados art. 379.º, do Código de Processo Penal, estabelecendo o seu n.º 1 , alínea c), que é nula a sentença «Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.».

A respeito desta alínea c), vem-se entendendo, na doutrina e na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que a nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista.

Já o Prof. Alberto dos Reis ensinava, a este propósito, que “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”.[5]

É pacífico, também na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que esta nulidade não resulta da omissão de conhecimento de razões, mas sim de questões, como resulta entre outros, dos acórdãos de 9-3-2006, proc. n.º 06P461, (in www.stj.pt ) e de 11-1-2000 (BMJ n.º 493, pág. 385).

Sendo o regime das invalidades construído com base no princípio da tipicidade das nulidades, o art.379.º, deste diploma, aplica-se apenas às sentenças, e não aos meros despachos.

Compulsando os presentes autos, deles resulta que o extraditando, ao abrigo do art. 55.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, deduziu por escrito oposição ao pedido de extradição e, para prova de alguns factos que alega, juntou cinco documentos e requereu a inquirição de uma testemunha e o envio pelas autoridades russas da segunda via do seu passaporte com indicação expressa das deslocações efetuadas.          

A Ex.ma Juíza Desembargadora, em despacho datado de 10/09/2021, depois de mencionar, designadamente, o que o extraditando AA pretende com cada um dos documentos que junta – “…no mês de Maio de 2019, esteve a maior parte do tempo em Portugal, o que, segundo alega, pode ser comprovado pelos documentos n.ºs 1 e 2 que junta e pela prova testemunhal que indica. Em Junho de 2019, esteve internado para a realização de tratamentos médicos na Alemanha, motivados pelos seus graves problemas hepáticos, juntando o documento n.º 3 para a respectiva prova. Em Julho de 2019, esteve com a companheira a gozar o seu período de férias em França, onde apenas foi possível obter o comprovativo relativo à estadia em hotel, entre 19 e 24 desse mês, conforme documento n.º 4 que junta. E, entre Julho e Agosto de 2019, regressou a Portugal, onde com a sua companheira se instalou definitivamente, de forma pacífica, pública e nunca ocultando a sua identidade, conforme documento n.º 5 que junta …” -, que na resposta à oposição “…o Ministério Público não veio pôr em causa o teor dos documentos juntos pelo requerido e os correspondentes factos relativos às suas deslocações.”, passou a apreciar da necessidade de inquirição da testemunha arrolada e do pretendido envio pelas autoridades russas da segunda via do passaporte com indicação expressa das deslocações efetuadas, para terminar consignando “…que se impõe concluir que tais diligências devem ser indeferidas, o que se decide”.

Um destinatário normal, colocado na situação concreta, percebe, sem esforço, que da prova indicada pelo extraditando, na oposição ao pedido de extradição, foi indeferida a inquirição da testemunha arrolada e a solicitação de envio às autoridades russas da segunda via do passaporte com indicação expressa das deslocações efetuadas.

Não tendo sido ordenado o desentranhamento dos cinco documentos juntos pelo extraditando, um destinatário normal está em condições de perceber que a junção dos mesmos foi admitida implicitamente e, consequentemente, que podem vir a ser valorados na Conferência na decisão final.

Se esse destinatário normal é o próprio requerente da junção dos documentos, que sabe que os mesmos permanecem nos autos para prova dos factos a que os ofereceu, não é racional referir desconhecer que a junção dos documentos foi admitida e invocar surpresa na decisão do Tribunal da Relação os ter tomado em consideração no acórdão recorrido quando apreciou a matéria de oposição a que o extraditando os indicou para prova dela.

De todo o modo, a nulidade arguida sempre improcederia, por duas outras ordens de razões.

A primeira, é que, como já vimos, a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P., comina apenas as omissões de pronúncia sobre questões que o tribunal devesse apreciar na sentença. Ora, a invocada omissão de pronúncia teria sido em despacho prévio à prolação do acórdão ora recorrido, mais concretamente no despacho datado de 10/09/202 sobre a admissibilidade da prova documental junta com articulado por si apresentado.

A segunda razão, é porque a haver qualquer omissão de pronúncia no mesmo despacho, sobre a admissibilidade da junção dos cinco documentos – o que não se reconhece –, sempre a mesma estaria sujeita ao regime geral de invalidades. Não havendo qualquer norma que comine essa omissão como nulidade, absoluta ou relativa, sempre consubstancia uma mera irregularidade que deveria ter sido arguida no prazo e nos termos estabelecidos no artigo 123º do Código de Processo Penal, o que não aconteceu.

Improcede, assim, também esta questão.

15 - Da nulidade da decisão por falta de diligências obrigatórias.

A terceira questão, objeto de recurso, respeita á não notificação do ora recorrente para apresentar alegações (conclusões 5, 6 e 7 da motivação do recurso).

Alega, em síntese, que do n.º 2 do art. 56.º da Lei de Cooperação Judiciária resulta a obrigatoriedade de que terminada a produção de prova o defensor do extraditando seja notificado para em cinco dias juntar aos autos alegações finais, sob pena de violação do princípio do contraditório. E tal formalidade foi completamente omitida, consubstanciando assim uma nulidade, nos termos da al. d) do n.º 2 do art. 120.º do CPP e do art. 56.º da Lei de Cooperação Judiciária.

A interpretação no sentido de o n.º 2 do art. 56.º da Lei de Cooperação Judiciária não obriga a que seja o defensor do extraditando notificado para apresentar alegações escritas é inconstitucional por violação das garantias de defesa, máxime do contraditório consagrado n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Apreciemos.

O art. 56.º da Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal dispõe, sob a epígrafe «Produção da prova», o seguinte:

«1- As diligências que tiverem sido requeridas e as que o juiz relator entender necessárias, designadamente para decidir sobre o destino de coisas apreendidas, devem ser efectivadas no prazo máximo de 15 dias, com a presença do extraditando, do defensor ou advogado constituído e do intérprete, se necessário, bem como do Ministério Público.

2- Terminada a produção da prova, o Ministério Público, o defensor ou o advogado do extraditando têm, sucessivamente, vista do processo por cinco dias, para alegações.».

Pressuposto da vista do processo para cinco dias, para alegações, enunciado nesta norma, é a produção de prova, obrigatoriamente com a presença do extraditando, do defensor ou advogado constituído e do intérprete, se necessário, bem como do Ministério Público.

No caso concreto, a Ex.ma relatora no Tribunal da Relação de ..., por despacho proferido a 10 de setembro de 2021, indeferiu a inquirição da testemunha arrolada pelo extraditando por considerar que ela se revelava desnecessária e um ato inútil, e o mesmo decidiu relativamente ao pretendido envio pelas autoridades russas de segunda via do passaporte do extraditando.

Foi nestas circunstâncias que decidiu, no mesmo despacho, que não havendo necessidade de ordenar outras diligências, nos termos do art. 56.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, determinou que os autos seguiriam para os vistos e à Conferência, nos termos do art. 57.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma.

Não vemos razões para censurar esta decisão.

Efetivamente, só há lugar a vista do processo, por cinco dias, para alegações, quando haja produção de prova, obrigatoriamente com a presença do extraditando, do defensor ou advogado constituído e do intérprete, se necessário, bem como do Ministério Público.

Tendo o extraditando tido possibilidade de apresentar os seus argumentos, primeiro presencialmente, na audição a que alude o art. 54.º da Lei n.º 144/99 e posteriormente com a junção aos autos da sua oposição, ao abrigo do art. 55.º, não viola as garantias de defesa do extraditando, não lhe ser dada vista para apresentar alegações quando não houve lugar à produção de prova, nos termos estabelecidos do art. 56.º do Lei n.º 144/99.

Neste mesmo sentido se pronunciou já o Supremo Tribunal de Justiça, como se retira do citado acórdão de 09-07-2015, onde se escreve:

“Sobre a específica questão da produção ou não de alegações, uma vez indeferidas as diligências de prova, o Supremo Tribunal Acórdão de 3 de maio de 2012, processo n.º 205/11.9YRCBR. já tomou posição sobre ela, tendo concluído que, «indeferidas as diligências de prova, requeridas pelo extraditando, não há lugar à produção de alegações, por estas terem como pressuposto prévio necessário a existência de produção de prova. Contudo, com a audição do recorrente, nos termos do art. 54.º da Lei 144/99, de 31-08, e com a oposição deduzida, nos termos do art. 55.º do mesmo diploma, foi adequadamente assegurado o exercício do contraditório».

De facto, havendo produção de prova compreende-se que o extraditando e o Ministério possam exprimir as suas posições sobre o resultado da diligência, habilitando o tribunal com os seus pontos de vista sobre a questão; não havendo produção de prova, as respetivas posições decorrem já do pedido formulado pelo Ministério Público e pela resposta providenciada pelo extraditando.

Não há pois razão para, nestas situações, haver lugar a alegações, cuja omissão não ofende o disposto no artigo 56.º da Lei n.º 144/99. Aliás, nos termos do artigo 57.º. n.º 1, a não produção de alegações verifica-se, também, nos casos em que não há oposição à extradição, por se reputar formalidade desnecessária.”.[6]

Nestas concretas circunstâncias, de ausência de «produção de prova», o sentido do n.º 2 do art. 56.º da Lei n.º 144/99, interpretado nos termos que deixámos exposto, não é incompatível com a lei fundamental.

Consequentemente, entendemos que na ausência de produção de prova, nos termos do art.56.º da Lei n.º 144/99, a não notificação do defensor do extraditando para apresentar alegações escritas é inconstitucional, nos termos do n.º 2 deste preceito, não é inconstitucional por violação das garantias de defesa, máxime do contraditório consagrado n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Não constituindo as alegações escritas, no presente caso, uma diligência essencial à decisão, é evidente que nunca poderiam integrar a nulidade da decisão, por falta de diligências obrigatórias, arguida pelo recorrente.

16 - Do erro de julgamento na aplicação do direito aos factos

No âmbito desta questão são imputados, pelo recorrente, ao acórdão recorrido, vários erros de julgamento em matéria de direito.

16.1. Em primeiro lugar, defende o recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 23 e na alínea b) do n.º 2 do art. 12 da Convenção Europeia de Extradição, na medida em que o acórdão recorrido fundamentou a sua decisão nos elementos documentais que acompanham o processo de extradição, referentes à aplicação de medidas coativas pelas Autoridades Russas, e não no teor do pedido nos termos que constam aquelas normas.

Vejamos.
Como bem se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 13 de abril de 2005 (proc. n.º 05P745) “o pedido de extradição é a instância formal formulada pela Parte requerente, e não o requerimento, ou “pedido” em sentido impróprio, do Ministério Público formulado nos termos do artigo 50°, nºs l e 2, da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto”.

É ele que deve conter “…precisa e completamente, a descrição dos factos imputados, com data, local e circunstâncias da infração”, para desta forma “permitir ao Estado requerido a decisão sobre a verificação dos pressupostos materiais da extradição, tanto na perspetiva da dupla incriminação, como princípio-regra determinante das formas mais intensas de cooperação internacional em matéria penal, como das demais exigências e pressupostos materiais. O pedido constitui, também, a base para definir os termos e os limites em que a extradição é concedida, para efeitos de estabelecimento do círculo dominado pelo princípio da especialidade.”.[7]

O art. 12.º, n.º 2 da Convenção Europeia de Extradição[8], invocado pelo recorrente, estabelece que o pedido de extradição, deverá ser acompanhado, designadamente, dos seguintes elementos:

«b) Descrição dos factos pelos quais é pedida a extradição. O momento e lugar da sua prática, a sua qualificação jurídica e as referências às disposições legais aplicáveis serão indicados o mais rigorosamente possível;».

O art. 23.º, n.º 1 , alínea e), da Convenção Europeia de Extradição, invocado pelo recorrente, como violado no acórdão recorrido, não tem números nem alíneas. Eventualmente, quererá referir-se o recorrente à alínea e) do n.º 1 do art.23.º da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto, que estabelece, como requisito do pedido de cooperação: «A narração dos factos, incluindo o lugar e o tempo da sua prática, proporcional à importância do ato de cooperação que se pretende».       

Do ponto n.º 2.1.3 da factualidade dada como provada no acórdão recorrido, resulta bem evidenciado que a Procuradoria-Geral da Federação da Rússia apresentou por via diplomática, à Procuradoria-Geral da República Portuguesa, um pedido de extradição do ora recorrido, para efeitos de procedimento criminal, acusado de cometer um crime de ocupação da posição mais alta na hierarquia criminal, p. e p. nos termos do artigo n.º 210.1 do Código Penal da Federação da Rússia, acrescentando que “Uma descrição detalhada dos atos incriminados para II está descrita nos documentos anexados”.

Os documentos juntos com o pedido formal de extradição fazem, pois, parte do mesmo pedido, integrando-o, como qualquer declaratário normal perceberá.

O extraditando ao considerar que o “Pedido” de extradição se resume «…a contar uma “história” sobre um alegado malfeitor, que seduz terceiros para o mundo do crime.», aceita implicitamente que os documentos juntos com o pedido de extradição fazem parte integrante deste, pois o pedido de extradição, nos termos que ora refere, não narra qualquer “história”. O pedido de extradição identifica, essencialmente, o crime imputado ao extraditando e invoca o preenchimento dos requisitos positivos e negativos da Convenção Europeia de Extradição, remetendo, expressamente, a “história” dos factos imputados ao extraditando para os documentos anexados, como resulta bem evidenciado da leitura do ponto n.º 2.1.3 da factualidade dada como provada no acórdão recorrido.

O Tribunal a quo, em face do pedido de extradição e respetivos documentos que o acompanham e deles fazem parte, recebidos da Procuradoria-Geral da Federação da Rússia, deu como provado, nos pontos n.ºs 2.1.2 e 2.1.5 do acórdão recorrido, um conjunto de factos que são imputados ao extraditando pelas autoridades russas, designadamente, pelo Tribunal de ..., que mais não são que a narração da conduta do extraditando localizada no tempo e no espaço.

Assim, entende o Supremo Tribunal de Justiça que o Tribunal da Relação de ... não violou o disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 23 da Lei n.º 144/99 e na alínea b) do n.º 2 do art. 12 da Convenção Europeia de Extradição, ao considerar que se mostram verificados os requisitos estabelecidos nestas normas.  

16.2. Passemos, seguidamente, a conhecer da alegada insuficiente fundamentação quanto à existência de lei penal à data dos factos, e consequente violação do princípio da legalidade (nullum crimen, nulla poena sine lege), uma vez que, no entender do recorrente, a dupla negativa utilizada («não se retira que não existia lei penal anterior») aparenta revelar um desconhecimento sobre o Código Penal Russo, que é incompatível com as garantias que o princípio da legalidade – como princípio estruturante de um processo penal de um Estado de Direito – deve assegurar.

Vejamos.

O princípio da legalidade é um princípio incontestável de relevo politico-criminal acolhido no art. 29.º da Constituição da República Portuguesa.

Como também é acolhido em diplomas de cariz internacional, nomeadamente, na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 7.º, n.º 1) e na da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (art. 11.º, n.º 2).

Explica-se, essencialmente, pelo objetivo de assegurar a liberdade do indivíduo, particularmente frente ao Estado, evitando a possibilidade de num Estado de Direito Democrático ela ser arbitrariamente restringida, afetando bens essenciais da sua vida, só admitindo restrições na medida exigida por lei à realização dos fins do Estado. Mas fundamenta-se, ainda, em razões de prevenção e de culpa, pois só sabendo que existe uma lei criminal anterior ao facto é que o individuo tem o dever de não praticar o crime e de ser sujeito a punição pela sua prática.  

O princípio da legalidade propriamente dito, reconduz-se à reserva de lei.

Segundo o princípio da legalidade, os tribunais estão vinculados a não aplicar sanções sem lei anterior que as preveja (nulla poena sine lege) e a não aplicar as sanções penais previstas sem que se realizem determinados pressupostos, igualmente descritos na lei (nullum crimen sine lege).

Corolário lógico do princípio da legalidade, no sentido restrito de “nullum crimen, nulla poena sine lege”, são ainda a proibição de analogia na definição de crimes e de pressupostos de medidas de segurança e a proibição de retroatividade, salvo se a lei for mais favorável ao arguido. [9]

Na lição de Figueiredo Dias, num “Estado de Direito, o princípio da legalidade (o princípio  nullum crimen, nulla poena sine lege) constitui a fronteira inultrapassável da punibilidade – e com isso também a fronteira de todo o fenómeno criminal”.[10]

Para determinarmos se no caso concreto foi violado o princípio da legalidade, por insuficiente fundamentação do acórdão recorrido quanto à existência de lei penal à data dos factos, importa analisar o essencial do que nele foi consignado a este propósito.

No acórdão recorrido foi referido, designadamente, com interesse para a decisão (transcrição):

No caso dos autos, como resulta dos pontos 2.1.1. e 2.1.2., a factualidade incriminatória que é imputada ao requerido, pelo Estado que formulou o pedido de extradição aqui em análise, reporta-se ao período de tempo compreendido entre 1994 e 27-08-2019.

Por outro lado, como se alcança do ponto 2.1.1. g), a emenda introduzida pela Lei Federal n.º 46-FZ, de 1 de Abril de 2019, ao Código Penal da Federação Russa, levou à tipificação, no artigo 210.1 do crime de “Ocupação de uma posição superior na hierarquia criminal”, ou seja, a criminalização do próprio facto de o agente ocupar uma posição superior na hierarquia criminal, que entrou em vigor no dia 14 de Abril de 2019.

Ora, se é certo que, como assinalou o Ministério Público, na resposta à oposição do requerido, da documentação junta não se retira que não existia lei penal anterior a 14-04-2019 (recorde-se que a referida Lei Federal n.º 46-FZ introduziu emendas ao Código Penal, resultando numa norma que, pela numeração que assumiu – 210.1 –, se afigura ser um aditamento, a acrescer, pois, ao artigo 210 do referido Código), não é menos verdade que, independentemente de, antes de 14-04-2019, haver ou não, no ordenamento jurídico da Federação Russa, norma que incriminasse o acto de chefiar uma organização criminosa, ou mesmo o próprio facto de o agente ocupar uma posição superior na respectiva hierarquia criminal, foi imputada factualidade ao requerido que abrange um período de tempo em que o tipo incriminador do artigo 210.1 se encontrava já em vigência (entre 12-04-2019 e 27-08-2019).

A circunstância de se tratar de quatro meses de vigência da lei incriminatória, num elenco factual que a autoridade requerente descreve como tendo ocorrido ao longo de várias décadas (desde 1994 até 27-08-2019), em nada altera a conclusão a que se chega no presente caso, de que o princípio da legalidade, na acepção acima descrita, se mostra respeitado, em termos de se dever considerar que o processo satisfaz as exigências ditadas pelo artigo 7.º, n.º 1 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, tal como impõe o artigo 6.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 144/99.

Diga-se, ainda, que, conforme resulta do ponto assente 2.1.2., a matéria imputada no processo criminal a que respeita o pedido de extradição, abrange o período compreendido entre 12-04-2019 e 27-08-2019 e pela autoridade requerente foram descritos factos ocorridos durante tal período.”

Salvo o devido respeito, desta transcrição resulta medianamente claro que, para o Tribunal a quo, existe lei penal russa, à data dos factos, que incrimina o ora extraditando pela prática do crime de “ocupação de uma posição superior na hierarquia criminal”.

Por um lado, refere que se alcança do ponto 2.1.1. g), que a emenda introduzida pela Lei Federal n.º 46-FZ, de 1 de Abril de 2019, ao Código Penal da Federação Russa, levou à tipificação, no artigo 210.1 do crime de “Ocupação de uma posição superior na hierarquia criminal”, ou seja, a criminalização do próprio facto de o agente ocupar uma posição superior na hierarquia criminal, entrou em vigor no dia 14 de Abril de 2019 e, por outro, que “…independentemente de, antes de 14-04-2019, haver ou não, no ordenamento jurídico da Federação Russa, norma que incriminasse o acto de chefiar uma organização criminosa, ou mesmo o próprio facto de o agente ocupar uma posição superior na respectiva hierarquia criminal, foi imputada factualidade ao requerido que abrange um período de tempo em que o tipo incriminador do artigo 210.1 se encontrava já em vigência (entre 12-04-2019 e 27-08-2019).

A menção, no segmento do acórdão, a “haver ou não no ordenamento jurídico da Federação Russa, norma que incriminasse o acto” anteriormente ao dia 14 de abril de 2019, surge na sequência do Ministério Público ter assinalado, na resposta à oposição do requerido, que da documentação junta não se retira que não existia lei penal anterior a 14-04-209, mas essa menção é ultrapassada, no acórdão recorrido, ao concluir , de forma perentória, que “ não é menos verdade” que sempre os factos em causa integram o tipo incriminador do art.210.1 do Código Penal da Federação Russa, que se encontrava  já em vigência entre 12-04-2019 e 27-08-2019.

Deste modo, não sufragamos o entendimento do recorrente de que existe insuficiente fundamentação quanto à existência de lei penal à data dos factos, nem consequentemente se reconhece a violação no acórdão recorrido do princípio da legalidade (nullum crimen, nulla poena sine lege),

16.3.  Refere seguidamente o recorrente AA, como erro na aplicação do direito aos factos, uma incompatibilidade entre a generalidade da prática dos factos e a natureza e relevância que o processo de extradição assume na cooperação judicial entre os Estados.

Alega, neste sentido, que da factualidade constante do ponto n.º 2.1.2 resulta ser-lhe imputada a prática do crime no período entre 1980 e agosto de 2019, e em momento algum é referida uma outra qualquer data que permite balizar quando os alegados crimes foram praticados.

Vejamos.

Como bem se menciona no acórdão recorrido, a norma incriminadora do art. 210.1 do Código Penal da Federação Russa, encontra tipificação na lei portuguesa no art. 299.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal [quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de um ou mais crimes, considerando-se que existe grupo, organização ou associação quando esteja em causa um conjunto de, pelo menos, três pessoas, actuando concertadamente durante um certo período de tempo, será punido com pena de prisão de dois a oito anos]

A factualidade constante do ponto n.º 2.1.2 do acórdão recorrido, referida pelo recorrente – que é apenas alguma da imputada ao extraditando -, narra a existência de um grupo organizado, com identificação de vários dos seus membros, chefiado pelo extraditando AA, dedicado à prática de crimes, na Região de ..., na Rússia, num certo período de tempo, que é fixado entre o ano de 1994 e 27 de agosto de 2019, descrevendo-se , ali além do mais, diversos atos praticados pelo arguido e respetiva organização no período entre 1 de janeiro de 2017 e 27 de agosto de 2019.

Considerando o exposto, entendemos que a descrição da factualidade constante do ponto n.º 2.1.2, designadamente, a imputação do período certo em que o extraditando chefiou como “ladrão na lei” um grupo dedicado ao crime, é compatível com a natureza e relevância que o processo de extradição assume na cooperação judicial entre os Estados.

16.4. Alega seguidamente o recorrente que, no seu pedido de extradição, a Federação Russa não faz qualquer referência à possibilidade de os alegados crimes estarem a ser praticados fora do território como faz expressamente referência ao facto de os mesmos estarem a ser praticados dentro das suas fronteiras, pelo que o Venerando Tribunal não poderia concluir em sede de apreciação judicial que os mesmos poderiam ser praticados noutro país.

Vejamos.

Na oposição ao pedido de extradição, o ora recorrente AA refere que na data entre 12/4/2019 e 27/8/2019, em que a norma invocada pelas autoridades russas se encontrava vigente, não se encontrava em território russo, mais concretamente, no mês de maio de 2019 esteve a maior parte do tempo em Portugal, em julho de 2019 esteve na Alemanha, na França e em Portugal e em agosto de 2019 esteve em Portugal. 

A esta afirmação respondeu o Tribunal a quo no acórdão recorrido, referindo que os factos provados, nomeadamente os dados como assentes no ponto n.º 2.1.2 (transcrição): “… são compatíveis com as várias deslocações para fora do território da Federação Russa que se apuraram nos pontos 2.1.12 a 2.1.15., pois, como assinalou também o Ministério Público, a descrição da actividade criminosa imputada ao requerido, tal como consta do pedido de extradição, a natureza específica do crime em causa, a sua posição sobre os demais elementos da organização criminosa que [alegadamente] fundou, bem como os resultados que provinham da mesma actividade, não eram impeditivos de serem por si exercidos fora do território da Rússia, sendo que, tal como resulta das regras da experiência comum e até do conhecimento e domínio público, o tipo de actividades criminosas em causa pode ser exercido e mantido fora dos locais onde os autores materiais dos factos actuam.”.

Este segmento é uma resposta do Tribunal a quo a um argumento apresentado pelo recorrente, em face da alegação feita pelo ora recorrente de que não poderia ter praticado o imputado crime por estar fora do território russo.

Ainda assim, não deixou o acórdão recorrido de realçar que “não cabe aqui discutir a demonstração ou não dos factos imputados ao extraditando”, o que se mostra de acordo com o estabelecido no art. 46.º, n.º 3 da Lei n.º 144/99.

Não vislumbrando nesta parte um qualquer excesso de pronúncia, improcede este argumento relativo a mais um alegado erro de aplicação do direito aos factos.

16.5.  A terminar, defende o recorrente que verificando-se que o assacado crime cuja prática lhe foi imputado, e a pena – em abstrato – legalmente cominada para o mesmo, não se encontravam consagrados no Código Penal Russo aquando da alegada prática dos factos e estando vedada a apreciação sobre a forma em que poderia ser praticado o crime, o Venerando Tribunal, ao decidir pela extradição violou o disposto no n.º 1 do art.7.º da Convenção Europeia de Extradição e na alínea a) do n.º 1 do art. 6.º do Lei de Cooperação Judiciária.

Uma interpretação da al. a) do n.º 1 do art.6.º da Lei de Cooperação Judiciária no sentido de que os factos descritos no pedido não têm de estar devidamente enquadrados no tempo e lugar e que essa informação pode resultar de outros elementos do processo é inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica e da legalidade criminal, consagrados, respetivamente, nos arts. 2.º e n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

O art. 7.º, n.º 1 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, a que já fizemos referência aquando da definição do princípio da legalidade, estabelece que «Ninguém pode ser condenado por uma ação ou uma omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía infração, segundo o direito nacional ou internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida.».

O art. 6.º do Lei n.º 144/99, que dispõe sobre os requisitos gerais negativos da cooperação internacional, estabelece no seu n.º 1, que o pedido de cooperação é recusado quando:

«a) O processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal».

O erro de aplicação do direito aos factos, aludido nos artigos 12 e 13 das conclusões da motivação do recurso, ora em apreciação, são uma repetição de argumentos objeto de conhecimento nos pontos anteriores, designadamente no ponto 12.4.2.

Remetendo para o já decidido, reafirmamos que o crime p. e p. pelo art. 210.1 do Código Penal da Federação Russa, imputado pelas autoridades russas ao extraditando, abrange um período de tempo da alegada prática de factos imputados a este, pelo que o deferimento do pedido de extradição pelo Tribunal da Relação não violou o disposto no n.º 1 do art.7.º da Convenção Europeia de Extradição e na alínea a) do n.º 1 do art. 6.º do Lei de Cooperação Judiciária.

Os factos descritos no pedido de extradição têm de estar devidamente enquadrados no tempo e no espaço, como estão, e tal informação pode resultar de outros elementos do processo para que se remete, desde que os mesmos sejam dados a conhecer ao extraditando, em termos de lhe ser concedida uma ampla e efetiva possibilidade de os discutir e de os contestar, como aqui manifestamente aconteceu.

Deste modo, não vemos qualquer incompatibilidade entre, por um lado, o sentido adotado na decisão recorrida e, por outro, a al. a) do n.º 1 do art.6.º da Lei de Cooperação Judiciária e os princípios da segurança jurídica e da legalidade criminal, consagrados, respetivamente, nos arts. 2.º e n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa.

Consequentemente, não se reconhece a inconstitucionalidade invocada a este respeito pelo extraditando.

17- Da ausência de garantias jurídicas de um procedimento criminal, das condições de cumprimento da pena e do grave prejuízo para o extraditando.   

Por fim, defende o recorrente AA (artigos 14, 15 e 16 das conclusões da motivação) que não obstante terem sido dados como não provados os factos alegados nos artigos 62.º a 74.º da oposição, a apreciação das garantias jurídicas na fundamentação da decisão ora recorrida foi meramente formal. Para que seja aferido que o Estado Requerente cumpre as exigências indispensáveis de um procedimento penal internacionalmente reconhecido não basta uma qualquer suficiência formal. Ao decidir que basta existir uma garantia formal – leia-se, um documento assinado por autoridade cuja competência inclusivamente se desconhece – para considerar que não se verifica a condição negativa de cooperação da extradição do art. 6.º, al. a), da Lei 144/99, de 31.08, e da reserva formulada por Portugal à Convenção Europeia de extradição com referência aos arts. 3.º e 6.º da CEDH, violou o Tribunal a quo manifestamente estas normas, bem como o art. 13.º da CEDH, colocando o extraditando em risco sério e iminente de violação daqueles seus direitos consagrados na CEDH e na nossa Lei Fundamental.

Vejamos se assim é.

Remetendo o art.6.º, n.º 1, al. a) da Lei 144/99, de 31.08 - a que já nos referimos - para a necessidade do pedido de cooperação satisfizer e respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), sob pena de ser recusado, importa aqui atender aos artigos 3.º, 6.º e 13 desta Convenção, que o ora recorrente invoca e às reservas que o Estado Português apresentou aos artigos 3.º e 6.º.

O art. 3.º da CEDH, estabelece que «Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.».

O art. 6.º, desta mesma Convenção, estabelece que qualquer pessoa tem direito a um processo equitativo.

Seguindo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), DDD, esclarece que “um processo equitativo exige, como elemento conatural, que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses numa posição não inferior à da parte contrária, ou, de outro modo, a parte deve deter a garantia de apresentar o caso perante o tribunal em condições que a não coloquem em substancial desvantagem face ao seu oponente.”.[11]

O art. 13° da CEDH, sob a epígrafe «Direito a um recurso efetivo», dispõe que «Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que atuem no exercício das suas funções oficiais.».
As reservas que Portugal formulou à Convenção Europeia de Extradição, foram as seguintes:
«Artigo 1.º: Portugal não concederá a extradição de pessoas:
a) Que devam ser julgadas por um tribunal de exceção ou cumprir uma pena decretada por um tribunal dessa natureza; b) Quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão a pena em condições desumanas; c) Quando reclamadas por infração a que corresponda pena ou medida de segurança com carácter perpétuo.
Artigo 2.º: Portugal só admitirá a extradição por crime punível com pena privativa da liberdade superior a um ano.
Artigo 6.º, n.º 1: Portugal não concederá a extradição de cidadãos portugueses.
Artigo 11.º: Não há extradição em Portugal por crimes a que corresponda pena de morte segundo a lei do Estado requerente.
Artigo 21.º: Portugal só autoriza o trânsito em território nacional de pessoa que se encontre nas condições em que a sua extradição possa ser concedida.».

Exposto o enquadramento legal invocado pelo recorrente nas conclusões da motivação do recurso, impõe-se recordar a parte da fundamentação do acórdão recorrido que conheceu das garantias jurídicas do procedimento criminal, das condições de cumprimento da pena e do grave prejuízo para o extraditando, para de seguida decidirmos se tal apreciação foi meramente formal.

Da fundamentação da decisão recorrida, ora em causa, consta o seguinte (transcrição):

3.2.3. Em terceiro lugar, sustenta o requerido que a ausência de garantias jurídicas de um procedimento criminal e de cumprimento da pena de prisão em condições que respeitem os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, que diz verificar-se, no caso, constitui fundamento da recusa da extradição, por força da ressalva consagrada no artigo 1.º da Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, de 21 de Agosto, que aprovou a Convenção Europeia de Extradição, e do disposto no artigo 2.º da Lei de Cooperação Judiciária.

Pois bem.

Na reserva que a Assembleia da República formulou ao texto da Convenção Europeia de Extradição, constante do artigo 1.º, alínea b), da Resolução n.º 23/89, de 21 de Agosto, que aprovou a referida Convenção (Diário da República, I Série, n.º 191, de 21-08-1989), estabelece-se que Portugal não concederá a extradição de pessoas quando se prove que serão sujeitas a processo que não oferece garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem, ou que cumprirão a pena em condições desumanas.

Ora, em relação à alegada violação do princípio da legalidade, de que o requerido se serve para corroborar a ausência das referidas garantias jurídicas, já vimos em 3.2.2. que aquele princípio não se mostra infringido, pelo que o motivo assim invocado não logra obter qualquer acolhimento.

Por outro lado, no que concerne aos restantes aspectos alegados na oposição para corroborar a apontada ausência de garantias jurídicas, verifica-se que tais alegações não resultaram provadas (cf. pontos 2.2.1., 2.2.2., 2.2.3. e 2.2.4.).

Acresce, como consta no ponto assente 2.1.3., no pedido de extradição que dirigiu às autoridades nacionais, a Procuradoria-Geral da Federação Russa apresentou garantia formal nos seguintes termos:

“(…)

A Procuradoria-Geral da Federação da Rússia garante que o pedido atual de extradição não tem objetivos de perseguição por motivos políticos ou intenções discriminativas em relação a uma raça, seguimento de uma religião, nacionalidade ou opiniões políticas.

II será concedido todas as oportunidades de defesa, incluindo uma assistência dos advogados. Ele não será submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes (os artigos 3º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, bem como as convenções pertinentes das Nações Unidas, do Conselho da Europa e os seus protocolos).

(…)

A Procuradoria-geral garanta que, segundo os termos do artigo 14º da Convenção Europeia de Extradição de 13 de dezembro de 1957, o cidadão II será perseguida, julgada e detida com vista à execução de uma pena ou medida de segurança submetida a qualquer outra restrição à sua liberdade individual só pelos factos que motivaram a extradição dele e que após o fim do processo criminal, ou do julgamento, e no caso de uma condenação, depois de cumprir a pena ou ser libertado dela, ele poderá deixar o território da Rússia.

Em caso de extradição, II será mantido numa instituição que tenha em consideração as normas especificadas na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 11.04.1950 e nas Regras Penitenciárias Europeias de 11.06.2006, e os funcionários da Embaixada de Portugal na Federação da Rússia poderão visitá-lo para verificarem o cumprimento das garantias apresentadas neste pedido de extradição.

Sendo o cidadão da Federação da Rússia, II, segundo os termos da Parte I do Artigo 61º da Constituição da Federação da Rússia, não pode ser extraditado para qualquer outro país.

(…)”.

O que acima ficou transcrito deixa claro que as Autoridades Judiciárias da Federação Russa prestam, expressa e formalmente, a garantia de que, nos termos das normas legais internacionais, AA beneficiará de todos os instrumentos de defesa, incluindo advogados, e não será submetido a torturas nem a penas e tratamentos desumanos ou degradantes (artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, bem como às correspondentes convenções da organização das Nações Unidas, do Conselho da Europa e respectivos protocolos), sendo, ainda, evidente que garantem que o pedido de extradição não visa a acusação desta pessoa por motivos políticos, étnicos, de confissão religiosa, nacionalidade ou opiniões políticas.

E certamente que se razões houvessem para colocar em causa as garantias prestadas, o Exmo. Secretário de Estado Adjunto da Justiça, por delegação da Exma. Senhora Ministra da Justiça, não teria proferido, em 6 de Agosto de 2021, despacho a declarar admissível o pedido de extradição apresentado pela Federação Russa.

Assim sendo, não existe motivo para descrer da veracidade do compromisso assumido mediante a prestação das referidas garantias, tanto mais que a Federação Russa ratificou a Convenção Europeia de Extradição e é, pois, esperado que a Justiça daquele país e o seu sistema penitenciário se conformem aos princípios estruturantes ali consagrados, como exigências a observar no âmbito e por força dos mecanismos de cooperação internacional acordados.

A alegação de que não existe qualquer garantia de que, no processo que se encontra a decorrer contra o requerido na Federação Russa, uma vez concedida a extradição, não se verificará o desrespeito pelas referidas exigências, é uma mera afirmação especulativa que não pode servir, sem mais, para abalar o que as Autoridades Judiciárias Russas trazem aos autos, a título de garantia formalmente assumida.

Improcedendo, pois, também, este fundamento da oposição.

3.2.4. Por último, afirma o requerido que a sua extradição o colocará numa situação de grave prejuízo, verificando-se existir o fundamento da recusa da extradição, sob pena de violar a ressalva à Convenção prevista artigo 1.º da Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, de 21 de Agosto, e sob pena de violação da cláusula humanitária consagrada no artigo 18.º, n.º 2 da Lei de Cooperação Judiciária (violação de direitos humanos nas prisões).

Vejamos, então.

Segundo dispõe o artigo 18.º, n.º 2 da Lei de Cooperação Judiciária (Lei n.º 144/99), a extradição pode ser negada quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o seu deferimento pode implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal.

Nos autos resultou provado que, em 5 de Junho de 2019, o requerido AA esteve na instituição clínica “...” (“...”), sita em ..., Alemanha, onde fez consulta, exames (ecografia, medição da elasticidade do fígado) e análises ao sangue, sendo o seu diagnóstico de “Infecção crónica pelo VHC, genótipo 3” (ponto 2.1.13.).

Neste contexto, conforme se assinala no Acórdão do STJ de 30-10-2013, proferido no processo n.º 86/13.8YREVR.S1, “a Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal ao prever no n.º 2 do artigo 18.º a possibilidade de negação do pedido de extradição quando este possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal, faz depender a denegação facultativa da extradição, não só das consequências que a mesma possa implicar para a pessoa visada (em função da idade, estado de saúde ou outros motivos de carácter pessoal), mas também de um juízo de ponderação de interesses entre o facto criminoso e aquelas consequências. É o que decorre da letra do preceito ao estatuir que: «Pode ainda ser negada a cooperação quando, tendo em conta as circunstâncias do facto, o deferimento do pedido possa implicar consequências graves…». Ponderação em que assume particular relevância o confronto entre a gravidade do facto e a gravidade das consequências da extradição para o visado” (cf. ainda o Acórdão do STJ de 11-01-2018, proferido no processo n.º 1331/17.6YRLSB.S1).

No caso vertente, se é certo que a gravidade dos factos imputados assume relevo criminal significativo, certo é também que as alegadas consequências da extradição, decorrentes do estado de saúde do requerido, não consubstanciam lesão ou prejuízo grave para o mesmo, concretamente de grau superior àquele que a medida de cooperação peticionada normalmente implica.

Não se provou que a Hepatite C crónica de que o requerido padece demande tratamentos clínicos com respostas mais exigentes, como é o caso das que envolvem internamentos hospitalares e/ou terapêuticas mais complexas (cf. pontos não provados 2.2.5. e 2.2.6.), para além de que a matéria de facto provada não permite concluir que, por efeito da extradição, tais problemas de saúde podem agravar-se, ao ponto de desencadear consequências como uma gravidade tal que ultrapassa sobremaneira o grau de gravidade dos factos imputados, fundamentando, assim, a recusa da extradição (cf. pontos não provados 2.2.5. e 2.2.6.).

De entre os eventos de 2019 que o requerido invoca (e demonstra), apenas um se refere a consulta, exames e análises em instituição clínica (cf. 2.1.13.), sendo que os restantes se reportam a alojamentos em unidades hoteleiras, no nosso país (cf. 2.1.12. e 2.1.15.) e em França, neste caso para gozo de férias (cf. 2.1.14.).

Nada mais juntou para demostrar o seu estado de saúde actual, sendo certo que, desde os acontecimentos de 5 de Junho de 2019, descritos em 2.1.13., não há registo ou notícia de qualquer vicissitude entretanto ocorrida a esse nível.

Por outro lado, quanto ao invocado circunstancialismo de que, caso o presente pedido de extradição seja deferido, tal implicará uma condenação automática, sem qualquer garantia de defesa, o que, na prática, se traduzirá numa pena de morte, pois na Rússia os reclusos não recebem a medicação necessária e são colocados em condições desumanas, sujeitos ao frio e a tortura física e psicológica, para além do que não resultou provado (cf. 2.2.6. e 2.2.7), valem aqui também as razões acima indicadas em 3.2.3., que reforçam a conclusão de que inexiste fundamento para a extradição ser negada, ao abrigo da cláusula facultativa consagrada no artigo 18.º, n.º 2 da Lei n.º 144/99.”.

Perante este segmento da fundamentação da decisão recorrida não podemos sufragar o entendimento do recorrente no sentido de que o Tribunal a quo bastou-se com a análise de um documento assinado por autoridade cuja competência inclusivamente se desconhece, para decidir da ausência de garantias jurídicas de um procedimento criminal e de cumprimento da pena de prisão, bem como do grave prejuízo para si, da questão que lhe foi colocada na oposição à extradição.

O Tribunal a quo analisou a factualidade alegada pelo extraditando na oposição ao pedido, quer a respeito das alegadas detenções arbitrárias na Rússia, do estatuto dos magistrados e sua predeterminação nos julgamentos e das condições nas prisões, quer a respeito das consequências que advêm ao extraditando a nível de saúde, e decidiu dar como não provada a generalidade desses factos nos pontos n.ºs 2.2.1. a 2.2.10 do acórdão recorrido, fundamentando essa decisão.   

Para além das garantias expressas pelas autoridades russas mencionadas no ponto n.º 2.1.3. do acórdão recorrido, o Tribunal a quo teve ainda em consideração a posição do Estado Português ao dizer que certamente se razões houvessem para colocar em causa as garantias prestadas, o Exmo. Secretário de Estado Adjunto da Justiça, por delegação da Exma. Senhora Ministra da Justiça, não teria proferido, em 6 de Agosto de 2021, despacho a declarar admissível o pedido de extradição apresentado pela Federação Russa.

O documento peticionando a extradição do ora recorrente é subscrito por Procurador-Geral Adjunto da Federação da Rússia, cuja competência para o efeito se não mostra validamente afastada por prova indicada pelo recorrente.

Assim sendo, resta dizer que nenhuma das normas que o recorrente diz terem sido violadas no âmbito desta questão, nas conclusões da motivação, o foram efetivamente.

Por todo o exposto, não se vê motivo que impeça a concessão do pedido de extradição solicitada.

III – Decisão

           

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo requerido AA e confirmar a douta decisão recorrida.

Sem custas (art.73.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99 de 31-8), sem prejuízo do disposto no art.26.º, n.ºs 2 alíneas b) a d) e 4 do mesmo diploma.

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(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos seus signatários). 

                                                                                             

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Lisboa, 24 de novembro de 2021

 

Orlando Gonçalves (Relator)

Adelaide Sequeira (Adjunta)

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[1] Cf. proc. n.º 290/11.3YRCBR1.S1, in www.dgsi.pt
[2] Processo n.º 65/14.8YREVR.S1, in www.dgsi.pt
[3] In, www.tribunalconstitucional.pt
[4] As sentenças tomam a forma de acórdãos quando são proferidos por um tribunal colegial ( n.º 2 do art. 97.º do C.P.P.).
[5]  Cf. “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 143.
[6] Em sentido idêntico, no âmbito do art.21.º, n.º5 da Lei n.º 65/2003 (Mandado de Detenção Europeu) decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 27-5-2021 ( proc. n.º 82/21.1YRPRT.S1, in www.dgsi.pt) - sumário:  
II - A realização de alegações orais em momento posterior ao da audição do requerido, deve ocorrer nos casos em que há produção de prova e a prova produzida é relevante para a decisão do MDE, nomeadamente quando estão em causa motivos de não execução do MDE, situações em que o MP e o requerido podem discretear sobre o resultado da diligência, habilitando o tribunal com os seus pontos de vista sobre a questão.
IV - Não havendo produção de prova, se as posições decorrem já do pedido formulado pelo MP e da resposta do extraditando, não se descortina motivo para haver lugar a alegações, cuja omissão neste contexto não viola o art. 21.º, n.º 5, da Lei 65/2003.”.
[7] Cf. www.dgsi.pt
[8] Aprovada pela Resolução da AR n.º 23/89, de 21 de agosto, publicada no Diário da República I, de 21/08/1989.
[9] Cf. Maria Fernanda Palma, “Direito Penal” , 4.ª edição, AAFDL, págs. 86 a 91
[10] Cf. “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I”, 2.ª edição, Coimbra Ed., pág.22.
[11] Cf. “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª ed. Da Coimbra editora, pág. 165.