Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
969/18.9T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FURTO
ANULABILIDADE
SANAÇÃO
MEDIADOR
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
RATIFICAÇÃO DO NEGÓCIO
SEGURADORA
DEVER DE INFORMAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
ATOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A remissão para o regime comum da anulabilidade não conduz ao afastamento das regras especiais estabelecidas no art. 25.º, n.os 1 e 2 , do RJCS.

II. A anulabilidade encontra-se sanada pelo decurso do tempo e também por confirmação tácita (art. 288.º do CC) – caso de dupla sanação do vício -, porquanto a Ré procedeu ao pagamento de parte da indemnização devida à Autora após o conhecimento do vício.

III. Mesmo que o mediador – agente - houvesse celebrado o contrato de seguro em nome e por conta da Ré, sem ter os correspondentes poderes de representação, o contrato sempre se consideraria ratificado, nos termos do n.º 2 do art. 30.º do RJCS.

IV. O legislador, no RJCS, estabelece o dever geral do segurador de informar o tomador do seguro sobre o âmbito do risco que se propõe cobrir e sobre as exclusões e limitações de cobertura.

V. A inobservância deste dever é suscetível de originar deveres de indemnizar do segurador no caso de se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil.

VI.  Visando o dever de informação assegurar as condições necessárias à autodeterminação do tomador do seguro, da sua violação decorre a obrigação de colocar o tomador o seguro/segurado na situação em que estaria se esse dever houvesse sido corretamente cumprido, que seria a de não celebração do contrato de seguro concretamente negociado e a conclusão de um contrato que acautelasse as suas necessidades (art. 562.º do CC).

VII. O recurso a mediador não isenta o segurador do respetivo dever geral de informação (art. 29.º do RJCS: a existência de deveres de informação análogos a cargo do mediador não implica a substituição dos deveres do segurador pelos do mediador).

VIII. O segurador pode servir-se do mediador para o cumprimento desse dever, mas não se exime à responsabilidade pela atuação dos sujeitos de que se sirva para o seu cumprimento, nos termos do art. 800.º do CC, que é também aplicável à responsabilidade pré-contratual. IX. Se houver praticado um ato ilícito, o terceiro/auxiliar (dependente ou independente) pode ser responsabilizado diretamente pelo credor, sem prejuízo de se manter a responsabilidade obrigacional do devedor à luz do art. 800.º. Nesse caso, o terceiro e o devedor poderão ser solidariamente responsáveis (art. 497.º, n.º 1, do CC).

X. A consagração dos deveres de informação a cargo do segurador implica um desvio ao ónus do sujeito de obter individualmente, por si mesmo, a informação relevante, postulando o afastamento do concurso da assunção do risco ou de culpa própria em caso de sobrevirem danos. XI. Não se verifica a existência de oposição entre as condutas da Autora: a omissão, na declaração inicial de risco, de que a quase totalidade das “mercadorias” existentes nas suas instalações pertence a terceiros e a identificação, perante a Ré, da sua atividade como “calçado e artigos em pele – fabrico couro e artigos em couro”, de um lado e, de outro, a exigência da indemnização decorrente dos danos causados pelo furto das mesmas.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I – Relatório

1. Estilo Relevante – Fabricação de Calçado, Lda.  intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 54.394,99, ao abrigo da cobertura furto/roubo do contrato de seguro celebrado através da apólice nº … Ramo 2035 Allianz PMEs ou, subsidiariamente, no pagamento do montante de € 54.394,99 pelos danos causados com o incumprimento do dever especial de informação a que estava obrigada aquando da celebração do contrato, acrescida de juros legais desde a citação até efetivo e integral pagamento.

2. Alega, em síntese, ter celebrado com a Ré um contrato de seguro mediante o qual ficaram cobertos os riscos de furto de mercadorias existentes no seu estabelecimento comercial, fixando um limite máximo de indemnização no valor de € 300.000, sendo apurados capitais de € 200.000 para mobiliário e equipamento e de € 100.000 para mercadorias, com franquia de 10%. Refere que, a 3 de abril de 2017, verificou que haviam sido furtados do interior do seu estabelecimento490 pares de botas, 250 pares de sapatos de cor cinza, 770 pares de sapatos de cor castanha, todos da marca …, assim como diversos pacotes de peles, que eram matérias-primas, e produtos acabados da sua cliente M… . Logo que dele tomou conhecimento, participou o furto à Ré, a qual avaliou as mercadorias em causa no montante de € 61.982,30. No entanto, o valor que lhe foi debitado pela cliente ascende à quantia de € 88.216,65, que corresponde ao valor de mercado das mercadorias. A Ré apenas se disponibilizou a assumir o risco até ao valor de € 25.000, alegando que as mercadorias pertencentes a terceiros estão excluídas da cobertura furto/roubo, incluindo-se antes na cobertura “danos em bens de terceiro” que têm aquele limite, com o qual não concorda.

3. Mencionou também que a Ré, aquando da celebração do contrato, não lhe prestou qualquer informação sobre tal exclusão.

4. A Ré contestou, invocando, em suma, que, aquando da celebração do contrato de seguro, a Autora/segurada não lhe deu conhecimento que desenvolvia a sua actividade quase exclusivamente com matéria-prima de terceiros. Se o houvesse feito, teriam sido outras as condições do seguro contratado. Após a respetiva averiguação, indemnizou o dano causado pelo furto dos bens até ao limite máximo do capital contratado de € 25.000. Da cobertura furto/roubo estão excluídos os bens que não sejam propriedade de segurado, exceto quando garantidos ao abrigo de cobertura própria.

5. Houve réplica e subsequente resposta.

6. Efetuou-se o julgamento e foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e absolveu a Ré/seguradora do pedido.

7. Inconformada com tal decisão, a Autora interpôs recurso de apelação.

8. A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do julgado.

9. Por acórdão de 24 de outubro de 2019, o Tribunal da Relação … decidiu o seguinte:

Em face do exposto, na procedência parcial da apelação, acordam os Juízes da ..ª secção deste Tribunal da Relação em revogar a decisão recorrida, condenando-se a recorrida a pagar à recorrente a quantia de € 42.048,77 (quarenta e dois mil e quarenta e oito euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, absolvendo-se esta do restante pedido.

Custas pela apelante e apelada na proporção do decaimento”.

10. A 6 de fevereiro de 2020, em conferência, o Tribunal da Relação …. proferiu o seguinte acórdão:

“Em face do exposto, nos termos conjugados dos artºs 613º, nº 2 e 614º, nº 2, ex vi artº 666º, nº 2, todos do Código de Processo Civil, decide-se, em conferência, rectificar o acórdão proferido, corrigindo-se o mesmo, nomeadamente na sua parte dispositiva, devendo ler-se «condenando-se a recorrida a pagar à recorrente a quantia de € 39.548,77€ (trinta e nove mil, quinhentos e quarenta e oito euros e setenta e sete cêntimos) onde se lê «condenando-se a recorrida a pagar à recorrente a quantia de € 42.048,77 (quarenta e dois mil e quarenta e oito euros e setenta e sete cêntimos).

O ora decidido é complemento e parte integrante da referida decisão.”

11. A Ré, inconformada, interpôs recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:

“1. De acordo com a factualidade provada no n.º 11 da fundamentação de facto, “a cliente da Autora identificada em 9) debitou-lhe os valores de €39.377 pela perda do produto acabado descrito em 8) a) a c) e de € 32.343,85 relativo às matérias-primas identificadas em 8) d)”, valores sem Iva, que não foi considerado na fixação do dano indemnizável.

2. O valor dos danos emergentes do furto e reclamados ao abrigo da cobertura do seguro objecto dos autos, ascende assim ao valor global de 71.72085€ (= 39.377,00€ +32.343,85€), ao qual se terá de descontar o valor de 7.172,08€, respeitante à franquia de 10% a cargo da segurada – cfr. n.º5 factos provados.

3. Apura-se assim o valor de 64.548,77€ (71.720,85€ - 7.172,08€), devido a título de indemnização a cargo da Seguradora/Recorrente, pelos danos emergentes do sinistro em apreço, ao qual se há-de deduzir o valor de 25.000,00€ que esta já liquidou – cfr. n.º 21 factos provados – pelo que, no caso de se manter a decisão recorrida, o que se equaciona por dever de patrocínio, o valor da indemnização ainda por liquidar à Segurada/Recorrida é de 39.548,77€ (= 64.548,77€ -25.000,00€) e não o constante no acórdão,

4. devendo, assim, ser rectificado tal valor da condenação fixado no acórdão recorrido, no montante de 42.048,77€, por padecer de manifesto erro de cálculo, cuja rectificação se requer ao abrigo do artigo 614º, n.º 2 do CPC.

SEM PRESCINDIR:

5. O que está em causa nestes autos é a alegada omissão do cumprimento do dever de informação das condições contratuais a cargo da seguradora, aqui Recorrente, na fase da formação do contrato de seguro, e não a omissão, e consequente desconhecimento pela segurada/Recorrida, do dever de comunicação dessas cláusulas.

6. Nos termos dos n.º 2 e 3 artigo art.º23º do D.L. 72/2008, de 16 de Abril (conhecido por “Regime Jurídico do Contrato de Seguro” e doravante RJCS), O INCUMPRIMENTO DOS DEVERES DE INFORMAÇÃO E/OU EXPLICITAÇÃO DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS PELO SEGURADOR, “confere ainda ao tomador do seguro o direito de resolução do contrato” nos 30 dias subsequentes ao recebimento da apólice, faculdade que a Recorrida não exerceu, mesmo depois de ter recebido a apólice, que foi arquivada nos serviços de contabilidade e na qual constava enunciado de forma clara, explícita e evidente, perante a simples leitura do seu teor literal, a previsão do capital seguro de 25.000,00€ para danos em bens de terceiros.

7. Se a Recorrida recebeu as cláusulas contratuais insertas no duplicado da apólice, impunha-se que adoptasse um comportamento diligente após o seu recebimento, em vez de se limitar a arquivá-las na contabilidade: a) exercendo a faculdade de resolução do contrato, nos termos do art.º 22º da LCS, ou b) questionando a Recorrente sobre o alcance de cláusulas que não lhe haviam sido explicadas anteriormente - veja-se neste sentido o * Acórdão do STJ de 03-10-2017, Proc. 569/13.0TBCSC.L1.S1 * ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, de 18-05-2017, Proc. 2679/15.0T8BCL.G1, e o * AC. DA RELAÇÃO DE COIMBRA DE 26-01-2016, PROC. 4055/13.0TJCBR.C1, todos in www.dgsi.pt.

8. Apesar da clareza do elemento literal da apólice, que fazia referencia àquela cobertura de “danos em bens de terceiros” limitada ao valor de 25.000,00€, com a expressa advertência de que em caso de alguma incorrecção devia ser comunicada à Seguradora (n.º 25 e 26 Factos Provados),

9. nunca a Recorrida dirigiu qualquer pedido de esclarecimento à Recorrente (n.º 27 Factos Provados), no sentido de averiguar o porquê daquele valor expressamente previsto para danos em bens de terceiros, considerando precisamente o que veio alegar depois do sinistro, de que a sua actividade de confecção a feitio implicava a existência de mercadorias de terceiros em valor muito superior,

10. nem exerceu o direito de resolução ou alteração do contrato, face ao posteriormente alegado e provado no n.º 20 dos Factos Assentes.

11. Como consta da fundamentação da douta sentença recorrida, “Os artigos 18º a 23º do DL nº 72/2008 prevêem deveres de informação para o segurador (…)”, mas “no entanto, o artigo 22º nº 4 estatui que o dever especial de esclarecimento exposto supra sob a alínea c) não é aplicável quando intervenha mediador de seguros na celebração do contrato, sem prejuízo dos deveres específicos que sobre este impendem nos termos do regime jurídico de acesso e de exercício da actividade de mediação de seguros44, que consta do DL nº 144/2006 de 31 de Julho.” – pág. 22 e 23 da sentença recorrida.

12. Não foi alegado pela Recorrente e, como tal, não foi provado - COMO LHE COMPETIA AO ABRIGO DO ÓNUS DA PROVA DA FACTUALIDADE NECESSÁRIA À PROCEDÊNCIA DA SUA PRETENSÃO – que o Mediador actuasse em nome e em representação da Recorrente, nem mesmo ao nível da “representação aparente”, prevista no art.º30º do RJCS, sendo a actuação do mediador em nome e em representação (efectiva, alicerçada num contrato, ou aparente) da seguradora, um pressuposto essencial da responsabilização desta por actos (ou omissões) praticados por aquele – neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 07-04-2017, Proc. 411/15.7T8CTB.C1 e cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 28-09-2017, Proc. 6155/15.2T8GMR.G1, ambos in www.dgsi.pt.

13. Bem pelo contrário, está provada a especial relação de proximidade e confiança da Recorrida com o Mediador de seguros, que interveio na celebração do contrato objecto dos autos, pois “estava à vontade na empresa, era conhecido há muito tempo e tinha como clientes funcionários da Autora (que são na ordem de 20-30) ” – pág. 12 da sentença, depoimento do contabilista da Recorrente - “tratava de todos os seguros relacionados com a sua actividade e bens” (n.º 13 Factos Provados) e “não trabalhava em exclusivo com a Ré” (n.º 14 Factos Provados).

14. Foi a Recorrida, através do seu Mediador, quem omitiu a informação sobre facto essencial à determinação do risco pela Seguradora e ao especial dever de informação sobre a cobertura de “danos em bens de terceiros” pois, omitiu na proposta e negociação do seguro, que a sua cliente tinha a sua “actividade quase exclusivamente através de confecção a feitio, isto é, recebe nas suas instalações as matérias-primas dos clientes” (n.º 2 Factos Provados),

 15. e que, por isso, “mais de 90% das mercadorias que se encontram nas instalações da Autora – matérias-primas, produto acabado, desperdícios de produção – pertencem aos seus clientes” (n.º 3 Factos Provados),

16. razão pela qual a Recorrente só “tomou conhecimento das circunstâncias referidas em 2) e 3) após as averiguações realizadas na sequência da participação do furto” (n.º22 Factos Provados).

17. Se a Recorrente desconhecia que a Recorrida trabalhava a feitio e que a maioria da mercadoria existente nas suas instalações pertencia a terceiros, face às informações que lhe foram transmitidas pelo Mediador escolhido pela própria Segurada que conhecia bem a sua realidade,

não tinha também a seguradora nenhum especial dever de obrigação de esclarecer sobre a exclusão de “danos em bens de terceiros”, por tal nunca lhe ter sido informado, quando se tratava de um risco essencial para a contratação do seguro!

18. E, como bem se referiu na pág. 15 da sentença proferida nos autos, a previsão nas Condições Particulares da cobertura de “danos em bens de terceiros” no valor de 25.000,00€, não resulta da negociação e contratação específica desse risco pela Segurada/Recorrida, e do consequente conhecimento pela Seguradora/Recorrente do interesse nessa cobertura,

19. tratando-se antes, e sim, de uma cobertura automática ou residual do contrato, não sendo prevista em função de um risco que tivesse sido comunicado e informado à seguradora.

20. Da matéria provado nos números 2 e 7 da fundamentação facto, resulta evidente que foi a Segurada/Recorrida que não cumpriu com o dever de declaração inicial do risco, prevista no art.º 24º, n.º 1 do RJCS, pelo que, não pode agora ser beneficiada por essa omissão do Mediador por si escolhido, sob pena de se incorrer em “abuso de direito”, tal como se encontra consagrado no art.º 334º do C. Civil, na medida em que seria beneficiada pelo incumprimento do Mediador que escolheu, para propor o contrato de seguro à Recorrente e que não actuava em representação ou no interesse desta.

21. Como se refere na pág. 18 do acórdão recorrido, é certo que “também se apurou que, caso tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17), a autora teria proposto o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro” – vide ponto de facto provado nº 19”,

22. mas também é certo que não se provou que a Recorrente teria interesse em celebrar o contrato de seguro nessas condições!!!

23. Para que o interesse da Recorrida em contratar a cobertura de “danos em bens de terceiros” pelo valor de 100.000,00€ fosse relevante nos termos equacionados no acórdão recorrido, teria também de constar provado nos autos que, essa vontade era conhecida da Seguradora/Recorrente; que teria aceitado o contrato nas condições em que foi celebrado (com essa cobertura danos causados a clientes) e pelo referido valor - cfr. ACÓRDÃO DESTE TRIBUNAL SUPERIOR, DE 12/06/2012, Proc.14/06.7TBCMG.G1.P1, disponível in www.dgsi.pt;

24. o que não ocorre, já que provado ficou que a Recorrente “tomou conhecimento das circunstâncias referidas em 2) e 3) após as averiguações realizadas na sequência da participação do furto” (n.º 22 Factos Provados) e “caso tivesse tomado conhecimento das circunstâncias referidas em 2) e 3) no momento da análise da proposta de seguro apresentada pela Autora, a Ré teria exigido que a cobertura identificada em 18) fosse de valor correspondente às mercadorias dos clientes daquela e cobraria prémio em função dele (n.º 23 factos provados)”.

25. Se, só os bens reclamados pelo sinistro, objecto dos autos e pertencentes a um único cliente da Recorrida, ascendiam ao valor de 71.720,85€ (n.º 11 Factos Provados),

26. o valor de 100.000,00€, para cobrir danos em bens pertencentes a terceiros existentes no local de risco, inerentes ao exercício da actividade segura durante uma anuidade, revelava-se manifestamente insuficiente para cobrir o valor das mercadorias da clientela da Segurada e não seria aceite pela Seguradora,

27. razão pela qual, de acordo com o que está provado no nº. 23 da fundamentação de facto, a Recorrente não teria celebrado o contrato em apreço ou aceite o valor de 100.000,00€ para “danos em bens de terceiros”, por se revelar insuficiente, caso tivesse sido informada pela Segurada das circunstâncias referidas em 2) e 3), impondo-se nesse caso declarar a nulidade do contrato, a abrigo do disposto nos art.ºs 289º e 292º in fine do C. Civil.

28. No particular contexto que está provado nos autos, e não no âmbito da análise e aplicação geral e abstracta das normas jurídicas que impõem (e bem) o dever de informação contratual, a Recorrida só se pode queixar da actuação do mediador por si escolhido, sendo certo que o incumprimento dos deveres do mediador perante os clientes, constituem-no na obrigação de indemnizar os danos por si causados, o que justifica a obrigatoriedade do seguro de responsabilidade civil, já que, com excepção do caso do “mediador de seguros ligado, em que a responsabilidade pela sua actuação é plenamente assumida pela empresa de seguros à qual se encontre vinculado, os mediadores estão obrigados a celebrar um seguro de responsabilidade civil profissional que abranja todo o território da União Europeia”. – cfr. preâmbulo do D.L.144/2006, negrito da nossa autoria.

29. Nos termos da alínea d) do art.º 29º e b) e d) do art.º 31º do D.L. 144/2006 de 31 de Julho, é dever do Mediador de Seguros perante os seus clientes, entre outros, “assistir correcta e eficientemente os contratos de seguro em que intervenha”, “aconselhar, de modo correcto e pormenorizado e de acordo com o exigível pela respectiva categoria de mediador, sobre a modalidade de contrato mais conveniente à transferência de risco ou ao investimento” e “Transmitir à empresa de seguros, em tempo útil, todas as informações, no âmbito do contrato de seguro, que o tomador do seguro solicite.”

30. Os danos que a Recorrida reclama nos autos são imputáveis à actuação ilícita do Mediador por si escolhido, na medida em que, ao violar os deveres supra enunciados, praticou as contra-ordenações leves e graves previstas, respectivamente, nos artigos 76º, alíneas g) e i) e 77º,alínea h) do D.L.144/2006, ao omitir o dever de informação em causa e ao não aconselhar a contratação do seguro mais adequado à realidade da cliente, que era o único que bem a conhecia, como ficou provado nos autos.

31. Nos termos supra expostos, não se pode aceitar a decisão recorrida, fundada no entendimento de que, no concreto contexto factual provado nos autos, “o incumprimento de tais deveres de esclarecimento e informação, ainda que por intermediação do mediador, se repercutem na esfera jurídica da seguradora, sendo esta responsável perante a autora segurada pelos danos causados pela violação desses deveres.” – pág. 14 do acórdão recorrido.

Termos em que, atendendo aos normativos legais supra enunciados, nomeadamente as normas contidas nos artigos 18º a 23º, 24º, n.l e 31º do Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que regula o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (doravante RJCS), art.ºs 29º, alínea c), 30º, alínea c) e 31. Alíneas a), b) e e) do Decreto-Lei n.º 144/2006 de 31 de Julho, 289º, 292º, 334º e 486º do C. Civil, bem como à jurisprudência supra citada, que deverá ser atendida em obediência ao n.º 3 do art.º 8º do C. Civil, subsumíveis à concreta factualidade provada nos autos, o acórdão recorrido deverá ser revogado e,

Em sua substituição, com a devida vénia, requer-se a V. Exas que, na procedência do presente recurso, seja proferido douto acórdão a manter a sentença proferida pela 1ª Instância, assim se julgando a presente acção totalmente improcedente, com as devidas e legais consequências, assim se assegurando a boa aplicação do direito à factualidade concretamente provada nos autos, desígnio com que se alcança a JUSTIÇA!”

12. A Autora/Recorrida não apresentou contra-alegações.

II – Questões a decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da Recorrente (arts. 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2 e 639.º, n.os 1 e 2, do CPC), não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, do CPC).

Estão em causa as questões de saber:

- se o contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré se encontra ferido de invalidade e, em caso de resposta afirmativa, se é de nulidade ou anulabilidade;

- se tendo o contrato de seguro sido celebrado através de mediador, a Ré é responsável pela violação do dever de informação das condições contratuais do seguro, designadamente da exclusão/limitação da cobertura respeitante ao furto/roubo e danos em bens de terceiros.

- se a Autora agiu com abuso do direito.


III – Fundamentação

A) De Facto

A factualidade dada como assente é a seguinte:

“1. A Autora tem por objecto o fabrico de calçado [resposta aos artigos 1º da petição inicial, 21º da contestação e documento de fls. 32 vº e 33].

2. A Autora desenvolve a sua atividade quase exclusivamente através de confecção a feitio, isto é, recebe nas suas instalações as matérias-primas dos clientes, transforma-as com incorporação de mão-de-obra, linhas e colas, devolvendo o produto acabado [resposta ao artigo 2º da petição inicial].

3. Devido à atividade descrita em 2), mais de 90% das mercadorias que se encontram nas instalações da Autora - matérias-primas, produto acabado, desperdícios de produção - pertencem aos seus clientes [resposta ao artigo 3º da petição inicial].

4. Por escrito titulado pela apólice nº …. Ramo 2035 Allianz MR PME, Autora e Ré acordaram na transferência para a segunda, desde as 17h34 do dia 3 de Março de 2017 até às 24h00 de 28 de Fevereiro de 2018, mas automaticamente renovável a partir de 1 de Março de 2018, o risco, entre outros, por furto/roubo e danos em bens de terceiro, ocorridos no edifício sito na Rua …., pavilhão … e ….., ……, mediante o pagamento de contrapartida [resposta aos artigos 4º, 21º da petição inicial e documento de fls. 12 vº e 13].

5. Previram o limite máximo de € 200.000 para mobiliário e equipamentos e € 100.000 para mercadorias, para a cobertura furto/roubo e € 25.000 para a cobertura danos em bens de terceiro, ambas com a franquia de 10% e no mínimo de € 75 [resposta aos artigos 5º, 6º, 16º, 25º, 26º da petição inicial, da 32º contestação e documento de fls. 12 vº e 13].

6. A Autora identificou a sua atividade perante a Ré como “calçado e artigos em pele - fabrico couro e artigos em couro” [resposta ao artigo 13º da contestação].

7. O contexto identificado em 2) e 3) não foi transmitido à Ré no momento da subscrição da primeira anuidade nem nas posteriores renovações [resposta aos artigos 14º a 16º da contestação].

8. Em momento não concretamente apurado ocorrido entre os dias 31 de Março e 3 de Abril de 2017, um ou vários indivíduos, cuja identidade não foi possível apurar, entraram nas instalações da Autora, identificadas em 4), após estroncarem o portão de cargas e descargas, levando consigo as seguintes mercadorias:

a) 490 pares de botas da marca ……;

b) 250 pares de sapatos … da marca ….;

c) 770 pares de sapatos …. da marca …;

d) 37 pacotes de peles diversas [resposta ao artigo 10º da petição inicial].

9. Os bens identificados em 8) d) eram matéria e prima e os identificados em 8) a) a c) eram produto acabado da cliente da Autora M…, Ld.ª com sede na Rua …., ….. [resposta ao artigo 11º da petição inicial].

10. Logo que tomou conhecimento do furto, a Autora fez a sua participação à Ré, ficando registada sob o nº …… de 3 de Abril de 2017 [resposta ao artigo 12º da petição inicial].

11. A cliente da Autora identificada em 9) debitou-lhe os valores de € 39.377 pela perda do produto acabado descrito em 8) a) a c) e de € 32.343,85 relativo às matérias-primas identificadas em 8) d), acrescidos de IVA à taxa de 23% nos montantes de € 9.056,71 e € 7.439,09, respectivamente [resposta ao artigo 14º da petição inicial].

12. A Ré avaliou as mercadorias identificadas em 8) em € 61.982,30, corrigindo o valor das matérias-primas identificadas em d) para € 31.294,22 [resposta ao artigo 13º da petição inicial].

13. Em 2015 a Autora celebrou com a Ré o acordo identificado em 4) através do agente de seguros C..., Ld.ª, representado por DD., que tratava de todos os seguros relacionados com a sua atividade e bens [resposta ao artigo 71º da contestação].

14. A agente de seguros identificada em 13) não trabalhava em exclusivo com a Ré [resposta ao artigo 71º da contestação].

15. No resumo das garantias da apólice identificada em 4) define-se “mercadorias” como “conjunto de matérias-primas, produtos em processo de fabrico e acabados, juntamente com as embalagens e demais artigos publicitários ou de propaganda destinados à sua comercialização, assim como todas as matérias auxiliares, tanto próprias como de terceiros, que sejam necessárias como consequência da atividade segura” [resposta aos artigos 5º, 6º do articulado de exercício do contraditório].

16. Consta da apólice identificada em 4) no capítulo “garantias aplicáveis ao conteúdo (equipamentos, mobiliário e mercadorias)” da cobertura “furto ou roubo” que por “ficam garantidas as perdas ou danos causados aos conteúdos ou mercadorias seguras, conforme o caso, em consequência de furto ou roubo (tentado, frustrado ou consumado), praticado no interior do local ou locais de risco identificados nas condições particulares que deverá caracterizar-se por alguma das circunstâncias a seguir mencionadas:

a) Praticado com arrombamento, escalamento ou chave falsa;

b) Praticado com violência contra as pessoas que trabalhem ou se encontrem no local de risco, com perigo iminente para a sua integridade física ou para a sua vida, ou pondo-as, por qualquer maneira, na impossibilidade de resistir;

c) Cometido sem arrombamento nem escalamento ou chave falsa, quando o segurado provar que o autor ou autores do furto se introduziram furtivamente no local ou nele se esconderam com intenção de furtar [resposta ao artigo 4º do articulado de exercício do contraditório].

17. No capítulo e cobertura referidos em 16) consta “não está coberto pela apólice (…) e) os bens que não sejam propriedade do segurado, excepto quando garantidos ao abrigo de cobertura própria” [resposta ao artigo 15º da petição inicial, 58º da contestação].

18. No capitulo identificado em 16) da cobertura “danos em bens de terceiro” consta “fica garantido o pagamento, até ao limite do valor fixado nas condições particulares, dos danos diretamente sofridos por bens pertencentes a terceiros, que se encontrem confiados ao segurado para guarda, utilização, trabalho ou outro fim, em consequência directa de sinistro garantido” [resposta ao artigo 50º a 52º da contestação].

19. A agente de seguros, identificada em 13), na pessoa de DD., não esclareceu a Autora sobre a exclusão referida em 17) e o significado da cobertura referida em 18) [resposta ao artigo 28º da petição inicial].

20. Se tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17) a Autora teria proposto o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro” [resposta ao artigo 29º da petição inicial].

21. Após a participação a Ré disponibilizou-se a assumir o valor de € 25.000, que pagou, enquadrando-a na cobertura “danos em bens de terceiro” [resposta aos artigos 15º da petição inicial, 53º da contestação].

22. A Ré tomou conhecimento das circunstâncias referidas em 2) e 3) após as averiguações realizadas na sequência da participação do furto [resposta ao artigo 23º da contestação].

23. Caso tivesse tomado conhecimento das circunstâncias referidas em 2) e 3) no momento da análise da proposta de seguro apresentada pela Autora, a Ré teria exigido que a cobertura identificada em 18) fosse de valor correspondente às mercadorias dos clientes daquela e cobraria prémio em função dele [resposta ao artigo 23º da contestação].

24. Para análise do risco a Ré teria solicitado elementos contabilísticos de forma a avaliar os valores que estavam em causa e, eventualmente, recolheria informações junto dos principais clientes da Autora [resposta ao artigo 28º da contestação].

25. Consta da página 3 da apólice identificada em 4) “se identificar alguma incorrecção na apólice, queira por favor informar-nos no prazo máximo de 30 dias” [resposta ao artigo 68º da contestação].

26. Consta da página 10 da apólice identificada em 4) “se ao longo do texto tiver alguma questão sobre a estrutura da apólice ou sobre a definição de algum termo, não hesite em contacta-nos [resposta ao artigo 69º da contestação].

27. A Autora não comunicou à Ré qualquer incorrecção nem formulou qualquer questão [resposta ao artigo 20° da contestação].

Não se provaram os factos alegados:

- Nos artigos 7o, 8o, 17°, 18°, 27° da petição inicial;

- Nos artigos 26° da contestação;

- No artigo 3o do articulado apresentado em 27 de Abril de 2018.

A alegação contida nos artigos 22° a 24°, 30° a 34° da petição inicial, 17° a 19°, 22°, 29° a 31°, 33° a 49°, 54°, 56°, 57°, 59° a 64°, 66°, 67°, 72°, 74° a 78° da contestação, constitui matéria conclusiva ou de Direito.

A alegação contida nos artigos 9o a 11°, 24°, 55°, 65°, 73°, 79° a 81° da contestação, 2o no articulado apresentado pela Autora em 27 de Abril de 2018 e no articulado apresentado pela Ré em 30 de Abril de 2018 diz respeito ao cumprimento do ónus da impugnação especificada.

A alegação contida nos artigos Io a 8 da contestação diz respeito à exceção da irregularidade do patrocínio já suprida

Os demais factos alegados apenas foram julgados provados na exacta medida do conteúdo da fundamentação de facto no seu conjunto”.

B) De Direito

Tipo e objecto de recurso

1. Trata-se do recurso de revista interposto pela Ré Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., que tem por objecto o acórdão do Tribunal da Relação …. que, julgando parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Autora, revogou a sentença, condenando-a a pagar a esta a quantia de € 39.548,77, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a, no mais, do pedido.

2. Em causa está um sinistro que consistiu num furto de bens ocorrido no interior das instalações da Autora, que se dedica ao fabrico de calçado – essencialmente através da transformação, com incorporação de mão-de-obra, das matérias-primas dos seus clientes em produtos finais –, pretendendo a mesma obter a condenação da Ré:

2.1. com base no contrato de seguro celebrado entre as partes, ao abrigo da cobertura de furto/roubo, no pagamento da quantia correspondente ao valor dos bens furtados ou,

2.2. caso assim não se entenda, no pagamento de quantia correspondente aos danos causados pela violação do dever pré-contratual de informação da Ré, que não a esclareceu oportunamente sobre a existência de qualquer exclusão/limitação quanto a bens de terceiros que se encontrassem nas suas instalações.

3. A Ré contestou, alegando, em suma, que a Autora nunca referiu que a sua actividade era desenvolvida com recurso quase exclusivo a matérias-primas de terceiros, sendo que, se tivesse tido conhecimento desse facto, não teria aceite o risco ou, pelo menos, não o aceitaria nas condições em que o fez. Por isso mesmo, apenas indemnizou a Autora dos danos causados pelo furto dos bens ao abrigo da cobertura “danos em bens de terceiro” até ao limite máximo do capital contratado de € 25.000,00. Considerou que estavam excluídos da cobertura de furto/roubo os bens que não sejam propriedade do segurado, exceto quando protegidos ao abrigo de uma cobertura própria (que, no caso, existia, mas com aquele limite máximo).

4. O Tribunal de 1.ª Instância julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos, por ter ficado provado que estavam excluídos da cobertura de furto/roubo os bens de terceiros, que a cobertura de “danos em bens de terceiro” tinha o limite máximo de € 25.000,00 (montante esse já pago pela Ré), de um lado e, de outro, por ter entendido que o dever de informação sobre as referidas coberturas, limites e exclusões impendia sobre o mediador que intermediou a celebração do contrato de seguro e não sobre a Ré. A Autora não pode, assim, assacar essa responsabilidade à Ré, tanto mais que também ficou provado que se a última tivesse tido conhecimento do modo como a Autora desenvolvia a sua actividade (id est, que laborava com matérias-primas de terceiros), não teria celebrado o contrato nos termos em que o fez, designadamente mediante o pagamento do mesmo prémio.

5. Por seu turno, o Tribunal da Relação …, acolhendo a tese preconizada pela Autora no recurso de apelação – no sentido de que o incumprimento dos deveres de esclarecimento e informação, ainda que tenha havido intermediação do mediador, se repercutem na esfera jurídica da seguradora que é, assim, responsável pelos danos causados pela violação desses deveres nos termos dos arts. 18.º, 21.º a 23.º, e 28.º a 31.º do DL n.º 72/2008, de 16-04 (RJCS), e art. 31.º, n.os 1 e 2, do DL n.º 144/2006, de 31-07 –, julgou parcialmente procedente o recurso e, por conseguinte, revogou a sentença e condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 39.548,77, correspondente à diferença entre o valor que a mesma devia ter recebido caso lhe tivesse sido prestada a informação devida (valor das mercadorias diminuído do IVA) e o valor percebido de € 25.000,00, tudo deduzido do valor de 10% da franquia.

6. É desta decisão que a Ré recorre agora de revista, pretendendo a repristinação da sentença.

7. A questão essencial que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se, tendo o contrato de seguro sido celebrado através de mediador, deve ser imputada ao segurador a responsabilidade pela inobservância do dever de informação sobre as condições contratuais do seguro, concretamente daquelas respeitantes à cobertura de furto ou roubo e danos em bens de terceiros.

8. O Tribunal de 1.ª Instância respondeu negativamente a esta questão, enquanto o Tribunal da Relação entendeu que a violação do referido dever de informação por parte do mediador, que teve intervenção na celebração do contrato de seguro, se repercute na esfera jurídica do segurador, tornando-o, nessa medida, responsável pelos danos causados pela omissão desse dever.

9. Já a Ré/Recorrente sustenta que se impõe apurar o tipo de mediador em causa, assim como se o mesmo atuou em representação (efetiva ou aparente) do segurador, o que não foi sequer alegado e, por isso, não resultou provado. Por outro lado, provou-se que a Ré/Recorrente cumpriu o seu dever de comunicação das condições contratuais e que a Autora/Recorrida não observou o “ónus” de pedir os esclarecimentos que julgasse adequados face ao texto das cláusulas que lhe foram comunicadas, tal como lhe impunha o princípio da auto-responsabilização dos contraentes que atuam de boa fé e de forma diligente. Alega também que a Autora/Recorrida não cumpriu o dever de declarar que a sua actividade era exercida quase exclusivamente através da transformação de bens (matérias-primas) que recebe nas suas instalações, pertencentes a terceiros, informação esta que era essencial para a determinação do risco.

10. Defende, igualmente, que a Autora/Recorrida incumpriu, através do mediador, o dever de declaração inicial do risco previsto no art. 24.º, n.º 1 do RJCS, pois omitiu, na proposta e negociação do seguro, que mais de 90% das mercadorias que se encontram nas suas instalações pertencem a terceiros. Não pode, por isso, em seu entender, resultar beneficiada por essa omissão do mediador por si escolhido, sob pena de abuso do direito (art. 334.º do CC).

11. Invoca, por último, que resultando da factualidade provada que, se soubesse dos referidos factos (id est, que a maior parte dos bens existentes nas instalações da Autora/Recorrida pertencia a terceiros), não teria celebrado o contrato de seguro. Impõe-se, assim, em sua opinião, a declaração de nulidade do contrato, nos termos dos arts. 289.º e 292.º do CC.

Deveres de informação do segurado: a declaração inicial do risco

(In)validade do contrato de seguro

1. Da análise do processo decorre que a Ré/Recorrente não invocou nem pediu, expressamente, em momento anterior, a declaração de nulidade do contrato de seguro. É certo, todavia, que alegou, logo na sua contestação, que se houvesse tido conhecimento dos referidos factos não teria celebrado o contrato nas condições em que o fez (designadamente no que respeita ao montante do prémio) – o que remete para a análise, interpretação e aplicação do disposto nos arts. 24.º a 26.º do RJCS.

2. Poderá, deste modo, eventualmente, entender-se que a questão de saber qual o vício ou sanção em causa será uma questão de qualificação jurídica que, nessa medida, será permitida nesta sede (tanto mais que os factos relevantes para a apreciação da questão foram, oportunamente alegados na contestação, integrando defesa por exceção) – art. 5.º, n.º 3, do CPC.

3. Porém, no caso de se entender que se trata de questão que, não tendo sido expressamente invocada em momento anterior, é nova, impor-se-á determinar se, conforme o regime jurídico aplicável ao caso em apreço – o RJCS –, a invalidade em causa será, efectivamente, a nulidade, pois que apenas esta modalidade de invalidade consentiria o seu conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça nos termos do art. 286.º do CC (e já não a anulabilidade, que sempre estaria dependente de expressa invocação em momento próprio) . Os recursos constituem meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas sobre questões anteriormente analisadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas (ius novarum), salvo aquelas que são de conhecimento oficioso – arts. 627.º, n.º 1, e 671.º, n.º 1, do CPC. A questão agora colocada é suscetível de configurar questão nova, que não pode ser legitimamente conhecida. Na hipótese de a questão ter sido suscitada no recurso de apelação – que não foi - e o acórdão recorrido, por desatenção, não a ter conhecido, sobre a Recorrente impenderia o ónus de arguir agora a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia – art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC -, que, se procedesse, determinaria a baixa dos autos para conhecimento dessa questão. O art. 679.º do CPC exclui expressamente a regra da substituição contida no art. 655.º do mesmo corpo de normas.

Em todo o caso:

4. Vale, entre nós, o sistema do "questionário aberto" ou "declaração espontânea", encontrando-se o segurado obrigado a declarar todas as circunstâncias que efetivamente conheça – e não apenas cognoscíveis - e razoavelmente deva ter por relevantes para a apreciação do risco pelo segurador, ainda que não especificamente por este solicitadas (art. 24.º, n.os 1 e 2, do RJCS). Salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o segurador não pode prevalecer-se” de facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexato ou, tendo sido omitido, conheça” (arts. 24.º, n.º 3, al. d), do RJCS e 259.º, n.º 1, do CC). Está em causa a exigência de um comportamento conforme com a boa-fé por parte do segurador.

5. O critério da relevância, mencionado no art. 24.º, n.º 1, do RJCS,  refere-se ao segurador concreto e não abstrato. Considera-se, assim, que a redação do questionário fornece, pelo menos, alguma orientação ao segurado a propósito das matérias que assumem relevância para o segurador, ou que apenas podem ser relevantes as circunstâncias em que, ao menos implicitamente, o segurador tenha mostrado interesse durante o processo de formação do contrato. Isto não exclui a responsabilidade do segurador, principalmente no que toca à consciencialização do tomador do seguro/segurado das circunstâncias relevantes para a delimitação do risco. Está também aqui em causa uma manifestação do princípio da boa-fé. Do art. 24. º, n.º 3, do RJCS, pode, de resto, retirar-se um dever de diligência do segurador de verificação das informações fornecidas pelo tomador do seguro/segurado.

6. A declaração de risco visa dar a conhecer ao segurador elementos que lhe permitam aferir do risco e, nessa medida, decidir se pretende ou não celebrar o contrato e em que condições. Os arts. 25.º e 26.º do RJCS preveem, precisamente, as situações em que o tomador do seguro/segurado, incumprindo o seu dever de declarar o risco, não deu a conhecer ao segurador as indicações necessárias e, por isso, o induziu em erro. O art. 24.º, n.º 3, al. d), do RJCS, prevê hipóteses em que o segurador não pode invocar o incumprimento do tomador do seguro/segurado, apesar de ele ter existido, simplesmente porque não está em erro. Na verdade, quando celebrou o contrato, fê-lo consciente das omissões e inexatidões do tomador do seguro/segurado. O art. 24.º, n.º 3, do RJCS, consagra a anulação do dolo do segurador pelo dolo qualificado ou agravado do tomador do seguro/segurado. Segundo alguma doutrina, para que possa prevalecer-se do incumprimento do tomador do seguro/segurado nos casos das als d) e e), o segurador não pode conhecer os factos omitidos. In casu, tudo indica que o mediador conhecia, efetivamente, esses factos (art. 259.º, n.º 1, do CC) – cf. facto provado sob o n.º 13 (“Em 2015 a Autora celebrou com a Ré o acordo identificado em 4) através do agente de seguros C...., Ld.ª, representado por DD., que tratava de todos os seguros relacionados com a sua atividade e bens [resposta ao artigo 71º da contestação].

7. A inexatidão da declaração afeta o conteúdo ou subsistência do contrato, de um lado e, de outro, o direito à prestação relativa a sinistro entretanto ocorrido. Qualquer destas consequências apenas se produz se o incumprimento tiver sido doloso ou negligente. Se o dolo simples implicar o conhecimento da inexatidão e da relevância da circunstância omitida – ou deficientemente declarada - para a decisão de contratar, ou de o fazer naqueles termos, a generalidade dos casos de dolo simples implicará o propósito de obter uma vantagem – seguro a que não se teria acesso ou a um preço superior. No caso de incumprimento negligente do dever de informação por parte do tomador do seguro, exige-se ainda a verificação de requisitos de causalidade.

8. Conforme o art. 26.º (“omissões ou inexactidões negligentes”) do RJCS, o segurador pode, dentro do prazo de três meses a contar do conhecimento da inexatidão, propor uma alteração ao contrato, ou fazer cessar o contrato se demonstrar que em caso algum celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto inexatamente declarado.

9. Subjaz a este dever de declaração do tomador do seguro/segurado a especial relação de confiança entre as partes e o princípio da boa-fé. A figura da declaração inicial surgiu para proteger o segurador que tem de confiar nas declarações do tomador do seguro/segurado (o sujeito que melhor conhece o risco) para poder delimitar o risco a segurar. O facto de se estar numa fase pré-contratual convoca, necessariamente, o princípio da boa-fé, na medida em que é de esperar que, na fase de negociações de um contrato, as partes se comportem de forma leal e honesta, devendo, em casos como o dos autos, comunicar informações de conhecimento essencial para a contraparte. Assim, as omissões ou inexatidões na declaração do risco consubstanciam não só uma quebra na relação de confiança mas também uma violação do princípio da boa-fé, na sua vertente objectiva[1] - id est, enquanto norma de conduta.

10. Conforme o art. 25.º, n.º 3, (“omissões ou inexactidões dolosas”) do RJCS, “O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral de anulabilidade”. A remissão para o regime comum da anulabilidade não conduz ao afastamento das regras especiais estabelecidas no art. 25.º, n.os 1 e 2 , do RJCS. Id est, aquela remissão não significa que, em caso de conhecimento do incumprimento após a verificação do sinistro, o segurador, em vez de anular o contrato através do envio de uma declaração, deva antes arguir a anulabilidade por via judicial.  De um lado, a aplicação do n.º 1 não depende da (in)verificação de sinistro e, de outro, não há razão para alargar o prazo de três meses para um ano. Tal extensão do prazo traduzir-se-ia, de resto, numa solução injusta para o tomador do seguro/segurado[2].

11. De qualquer modo, ainda que se verificasse, no caso sub judice, o incumprimento doloso da Autora/Recorrida do seu dever de informação, o contrato estaria ferido de anulabilidade e não de nulidade. O prazo para a sua arguição – três meses após a cessação do vício (id est, conhecimento do incumprimento) – já decorrera aquando da apresentação da contestação pela Ré/Recorrente. Na verdade, a comunicação do sinistro teve lugar a 3 de abril de 2017 e, logo a seguir, a Ré/Recorrida procedeu às averiguações necessárias que lhe permitiram o conhecimento da desconformidade alegada, tendo a contestação sido apresentada em março de 2018. A anulabilidade encontra-se sanada pelo decurso do tempo e também por confirmação tácita (art. 288.º do CC) – caso de dupla sanação do vício -, porquanto a Ré/Recorrente procedeu ao pagamento de parte da indemnização devida à Autora/Recorrida após o conhecimento do vício.

12. Refira-se, por último, que não se percebe a relevância que possa assumir, in casu, para a aferição do risco por parte do segurador, quer na sua probabilidade quer na sua intensidade, a circunstância de as matérias primas e os produtos acabados pertencerem ao tomador do seguro/segurado ou a terceiro.

Responsabilidade civil do segurador por violação dos deveres de informação sobre a cláusula de exclusão de cobertura

1. A revista reconduz-se, pois, essencialmente, à questão de saber se o incumprimento dos deveres de informação das condições contratuais do contrato de seguro em apreço – id est, da cobertura de furto ou roubo e danos em bens de terceiros –, celebrado através de mediador, se repercute ou não na esfera jurídica da seguradora. Não se descura que a Ré/Recorrente sustenta, em abono da sua pretensão, atendendo à a factualidade provada, que a Autora/Recorrida apenas se pode queixar do mediador por si escolhido, sendo sobre este que recai a obrigação de indemnizar os danos causados, nos termos dos arts. 18.º-23.º, 24.º, n.º 1, e 31.º do RJCS, dos arts. 29.º, al. c), 30.º, al. c), e 31.º, als. a), b) e e), do DL n.º 144/2006, de 31 de julho, e dos arts. 289.º, 292.º e 486.º do CC.

2. Conforme o art. 5.º, al. c), do DL n.º 144/2006, então em vigor (e ulteriormente revogado pela Lei n.º 7/2019, de 16 de Janeiro), a mediação de seguros consubstancia-se em “qualquer actividade que consista em apresentar ou propor um contrato de seguro ou praticar outro acto preparatório da sua celebração, em celebrar o contrato de seguro, ou em apoiar a gestão e execução desse contrato, em especial em caso de sinistro”. O mediador de seguros, pessoa singular ou coletiva, mediante remuneração, intervém na fase de preparação, negociação e execução de contratos de seguro[3]. Por seu turno, segundo o art. 8.º do mesmo diploma legal, “As pessoas singulares ou colectivas podem registar-se e exercer a actividade de mediação de seguros numa das seguintes categorias: a) Mediador de seguros ligado - categoria em que a pessoa exerce a actividade de mediação de seguros: i) Em nome e por conta de uma empresa de seguros ou, com autorização desta, de várias empresas de seguros, desde que os produtos que promova não sejam concorrentes, não recebendo prémios ou somas destinados aos tomadores de seguros, segurados ou beneficiários e actuando sob inteira responsabilidade dessa ou dessas empresas de seguros, no que se refere à mediação dos respectivos produtos; ii) Em complemento da sua actividade profissional, sempre que o seguro seja acessório do bem ou serviço fornecido no âmbito dessa actividade principal, não recebendo prémios ou somas destinados aos tomadores de seguros, segurados ou beneficiários e actuando sob inteira responsabilidade de uma ou várias empresas de seguros, no que se refere à mediação dos respectivos produtos; b) Agente de seguros - categoria em que a pessoa exerce a actividade de mediação de seguros em nome e por conta de uma ou mais empresas de seguros ou de outro mediador de seguros, nos termos do ou dos contratos que celebre com essas entidades; c) Corretor de seguros - categoria em que a pessoa exerce a actividade de mediação de seguros de forma independente face às empresas de seguros, baseando a sua actividade numa análise imparcial de um número suficiente de contratos de seguro disponíveis no mercado que lhe permita aconselhar o cliente tendo em conta as suas necessidades específicas”.

3. Por seu turno, conforme o art. 17.º (“Condições específicas de acesso à categoria de agente de seguros”) do DL n.º 144/2006, “1 - Sem prejuízo do disposto na secção II, para efeitos de inscrição no registo como agente de seguros, a pessoa singular ou colectiva deve, adicionalmente: a) Celebrar um contrato escrito com cada uma das empresas de seguros que vai representar, através do qual a empresa de seguros mandata o agente para, em seu nome e por sua conta, exercer a actividade de mediação, devendo aquele contrato delimitar os termos desse exercício (…)”.

4. C…, Lda. exerce a sua atividade de mediação de seguros na categoria de “agente de seguros” (factos provados sob os n.os 13, 14 e 19)[4] e, por isso, em nome e por conta da Ré/Recorrente. O agente de seguros desenvolve uma forma de mediação impura ou imprópria[5]. Refira-se, nesta sede, que a Ré/Recorrente não impugnou, nesta parte, a decisão de facto.

5. Segundo o art. 30.º do RJCS, “1 - O contrato de seguro que o mediador de seguros, agindo em nome do segurador, celebre sem poderes específicos para o efeito é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado, sem prejuízo do disposto no n.º 3. 2 - Considera-se o contrato de seguro ratificado se o segurador, logo que tenha conhecimento da sua celebração e do conteúdo do mesmo, não manifestar ao tomador do seguro de boa fé, no prazo de cinco dias a contar daquele conhecimento, a respectiva oposição”. Assim, mesmo que o mediador houvesse celebrado o contrato de seguro em apreço em nome e por conta da Ré/Recorrente, sem ter os correspondentes poderes de representação, o contrato sempre se consideraria ratificado, nos termos do n.º 2 do art. 30.º. Acresce que a Ré/Recorrente procedeu até ao pagamento à Autora/Recorrida de parte da indemnização devida, o que traduziria uma ratificação tácita do mesmo contrato.

6. Está em causa a falta de informação Autora/Recorrida sobre a cláusula de exclusão/limitação da cobertura de furto de bens (mercadorias) que não sejam propriedade do segurado e, por isso, pertencentes a terceiro.

7. No período que antecede a conclusão do contrato, sobre o segurador recaem deveres de informação e esclarecimento oriundos de diversas fontes – verbi gratia, do RJCS e do RJCCG. Estas normas aplicam-se cumulativamente, podendo o segurado invocar as que lhe forem mais favoráveis. O alcance destes deveres é, tendencialmente coincidente, manifestando-se as diferenças na consequência jurídica do seu incumprimento. Note-se, nesta sede, que os deveres de informação previstos no RJCS correspondem, grosso modo, aos deveres de comunicação estabelecidos no RJCCG.

8. O segurador tem o dever de informar o tomador do seguro do conteúdo do clausulado (arts. 18.º-21 do RJCS), levando-o ao seu conhecimento por escrito (art. 21.º, n.º 1). Não são permitidos modelos de contratação que conduzam a que o segurado apenas tome conhecimento de parte do conteúdo da apólice depois de se vincular (art. 21.º, n.º 5, do RJCS).

9. Este dever de informação é complementado por um dever especial de esclarecimento (art. 22.º) sobre as modalidades de seguro, oferecidas pelo segurador, que se afigurem adequadas para a cobertura pretendida (afloramento do princípio geral know your costumer). Apenas existe quando a complexidade da cobertura e o montante do prémio a pagar ou do capital seguro o justifiquem e o meio de contratação o permita. Sendo o seguro contratado com intervenção de mediador, é sobre este, e não sobre o segurador, que impende este dever especial de esclarecimento (art. 22.º, n.º 4). O mesmo não se pode dizer a propósito do dever geral de informação.

10. Importa, nesta sede, levar em devida linha de conta os factos provados sob o n.º 17 (“No capítulo e cobertura referidos em 16) consta “não está coberto pela apólice (…) e) os bens que não sejam propriedade do segurado, exceto quando garantidos ao abrigo de cobertura própria” [resposta ao artigo 15º da petição inicial, 58º da contestação”]), sob o n.º 18 (“No capitulo identificado em 16) da cobertura “danos em bens de terceiro” consta “fica garantido o pagamento, até ao limite do valor fixado nas condições particulares, dos danos diretamente sofridos por bens pertencentes a terceiros, que se encontrem confiados ao segurado para guarda, utilização, trabalho ou outro fim, em consequência directa de sinistro garantido” [resposta ao artigo 50º a 52º da contestação]”), sob o n.º 19 (“A agente de seguros, identificada em 13), na pessoa de DD., não esclareceu a Autora sobre a exclusão referida em 17) e o significado da cobertura referida em 18) [resposta ao artigo 28º da petição inicial]”) e sob o n.º 20 (“Se tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17) a Autora teria proposto o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro” [resposta ao artigo 29° da petição inicial]”).

11. Segundo a Autora/Recorrida, além de impenderem sobre o mediador, os deveres de informação em apreço recaíam também sobre a Ré/Recorrente. O incumprimento destes deveres de informação, ainda que por intermediação do mediador, repercute-se na esfera jurídica da seguradora, sendo esta responsável perante a Autora/segurada pelos danos causados pela sua violação.

12. Com efeito, segundo o art. 18.º, al c), do RJCS, “Sem prejuízo das menções obrigatórias a incluir na apólice, cabe ao segurador prestar todos os esclarecimentos exigíveis e informar o tomador do seguro das condições do contrato, nomeadamente: c) Das exclusões e limitações de cobertura (…)”. Conforme o art. 21.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, “As informações referidas nos artigos anteriores devem ser prestadas de forma clara, por escrito e em língua portuguesa, antes de o tomador do seguro se vincular”. Nos termos do art.  23.º, n.º 1, “ O incumprimento dos deveres de informação e de esclarecimento previstos no presente regime faz incorrer o segurador em responsabilidade civil, nos termos gerais”.

13. O legislador, no RJCS, estabelece, pois, o dever geral do segurador de informar e esclarecer o tomador do seguro ou segurado sobre o âmbito do risco que se propõe cobrir e sobre as exclusões e limitações de cobertura, de um lado e, de outro, o dever especial, também do segurador, de esclarecimento.

14. Os deveres de informação do segurador, que têm fonte legal, cumprem-se individualmente perante cada um dos tomadores de seguro-clientes, dirigindo-se à proteção da correta formação da sua vontade: é esta o bem jurídico tutelado.

15. Derivando de valorações legais – independentes da vontade das partes –, esses deveres não configuram a relação de seguro por força da vontade dos sujeitos. São consequências ex lege, nesse sentido não negociais, da conduta das partes, pois não radicam na sua vontade de produção de efeitos jurídicos, produzindo-se independentemente de a vontade das partes se lhes dirigir.

16. A inobservância destes deveres de informação é suscetível de originar deveres de indemnizar do segurador no caso de se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil, independentemente da validade do contrato.

17. Em sede de deveres de informação, deve em especial ter-se em conta as cláusulas gerais dos arts. 227.º e 762.º, n.º 2, do CC.

18. Tem-se em vista prevenir a lesão dos interesses do tomador do seguro-cliente.

19. A imputação do prejuízo ao segurador pressupõe que a decisão segurística haja sido tomada pelo tomador do seguro com base no comportamento informativo daquele.

20. O prejuízo sofrido pelo tomador do seguro decorreu da violação ou incumprimento dos deveres de informação do segurador - da ilicitude da sua conduta (a desconformidade injustificada entre a conduta devida e a conduta observada).

21. O modelo informativo de tutela do tomador do seguro-cliente legalmente estabelecido tem a finalidade de prevenir a violação de determinados bens jurídicos (a autodeterminação, a tutela da esclarecida formação da vontade do tomador do seguro que lhe consinta escolher os seguros mais adequados à prossecução dos seus interesses).

22. Ficou provada a influência da falta da informação na vontade individual do tomador do seguro: este teria adotado a conduta razoável ou racional de tomador do seguro na posse da informação devida. Encontra-se estabelecido o nexo causal entre a falta da informação e a decisão do tomador do seguro. Provou-se  que essa vontade teria sido diferente caso a informação houvesse sido corretamente prestada.

23. Visando os deveres de informação assegurar as condições necessárias à autodeterminação do tomador do seguro no seio do mercado dos seguros, da sua violação decorre a obrigação de colocar o tomador o seguro/segurado na situação em que estaria se esses deveres houvessem sido corretamente cumpridos, que seria a de não celebração do contrato de seguro concretamente negociado e a conclusão de um contrato que acautelasse as suas necessidades (art. 562.º do CC). A indemnização deve reconstituir essa situação e corresponde ao interesse contatual negativo ou dano da confiança.

24. De qualquer modo, in casu, a desconformidade entre a conduta devida e a conduta efetivamente adotada pela Ré/Recorrente - violação ilícita de deveres de informação - encontra-se provada.

25. De acordo com o art. 562.º, do CC, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

26. A Autora/Recorrida alegou que se tivesse sido adequadamente informada não teria celebrado, nos moldes adotados, o contrato em apreço. Provou-se, com efeito, que a Autora/Recorrente não teve consciência da exclusão/limitação da cobertura em apreço, no contrato que celebrou e que, se a tivesse tido, não o teria feito. Visando os deveres de informação proteger a sua decisão de contratar, presume-se também que assim é, de facto. Pode, assim, pretender a reconstituição da situação que existiria se não o tivesse concluído nos moldes em que o fez.

27. Trata-se da indemnização pelo interesse contratual negativo ou dano da confiança. A indemnização há-de colocar a Autora/Recorrente na situação em que estaria se não tivesse celebrado aquele contrato.

28. Reitera-se: incumprindo esse dever geral de informação, a segurador incorre em responsabilidade civil nos termos gerais. Com efeito, do art. 23.º, n.os 1 e 3, do RJCS, decorre a responsabilidade civil do segurador, nos termos gerais, assim como o direito do tomador de seguro de resolver o contrato no prazo de 30 dias contados da receção da apólice.

29. O recurso a mediador não isenta a seguradora dos respetivos deveres de informação das cláusulas do contrato de seguro.

30. Na verdade, ainda que o contrato de seguro seja concluído com intervenção de mediador, ressalvando a hipótese do art. 22.º, n.º 4, do RJCS, os deveres de informação permanecem na esfera do segurador (art. 29.º do RJCS). Este pode servir-se do mediador para o cumprimento desses deveres, mas não se exime à responsabilidade pela atuação dos sujeitos de que se sirva para o seu cumprimento. Recorre-se, então, ao regime previsto no art. 800.º do CC, que é também aplicável à responsabilidade pré-contratual.

31. O artigo 800.º, n.º 1, do CC, aplica-se, pois, também aos casos de culpa in contrahendo. quando a intervenção do terceiro se consubstancie na violação de deveres pré-contratuais e o devedor haja incumbido o terceiro de o auxiliar na tarefa das negociações tanto do ponto de vista material como mediante a concessão de poderes de representação.

32.  Conforme o art. 800.º, n.º 1, in fine, do CC, tudo se passa como se os atos do auxiliar fossem os atos do devedor.

33. Não releva agora a consideração do mediador enquanto representante tout court da Ré/Recorrente, porquanto, apesar do regime da representação (art. 258.º do CC) resultar que os atos do representante se repercutem diretamente na esfera jurídica do representado, os poderes de representação não incluem poderes para praticar atos ilícitos. Se o representante praticar um ato ilícito, não se pode dizer que esteja a atuar no quadro geral dos poderes que lhe foram conferidos. Não pode, pois, afirmar-se que a culpa do auxiliar traduz, representativamente, a culpa do devedor representado, ou, pelo menos, perante o credor, a atuação culposa do auxiliar vale como se fosse uma atuação culposa do próprio devedor[6]. Aquela consideração poderia eventualmente relevar se se reconhecesse natureza obrigacional à relação pré-contratual.

34. Importa antes a consideração do mediador como auxiliar (independente) da Ré/Recorrente, repercutindo-se os seus atos na esfera jurídica da última.

35. Pode sempre dizer-se, em geral, que ao Direito interessa que o representado fique vinculado pelos atos do representante, assim como que o devedor seja responsável pelos atos do seu auxiliar: o interesse protegido é o do terceiro ou credor[7].

36. O representante voluntário pode ser considerado como auxiliar, sendo um terceiro que o devedor introduz na relação pré-contratual. Não se afigura necessário aplicar por analogia o art. 800.º, uma vez que na expressão “pessoas que o devedor utilize para o cumprimento” se deve incluir o representante voluntário.     

37. No caso sub judice, não estão em causa aquelas obrigações próprias do mediador enquanto profissional independente, mas antes deveres da titularidade do segurador. Conforme mencionado supra, de acordo com o art. 29.º do RJCS, “Quando o contrato de seguro seja celebrado com intervenção de um mediador de seguros, aos deveres de informação constantes da secção ii do presente capítulo acrescem os deveres de informação específicos estabelecidos no regime jurídico de acesso e de exercício da actividade de mediação de seguros”. Daqui resulta que a existência de deveres de informação análogos a cargo do mediador não implica a substituição dos deveres do segurador pelos do mediador.

38. Se houver praticado um ato ilícito, o terceiro/auxiliar (dependente ou independente) pode ser responsabilizado diretamente pelo credor, sem prejuízo de se manter a responsabilidade obrigacional do devedor à luz do art. 800.º. Nesse caso, o terceiro e o devedor poderão ser solidariamente responsáveis (o art. 497.º, n.º 1, do CC, aplica-se independentemente do tipo de responsabilidade). No caso dos autos, está em causa a apreciação da responsabilidade do segurador.

39. De acordo com o art. 800.º, n.º 1, o devedor responde como se tais atos tivessem sido praticados por si mesmo.

40. É uma responsabilidade que não resulta do incumprimento de uma obrigação previamente assumida, nem da violação de um dever genérico de respeito dos direitos absolutos - princípio do neminem laedere. Trata-se da violação de um dever - o dever pré-contratual de informação consagrado no art. 18.º, al. c), do RJCS - existente no domínio de uma relação específica entre as partes: Autora/Recorrida e Ré/Recorrente.

41. A Autora/Recorrida negociou diretamente com o mediador, não com a Ré/Recorrente, podendo dizer-se que o mediador atuou como auxiliar da última. Parece, assim, indiscutível que a Ré/Recorrente responde pela atuação do seu auxiliar, nomeadamente pelo incumprimento, por parte deste, do seu dever de informação perante a Autora/Recorrente - futura cliente. Aplicam-se, conjugadamente, as normas dos arts. 227.º, n.º 1, e 800.º, n.º 1, do CC. Havendo recorrido a um auxiliar – o mediador -, em lugar de intervir diretamente nas negociações, recaía, no período pré-contratual, sobre a Ré/Recorrida e, assim, sobre o seu auxiliar, o dever de informação em apreço. Este dever não foi, todavia, observado pelo mediador, pois este não informou a Autora/Recorrida das exclusões e limitações de cobertura.

42. A Ré/Recorrida responde obrigacionalmente pelos atos dos seus auxiliares por culpa in contrahendo. Insiste-se: cabem, inter alia, na categoria de auxiliares, os agentes, os procuradores e os comissários, pois que os terceiros que com eles se relacionam confiam na empresa, na organização que se lhes apresenta e da qual são auxiliares[8]. Acresce que, uma vez que o recurso a auxiliares aumenta o âmbito de ação negocial do devedor, afigura-se justo que este não possa lançar sobre o credor os correspondentes riscos. O recurso a terceiros como que constitui um risco da sua actividade.

43. A presunção de culpa do devedor, estabelecida no art. 799.º, estende-se também ao comportamento faltoso dos auxiliares do devedor. Por conseguinte, a Ré/Recorrente deve indemnizar a Autora/Recorrida pelos danos resultantes da falta de informação, como se ela própria houvesse intervindo nas negociações.

44. Deste modo, demonstrado que a agente de seguros, na pessoa de DD., não esclareceu a Autora/Recorrida sobre a exclusão/limitação no âmbito da cobertura de furto/roubos das matérias-primas de terceiros nem sobre o significado da cobertura referida em 18) (facto provado sob o nº 19), repercutem-se sobre a Ré/Recorrente/seguradora as consequências resultantes da inobservância, pelo mediador, desses deveres de informação.

45. Tanto mais que também se apurou que, caso tivesse sido esclarecida sobre a exclusão referida em 17), a Autora/Recorrida teria proposto o valor de € 100.000 para a cobertura “danos em bens de terceiro” (facto provado sob o n.° 20).

46. A Ré/Recorrente/seguradora está obrigada a indemnizar a Autora/Recorrida pelos danos decorrentes da inobservância dos deveres de informação e esclarecimento a que se encontrava adstrita na fase pré-contratual.

47. A omissão da informação devida conduziu à conclusão de um contrato que não acautela devidamente as necessidades da Autora/Recorrida no que respeita à cobertura de furto/roubo ou danos em “mercadorias” pertencentes a terceiros, assim como à não celebração do contrato que as satisfizesse. Em virtude da ocorrência de furto dessas mercadorias, emergiram para a Autora/Recorrida danos no valor de € 71.72085, que a violação do dever de informação pela Ré/Recorrente não lhe permitiu prevenir adequadamente. Se houvesse sido devidamente esclarecida sobre a exclusão/limitação da cobertura em causa, a Autora/Recorrida teria celebrado um contrato de seguro que satisfizesse as suas necessidades. Perdeu, pois, a oportunidade de o fazer. Deste modo, a indemnização que lhe é devida corresponde ao montante de € 39.377,00, pela perda do produto acabado descrito sob o n.º 8) a)-c) dos factos provados, e ao valor de  € 32.343,85, pela perda das matérias-primas identificadas sob o n.º 8 d) dos factos provados. Ascendendo o respetivo valor global ao montante de € 71.72085 (= € 39.377,00+€ 32.343,85), ao que se deduz franquia de 10%, correspondente a € 7.172,08, obtém-se o montante de € 64.548,77 (€ 71.720,85-€ 7.172,08). Subtraída a esta quantia o valor de € 25.000,00 que a Ré/Recorrente já pagou, o montante indemnizatório em dívida à Autora/Recorrida é de € 39.548,77€ (= € 64.548,77-€ 25.000,00).

Culpa do lesado

1. O legislador consagrou um modelo de proteção do tomador do seguro assente na elucidação necessária para assegurar um exercício consciente da sua liberdade contratual, para garantir a adoção de decisões segurísticas esclarecidas e informadas. Trata-se de um modelo informativo de proteção (arts. 18.º e ss. Do RJCS). Está-lhe subjacente um entendimento material do princípio da autodeterminação, condição habitual da justiça dos contratos.

2. Tendo como objetivo assegurar decisões informadas, este modelo consubstancia-se, fundamentalmente, em deveres “de falar” e estes, por seu turno, articulam-se com o dever de verdade.

3. O estabelecimento destes deveres a cargo do segurador implica um desvio ao ónus do sujeito de obter individualmente, por si mesmo, a informação relevante. Diferentemente do direito comum, o direito dos seguros não é axiologicamente enformado, neste aspeto, pelo princípio da igualdade dos sujeitos contratantes: segurador e tomador do seguro.

4. Os deveres de informação que recaem sobre o segurador desoneram o tomador do seguro-cliente da necessidade de procurar ou de obter essa informação, postulando o afastamento do concurso da assunção do risco ou de culpa própria em caso de sobrevirem danos.

5. O risco de uma falta de informação recai sobre o segurador.

6. Por conseguinte, o facto de a Autora/Recorrida, num momento inicial e sem qualquer verificação da (des)conformidade entre o conteúdo da apólice e o acordado,  não ter exercido o direito de resolução do contrato dentro do prazo de trinta dias subsequentes à data da entrega da apólice – que, aliás, poderia redundar em seu prejuízo -, nem ter solicitado quaisquer esclarecimentos não é suscetível de excluir ou limitar a responsabilidade da Ré/Recorrente. Está também aqui presente a ideia de que os deveres informativos do segurador desoneram o tomador do seguro-cliente da necessidade de procurar ou de obter a informação que lhe é devida.

7. A Ré/Recorrente estava obrigada a informar a Autora/Recorrida de toda e qualquer exclusão ou limitação de cobertura, independentemente da relevância de que, concretamente, se pudessem revestir para a última. O art. 18.º, al. c), do RJCS, não distingue entre exclusões/limitações significativas e não significativas para o tomador do seguro. Onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir (ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus). Afigura-se, assim, despiciendo para este efeito, que a Ré/Recorrente não tenha sido informada de que a Autora/Recorrida desenvolvia a sua atividade mediante “confeção a feitio”.

De resto,

1. Na culpa do lesado existe uma omissão da diligência exigível no tráfico que, se adotada, poderia ter evitado o próprio dano. Está em causa o desrespeito de um ónus jurídico, uma vez que não existe o dever jurídico de evitar a ocorrência de danos para si próprio. A culpa do lesado pode referir-se à atuação do próprio credor, assim como à das pessoas de que este se utiliza, nos termos do art. 571.º do CC. Trata-se aqui de uma “responsabilidade contra si próprio por facto de terceiro”. O art. 571.º imputa ao lesado a atuação culposa de pessoa de cuja atuação beneficie, tal como o faz o art. 800.º, n.º 1, do CC. Assim, a lei equipara o facto culposo do lesado ao facto culposo dos seus representantes legais ou auxiliares, imputando ao lesado os factos culposos das pessoas por quem poderia responder se estas causassem prejuízos a terceiros. Está em causa uma situação de concausalidade.

2. Não se preconiza a aplicação analógica nem a interpretação enunciativa, com base no argumento de maioria de razão ou a fortiori, do art. 570.º, n.º 2, do CC. De um lado, porque não é consensual a qualificação da responsabilidade do devedor por atos dos representantes legais ou dos auxiliares como objetiva em sentido verdadeiro e próprio[9] e, de outro lado, porque essa responsabilidade não deve, sem mais, ser afastada pela culpa do lesado, impondo-se antes levar em linha de conta a medida da contribuição da conduta dos representantes legais ou dos auxiliares do devedor – que é vista como se fosse do próprio devedor – e do lesado para a produção do dano.

3. Por último, a circunstância omitida na declaração inicial de risco não contribuiu, minime que seja, para a ocorrência do sinistro.

Abuso do direito

1. De acordo com a Ré/Recorrente, “Da matéria provado nos números 2 e 7 da fundamentação facto, resulta evidente que foi a Segurada/Recorrida que não cumpriu com o dever de declaração inicial do risco, prevista no art.º 24º, n.º 1 do RJCS, pelo que, não pode agora ser beneficiada por essa omissão do Mediador por si escolhido, sob pena de se incorrer em “abuso de direito”, tal como se encontra consagrado no art.º 334º do C. Civil, na medida em que seria beneficiada pelo incumprimento do Mediador que escolheu, para propor o contrato de seguro à Recorrente e que não actuava em representação ou no interesse desta”.

2. Conforme referido supra, foi a Ré/Recorrente que violou o dever que sobre si impendia de informar a Autora/Recorrida sobre a exclusão/limitação da cobertura em causa.

3. Levando em linha de conta as “Condições Particulares” do contrato celebrado, na cobertura furto/roubo foi fixado um limite máximo de indemnização no valor de € 300 000,00, por terem sido apurados nos capitais seguros mobiliário e equipamentos no valor de € 200 000,00 e mercadorias no valor de € 100 000,00. Assim, ficou estabelecido que o seguro cobria os riscos por furto/roubo até ao limite de € 300 000,00, com uma franquia de 10% e um limite mínimo de € 75,00. Para o “declaratário normal”, colocado na posição do “declaratário real” (segundo o critério do art. 236.º, n.º 1, do CC) – que é uma sociedade comercial que se dedica à “indústria de fabricação de calçado”, cuja atividade se desenvolve através de “confeção a feitio” – o risco de furto/roubo ou de danos nas matérias primas ou nos produtos acabados  existentes nas suas instalações, que são propriedade de terceiro, encontrar-se-ia coberto pelo seguro acordado. É esse o sentido que o destinatário médio – com as características específicas e do mesmo tipo do “destinatário real” - retiraria das referidas condições particulares, na ausência de qualquer informação sobre a exclusão/limitação da cobertura constante de outras cláusulas. Importante para si era transferir para o segurador o risco de furto/roubo ou danos em matérias primas ou produtos acabados de terceiros, porquanto “mais de 90% das mercadorias que se encontram nas instalações da Autora – matérias-primas, produto acabado, desperdícios de produção – pertencem aos seus clientes”.

4. Não se verifica a existência de qualquer conduta contraditória da Autora/Recorrida. O venire contra factum proprium pressupõe dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si, mas diferidas no tempo, sendo o primeiro - o factum proprium — contraditada pelo segundo — o venire.

5. O venire só é proibido quando afronte, de modo inadmissível, uma situação de confiança legítima gerada pelo factum proprium.

6. Não se verifica, in casu, a existência de oposição entre as condutas da Autora/Recorrida: a omissão, na declaração inicial de risco, de que a quase totalidade das “mercadorias” existentes nas suas instalações pertence a terceiros e a identificação, perante a Ré/Recorrente, da sua atividade como “calçado e artigos em pele – fabrico couro e artigos em couro”, de um lado e, de outro, a exigência da indemnização decorrente dos danos causados pelo furto das mesmas.

7. Reitere-se, aliás, que sobre a Ré/Recorrente impendia o dever de informar a Autora/Recorrida de toda e qualquer exclusão ou limitação de cobertura, independentemente da relevância que, concretamente, elas pudessem assumir para a última. O art. 18.º, al. c), do RJCS, não distingue entre exclusões/limitações significativas e não significativas para o tomador do seguro. Onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir (ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus). Afigura-se, assim, despiciendo, também para este efeito, que a Ré/Recorrente não tenha sido informada de que a Autora/Recorrida desenvolvia a sua atividade mediante “confeção a feitio”.

8. Por último, na medida em que C…, Lda. exerce a sua atividade de mediação de seguros na categoria de “agente de seguros”, agindo em nome e por conta da Ré/Recorrente, salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o segurador não pode prevalecer-se ”de facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexato ou, tendo sido omitido, conheça” (arts. 24.º, n.º 3, al. d), do RJCS e 259.º, n.º 1, do CC). Convoca-se a exigência de um comportamento conforme com a boa-fé por parte do segurador.

9. Não existe, pois, abuso do direito por parte da Autora/Recorrida


IV – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto por Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. e, consequentemente, confirma-se o acórdão do Tribunal da Relação …, ainda que com diferente fundamentação.

Custas pela Ré/Recorrente.

Lisboa, 26 de janeiro de 2021.


 Sumário: I. A remissão para o regime comum da anulabilidade não conduz ao afastamento das regras especiais estabelecidas no art. 25.º, n.os 1 e 2 , do RJCS. II. A anulabilidade encontra-se sanada pelo decurso do tempo e também por confirmação tácita (art. 288.º do CC) – caso de dupla sanação do vício -, porquanto a Ré procedeu ao pagamento de parte da indemnização devida à Autora após o conhecimento do vício. III. Mesmo que o mediador – agente - houvesse celebrado o contrato de seguro em nome e por conta da Ré, sem ter os correspondentes poderes de representação, o contrato sempre se consideraria ratificado, nos termos do n.º 2 do art. 30.º do RJCS. IV. O legislador, no RJCS, estabelece o dever geral do segurador de informar o tomador do seguro sobre o âmbito do risco que se propõe cobrir e sobre as exclusões e limitações de cobertura. V. A inobservância deste dever é suscetível de originar deveres de indemnizar do segurador no caso de se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil. VI.  Visando o dever de informação assegurar as condições necessárias à autodeterminação do tomador do seguro, da sua violação decorre a obrigação de colocar o tomador o seguro/segurado na situação em que estaria se esse dever houvesse sido corretamente cumprido, que seria a de não celebração do contrato de seguro concretamente negociado e a conclusão de um contrato que acautelasse as suas necessidades (art. 562.º do CC). VII. O recurso a mediador não isenta o segurador do respetivo dever geral de informação (art. 29.º do RJCS: a existência de deveres de informação análogos a cargo do mediador não implica a substituição dos deveres do segurador pelos do mediador). VIII. O segurador pode servir-se do mediador para o cumprimento desse dever, mas não se exime à responsabilidade pela atuação dos sujeitos de que se sirva para o seu cumprimento, nos termos do art. 800.º do CC, que é também aplicável à responsabilidade pré-contratual. IX. Se houver praticado um ato ilícito, o terceiro/auxiliar (dependente ou independente) pode ser responsabilizado diretamente pelo credor, sem prejuízo de se manter a responsabilidade obrigacional do devedor à luz do art. 800.º. Nesse caso, o terceiro e o devedor poderão ser solidariamente responsáveis (art. 497.º, n.º 1, do CC). X. A consagração dos deveres de informação a cargo do segurador implica um desvio ao ónus do sujeito de obter individualmente, por si mesmo, a informação relevante, postulando o afastamento do concurso da assunção do risco ou de culpa própria em caso de sobrevirem danos. XI. Não se verifica a existência de oposição entre as condutas da Autora: a omissão, na declaração inicial de risco, de que a quase totalidade das “mercadorias” existentes nas suas instalações pertence a terceiros e a identificação, perante a Ré, da sua atividade como “calçado e artigos em pele – fabrico couro e artigos em couro”, de um lado e, de outro, a exigência da indemnização decorrente dos danos causados pelo furto das mesmas.


Este acórdão obteve o voto de conformidade dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros Adjuntos António Magalhães e Jorge Dias, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).

Maria João Vaz Tomé (Relatora)

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[1] Cf. Vanessa Louro, “Declaração Inicial do Risco no contrato de seguro: Análise do regime jurídico e breve comentário à jurisprudência recente dos Tribunais Superiores” in Revista Electrónica de Direito, Junho 2016, n.º 2, Faculdade de Direito, Universidade do Porto, pp. 11 e ss. - disponível para consulta in https://cije.up.pt//client/files/0000000001/3_651.pdf.
[2] Cf. Vanessa Louro, “Declaração Inicial do Risco no contrato de seguro: Análise do regime jurídico e breve comentário à jurisprudência recente dos Tribunais Superiores” in Revista Electrónica de Direito, Junho 2016, n.º 2, Faculdade de Direito, Universidade do Porto, p. 26 - disponível para consulta in https://cije.up.pt//client/files/0000000001/3_651.pdf.
[3] Cf. José A. Engrácia Antunes, Direitos do contratos comerciais, Coimbra, Almedina, 2009, p.492.
[4] De resto, isto mesmo resulta da informação disponibilizada pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões - https://www.asf.com.pt/NR/exeres/A015B07D-2EC7-49DF-9D7D-C79CF2BFA680.htm?search=239187191000194149001194147004195159099121125125096195160050085093085070069089023007084064094085091028082069194158194149194148195160076096092084090069017194144&ORIGINALGUID=%7b4B579C33-957A-4232-83EC-06B1EBDA404C%7d&MediadorId=208436. Conforme o art. 514.º, n.º 1, do CPC, notoria non egent probationem: por serem de conhecimento geral, também o tribunal os conhece. Um facto é notório quando o Juiz o conhece como tal, colocado na posição de cidadão comum, regularmente informado, sem necessidade de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos. Os factos notórios são geralmente de conhecimento geral, id est, factos que um grande número de pessoas conhece com segurança ou cuja perceção é de divulgação corrente ou geral.
[5] Cf. José A. Engrácia Antunes, Direitos do contratos comerciais, Coimbra, Almedina, 2009, p.461.
[6] Cf. Cláudia Alexandra dos Santos Madaleno, A Responsabilidade obrigacional objetiva por fato de outrem, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2014, pp. 969 e ss. – disponível para consulta in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/22242/1/ulsd071777_td_Claudia_Madaleno.pdf.
[7] Cf. Cláudia Alexandra dos Santos Madaleno, A Responsabilidade obrigacional objetiva por fato de outrem, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2014, pp. 760 – disponível para consulta in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/22242/1/ulsd071777_td_Claudia_Madaleno.pdf.
[8] Cf. Cláudia Alexandra dos Santos Madaleno, A Responsabilidade obrigacional objetiva por fato de outrem, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2014, p. 953 – disponível para consulta in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/22242/1/ulsd071777_td_Claudia_Madaleno.pdf.
[9] Talvez por força da ficção legal, da assimilação dos atos dos representantes ou auxiliares do devedor a atos do próprio devedor, se diga que o art. 800.º  não consagra verdadeiramente uma responsabilidade objetiva por facto de outrem, mas antes uma mera “representação de uma responsabilidade por fato ilícito-culposo do devedor” fundada na lógica do risco/benefício. Cf. Manuel A. Carneiro da Frada, “A responsabilidade obectiva por fato de outrem face à distinção entre responsabilidade obrigacional e aquiliana”, in Revista Direito e Justiça, 2.º dos Volumes Comemorativos dos 30 anos da Universidade Católica Portuguesa e dos 20 anos do seu Curso de Direito, 1998, p.302; Contrato e deveres de protecção, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1994, p.212..