Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3902/19.7T8FNC-A.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃOJSTJ000
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
SIMULAÇÃO
BEM IMÓVEL
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I – Assentando a causa de pedir neste autos na alegada existência do vício de nulidade, por simulação, e no instituto da impugnação pauliana, relativamente ao negócio jurídico celebrado em Portugal entre a vendedora, residente na Namíbia, e a sociedade adquirente, sediada nesse mesmo país, tendo por objecto bens imóveis sitos na Madeira, a discussão desta matéria não tem a ver directamente com o fenómeno sucessório entretanto aberto por morte da transmitente, que se coloca em momento logicamente posterior e autónomo em relação à dita invalidade (ou à ineficácia) do negócio jurídico impugnado, embora possa vir a ter inerentes e consideráveis reflexos (mediatos) no que tange à composição do acervo hereditário respectivo.
II – Assim sendo, a competência internacional do tribunal português para o conhecimento da causa estriba-se, em primeiro lugar, no Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, uma vez que estamos perante uma discussão sobre matéria civil (concretamente sobre a (in)validade de contrato de compra e venda celebrados entre particulares).
III - Nesta mesma medida, torna-se forçoso excluir a aplicação do Regulamento (UE) nº 650/2012, de 4 de Julho de 2012, para aferir da competência internacional dos tribunais portugueses, dado que a discussão desenvolvida nos autos não incide sobre matéria de natureza sucessória.
IV - Excepcionando a situação das acções que estejam previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, constitui condição de aplicabilidade das regras contidas neste Regulamento que o demandado tenha domicílio num Estado Membro da União Europeia.
V – Sendo a acção instaurada por portugueses, residentes em território nacional; não residindo o réu num dos Estados-Membro da União Europeia (in casu, trata-se de uma sociedade sediada na Namíbia); havendo sido realizado em Portugal o negócio jurídico impugnado por nulidade e acção pauliana (compra e venda de imóveis alegadamente simulada); situando-se no nosso país os bens imóveis que constituíram o seu objecto, a competência internacional dos tribunais portugueses é deferida em estreita conformidade com o preceituado no art. 62º, alínea b), do Código de Processo Civil (isto é, ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram).
VI – Pelo que assiste na situação sub judice competência internacional aos tribunais portugueses para o conhecimento da causa, não se verificando a excepção de incompetência absoluta oportunamente suscitada pela Ré.
Decisão Texto Integral:


Processo nº 3902/19.7T8FNC.L1.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).


I - RELATÓRIO.
AA e BB, residentes na Rua ..., em ..., Portugal, instauraram em 30 de Julho de 2019 no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, acção declarativa, com processo comum, contra Sinco Investments Fifty Three (Proprietary), Limited, com sede na República da Namíbia.
Alegaram essencialmente:
As AA. são herdeiras de CC, sua tia, falecida em .../.../2017, em ..., na República da Namíbia, com última residência habitual em ... ..., no estado de viúva, sem descendentes nem ascendentes.
CC instituiu herdeira sua irmã, DD, por testamento público outorgado em 9 de Agosto de 2006.
À data do óbito da CC, DD já havia falecido em .../.../2014, deixando como únicos herdeiros as AA., EE, e FF.
Após o óbito da tia, as AA. e os irmãos deslocaram-se à Madeira para apurarem o património da tia, e vieram a constatar que os bens imóveis ali situados de que era proprietária estavam todos registados a favor da R. desde Outubro de 2013.
Em Outubro de 2013, a falecida CC viu-se confrontada com a possibilidade do BCP avançar com uma acção contra si, com vista ao pagamento da quantia total de €4.083.523,27.
Perante o risco de perder todo o seu património, constituiu, em 28 de Janeiro de 2013, a R., com sede na Namíbia, onde tinha a sua residência, com o objeto social de compra e venda de imóveis, pretendendo simular a transferência de todo o seu património situado na Madeira para a sociedade, de forma a enganar o Banco e evitar que este o pudesse penhorar.
Em 21 de Outubro de 2013, mediante escritura pública celebrada no Cartório Notarial de GG, a falecida vendeu todos os seus imóveis situados na Madeira à R. Sinco Investments Fifty Three (Proprietary), Limited.
Até 2015 a falecida vinha com regularidade à Madeira para se pôr a par da situação dos imóveis, e sempre teve procuradores que a representavam na sua ausência.
Os seus familiares sabiam que tinha simulado a venda, e a falecida manteve-se sempre na posse pública, ininterrupta e pacífica dos imóveis, pagando todas as suas despesas, utilizando contas bancárias de que dispunha na Madeira.
A falecida nunca pretendeu vender os imóveis, o valor de compra declarado na escritura é substancialmente inferior ao valor de mercado, e aquela não o recebeu.
A R. Sinco Investments Fifty Three (Proprietary), Limited nunca exerceu qualquer actividade, apenas praticou aquele acto isolado, nunca obteve rendimentos, e só após a morte da CC apresentou declarações anuais de rendimento.
Em 29 de Novembro de 2018, o mandatário dos herdeiros da CC constituído na Namíbia, comunicou ao Supremo Tribunal de ... que os imóveis localizados em Portugal que pertenciam àquela tinham sido transferidos para a R. e que essa transferência estava reflectida na contabilidade desta.
Os AA. vieram a ter conhecimento que, após a morte da CC, a gerente da sociedade indicada por esta, HH, transferiu a quota única da R. para seu nome, o que nunca foi autorizado pela falecida.
Aproveitando a morte da CC, a referida HH está a tentar dissipar os referidos imóveis pertencentes ao acervo hereditário, tendo-os colocado à venda na imobiliária ERA por valores bem superiores ao que consta da escritura.
Concluíram pedindo que:
a) se declare nula, por simulada, a escritura de compra e venda de 21 de Outubro de 2013;
b) se declare inexistente o direito de propriedade da Ré sobre os imóveis constantes da escritura celebrada em 21 de Outubro de 2013;
c) seja ordenado o cancelamento dos registos de aquisição efetuados a favor da R. na sequência da escritura de compra e venda celebrada em 21 de Outubro de 2013, e de quaisquer registos subsequentes que tenham sido realizados sobre esses imóveis após essa data.
Regularmente citada, a R. contestou, por exceção, invocando, no que ora importa, a incompetência absoluta do tribunal para conhecer da acção, e a ilegitimidade das AA.
Convidadas a pronunciarem-se sobre as exceções deduzidas, responderam as AA. pugnando pela sua improcedência.
Foi proferido despacho saneador, no qual se julgaram improcedentes as invocadas excepções de incompetência absoluta, e de ilegitimidade activa.
Apresentou a Ré recurso de apelação que veio a ser julgado, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 31 de Maio de 2022, parcialmente procedente a apelação, nos seguintes termos:
“a) mantém-se a decisão recorrida quanto à competência internacional do tribunal para conhecer da ação;
b) revoga-se a decisão recorrida que julgou as AA. parte legítima, devendo o tribunal recorrido proferir despacho a convidá-las a suprir a verificada preterição de litisconsórcio necessário activo”.
Veio a Ré interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
I - No dia 9 de Agosto de 2006, no Cartório Notarial ..., CC declarou:
“Que institui herdeiro universal dos seus bens seu marido II também conhecido por II consigo residente;
E, em caso de morte simultânea ou de predecesso deste, asua irmã DD (…)” – cfr. documento de fls. 17 verso a 18);
II - Posteriormente, por escritura lavrada no dia vinte e um de Outubro do ano de dois mil e treze, exarada a folhas cento e trinta e dois e seguintes do cartório notarial         da Doutora       GG, sito no Largo ..., em ..., concelho ..., a     falecida CC vendeu à recorrente, os seis imóveis aí identificados, todos situados na Ilha da Madeira, de onde aquela era natural, continuando a ser dona dos imóveis que ficavam situados na Namíbia e na África do Sul;
III - No dia 10 de Outubro de 2015, mediante testamento escrito celebrado em 10 de Outubro de 2015, em ..., República da Namíbia, CC declarou revogar todas as vontades anteriormente efetuadas por si, em relação ao seu património Namibiano, bem como que esta era a sua ultima vontade e testamento;
IV - CC nasceu em .../.../1937, na freguesia ..., concelho ..., na ... e faleceu no dia .../.../2017, com 80 anosde idade, no estado de viúva de II, em ..., na República da Namíbia, onde teve a sua última residência habitual em ... ... (cfr. documento de fls. 20 verso e 21).
V - No dia   nove de       Maio do ano de 2018, com base no testamento acima referido, feito no dia nove de Agosto de dois mil e seis, mediante escritura pública de “Habilitação” lavrada em 9 de Maio de 2018 no Cartório Notarial ..., sito na Rua -A, ..., ..., JJ, KK e LL declararam que “têm perfeito conhecimento de que aos doze dias do mês de Dezembro do ano de dois mil e sete, em ..., República da Namíbia, onde teve a sua última residência em ... ..., faleceu, sem descendentes ou ascendentes vivos, CC, natural da freguesia ..., concelho ..., no estado de viúva de II.
Que, a falecida deixou testamento público, lavrado aos nove dias do mês de agosto do ano de dois mil e seis, iniciado a folhas dez do competente livro de notas número três – A, do extinto Cartório Notarial ... sito no ..., a cargo do Notário MM, atualmente incorporado no arquivo do Cartório Notarial ... a cargo da Notária NN, pelo qual instituiu como herdeiro universal, a irmã DD.
Que a falecida não fez outro testamento ou qualquer outra disposição de bens por morte.
Que, tendo a autora da herança nacionalidade portuguesa e tendo feito testamento antes da entrada em vigor do Regulamento Europeu das Sucessões, Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, mas por aplicação retroativa, nos termos do artigo 83ºdo dito Regulamento, a lei aplicável à sucessão é a lei portuguesa.
Que, à data do óbito da identificada CC a herdeira testamentária, DD, já havia falecido, no dia sete do mês de Fevereiro doano de dois mil e catorze, tendo deixado como únicos descendentes,com direito de representação, nos termos do número 1, do artigo 2041º“;
VI - E é exactamente com base na supra-identificada escritura de      habilitação, que teve na sua origem no testamento feito no dia nove de Agosto do ano de dois mil e seis, que as recorridas pretendem agora impugnar a referida       escritura de compra e venda, feita pela falecida CC, no passado dia 21 de Outubro de .2013, a favor da ora recorrente, sob o argumento de que a mesma foi simulada;
VII - As recorridas pretendem que os bens vendidos em Portugal pela falecida CC             no passado dia 21 de Dezembro de 2013, voltem para o acervo hereditário desta, como expressamente alegam no artigo 56º da sua douta petição inicial:
“ ………pertencentes ao       acervo hereditário         de CC”;
VIII - A falecida CC faleceu sem deixar ascendentes, nem   descendentes, pelo que não tinha herdeiros legitimários;
IX - Como é evidente, a todas as luzes evidente, o conteúdo da escritura de habilitação lavrada no dia nove de Maio do ano de dois mil e dezoito, (conclusão V) não corresponde à verdade, é falso, é nulo, uma vez que no dia 10 de Outubro de 2015, em ..., República da Namíbia, a CC celebrou um testamento e já anteriormente tinha feito um outro testamento;
X - Destes autos consta a informação do Mestre do Supremo Tribunalda República da Namíbia, datada de 2 de Fevereiro de 2019, no sentido de que o testamento de CC, datado de 19 de Outubro de 2015, foi registado e aceite, revogando o anterior datado de 29 de Março de 2012 (cfr. documento de fls. 328);
XI - O advogado das autoras/recorridas na Namíbia, dirigiu ao Supremo Tribunal daquele País, a seguinte carta:
“Assunto: Património da Falecida.(…)
Tenha, por favor em atenção, que atuamos em representação dos legítimos herdeiros do património da falecida CC, cujo património tem a seguinte referência do Tribunal: 161/20..., cujos herdeiros são OO, BB, AA e EE;
XII - Importa chamar a atenção deste Tribunal, que a senhora notária que celebrou a    referida escritura de habilitação, conhecedora do citado Regulamento Europeu, teve o cuidado de esclarecer os outorgantes da mesma, que :
“Que a falecida não fez outro testamento ou qualquer outra disposição de bens por morte.
Que,  tendo a autora da herança nacionalidade portuguesa e tendo feito testamento antes da entrada em vigor do regulamento Europeu das Sucessões, Regulamento (EU) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, mas por aplicação retroactiva, nos termos do artigo 83º, do dito Regulamento, a lei aplicável à sucessão é a lei portuguesa “;
XIII - De forma ardilosa e propositadamente, os outorgantes da referida escritura de habilitação omitiram os testamentos realizados na Namíbia, porque sabiam que se aí declarassem a verdade, a mesma não podia ser celebrada em Portugal e segundo a lei portuguesa;
XIV - Com a presente acção de impugnação da venda feita pela falecida CC a favor da ora recorrente, no passado dia 21 de Outubro de 2013, as recorridas pretendem que os imóveis aí alienados, voltem ao acervo hereditário daquela;
XV - De acordo com a lei Portuguesa, a solução jurídica para o presente problema, está prevista no artigo 2316º do C Civil e não no artigo 242, nº 1, daquele diploma, uma vez que estamos a discutir, uma venda feita pelo testador, após este CC ter feito um testamento;
XVI - O código Civil Português      trata a matéria do seu artigo 2316º, como sendo uma questão de SUCESSÕES;
XVII - A matéria do artigo 2316º do C Civil aparece tratada por todos os autores portugueses, nos livros que versam sobre heranças, testamentos, doações e sucessões;
XVIII - Face ao   acabado de expor, não pode haver dúvidas de que a presente acção de impugnação da venda feita pela falecida CC no passado dia 21.10.2013, a favor da recorrente, tem na sua essência, na sua base, uma questão de sucessão de bens, pois o que se pretende, em primeiro lugar, é que os mesmos voltem ao acervo hereditário daquela;
XIX - No testamento feito na Namíbia, a testadora não se refere aos imóveis situados na Ilha da Madeira, porque no dia 19 de Outubro do ano de dois mil e quinze, data da feitura do mesmo, aqueles já não lhe pertenciam, uma vez que tinham sido vendidos à recorrente, sendo que essa questão, a ser colocada, tem de ser discutida naquele País;
XX - Para resolver a questão das sucessões a nível UNIVERSAL, no dia dezassete de Agosto do ano de dois mil e quinze,  entrou em vigor o Regulamento da EU nº 650/2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, à aceitação e execução de actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, sendo esta lei, repere-se, é deaplicação Universal.
XXI - De acordo com essa lei, a legislação competente para dirimir todos os problemas sucessórios do falecido, é o PAÍS onde este tinha a sua residência habitual;
XXII - No presente caso, não há qualquer dúvida de que a falecida CC          quando        faleceu, tinha a sua residência habitual no País conhecido por Namíbia:
“FACTO B) DO SANEADOR, ADMITIDO POR ACORDO DAS PARTES”
- CC nasceu em .../.../1937, na freguesia ..., concelho ..., na ... e faleceu no dia .../.../2017, com 80 anosde idade, no estado de viúva de II, em ..., na República da Namíbia, onde teve a sua última residência habitual em ... ... (cfr. documento de fls. 20 verso e 21).
XXIII - Logo, de acordo com      os     artigos 21 e 23 do citado Regulamento Europeu nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do  Conselho de 4 de Julho de 2012, a lei competente para dirimir o presente conflito, é a lei da Namíbia;
XXIV- O processo de partilha dos bens deixados pela falecida CC já está a decorrer nos      Tribunais da Namíbia, ou seja, esses Tribunais já preveniram a competência para  decidir todas as questões       relacionadas com o acervo hereditário daquela;
XXV - As    recorridas          sabem que assim é, pois foram contempladas no testamento feito na Namíbia no dia 10/10/2015, pela falecida CC, constituíram mandatário e intervieram activamente nesse processo de partilhas, a decorrer nos tribunais naquele País, não lhes sendo difícil agora, discutir a presente questão, naquelas instâncias judiciais;
XXVI - Ao considerar que os Tribunais Portugueses são os competentes para conhecer do presente conflito, o tribunal recorrido, violou, por erro de interpretação, os artigos 21 e 23 do Regulamento da EU nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho de 2012, que entrou em vigor no dia dezassete de Agosto do ano de dois mil e quinze.
Não houve resposta.
 
II – FACTOS PROVADOS.  
Os indicados no RELATÓRIO supra.


III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
Competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa. Acção em que é pedida a nulidade, por simulação, de contrato de compra e venda de imóveis sitos em Portugal e a sua impugnação pauliana. Aplicação prevalente do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012. Circunstância de a sociedade Ré (transmissária) não se encontrar sediada em Portugal.   Atribuição, nestas circunstâncias, da competência internacional para o conhecimento da causa aos tribunais portugueses (artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil).
Passemos à sua análise:
Discute-se na presente revista a verificação, ou não, da excepção de (in)competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa, tendo em conta que a situação sub judice reveste conexões com diferentes ordenamentos jurídicos (in casu, o português e o namibiano).
Conforme referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in “Manual de Processo Civil”, Volume I, AAFDL, 2022, a página 173:
“A atribuição de competência internacional aos tribunais de um Estado pressupõe que a causa apresenta um ou vários elementos de conexão com a ordem jurídica desse Estado. Elementos de conexão comuns são o lugar da situação dos bens, o lugar do cumprimento da obrigação, o lugar da ocorrência do dano, o domicílio do demandado e a vontade das partes. Estes elementos de conexão são escolhidos em função dos diversos interesses, como, por exemplo, a boa administração da justiça, a efectividade da tutela processual, a harmonia das decisões sobre um litígio, o interesse das partes, a protecção de partes mais fracas e a proximidade do litígio”.
Como é sabido, a Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, prevê, no respectivo artigo 37º, nº 2, que compete à lei de processo fixar os factores de que depende a atribuição da competência internacional dos tribunais judiciais portugueses.
Em conformidade com o disposto no artigo 59º do Código de Processo Civil, tais conexões resultam da aplicação dos critérios estabelecidos nos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil, havendo sempre que ressalvar o que sobre a matéria dispõem os regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais, prevalentes neste domínio.
No caso concreto, a causa de pedir nos presentes autos assenta no alegado vício de invalidade (nulidade), por simulação, nos termos do artigo 240º do Código Civil, bem como no funcionamento do instituto da impugnação pauliana previsto nos artigos 610º a 618º do mesmo diploma legal, relativamente ao negócio jurídico celebrado em Portugal entre CC, residente na Namíbia, como vendedora, e a Ré Sinco Investments Fifty Three (Proprietary), Limited, sediada nesse mesmo país, na qualidade de (formal) adquirente, tendo por objecto a transmissão de bens imóveis sitos na Madeira.
Ora, a discussão desta matéria (invalidade de contratos de compra e venda por simulação, a que acresce o funcionamento do instituto da impugnação paulinana) não tem a ver directamente com a controvérsia que possa suscitar-se no âmbito da sucessão entretanto aberta por morte da vendedora CC, a qual se coloca em momento logicamente posterior e autónomo em relação à causa da dita invalidade do negócio jurídico impugnado.
Concretamente, não se discute nos presentes autos qualquer particularidade jurídica pertinente ao regime sucessório respeitante à herança aberta por morte de CC, sendo certo que a interpretação das respectivas normas jurídicas de natureza sucessória aqui não se coloca.
Ou seja, a controvérsia jurídica em torno da declaração de nulidade da transmissão desse bens da esfera jurídica de CC para a da sociedade Sinco Investments Fifty Three (Proprietary), Limited, que poderá, é certo, conduzir à sua eventual restituição ao património da transmitente, não se integra, em termos imediatos, no âmbito da discussão da sucessão por morte de CC, mormente através da análise do regime jurídico-sucessório aplicável, embora possa naturalmente vir a ter inerentes e consideráveis reflexos (mediatos) no que tange à composição do acervo hereditário respectivo.
A tudo isto acresce a circunstância de, do ponto de vista da própria Ré demandada (que suscita a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses), os bens para si transferidos serem alheios ao fenómeno sucessório que se gerou pelo falecimento da transmitente, não se integrando, na sua singular perspectiva, no acervo hereditário desta, nada tendo a ver com a aplicação das respectivas normas sucessórias.
Assim sendo, a competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa estriba-se, em primeiro lugar, no denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012), que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial, único instrumento legislativo europeu aqui aplicável dado estarmos efectivamente perante uma discussão sobre matéria civil (concretamente sobre a (in)validade e/ou ineficácia de contrato de compra e venda celebrados entre particulares).
Este diploma entrou em vigor na data prevista no seu artigo 81º (vigésimo dia seguinte à sua publicação em Jornal Oficial, que ocorreu em 12 de Dezembro de 2012) e é aplicável às acções judiciais instauradas depois de 10 de Janeiro de 2015 (referido artigo 81º, “in fine”).
Neste tocante, estabelece o artigo 4º do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012:
“1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.
2. As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais”.
Acrescenta o nº 1 do art. 6º do referido Regulamento:
“Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18º , nº 1, do artigo 21º , nº 2, e dos artigos 24º e 25º, regida pela lei desse Estado-Membro”.
O que significa que, excepcionando a situação das acções que estejam previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, constitui condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro da União Europeia.
Para a hipótese desse requisito não se encontrar preenchido – como sucede in casu -, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros será então definida através do recurso às leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).
Neste mesmo sentido, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume I, Almedina, Janeiro 2021, 4ª edição, a página 154, onde se refere:
“(...) se a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para certa acção, nomeadamente em atenção ao seu objecto e ao domicílio do réu, não puder ser resolvida à luz de um regulamento europeu ou de um instrumento internacional, há que resolvê-la à luz do artigo 62º (ou do artigo 63º)”.
Adoptando tal entendimento, vide João Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in obra citada supra, a página 181, onde pode ler-se:
“As regras sobre a determinação da competência segundo o Regulamento 1215/2001 só são aplicáveis, em princípio, quando o demandado tiver o seu domicílio ou sede no território de um Estado Membro (artigo 6º, nº 1). Mas quando o litígio apresentar um elemento de estraneidade e entrar no âmbito de aplicação material do Regumento 1215/2012, se o demandado tiver o seu domicílio no território de um Estado-Membro, as regras de competência previstas no Regulamento 1215/2012 devem, em princípio, ser aplicadas e prevalecer sobre as regras nacionais de competência.
Se o demandado não tiver domicílio num Estado Membro, em regra o Regulamento 1215/2012 não é aplicável.”.
Conforme se afirma, a este propósito, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2022 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 4974/19.9T8LSB.L1.S1., publicado in www.dgsi.pt:
“No que tange ao seu âmbito de incidência objectiva, este Regulamento aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição.
Já relativamente ao seu âmbito subjectivo, estabelece o artigo 4º, como critério geral de competência, o do domicílio do Réu: como regra, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente da sua nacionalidade.
Temos, assim, que o domicílio do demandado no território dos Estados-Membros da União Europeia desempenha a função não só de critério geral de competência, mas também de condição para aplicar as regras de competência directa previstas no próprio Regulamento, nos termos do artigo 4º, nº 1.
(...) opondo o litígio duas partes com domicílio fora da União Europeia, nunca seria aplicável o Direito da União Europeia, em particular o aludido Regulamento (EU) 1215/2012. É nesse pressuposto que o artigo 6º do Regulamento sob referência dispõe que “....a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é (...) regida pela lei desse Estado-Membro”.
Precisamente no mesmo sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2022 (relator Oliveira Abreu), proferido no processo nº 533/21.5T8PNF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se consignou que:
“Impõe-se dizer neste particular que constitui Jurisprudência consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça que o âmbito espacial de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da UE.
É o que resulta da interpretação a contrario do art.º 6º, n.º 1 desse Regulamento segundo o qual: “Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.”.
(Em geral sobre esta temática, vide ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2019 (relator Acácio das Neves), proferido no processo nº 2300/18.4T8PRT.P1.S1; 8 de Junho de 2021 (relatora Maria João Vaz Tomé), proferido no processo nº 20526/18.9T8LSB.L1.S1; 15 de Janeiro de 2019 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 27881/15.0T8LSB-A.L1-A.S1, todos publicados in www.dgsi.pt). 
Assim sendo, e ao invés do afirmado e pretendido pela recorrente, torna-se forçoso excluir, para aferir a (in)competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da causa, a aplicação do Regulamento (UE) nº 650/2012, de 4 de Julho de 2012, mormente os seus artigos 21º e 23º, dado que discussão desenvolvida nos autos não incide, como se viu, sobre matéria de natureza sucessória.
A afirmação produzida pela recorrente de que “(...) entende que todas as questões relacionadas com os bens deixados ou pretensamente deixados pela falecida CC devem ser dirimidas no país, denominado Namíbia, onde vivia habitualmente, aquando do seu óbito, tudo de acordo com o citado Regulamento” enferma de um evidente equívoco: a presente acção não se destina a discutir, em primeira linha, o enquadramento jurídico que abrange o fenómeno sucessório da referida autora da sucessão, mas sim, e diferentemente, a questionar a validade de um negócio translativo de bens sitos em Portugal – firmado em 21 de Outubro de 2013 e qualificado de simulado – que a mesma pessoalmente realizou na qualidade de vendedora, em momento temporal em que não se colocava (obviamente) qualquer questão de natureza sucessória respeitante a ela própria (que veio a falecer em .../.../2017).
No mesmo sentido, e para efeitos de aferir da competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente causa, é absolutamente irrelevante que as ora AA. tenham tido, ou não, intervenção no processo de inventário por óbito de CC que se encontra pendente na Namíbia.
Tendo-o feito, essa sua actuação processual, que se prende efectivamente com matéria sucessória, não é a que se encontra, em termos de apreciação substantiva, em discussão nos presentes autos, não integrando o respectivo objecto.
O mesmo sucede com a alegação de que “o Supremo Tribunal da Namíbia já preveniu a competência para conhecer de toda a matéria respeitante à sucessão dos bens deixados pela falecida CC”.
Com efeito, repete-se que a presente acção, e em estreita conformidade com a causa de pedir que a suporta, não versa a matéria sucessória relativa à abertura da sucessão em causa, mas apenas questões de natureza meramente contratual no domínio civil (ainda que com reflexos na composição naquele acervo patrimonial deixado mortis causa).
Por outro lado, o teor da escritura de habilitação feita pelas recorridas serve unicamente, em termos instrumentais, para lhes conferir a imprescindível legitimidade processual activa para a instauração do presente pleito, não se repercutindo na factualidade que aqui concretamente se discute.
Acresce outrossim que o disposto no artigo 2316º do Código Civil, invocado pela recorrente e respeitante à alienação ou transformação de coisa legada, não interfere, por sua natureza, e de modo algum, na atribuição de competência intenacional dos tribunais portugueses.
O que as AA. visam demonstrar, através da forma como concretamente se encontra estruturada a sua causa de pedir e formulado o seu pedido, é que o identificado negócio translativo sobre diversos imóveis foi celebrado com divergência entre a vontade real e a vontade declarada dos contraentes, por via do pacto assumido nesse sentido pelos celebrantes, com o intuito de enganar um terceiro (uma entidade bancária credora da transmitente), nos precisos termos do artigo 240º do Código Civil.
Tal matéria, na sua singularidade própria, nada tem a ver com actos de alienação praticados pela testadora que possam vir a cair na alçada do artigo 2316º do Código Civil, desde logo e na medida em o que verdadeiramente se alega – e que se procura demonstrar - é que inexistiu sequer efectiva e verdadeira vontade da autora da sucessão de transmitir tais bens imóveis à aparente adquirente (tendo permanecido aqueles na sua inteira e exclusiva disponibilidade e não na da transmissária), sendo assim nulo o formal acto de transmissão ou alienação.
Logo, em conformidade com o concreto pedido formulado neste acção e com a respectiva causa de pedir, os bens (em caso da procedência do peticionado) deverão permanecer na esfera jurídica da vendedora e decujus na sucessão a que as AA. entendem ter sido validamente chamadas, mantendo nesse tocante o respectivo título sucessório, não existindo juridicamente qualquer situação de alienação de bens legados.
Concretamente quanto à questão da atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses na situação sub judice:
Na situação sub judice, a Ré tem a sua sede na República da Namíbia, sendo aplicável o artigo 6º, nº 1, do mencionado Regulamento, que, in casu, defere o critério de apuramento da competência internacional para a lei portuguesa.
Ora, tendo sido realizado em Portugal o negócio jurídico impugnado (compra e venda de imóveis), onde igualmente se situam os bens que constituíram o seu objecto, a competência internacional dos tribunais portugueses é deferida em estreita conformidade com o preceituado no art. 62º, alínea b), do Código de Processo Civil, o qual determina que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da acção quando tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram.
É claro, portanto, que a situação de facto exposta na petição inicial deve integrar-se, plenamente e sem a menor dúvida, na previsão normativa do artigo 62º, alínea b), do Código de Processo Civil.
Logo, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o julgamento da presente acção, sobroçando as razões apresentadas pela recorrente com vista à sua pedida declaração de incompetência absoluta daqueles.
 Assim sendo, resta concordar inteiramente com o acórdão recorrido que, desse modo, se confirma.


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) negar a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 30 de Novembro de 2022.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Resende

Graça Amaral

 
V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.