Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2712/18.3T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
DANO BIOLÓGICO
INCAPACIDADE GERAL DE GANHO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 02/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Na determinação do valor do dano biológico na vertente patrimonial relativa à perda da capacidade de ganho, o recurso à equidade implica a consideração da especificidade de cada caso concreto.

II. Porque os valores a atribuir não devem ser arbitrados apenas com base nos elementos objectivos,  não totalmente provados, e por não se conseguir apurar o valor exacto do dano, determinando a lei que o juiz se socorra da equidade, não pode deixar de se tomar em consideração que o acidente provocou ao A. uma incapacidade para a sua profissão habitual e para outras compatíveis com os seus conhecimentos, mas sem que existam elementos nos autos relativos a esse ponto; que o A. tinha 37 anos à data do acidente e hoje terá 46; que não sendo velho para efeitos de reconversão profissional não é jovem e não se afigura fácil obter emprego, mas não é de todo impossível que se dedique a alguma actividade profissional da qual possam provir proventos económicos; que a situação do A. não é equivalente à de alguém que ficou paraplégico ou acamado e sem alternativas; que as indemnizações arbitradas pelos tribunais superiores em Portugal procuram a justiça e equidade mas a mesma só se obtém se os parâmetros decisórios tomarem em consideração casos “paralelos” (na medida em que esse paralelismo se possa identificar em situações tão casuísticas); que há um dever de proporcionalidade e igualdade no recurso à equidade, entende-se que o valor justo deve ser 400.000,00 euros.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório


1. AA intentou acção declarativa, sob a forma comum, emergente de acidente de viação, contra CARAVELA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. (antes denominada Macif Portugal – Companhia de Seguros, S.A.).

Pede a condenação da R. no pagamento da quantia de € 981.600,25, acrescida de juros legais de mora a partir da citação, bem como no que se liquidar em ampliação do pedido ou em incidente de liquidação ulterior.

Pretende, deste modo, ser ressarcido dos danos sofridos em consequência de um acidente de viação ocorrido em 30-9-2013, no IP..., ..., ..., no qual intervieram os veículos ..-..-RR, por si conduzido, e ...-JT-..., propriedade de LeasePlan Portugal-Comércio e Aluguer de Automóveis e Equipamentos, Lda, conduzido por BB, a quem imputa a culpa, estando a responsabilidade civil emergente da sua circulação transferida para a R..


2. O ISS, IP, deduziu, entretanto, pedido de reembolso do subsídio de doença que satisfez ao A. em virtude da situação de doença/incapacidade laboral em que este se encontrou entre 7-2-2018 e 25-9-2018, no montante de € 4.938,06, em consequência das sequelas das quais ficou afectado, por virtude do acidente em apreço nos autos.


3. Na contestação a R., aceitando os factos atinentes à dinâmica do acidente, impugna os danos reclamados, bem como o respectivo montante.

E deduziu o incidente de intervenção principal da FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., na medida em que o acidente em causa também foi de trabalho, estando a responsabilidade infortunística laboral transferida para aquela companhia de seguros; sendo que, por via desse acidente, correu termos um processo no Tribunal do Trabalho, no qual foram arbitradas indemnizações ao A..


4. Admitida aquela intervenção, veio a Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., pedir a condenação da responsável a pagar-lhe:

- a quantia de € 80.008,17, a título de pagamentos já realizados no âmbito da acção de acidente de trabalho;

- a quantia de € 31.240,90, respeitante a Assistência Vitalícia Futura;

- e daquelas que vier despender, o que já se calcula ascender a € 168.508,27, tudo no valor de € 279.757,34, e ainda de juros de mora devidos até efectivo e integral pagamento.


5. Entretanto, a interveniente veio ampliar o pedido antes da audiência de julgamento, a qual foi admitida.


6. Foi determinada, antes da audiência prévia, a realização de perícia médico-legal com vista à avaliação do dano de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.


7. Em sede de audiência prévia as partes acordaram na selecção, em parte, da matéria provada com relevo para a decisão da causa.


8. Realizado o julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu, julgando a acção parcialmente procedente, condenar a R.:

a) A satisfazer ao A. a quantia global de € 762,014,83, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar da citação até efectivo e integral pagamento;

b) A satisfazer ao ISS, IP, a quantia reclamada de € 4.938,06;

c) A satisfazer à interveniente principal a quantia global de € 81.560,88, também acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da notificação da dedução da pretensão e da ampliação do pedido;

d) absolver a R. do demais pedido.


9. Inconformadas, a R. e a interveniente interpuseram recurso.


10. Entretanto, e uma vez rectificada a sentença – em termos de passar a atender também ao valor de € 15.693,70 a título de pensões reclamado pela interveniente – foi declarada extinta a instância, por inutilidade superveniente, relativamente ao recurso interposto pela interveniente e, parcialmente, ao recurso interposto pela R..


11. O Tribunal da Relação veio a conhecer da apelação – na parte subsistente – e proferiu acórdão em que decidiu:

Acorda-se, em face do exposto, e julgando parcialmente procedente a apelação, em:

- condenar a R. a pagar ao A., a título de indemnização, a quantia global de € 308.149,19 (trezentos e oito mil, cento e quarenta e nove euros e dezanove cêntimos);

- absolver a R. do pagamento da quantia de € 4.938,06, reclamada pelo ISS, IP;

- confirmando-se, no mais, a sentença recorrida - com a rectificação constante do despacho de 25-5-2021.

Custas por A. e R., atento o respectivo decaimento.”


12. Não se conformando com a decisão dela apresentou recurso de revista o A., admitido por despacho do tribunal recorrido, no qual se diz:

Admito o recurso, de revista e com efeito devolutivo – art.s 671º, nº 1, e 676º, nº 1, ambos do CPC. Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”


13. Conclusões da revista (transcrição):

1.ª- O montante fixado no douto acórdão (225.000,00€) como indemnização devida ao recorrente, a título de ressarcimento dos danos de natureza patrimonial decorrentes da Incapacidade Permanente Geral de que este ficou a padecer é manifestamente exíguo e insuficiente.

2.ª- A indemnização destinada a ressarcir o dano patrimonial resultante da IPG deve, tal como tem sido fartamente sufragado pela jurisprudência conhecida, representar um capital que reponha a perda de capacidade de trabalho e de ganho perdida e proporcione um rendimento compensatório que se extinga no fim do tempo provável de vida do lesado.

3.ª- Ultimamente, tem-se entendido – e bem – que o lesado precisa de manter o nível de rendimento enquanto viver, mesmo para além da idade da reforma e até ao final da vida (80 anos, em média, atualmente).

4.ª- É, com efeito, depois do final da vida ativa que o lesado mais necessidades tem e mais precisa de manter um nível de rendimentos que lhe permita satisfazer essas suas necessidades suplementares.

5.ª- Sem perder de vista a equidade, será adequado, na esteira do que tem sido decidido em várias decisões dos nossos Tribunais Superiores, que, em casos como o presente, se recorra, como auxiliar de cálculo da indemnização pelo dano material inerente à IPG, à fórmula de cálculo utilizada no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04/04/1995 – CJ – Ano XX – Tomo II.

6.ª- Esta fórmula, na verdade, tem em conta vários fatores relevantes, tais como a progressão na carreira, a erosão monetária, e o crescimento dos rendimentos salariais.

7.ª- Os valores assim encontrados deverão, depois, ser temperados à luz das circunstâncias concretas de cada caso e da equidade.

8.ª- In casu, haverá, desde logo, que levar em conta que, talqualmente se decidiu em ambas as instâncias, a IPG que afeta o recorrente, conquanto não seja de 100%, é total e absolutamente impeditiva do exercício da profissão habitual e de qualquer outra na área das suas competências e habilitações.

9.ª- Através da mencionada fórmula, considerando os fatores relevantes (salário anual de 14.074,00€, idade de 37 anos e grau de incapacidade, que é absoluta para qualquer profissão - IPA) e tendo em conta o período de vida laboral ativa até aos 70 anos e a progressiva baixa da taxa de juro (neste momento e face à realidade atual, é de 0%) encontramos um capital de cerca de 483.000,00€.

10.ª- Será igualmente pertinente lançar mão do método de cálculo usado no douto acórdão deste Venerando Tribunal, de 09/09/2015, proferido no proc. n.º 146/08.7PTCSC.L1.S1, 3.ª Secção.

11.ª- Mediante este método e utilizando os mesmos fatores, chegamos a idêntico valor – ou seja, 464.000,00€ (por arredondamento).

12.ª- Porém, sempre haverá que incrementar substancialmente os sobreditos valores, visto que, como se sabe, a incapacidade que afeta o Autor é, em concreto, total e absoluta para a profissão habitual (IPAPH) e para qualquer outra para a qual tenha competências e habilitação.

13.ª- Será, pois, adequado fixar, através deste incremento, o valor indemnizatório para compensação da incapacidade permanente absoluta para o trabalho em 650.000,00€, montante este que se afigura justo e equilibrado.

14.ª- Este montante não deverá ser alvo de qualquer desconto ou redução por suposto benefício económico e financeiro em razão do recebimento antecipado e de uma só vez, visto que, atualmente, as taxas de juro de depósitos bancários se cifram em 0% e não se vislumbram tendências para subida.

15.ª- Por outro lado, caso esse benefício existisse, seria ele residual e não chegaria para cobrir o malefício inerente à erosão monetária, à inflação dos custos e à evolução dos salários, que a indemnização também deverá prever e compensar.

16.ª- Peca também por escassez, a indemnização (75.000.00€) fixada pelo Tribunal a quo a título de compensação pelos danos de natureza não patrimonial.

17.ª- Em relação ao valor destinado ao ressarcimento dos danos não patrimoniais, deve, no seu arbitramento, atender-se às consequências físicas e morais que para o recorrente resultaram do acidente.

18.ª- A extensa factualidade apurada e que aqui damos por reproduzida fala por si e é esclarecedora quanto às gravíssimas consequências que do acidente advieram para o recorrente.

19.ª- Valendo-nos, pois e uma vez mais, da equidade e tendo em consideração as concretas circunstâncias do caso em apreço e a função ressarcitória e punitiva da indemnização, temos que a justa e equilibrada compensação pelos danos não patrimoniais sofridos deverá corresponder ao montante mínimo de 90.000,00€.

20.ª- Foi este o valor que havia sido fixado em 1.ª Instância, que assim deverá ser revertido e que, caso se entenda que peca, será por evidente defeito.

21.ª- O douto acórdão recorrido violou, entre outras normas, os artºs 352.º, 358.º, 483.º, 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil.

Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, alterando-se o douto acórdão recorrido em conformidade, ou seja, atribuindo ao recorrente o valor correspondente às despesas suportadas e fixando os montantes indemnizatórios destinados a ressarcir o dano patrimonial resultante da IPG e o dano não patrimonial nos valores preconizados,

Assim decidindo, V. Exas. farão, como sempre, INTEIRA e SÃ JUSTIÇA!


14. Foram apresentadas contra-alegações, propugnando a manutenção do acórdão recorrido.


15. Colhidos os vistos por via electrónica, nos termos do art.º 657.º, n.º 2 do CPC, cumpre analisar e decidir.


II. Fundamentação

De facto

16. Factos considerados provados pelas instâncias:

A) No dia 30 de Setembro de 2013, pelas 18h20, ocorreu um acidente de viação no ... (IP...), ao Km 66,4, na freguesia de ..., concelho de ..., na área desta comarca.

B) Neste acidente, intervieram o automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ...-JT-..., propriedade de LeasePlan Portugal – Comércio e Aluguer de Automóveis e Equipamentos, Lda. e conduzido, por sua conta, no seu interesse e ao seu serviço, por BB, e o automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-RR, conduzido pelo ora Autor.

C) O IP... descreve, no local onde ocorreu o acidente, uma curva ligeira, que se desenvolve para o lado esquerdo, considerando o sentido ...-....

D) Comporta duas correntes de trânsito inversas, uma que se processa no sentido ...-... e outra no sentido ... – ....

E) Possui ali uma faixa de rodagem destinada ao aludido sentido ...-... e duas outras faixas, destinadas ao sentido oposto.

F) Nesse local, a separação entre as faixas destinadas ao sentido ... – ... e a faixa afeta ao sentido ...-... é feita através de duas linhas longitudinais contínuas, paralelas entre si, pintadas com tinta de cor branca, no pavimento da via.

G) Sendo que, no espaço existente entre as mencionadas linhas longitudinais contínuas, se encontram colocados, ao longo da via, pinos verticais.

H) No dia, hora e local em que ocorreu o acidente, chovia com intensidade e era já noite, existindo, no local, iluminação pública acesa e em normal funcionamento.

I) O A. conduzia o veículo de matrícula ..-..-RR e transitava pelo IP..., no sentido ... – ...

J) Pela faixa de rodagem mais à direita, atento o seu referido sentido de marcha, junto à berma desse lado.

K) Animado de velocidade não superior a 60 km/hora.

L) Entretanto, também pelo IP..., mas em sentido contrário, ou seja, de ... para ..., circulava o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-JT- ..., conduzido por BB.

M) Ao aproximar-se do ..-..-RR e antes de cruzar com este, saiu “fora de mão”.

N) Fletiu bruscamente à esquerda e invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem, considerando o seu já alegado sentido de marcha.

O) Ao aperceber-se da aproximação, em sentido contrário e na sua direção, do veículo ...-JT-..., o A. travou e desviou-se o mais que podia para o seu lado direito

P) Mas não conseguiu, apesar disso, evitar o acidente.

Q) A condutora do ...-JT-... prosseguiu a sua marcha em direção ao ..-..-RR.

R) E, assim, o ...-JT-... acabou por embater com a sua frente do lado esquerdo na frente e no lado esquerdo do ..-..-RR.

S) O referido embate deu-se em plena metade direita da faixa de rodagem destinada ao sentido que levava o ..-..-RR, junto à berma desse lado.

T) Em virtude do embate, o ..-..-RR girou sobre si próprio e ficou imobilizado na berma direita da via, atento o sentido ... – ..., com a sua frente voltada para os lados de ....

U) Por sua vez, o ...-JT-... prosseguiu a marcha e acabou por se deter, atravessado, na metade esquerda da faixa de rodagem, considerando o sentido ...-..., a cerca de 30 metros de distância do local do embate.

V) A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ...-JT-... achava-se transferida para a R. aqui demandada (ao tempo, denominada Macif Portugal - Companhia de Seguros, S.A.) através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...08, válido e em vigor na data do acidente.

W) Após ter sido desencarcerado, o Autor foi assistido no local e conduzido, imobilizado em plano duro e com colar cervical, ao Centro Hospitalar ..., em ....

X) Deu entrada nos serviços de urgência do referido hospital, politraumatizado e com queixas dolorosas múltiplas, apresentando, além do mais, traumatismo craniano e facial, traumatismo do ombro direito e traumatismo dos membros inferiores, além de várias feridas no corpo.

Y) Na referida unidade hospitalar, o A. foi submetido a vários exames incluindo TAC e RX múltiplos, tendo-lhe sido diagnosticados:

- traumatismos crânio-encefálico e facial.

- fratura sagital da face vestibular do dente 11.

-fratura subtrocantérica do fémur esquerdo

-fratura do calcâneo esquerdo.

- contusões na coxa, joelho e perna direitos.

Z) Foi, de imediato, levado para o bloco operatório, onde foi submetido a intervenção cirúrgica à fratura do fémur, com colocação de material de osteossíntese.

AA) E fez tratamento conservador da fratura do calcâneo, com colocação de aparelho gessado.

BB) O A. permaneceu internado no Hospital ... até 07/10/2013, data em que teve alta hospitalar, não curado.

CC) No dia 10/10/2013, o A. deu entrada no Hospital ..., na cidade do ..., onde ficou internado, para aí prosseguir tratamentos.

DD) Permaneceu ali em repouso absoluto, visto que o pé esquerdo se mostrava muito inflamado.

EE) E, em 14/10/2013, foi submetido a intervenção cirúrgica ao pé esquerdo.

FF) O A. manteve-se internado no Hospital ... até 18/10/2013, data em que teve alta hospitalar para o domicílio, não curado, medicado e com indicações para se manter no leito e em repouso absoluto, e para frequência da consulta externa de ortopedia.

GG) Após 18/10/2013, o A. passou a frequentar regularmente a consulta externa de ortopedia do Hospital ....

HH) Cerca de 45 dias após a alta hospitalar, o A. iniciou tratamentos regulares de fisioterapia e hidroterapia, na Clínica Médica ..., em ....

II) Também no Hospital ..., o A. foi acompanhado e tratado nas especialidades de neurocirurgia, ORL, psicologia, cirurgia maxilo-facial e estomatologia.

JJ) Por neurocirurgia, realizou várias RMN cerebrais, para tentar despistar a origem das tonturas e da sensação de mal-estar cerebral de que o A. se queixava.

KK) Em virtude das mesmas queixas, o A. foi igualmente avaliado e tratado nas especialidades de cirurgia maxilo-facial e estomatologia.

LL) E acabou por ser submetido a intervenção cirúrgica, para exérese dos dentes molares, bilateralmente.

MM) Todavia, apesar desses tratamentos, as mencionadas queixas mantinham-se, acrescendo a elas a manifestação de sintomas de patologias ao nível psiquiátrico.

NN) O A. iniciou, ainda em 2014, consultas e tratamentos regulares, na especialidade de psiquiatria, no Hospital ..., com a médica psiquiatra Dra. CC.

OO) Posteriormente, o A. passou a ser seguido e tratado em consultas de psiquiatria, pelo Dr. DD, no Hospital ..., seguimento que atualmente se mantém, com caráter regular.

PP) Em 30/05/2016, já recuperado da fratura da tíbia, o A. foi internado no Hospital ..., onde foi submetido a nova intervenção cirúrgica (EMOS), em que foi retirado o material de osteossíntese que tinha colocado no fémur.

QQ) O A. teve alta hospitalar, no dia seguinte, ou seja, em 31/05/2016.

RR) E passou, novamente, a deambular apoiado em duas canadianas.

SS) Posteriormente a junho de 2016, o A. manteve-se em tratamentos regulares na especialidade de psiquiatria, tratamentos estes que atualmente se mantêm.

TT) O Défice Funcional Temporário Total sofrido pelo Autor situou-se entre 30/09/2013 e 18/10/2013, entre 30/05/2016 e 31/05/2016, sendo assim fixável num período de 21 dias.

UU) O Défice Funcional Temporário Parcial situou-se entre 19/10/2013 e 29/05/2016, entre 01/06/2016 e 06/02/2018, sendo assim fixável num período 1570 dias.

VV) A Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total situou- se entre 01/10/2013 e 06/02/2018, sendo assim fixável num período total de 1590 dias.

WW) O Quantum doloris é fixável no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período e recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados.

YY) O A apresenta múltiplas queixas somáticas de ansiedade, nomeadamente taquicardia, cefaleias de tensão e alterações gastrointestinais. Apresenta sentimentos de desesperança e ideação tanática passiva revelando alguma dificuldade em projetar-se no futuro. O seu padrão de sono encontra-se alterado, com pesadelos e períodos de insónia intermédia e terminal. A autoestima afigura-se abalada e contraída, sugestiva de alguém que perdeu a chama da vida e o fulgor que lhe era característico. Apresenta maior dificuldade na regulação emocional com períodos de explosão e impulsividade.

ZZ) O A padece de um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico- Psíquica fixável em 34 pontos.

AAA) Quanto à Repercussão Permanente na Actividade Profissional, neste caso, as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual do A., bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

BBB) O Dano Estético Permanente é fixável no grau 2, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as cicatrizes.

CCC) A Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer é fixável no grau 3, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta que deixou de caçar com os amigos.

DDD) O A depende de ajudas medicamentosas psiquiátricas, bem como de tratamentos médicos regulares para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas, nomeadamente de consultas de psiquiatria 3 vezes por ano.

EEE) O A. nasceu em .../.../1976, pelo que tinha 37 anos, à data do acidente.

FFF) Na altura do acidente o A. exercia a profissão de ... e trabalhava para a sociedade F..., Lda.

GGG) Durante o período de incapacidade total para o trabalho – de 30/09/2013 até 06/02/2018 – o A. recebeu parte do seu salário declarado (cerca de 70%) da seguradora de acidentes de trabalho, tendo a aqui R. pago os 30% remanescentes.

HHH) No exercício da sua actividade a interveniente celebrou coma a sociedade F..., Lda. –, um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho, na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice n.º ...59, - cfr. Doc.1 junto com o articulado da interveniente e cujo conteúdo se dá por integralmente.

III) O Autor da presente era trabalhador por conta de outrem da sobredita sociedade comercial.

JJJ) Na vigência da apólice de seguro identificada, foi comunicado à Interveniente a ocorrência de um acidente de trabalho no ... (IP...). Correu termos sob o n.º 34/14...., Comarca ... este –Instância Central Secção de Trabalho ..., processo de acidente de trabalho relativamente ao acidente no qual o Autor foi interveniente.

LLL) Em consequência do sinistro descrito na Petição Inicial, a Interveniente, enquanto seguradora de acidente de trabalho para a qual estava transferida a responsabilidade por acidentes de trabalho no âmbito do contrato de seguro em vigor com a sua segurada, F..., Lda. efectuou o pagamento de diversas indemnizações no âmbito da respectiva apólice.

MMM) Assim: pensão anual vitalícia e actualizável no montante de 8.967,98€ acrescida do valor de 2.241,99€, relativa a familiares a cargo, a serem pagas mensalmente, correspondendo cada prestação 1 /14 da pensão, tendo sido atribuído o subsídio de 5.533,70€, por elevada incapacidade permanente.

NNN) A Interveniente Companhia de Seguros do Trabalho, a título de despesas com o Autor, despendeu ao menos: a. Euros 36.414,47, a título de salários; b) Euros 5.693,70 relativamente a Subsídios previstos pela lei 98/2009.

OOO) O ISSS satisfez ao A., a título de subsídio de doença, entre 07.02.2018 e 25.09.2018 a quantia de 4.938,06 EUR, conforme a certidão junta com o pedido de reembolso respectivo.

PPP) Logo após o acidente, o A. perdeu momentaneamente a consciência e ficou, durante cerca de 3 horas, encarcerado na viatura.

QQQ) Em princípios de 2016, o A., mantendo, além de outras, dificuldades evidentes na marcha, desequilíbrios frequentes e sensação de tonturas, desequilibrou-se e caiu.

RRR) Por virtude dessa queda, o A. sofreu fratura da tíbia esquerda.

SSS) A referida lesão foi tratada através da aplicação de tala gessada.

TTT) Esta mesma lesão implicou que o A. tivesse de interromper os tratamentos de MFR e que tivesse passado a locomover-se com o auxílio de duas canadianas.

UUU) Auferia à data do sinistro o vencimento base de € 545,50 x 14 meses, acrescido de subsídio de refeição no valor mensal de € 129,95 X11 meses, sendo que ao menos em grande parte dos meses dos ano recebia um vencimento maior, sob a denominação de prémio de produtividade, num valor entre os 200 e os 300 EUR e/ou de ajudas de custo, ainda no valor mensal entre os 300 e os 500 EUR.

VVV) As sobreditas “ajudas de custo” não se destinavam a fazer face a despesas que o A. tivesse de suportar por virtude do seu trabalho.

XXX) As sequelas de que o A. padece diminuem a líbido e prejudicam a atividade sexual.

ZZZ) O A. não pode praticar desporto, nem consegue fazer caminhadas prolongadas, como antes fazia.

AAAA) Anteriormente ao acidente o A. praticava caça com frequência, o que lhe dava muito prazer.

BBBB) O apoio e assistência durante o período de incapacidade temporária parcial inicial/défice funcional temporário parcial, por tempo não concretamente apurado, foram prestados pela esposa do A.

CCCC) A Interveniente Companhia de Seguros do Trabalho, a título de despesas com o Autor, a mais do assente em NNN), despendeu:

a. Euros 3.231,90, a título de honorários de consultas;

b. Euros 11.037,47 a título de despesas médicas;

c. Euros 1.694,91 a título de elementos auxiliares de Diagnóstico;

d. Euros 16,01 para a aquisição de aparelhos e próteses;

e. Euros 2.373,54 relativamente a transportes;

f. Euros 3.290,74 a título de prestação a terceira pessoa (1.813,47 EUR) e despesas de adaptação da casa;

g. Euros 816,00 para Despesas com o Tribunal, custas.

DDDD) A Interveniente Companhia de Seguros do Trabalho, a mais do assente em NNN) e na alínea que antecede, mais satisfez ao A.:

a. €552,50 a título de honorários com consultas;

b. €20,00 a título de aparelhos e próteses;

c. €492,00 a título de despesas com transportes;

d. €4226,70 a título de despesas/custas com Tribunal;

e. €11.209,94 a título de pensões.

EEEE) O A. satisfez/pagou/despendeu a quantia de 200 EUR para a realização de exame médico de avaliação do dano corporal, com vista a instruir a presente acção.

17. Factos não provados:

1. Os prémios de produtividade e/ou ajudas de custo assentes em UUU) eram recebidos pelo A. 12 x ano…;

2. Donde, durante o período de ITA (53 meses), o A. teve um prejuízo de € 24.912,65 (€ 470,05 x 53 meses);

3. É de prever, com razoável segurança, que as sequelas de que o Autor padece, tendo em conta que se situam em parte no membro inferior esquerdo, venham a agravar-se com o decorrer dos anos;

4. O A. deixou de andar de bicicleta, o que antes fazia, como desporto de lazer;

5. Em despesas médicas o A. suportou definitivamente a quantia de € 50,00;

6. Em transportes, para acorrer a tratamentos e consultas, despendeu definitivamente a quantia de € 537,60;

7. O Autor necessitou do auxílio da mulher/de 3ª pessoa para a realização das actividades quotidianas, como levantar e deitar e tomar banho durante 53 meses/durante todo o lapso de tempo referido em UU) /em VV).

De Direito

18. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.


As questões que o recorrente coloca no recurso são as seguintes:

(i) Quantificação da indemnização devida a título de compensação dos danos de natureza patrimonial futuros, decorrentes da incapacidade permanente geral para o trabalho (IPG), também denominado défice funcional permanente;

(ii) Quantificação da indemnização adequada ao ressarcimento dos danos de cariz não patrimonial.


19. No que respeita à primeira questão do recurso – quantum indemnizatório por danos patrimoniais futuros – na sentença o valor apurado ascendeu a € 650.000,00 o valor da indemnização pela perda da capacidade de ganho decorrente da incapacidade permanente geral de que o A. ficou a padecer – dano biológico, na sua vertente patrimonial.

O Tribunal da Relação veio a reduzir, na apelação, o valor devido, que fixou em € 225.000,00, com a seguinte justificação:

“No caso, e de relevante, apurou-se que o A., em consequência das lesões sofridas, ficou com uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho  jamais poderá exercer a sua profissão habitual de condutor-manobrador de máquinas, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação profissional – e com uma incapacidade permanente geral – Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica – de 34 pontos; tinha 41 anos de idade à data da alta; auferia, à data do sinistro, o vencimento base de € 545,50x14, acrescido de subsídio de refeição no valor mensal de € 129x11, sendo que, ao menos em grande parte dos meses do ano recebia prémios de produtividade, num valor entre 200 e 300 euros, e/ou ajudas de custo, no valor

mensal entre 300 e 500 euros.

Assim, extraindo todas as consequências da incapacidade permanente de que o A. ficou a padecer devido ao acidente, com reflexos na sua capacidade de ganho durante a vida activa, ou seja, até aos 66 anos, mas reflectindo-se também na sua capacidade de auferir rendimentos para além daquela idade, ou seja, até cerca dos 80 anos, e ponderando tudo em termos de equidade, entende-se ajustada, a título de indemnização, a quantia de € 225.000,00.”


O A. não se conforma e entende que a indemnização arbitrada viola as disposições legais relativas ao calcula da indemnização devida pelo dano em causa.

Vejamos.

Na situação dos autos:

 i) por força da lei, deve observar-se o princípio geral da reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – art. 562º do C.Civil. Havendo que considerar não só o prejuízo causado, como os lucros cessantes – art. 564º, nº 1, do C.Civil. Além disso, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que previsíveis – art. 564º, nº 2, do C.Civil. Não sendo possível a reconstituição natural, a indemnização é fixada em dinheiro – art. 566º, nº 1, do C.Civil.

ii)  sabendo que está em causa o dano resultante da incapacidade permanente para o trabalho, também por força do art. 566º, nº 3, do C.Civil: “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.

iii)  não há dúvidas de que o A. ficou impossibilitado do exercício da sua profissão habitual e de outra compatível com os seus níveis de conhecimento/formação, atento o facto provado AAA) Quanto à Repercussão Permanente na Actividade Profissional, neste caso, as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual do A., bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

iv) Também vem provado que:

EEE) O A. nasceu em .../.../1976, pelo que tinha 37 anos, à data do acidente.

FFF) Na altura do acidente o A. exercia a profissão de ... e trabalhava para a sociedade F..., Lda.

UUU) Auferia à data do sinistro o vencimento base de € 545,50 x 14 meses, acrescido de subsídio de refeição no valor mensal de € 129,95 X11 meses, sendo que ao menos em grande parte dos meses dos ano recebia um vencimento maior, sob a denominação de prémio de produtividade, num valor entre os 200 e os 300 EUR e/ou de ajudas de custo, ainda no valor mensal entre os 300 e os 500 EUR.

VVV) As sobreditas “ajudas de custo” não se destinavam a fazer face a despesas que o A. tivesse de suportar por virtude do seu trabalho.

v) o dano sofrido pelo autor não deve limitar-se ao período de vida activa, mas abranger a sua esperança de vida, que se estima poder ser os 80 anos.

Admitindo-se que o A. recebia anualmente o valor indicado no ponto UUU) e VVV) dos factos provados, tendo à data do acidente 37 anos e sendo a esperança de vida até aos 80, o A. receberia, se continuasse a exercer a sua profissão habitual, mais de 780.000,00 se usamos os valores máximos aí indicados ou cerca de 650.000 se usados os valores definidos nos intervalos, não se contabilizando aqui a progressão salarial, nem quaisquer outros factores.

Na sentença a decisão ponderou estes elementos e decidiu que a indemnização justa seria, na vertente de dano patrimonial futuro, no montante de 650.000, relativa ao dano biológico – “A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a absoluta restrição, no caso, às possibilidades exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de capacidade de angariação de salários: na verdade, a perda de capacidades funcionais, no caso, vai imediata e totalmente reconduzida ao valor dos rendimentos pecuniários auferidos e a auferir previsivelmente pelo lesado.”

Foi assim justificado:

E assim, tendo em conta a idade do Autor à data do acidente; a privação total da capacidade para o exercício da profissão habitual ou outra da sua área de preparação, considerado o rendimento anual estimado a partir da matéria de facto assente (em UUU) (que se calcula em 14.074 EUR), decide-se arbitrar-lhe com referência ao dano apreciando a quantia global de 650.000 EUR, sem prejuízo do que resultará infra quanto à necessidade de subtrair as quantias recebidas com vista a indemnizar o mesmo dano do reclamante ISS e da interveniente…”

Também se disse:

“Sendo certo que ao caso dos autos é impossível a reparação natural, a mesma deverá ser feita em dinheiro (art. 562º e 566º, n.º 1 do Código Civil).

Ora, só com base na equidade é que se pode liquidar o dano decorrente da Incapacidade Funcional do demandante, na medida em que o tribunal dispõe dos elementos para determinar tal dano, mas não o seu valor exacto (art. 566º, n.º 3 do Código Civil).

É, finalmente, ainda caso de aplicação ou consideração da jurisprudência adoptada pelos Acórdãos da Relação do Porto de 06.12.2007 e do STJ de 22.10.2009, ambos acessíveis em www.dgsi.pt, nos termos da qual é em relação à profissão habitual exercida pelo lesado e às consequências do acidente – e não em função de uma incapacidade laboral indiferenciada – que o tribunal deve atender para calcular a perda da capacidade de ganho, como relevante dano directo e futuro.

É que na situação decidenda, não obstante a IPP da qual ficou o Autor a padecer não o seja de 100%, nos termos assentes, é-o total e absolutamente incapacitante quanto à profissão habitual exercida pelo lesado e para qualquer outra da sua área de preparação.

Sempre a tarefa de quantificação, em dinheiro, do dano não é fácil, pois o recurso à equidade permite sempre uma certa margem de discricionariedade, dando azo a que se possam julgar de modo desigual situações idênticas ou equiparáveis.

Tem-se procurado diminuir esse risco através da utilização de exemplos jurisprudenciais versando situações em que sejam aproximadas as respectivas circunstâncias concretas. Todavia, face à multiplicidade de factores que influenciam cada caso e ao peso relativo que cada um deles pode representar no cômputo indemnizatório, esse exercício não dispensa uma avaliação própria e específica.

Desde logo, julgamos inteiramente pertinentes as considerações do Acórdão do STJ de 22.05.2019, acessível na base de dados da dgsi, quanto à necessidade de não considerar directa e imediatamente os resultados das tabelas de cálculo disponíveis, que outrossim se constituem como tecto máximo, hoc sensu…

De acordo agora com a síntese feita pelo Ac. do STJ de 19.6.2019, na mesma base de dados, com recurso ao elenco pertinente de arestos relevantes, a atribuição de indemnização por perda de capacidade de ganho/dano biológico patrimonial, segundo um juízo equitativo, tem-se baseado em função dos seguintes factores principais: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações; a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, ou da previsível actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado.

Na mesma decisão do STJ, reitera-se o que há muito se refere na jurisprudência: a indemnização para reparação da perda da capacidade futura de ganho deve apresentar como conteúdo pecuniário “um capital produtor do rendimento que o lesado deixará de perceber em razão da perda da capacidade aquisitiva futura e que se extingue no termo do período de vida, atendendo-se, para o efeito, à esperança média de vida do lesado”, sem deixar de “considerar a natural evolução dos salários”. Neste âmbito, será de entender como relevante o valor líquido da remuneração auferida pelo lesado, uma vez que tal corresponde em rigor à aplicação da teoria da diferença consagrada no art. 566º, 2, do CCiv. e “não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa média de vida (…) e ao período de vida ativa (em regra, até aos 75 anos), bem como à natural progressão na carreira e ao previsível impacto na massa salarial a receber”.

Por fim, é ainda de registar que, “ponderando-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros”, importa “introduzir um desconto no valor achado, condizente ao rendimento de uma aplicação financeira sem risco, e que, necessariamente, deverá ser tida em consideração pelo tribunal que julgará equitativamente”. No entanto, como se advertiu no Ac. do STJ de 19.4.2018, “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva atualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzido (…), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento”.

Desde logo, quanto ao recurso ao apelidado método comparativo com outras decisões semelhantes de tribunais superiores para a fixação do valor da indemnização pelo dano biológico com recurso à equidade, cumpre-nos pois referir aqui algumas decisões que podem ter para o caso concreto, relevo: Os ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 26-01-2017, PROCESSO N.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1; de 19-04-2018, PROCESSO N.º 196/11.6TCGMR.G2.S1; de 19-09-2019, Processo n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1 e de 30-05-2019, todos na base de dados da dgsi.”


A situação colocada no presente recurso no que respeita à quantificação da indemnização devida pelo dano biológico sofrido pelo A., incluindo a determinação do dano futuro por perda da capacidade de ganho, teve soluções muito diversas nas instâncias.

Na sentença a indemnização foi fixada atendendo a um valor de salário de 14.074,00/ano, considerando-se o autor com uma esperança média de vida até aos 83 anos e sem que o défice funcional permanente de incapacidade de 34 pontos influísse negativamente no apuramento. Chegou-se aqui ao valor de 650.000 euros.

No acórdão, a situação foi revertida por se considerar que o valor objectivo do salário anual multiplicado pelos anos de vida possível (até 80 anos) só devia ser fixado com a ponderação do défice funcional permanente de incapacidade de 34 pontos. Chegou-se aqui ao valor de 225.000 euros.

Em ambas as decisões o montante indemnizatório foi fixado com recurso à equidade, por não se conseguir determinar o montante exacto do dano, mas vindo este por provado – art.º 566.º, n.º 3 do CC.

Em ambas as decisões as considerações sobre como se calcula o valor do dano apontam para critérios idênticos, à excepção do modo como o DFPIFP (défice funcional permanente de Integridade físico-psíquica) deve reflectir-se no apuramento.

Foram usados ainda os critérios habituais na fixação deste tipo de dano: idade do lesado à data do acidente; esperança de vida; idade de vida activa; necessidade de encontrar um valor justo, que se esgote no fim do período de vida activa; potencialidade de evolução na profissão, etc.

Porque a fixação do quantum indemnizatório segundo juízos de equidade  não envolve uma “questão de direito”, mas já a verificação sobre se os critérios utilizados nesse juízo podem ser entendidos como integrando o problema jurídico e não apenas o fáctico, o STJ tem procedido nos seus arestos à verificação da conformidade dos critérios concretamente usados com os critérios habituais na jurisprudência e procedido a uma comparação de situações, com vista a adaptar as soluções ao princípio da igualdade e proporcionalidade e, quando necessário, – por via dessa análise crítica – definir ele próprio o valor que considera equitativo, iremos adoptar, no presente caso, o mesmo método.

Olhando para as decisões em confronto, parece deduzir-se delas que na sentença se considerou irrelevante o DFPIFP, porque se valorizou o facto provado de a lesão sofrida ter conduzido a uma repercussão permanente na actividade profissional, em que as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual do A. e bem assim de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional – facto AAA – o que equivaleria a haver um incapacidade total e permanente para o exercício da profissão, a compensar. Diversamente, a 2ª instância, ainda que reproduzindo o facto provado AAA, operou um desconto no montante devido, considerando que os valores objectivos usados pela 1ª instância, só deviam ser considerados na proporção de 34% (retirada dos 34 pontos do DFPIFP).


A questão que se coloca a este STJ é de enorme dificuldade. Pede-se que meça o valor do dano do A. numa situação em que as instâncias se pronunciaram por valores tão dispares, ambas indicando que o fazem segundo critérios de equidade – ou de justiça do caso concreto.


Ora, entre as duas posições assumidas pelas instâncias pode tentar-se encontrar uma solução intermédia, mais conforme com os contornos do caso concreto e com a ideia de justiça proporcional e comparativa com situações já submetidas a julgamento. Solução que passe por uma ponderação dos elementos objectivos do caso concreto – a idade do lesado à data do acidente; a sua situação de pessoa saudável; a sua remuneração habitual antes do acidente; a sua esperança de vida; a sua qualidade de vida; o valor do salário mínimo nacional; as suas qualificações e possibilidades de reconversão profissional dentro da profissão e no local onde reside e tem o seu centro de vida; o facto de o mesmo não ser nem velho nem jovem para a reconversão profissional mas não dever assumir-se que ficará inativo até à idade de reforma; as sequelas do acidente na sua pessoa como um todo – integrando a componente física e psíquica e sem esquecer que esta não pode ser desvalorizada, nem comporta uma reação igual em todo o ser humano perante idênticas consequências do acidente.

É, em face deste conjunto de elementos, que a indemnização deve ser fixada e no esforço de a determinar este STJ considera que são de relevar as considerações que se seguem.


- O Autor nasceu em .../.../1976, tendo 37 anos à data do acidente (30 de Setembro de 2013); a alta médica confirmada pela seguradora ocorreu em 6/2/2018, tendo recebido parte (declarada) da sua remuneração até essa data da seguradora da acidente de trabalho (70%) e da Ré (30%) – factos EEE, FFF, GGG, III, MMM (valor total da interveniente anual=8.967,98 +2.241,99 + 5.533,70=16 743,67).

- Na data do acidente auferia 545,50 euros de vencimento base, pago 14 meses por ano, acrescido de subsídio de refeição de 129,95 (onze meses), valores apurados como efectivos.

O valor do vencimento base situa-se em montante inferior ao salário mínimo nacional do ano – 485 euros[1]. Mas o valor percebido situar-se acima do valor mínimo, por via do recebimento de ajudas de custos e prémio de produtividade, não se tendo apurado se estes pagamentos eram mensais e regulares no sentido de serem pagos 12 meses por ano (facto não provado 1.)

- Na sentença o valor da indemnização por dano biológico com perda da capacidade de ganho (dano futuro) foi obtido considerando-se um valor de vencimento anual de 14.074,00 e considerados 46 anos de remuneração, subentendendo-se que a esperança média de vida considerada foi até aos 83 anos de vida do A.

Contudo, a esperança média de vida – segundo dados da pordata[2] – para o sexo masculino não ultrapassa os 78 anos, devendo atender-se a esse elemento por ser mais objectivo.

- Já no que respeita à remuneração, atendendo aos elementos indicados e aos factos provados e não provados, consideramos que deve atender-se ao valor 574,70 euros mensais x 14 meses.

O valor indicado corresponde à média do salário mínimo entre 2013 e 2022, ano em que o valor de referência está fixado em 705,00, o que significa que anualmente o A. deixou de receber, por via de salário na sua profissão habitual, 9 475,25 (incluindo o subsídio de refeição).

- Esse montante deve ser acrescido de algum valor a título de ajudas de custos/prémios de produtividade, que, por não haver prova definitiva do seu valor anual, se deve considerar poder ser um valor de, pelo menos, metade do valor indicado, considerando que o receberia seis vezes por ano.

 Assim, e tomando por referência os valores indicados pelo AA. e dados por assentes (agora no intervalo superior) (cerca de 800 euros), isto significaria no conjunto acrescentar 4 800,00 (tudo somado a conduzir ao valor anual de 14 275,25) – cenário 1 – ou em alternativa poder-se-ia admitir a ponderação da remuneração não regular pelo valor mínimo (500 euros), em seis meses do ano, a acrescentar ao valor de 9.475,25, o que redundaria num vencimento de 12. 475,25 – cenário 2.

Uma vez que se apurou o valor anual e se sabe que o A. tem uma esperança de vida até aos 78 anos, tendo ficado sem condições para o exercício da sua actividade profissional e para outras compatíveis com os seus conhecimentos, pode estimar-se que a indemnização devida poderia rondar entre os 585.000,00, valor global ao qual seriam subtraídos os montantes recebidos da ISS e da interveniente, por conta de remunerações não percebidas na sua função habitual – cenário 1 – ou em alternativa poder-se-ia admitir a ponderação da remuneração não regular pelo valor mínimo (500 euros), em seis meses do ano, a acrescentar ao valor de 9.475,25, o que redundaria num vencimento de 12. 475,25, reportado à esperança média de vida do lesado (78 anos), tudo perfazendo 511.000,00, valor global ao qual seriam subtraídos os montantes recebidos da ISS e da interveniente, por conta de remunerações não percebidas na sua função habitual – cenário 2.

Porque os valores indicados não devem ser arbitrados apenas com base nos elementos objectivos indicados,  não totalmente provados, e por não se conseguir apurar o valor exacto do dano, determinando a lei que o juiz se socorra da equidade, não pode deixar de se tomar em consideração que o acidente provocou ao A. uma incapacidade para a sua profissão habitual e para outras compatíveis com os seus conhecimentos, mas sem que existam elementos nos autos relativos a esse ponto; que o A. tinha 37 anos à data do acidente e hoje terá 46; que não sendo velho para efeitos de reconversão profissional não é jovem e não se afigura fácil obter emprego[3], mas não é de todo impossível que se dedique a alguma actividade profissional da qual possam provir proventos económicos[4]; que a situação do A. não é equivalente à de alguém que ficou paraplégico ou acamado e sem alternativas; que as indemnizações arbitradas pelos tribunais superiores em Portugal procuram a justiça e equidade mas a mesma só se obtém se os parâmetros decisórios tomarem em consideração casos “paralelos” (na medida em que esse paralelismo se possa identificar em situações tão casuísticas); que há um dever de proporcionalidade e igualdade no recurso à equidade

 – Tudo em conjunto, entende o tribunal que o valor justo da indemnização deve ser na ordem dos 400.000,00, valor ao qual tem de ser subtraídas as verbas recebidas da ISS e da Interveniente pelo dano em causa.

Este valor é acima do valor da remuneração anual de 9.475,25 x 41 anos (=388 475,00), o que permite acomodar a diferença de valores entre os montantes acima apresentados, calculados por via da consideração da remuneração não permanente, seja reportado ao valor máximo, seja ao mínimo, seja ao número de meses do seu pagamento, o que se afigura mais equitativo em face do facto não provado 1, sem desconsiderar a dimensão humana do dano sofrido pelo A. e da revolução que o mesmo introduziu na sua vida pessoal, com inúmeras referências nos autos (por especialista médicos) à sua situação psíquica e anímica, que não pode ser desconsiderada no contexto global e no recurso à equidade.



20. Quanto à segunda questão do recurso.

O A. também sofreu, em consequência do acidente, danos não patrimoniais. Na sentença recorrida foi fixado, como compensação por tais danos, o montante de € 90.000,00.

O Tribunal da Relação veio a reduzir, na apelação, o valor devido, que fixou em € 75.000,00.

Para fundamentar a decisão o tribunal recorrido indicou:

“De relevante, nesta parte, importa salientar, entre o mais e essencialmente, que o A.:

- em consequência do acidente sofreu traumatismo crânio-encefálico e facial; fractura sagital da face vestibular do dente 11; fractura subtrocantérica do fémur esquerdo; fractura do calcâneo esquerdo; e contusões na coxa, joelho e perna direitos – tendo sofrido depois, em consequência de uma queda, outra fractura da tíbia esquerda;

- foi submetido a diversos exames e intervenções cirúrgicas;

- esteve internado até 18-10-2013; voltando a ser internado 30-5-2016 até 31-5-2016;

- necessitou de um longo período de recuperação, tendo alta em 6-2-2018;

- as lesões sofridas e as respectivas sequelas determinaram uma incapacidade permanente absoluta para o exercício da sua profissão habitual ou de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, e uma incapacidade permanente geral de 34 pontos;

- mantém tratamentos regulares de psiquiatria, pois apresenta, entre o mais, queixas somáticas de ansiedade; sentimentos de desesperança e ideação tanática passiva; o seu padrão de sono encontra-se alterado; e a auto-estima abalada;

- sentiu dores de grau 5 numa escala de 7;

- ficou com um dano estético de grau 2 numa escala de 7;

- viu a sua actividade desportiva afectada, com repercussão de grau 3 numa escala de 7;

- as sequelas de que ficou a padecer diminuem a libido e prejudicam a sua actividade sexual.

Importa, assim, ponderar, designadamente, a gravidade das lesões sofridas – que implicaram dores de grau 5 numa escala de 7 – os tratamentos a que foi submetido – que implicaram diversas cirurgias – o longo período de recuperação e as sequelas de que ficou a padecer, designadamente, a incapacidade permanente geral absoluta para o trabalho e a incapacidade permanente geral de 34 pontos – a valorar, aqui, na sua vertente não patrimonial, pois afectará o A. na sua vida pessoal, familiar, de lazer, etc, e durante toda a sua vida.

Na fixação do valor o Tribunal recorrido socorreu-se da equidade e procurou aproximar-se de decisões judiciais que considerou de referência e que indicou serem as seguintes: ac. do STJ de 19-9-2019 e ac.s do STJ de 20-2-2020, 5-2-2020, 14-1-2020 e 10-12-2019.


O A. não se conforma e entende que a indemnização arbitrada viola as disposições legais relativas ao calcula da indemnização devida pelo dano em causa, propugnando por uma decisão igual à sentença.

Aí se disse:

“H) Quanto aos danos não patrimoniais, correspondem a prejuízos não susceptíveis de avaliação pecuniária e o montante indemnizatório ou compensatório destes danos, que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (art. 496º, n.º 1 do Cód. Civil), há-de ser fixado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa) ex æquo et bono, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias que, no caso, se justifiquem (arts. 496º n.º 1 e 3 e 566º n.º 3 do Cód. Civil). Podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc.

Enquanto os primeiros podem ser reparados ou indemnizados, os danos não patrimoniais apenas poderão ser compensados.

A ressarcibilidade dos danos morais foi expressamente reconhecida no nosso ordenamento jurídico, conforme decorre do art. 496º do Código Civil que dispõe que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

Do normativo legal ora transcrito resulta claramente que apenas são ressarcíveis os danos não patrimoniais que assumam determinada gravidade, merecedora da tutela do direito.

Conforme refere Antunes Varela (op. cit., pág. 606), “a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquando a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos”, referindo, ainda, que a gravidade apreciar-se-á também “em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”.

Caso se conclua pela ressarcibilidade dos aludidos danos, a indemnização deverá ser fixada em conformidade com o disposto no n.º 3 do citado art. 496º do Código Civil. Assim, “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º”. O montante da indemnização deve, desta forma, ser fixado de forma equitativa, tendo em atenção o grau de culpabilidade, a situação económica do agente e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

No que respeita aos danos não patrimoniais, importa referir que o Tribunal tem, diferentemente da avaliação dos danos patrimoniais, não que verificar "quanto as coisas valem", mas sim que encontrar "o quantum necessário para obter aquelas satisfações que constituem a reparação indirecta" possível (Galvão Telles, Direito das Obrigações, pag. 377). O prejuízo, na sua materialidade, não desaparece, mas é economicamente compensado ou, pelo menos, contrabalançado: o dinheiro não tem a virtualidade de apagar o dano, mas pode este ser contrabalançado, "mediante uma soma capaz de proporcionar prazeres ou satisfações à vítima, que de algum modo atenuem ou, em todo o caso, compensem esse dano" - Pinto Monteiro, Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro 1992, nº 1, 1º ano, APADAC, pag. 20). Como se diz no Ac. STJ 16/04/1991 (BMJ 406-618, Cura Mariano), o art. 496º, do CC, fixou "não uma concepção materialista da vida, mas um critério que consiste que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegrias ou satisfações que, de algum modo, contrabalancem as dores, desilusões, desgostos, ou outros sofrimentos que o ofensor tenha provocado".

Tudo isto é conseguido através dos juízos de equidade referidos no art. 496, nº 3, CC, o que, evidentemente "importará uma certa dificuldade de cálculo" (Ac. cit., pag. 621), mas que não poderá servir de desculpa para uma falta de decisão: é um risco assumido pelo sistema judicial.

No caso dos autos, temos que, como danos não patrimoniais, surgem as dores sofridas pelo Autor com as lesões e ademais a afectação da vida quotidiana e a incapacidade geral de que padeceu e ainda padece, o prejuízo de afirmação pessoal e sexual, o dano estético, tudo conforme matéria assente sob as alíneas RR) a DD) e PPP), XXX) a AAAA).

Todos estes danos assumem um carácter suficientemente grave para permitir a sua tutela pelo direito, sendo que, neles se pode sublinhar, por mais relevante, a dor.

A dor, na definição da Associação Internacional para o Estudo da Dor, traduz-se numa "experiência sensorial e emocional desagradável associada a lesão tecidular ou descrita em termos de lesão tecidular" (João Lobo Antunes, Sobre a dor, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pag. 98), constituindo-se, assim, como uma "experiência subjectiva resultante da actividade cerebral como resposta a traumatismos físicos e/ou psíquicos", ou seja, como resposta, entre outras situações, a um traumatismo de qualquer parte do corpo ou da mente. Esta definição pode ser tomada como "pedra de toque para a aceitação dos seus elementos nucleares, ou seja a dor física e a dor psicológica" (J. Coelho dos Santos, A reparação civil do dano corporal: reflexão jurídica sobre a perícia médico legal e o dano dor, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Maio 1994, Ano III, nº 4, APADAC, IML-Coimbra, pag. 77), devendo -portanto - ter-se em conta, que "o dano-dor abarca a dor física e a dor em sentido psicológico, a primeira resultante dos ferimentos aquando da acção lesiva e das posteriores intervenções cirúrgicas e tratamentos - tendentes à reconstituição natural da integridade física da vítima na situação em que se encontrava antes da lesão, pois, idealmente, procura-se a cura, ou seja, impedir que a lesão corporal deixe sequelas permanentes - integrando a segunda um trauma psíquico consequente do facto gerador da responsabilidade civil, quer resulte duma pura reacção emotiva individual sem relação com qualquer ofensa física, quer seja um reflexo desta" (Coelho dos Santos, ob. cit., pag. 78; cfr., ainda, Mamede de Albuquerque-Taborda Seiça-Paula Briosa, Dor e dano osteoarticular, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Novembro 1995, Ano IV, nº 5, APADAC, IML-Coimbra, pag. 73-86).

Já se vê, assim, que não é fácil descrever esta experiência sensorial, mesmo para quem usa a palavra como instrumento para criação literária. "Virgínia Woolf lamentava a pobreza da língua quando se tratava de descrever a dor física, e Jonh Updike, (...) dizia que «a doença e a dor ...] interessam muito a quem as sofre, mas a sua descrição cansa-nos ao fim de poucos parágrafos»" (João Lobo Antunes, Sobre a dor, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pag. 97). A dor (tal como a doença), "é quase sempre uma experiência individual, intransmissível, profundamente solitária" (João Lobo Antunes, Aluno-médico-doente, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pag. 107), sendo o modo como é sofrida e a angústia que a envolve, fenómenos ideosincráticos, com um acentuado componente cultural (João Lobo Antunes, Sobre a dor, in Um Modo de Ser, Gradiva, 2000, pag. 102).

A avaliação da dor é, por seu turno, sempre algo complicada, por nela deverem intervir muitos factores, como sejam o sexo, a idade, a profissão, o meio social e cultural. Assim, deve ser levado em conta, na falta de outros dados que infirmem estas constatações, que os limiares e a tolerância individual à dor são mais baixos na mulher que no homem e que no mesmo sexo, são tanto mais baixos quanto maior for a emotividade (Pinto da Costa, O Código Penal e a Dor, Revista de Investigação Criminal).

Em termos médico-legais, por seu turno, importa sublinhar que o concreto quantum doloris do Autor em causa, no caso dos autos e na escala valorativa de sete graus (muito ligeiro, ligeiro, moderado, médio, considerável, importante, muito importante), com os dados constantes do processo, deve considerar-se como considerável (cfr., Oliveira Sá, Clínica Médico-Legal da Reparação do Dano Corporal em Direito Civil, APADAC, IML-Coimbra, 1992, pag. 135).

De enorme relevo ainda os défices temporário total e permanente parcial da integridade físico-psiquica. Como os tratamentos e internamentos padecidos. E a necessidade de apoio de terceira pessoa.

A nossa jurisprudência tem, também, caminhado no sentido de considerar merecedor de tutela o prejuízo de distracção ou de afirmação pessoal, valorando-se a diminuição ou anulação da capacidade do indivíduo para obter ou desfrutar os prazeres ou satisfações da vida como consequência directa do dano, desde que se aleguem e provem as actividades lúdicas que, praticadas antes do facto gerador do dano, ficam comprometidas por causa dele. Como refere João António Álvaro Dias (Dano…, ps. 388 - 389), «não merece contestação séria que certas lesões, pela sua gravidade, são susceptíveis de provocar a quem as sofre especialíssimas disfunções relacionais, desenquadramentos situacionais ou alterações comportamentais (na forma de estar e de ser… com os outros) que se repercutem negativamente sobre o trajecto vital (existencial?) do lesado. Quer retirando-lhe a possibilidade de se dedicar a pequenos e edílicos prazeres (…), quer privando-o de deambular fisicamente sustentado no seu corpo ou interagir, de forma profícua ou estéril, com ele, quer de se projectar ou reverberar na humana existência (ou mesmo para além dela) em jeito de auto-retrato. O dano de afirmação pessoal, a que algumas vezes anda associada a designação de dano à vida de relação, mais não é afinal que a lesão do conjunto de capacidade sociais, relacionais, que se expressam ou consubstanciam na capacidade, ou pelo menos na abstracta possibilidade, de a pessoa desenvolver, transformando em acto, uma vida onde pontifiquem momentos mais ou menos intensos de satisfação estética (…), física (…), social (…) e familiar ou outros.»

Acresce o dano estético e o lapso de tempo pelo qual se prolongaram as incapacidades temporárias….

Bem assim o prejuízo de afirmação sexual.

O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, como se viu, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e a do lesado – art. 494º ex vi art. 496º, nº 3, ambos do Código Civil -, aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, etc. Deve ter-se ainda presente que o bem supremo, e por isso o mais valioso, é o bem vida e que, por isso, a indemnização devida por danos físicos e psíquicos deverá calcular-se por referência à que seria arbitrada em caso de privação da vida.

É sabido que quanto a tal tipo de danos não há uma indemnização verdadeira e própria mas antes uma reparação ou seja a atribuição de uma soma pecuniária que se julga adequada a compensar e reparar dores e sofrimentos através do proporcionar de um certo número de alegrias ou satisfações que as minorem ou façam esquecer.

Ao contrário da indemnização cujo objectivo é preencher uma lacuna verificada no património do lesado, a reparação destina-se a aumentar um património intacto para que, com tal aumento, o lesado possa encontrar uma compensação para a dor, “para restabelecer um desequilíbrio verificado fora do património, na esfera incomensurável da felicidade humana” (Pachioni).

Por isso que o valor dessa reparação, como ensina o Prof. Antunes Varela, deva ser proporcional à gravidade do dano, devendo ter-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

A indemnização reveste, assim, no caso dos danos não patrimoniais uma natureza acentuadamente mista: por um lado visa a compensação de algum modo, mais do que indemnizar as dores sofridas pela pessoa lesada; por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico, com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente- v. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 2ª ed., pág. 486 e nota 3 e pág. 488.

Isso mesmo se colhe da lei, nomeadamente dos artigos 495º, 496º, n.º 3 e 497º, todos do Código Civil.

Tudo ponderado, atenta ademais a idade do Autor, julga-se adequada a fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em 90.000 EUR.”

O TR... efectuou o abaixamento do valor encontrado com a seguinte justificação:

Estão em causa danos insusceptíveis de avaliação pecuniária: não se visa tanto a sua reparação, antes uma compensação, procurando proporcionar-se ao lesado meios económicos que lhe permitam melhor ultrapassar a adversidade surgida.

Nos termos do disposto no art. 496º, nº 1, do C.Civil, deve atender-se aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Quanto à fixação do respectivo montante indemnizatório deve seguir-se o critério da equidade, tendo em atenção, de qualquer modo, as circunstâncias referidas no art. 494º do C.Civil – art. 496º, nº 4, do C.Civil. Ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

De relevante, nesta parte, importa salientar, entre o mais e essencialmente, que o A.:

- em consequência do acidente sofreu traumatismo crânio-encefálico e facial; fractura sagital da face vestibular do dente 11; fractura subtrocantérica do fémur esquerdo; fractura do calcâneo esquerdo; e contusões na coxa, joelho e perna direitos – tendo sofrido depois, em consequência de uma queda, outra fractura da tíbia esquerda;

- foi submetido a diversos exames e intervenções cirúrgicas;

- esteve internado até 18-10-2013; voltando a ser internado 30-5-2016 até 31-5-2016;

- necessitou de um longo período de recuperação, tendo alta em 6-2-2018;

- as lesões sofridas e as respectivas sequelas determinaram uma incapacidade permanente absoluta para o exercício da sua profissão habitual ou de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, e uma incapacidade permanente geral de 34 pontos;

- mantém tratamentos regulares de psiquiatria, pois apresenta, entre o mais, queixas somáticas de ansiedade; sentimentos de desesperança e ideação tanática passiva; o seu padrão de sono encontra-se alterado; e a auto-estima abalada;

- sentiu dores de grau 5 numa escala de 7;

- ficou com um dano estético de grau 2 numa escala de 7;

- viu a sua actividade desportiva afectada, com repercussão de grau 3 numa escala de 7;

- as sequelas de que ficou a padecer diminuem a libido e prejudicam a sua actividade sexual.

Importa, assim, ponderar, designadamente, a gravidade das lesões sofridas – que implicaram dores de grau 5 numa escala de 7 – os tratamentos a que foi submetido – que implicaram diversas cirurgias – o longo período de recuperação e as sequelas de que ficou a padecer, designadamente, a incapacidade permanente geral absoluta para o trabalho e a incapacidade permanente geral de 34 pontos – a valorar, aqui, na sua vertente não patrimonial, pois afectará o A. na sua vida pessoal, familiar, de lazer, etc, e durante toda a sua vida.

Pelo que se nos afigura, neste caso, equitativo, como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, o montante de € 75.000,00. O que se encontra na linha de outras situações próximas apreciadas nos tribunais: cfr., para além do ac. do STJ de 19-9-2019, citado pela recorrente, in www.dgsi.pt, os ac.s do STJ de 20-2-2020, 5-2-2020, 14-1-2020 e 10-12-2019, in jurisprudência.cms.org.pt..


A leitura comparada das decisões em confronto permite concluir que as mesmas usaram os mesmos factores de referência na fixação do quantum indemnizatório, mas o elemento equidade conduziu a resultados diversos; no caso do acórdão recorrido o mesmo procurou também justificar o montante com a indicação de jurisprudência recente do STJ.

Porque o recurso à equidade é uma decisão que não envolve a estrita aplicação do direito, mas a consideração do caso concreto, o STJ tem entendido que não deve alterar o juízo equitativo senão em situações gritantes ou desproporcionadas ou se tiver havido decisão que não se pauta pelos critérios habituais das situações paralelas. In casu, nada permite suspeitar que exista desproporção ou afastamento dos critérios usuais, pelo que é de manter o valor arbitrado pelo TR.

Segue-se, assim, a orientação que se acolhe no Ac. STJ n.º 317/12.1TBCPV.P1.S1, de12-11-2020, in www.dgsi.pt:

“Independentemente de estarem em causa danos patrimoniais ou não patrimoniais, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o controlo, designadamente em sede de recurso de revista, da fixação equitativa da indemnização deve concentrar-se em quatro coisas: Em primeiro lugar, deve averiguar-se se estavam preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade. Em segundo lugar, se foram considerados as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida. Em terceiro lugar, se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados — se, p. ex., no caso da indemnização por danos não patrimoniais, foram considerados o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e a situação económica do lesado. Em quarto lugar, se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados. Está em causa fazer com que o juízo equitativo se conforme com os princípios da igualdade e da proporcionalidade — e que, conformando-se com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, conduza a uma decisão razoável.”


Improcede a questão suscitada.


III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é concedida, parcialmente, a revista.

Custas pelo recorrente e recorrido na proporção do decaimento.


Lisboa, 17 de Fevereiro de 2022


Fátima Gomes (relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira

________

[1]Cf. https://www.pordata.pt/DB/Portugal/Ambiente+de+Consulta/Tabela - onde se apuram os dados comparativos, consultada em Jan de 2022.
[2] Cf. https://www.pordata.pt, para esperança média de vida, do homem, consultada em jan de 2022.
[3] No doc. referido na nota anterior destacam-se as ofertas dirigidas a jovens, numa zona com muitos jovens, o que permite antever a dificuldade de obtenção de emprego dos mais velhos, não qualificados – facto notório.
[4] Tomámos aqui em referência o diagnóstico constante do PLANO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL SUPRA CONCELHIO DO TÂMEGA E SOUSA, disponível em https://www.cm-penafiel.pt/wp-content/uploads/2016/09/PDSSupramunicipalTc3a2megaeSousa.pdf: correspondente ao concelho de residência do A. (Penafiel) - em cuja pág. 19/20 consta como elementos característicos relativos às qualificações da população adulta/ aprendizagem ao Longo da Vida: Baixos níveis de escolarização da população em idade ativa (44% da população possui menos que o 1.º ciclo do EB); Baixa proporção de população com habilitações equivalentes ao ensino superior, sendo a grande diferença comparativamente com os valores nacionais situada na faixa etária dos 45-64 anos e 25-44 anos; Falta de oferta de formação para adultos, ajustada a percursos de reconversão profissional. E nas oportunidades/Potencialidades: Elevada proporção de população jovem: o Tâmega e Sousa é a região mais jovem do País, apresentando uma proporção de 17,6% indivíduos residentes com menos de 14 anos, o que supera claramente a Região do Norte (15,4%) e o Continente (15,1%);  Progresso acentuado nos níveis de escolarização, verificado nos últimos anos; investimentos relevantes na rede da oferta formativa (Escola-Hotel em Baião (projeto de investimento privado); Escola Profissional de Arqueologia (Marco de Canaveses)); Escola Profissional de Agricultura: especializou-se nesta área e a estratégia de concentração beneficiou a atração de jovens, registando-se uma procura crescente); Perspetivas de reforço das ofertas vocacionais, com implicações ao nível do conhecimento mais aprofundado do tecido empresarial e no estabelecimento de um quadro de relação para a formação prática; Perspetivas de reforço dos apoios dirigidos a Jovens NEET (nomeadamente Programa Garantia Jovem - ofertas de emprego ou formação, destinado a jovens até aos 25 anos, em situação de desemprego); Potencial das atividades desportivas e do reforço da participação ativa dos agentes associativos para a fixação dos jovens na Região.