Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1324/21.9T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 04/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Restringindo-se o objecto do recurso à questão de saber se os recorrentes cumpriram os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil na impugnação, perante a Relação, da decisão sobre a matéria de facto, se essa impugnação significa uma alteração da causa de pedir da reconvenção, o que não é admitido em recurso, a revista improcede.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA (falecido na pendência da ação, tendo sido habilitados BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL, sendo que o réu marido é também herdeiro do autor) instaurou contra MM e mulher, NN, uma acção na qual pediu que fosse “reconhecida como inexistente a aquisição por usucapião invocada pelos réus, devendo igualmente ser declarado nulo o registo efectuado com base” na escritura de justificação notarial que os réus promoveram, relativamente à totalidade do prédio identificado na petição inicial, sustentando não ter havido a doação constante da referida escritura..

Os réus contestaram, por impugnação e por excepção, e deduziram reconvenção, pedindo que fossem declarados proprietários do prédio em litígio, em virtude de terem a posse com características e duração que fundamenta a aquisição, por usucapião. Alegaram, para o efeito, que o início dessa posse se situou em 1967, na sequência de doação ao réu MM “por seus avós OO e mulher, PP”. Pediram ainda a condenação dos autores no pagamento de uma indemnização “não inferior a € 1.000,00”, por danos não patrimoniais, e em multa e indemnização por litigância de má fé.

Os autores apresentaram réplica, respondendo às excepções e à reconvenção.

A acção veio a ser julgada parcialmente procedente, sendo improcedente a reconvenção. A sentença decidiu nestes termos:

«a) Julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência reconhecer como inexistente a aquisição por usucapião invocada na escritura de justificação celebrada em 7 de março do ano de 2009, no Cartório Notarial de QQ, relativamente ao prédio constante de tal escritura justificação, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 93º, da secção “D”, ou seja, ao prédio identificado em tal escritura na alínea II);

b) Determinar o cancelamento na Conservatória do Registo Predial de ..., e relativamente ao prédio objeto da escritura de justificação mencionado em a), do registo a que corresponde a Ap. 1739 de 2009/05/22, a favor dos réus;

c) Julgar a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo-se aos autores/reconvindos dos pedidos reconvencionais formulados pelos réus/reconvintes.»

Em breve síntese, o tribunal considerou que os factos provados não traduziam «de forma bastante que tivesse havido por parte dos réus uma atuação sobre o prédio em questão correspondente ao exercício de um verdadeiro direito de propriedade sobre o mesmo», nem demonstravam «por referência à data da propositura da ação, uma utilização continuada e mantida do concreto prédio mencionado, durante mais de 20 anos por parte dos réus/reconvintes e dos anteriores proprietários», sendo que cabia aos réus o ónus de provar factos «conducentes à demonstração de que adquiriram por usucapião o prédio em litígio». Julgou ainda não se poder entender que os autores tivessem litigado de má fé.

Os réus recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, impugnando parcialmente a decisão de facto e a solução de direito.

A Relação proferiu acórdão, rejeitando a impugnação de facto, por considerar não cumpridos os ónus impostos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, por não terem indicado, nem «quais os concretos pontos de facto que consideram merecer diferente resposta e qual a decisão» que deveria ter sido proferida «sobre as questões de facto que concretamente deveriam ter impugnado», nem “com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso».

Rejeitada a impugnação de facto, cuja procedência seria necessária à alteração da decisão de direito, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou «improcedente o recurso de apelação”, confirmando a decisão recorrida.

2. Os réus interpuseram recurso de revista excepcional e, subsidiariamente, revista por via “normal”. Nas alegações que apresentaram, formularam as seguintes conclusões:

«I- O presente recurso de Revista Excecional que se interpõe do acórdão da Relação proferido nos presentes autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, tem por objeto a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo de rejeição do recurso dos RR/Recorrentes, consubstanciado no invocado incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º, nº1, a) e c) e n.º 2 a) do NCPC, resultando na não apreciação da prova e consequente mérito do mesmo, devendo tal decisão, por ilegal e em clara contradição com o estatuído no art. 640.º do CPC, ser revogada e substituída por outra, que admita o recurso e, consequentemente, leve à apreciação da prova e do mérito do recurso aí interposto.

II- O Acórdão da Relação de Lisboa de que ora se recorre padece de nulidades sanáveis. O recurso interposto, foi rejeitado, por se entender que não foi observado os ónus previstos no art. 640º, nº1, als. a) e c) e nº 2, a l. a) do CPC.

III. Nos termos do art. 629º do C.P.C, a decisão é recorrível pois o valor da ação é superior à alçada do tribunal de que se recorre e é desfavorável aos recorrentes em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

IV. O douto acórdão recorrido rejeitou o recurso interposto pelos RR/Recorrentes no que se refere à impugnação da matéria de facto, por entender que os aqui Apelantes e ora Recorrentes, não observaram os ónus previstos no artigo 640.° do Código de Processo Civil por não terem "indicado quais os concretos pontos de facto que consideram merecerem diferente resposta e qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto que concretamente deveriam ter impugnado” e também porque “não indicaram, com exactidão as passagens da gravação em se se funda o seu recurso nem transcrevem os excertos que consideram relevantes”.

V- Ora, não podem os ora Recorrentes concordar com tal entendimento, desde logo, porque parte de errados pressupostos: (1) o de que por "passagens da gravação" o legislador se quer referir a "passagens dos depoimentos", sendo que ambos os conceitos são material e substancialmente distintos e (2) o de que é sempre possível aos recorrentes indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravada a audiência de discussão e julgamento, o início e o termo da concreta passagem que se quer evidenciar, o que, por regra, não sucede.

VI- Os ora Recorrentes, nas suas alegações de recurso, identificaram os pontos de facto que consideravam mal julgados, por referência à matéria de facto dada como provada e como não provada, indicaram os elementos de prova que entenderam mal valorados, forneceram a indicação da sessão onde foram prestados os depoimentos das testemunhas que, a seu ver, impunham decisão diferente, com referência ao início e termo dos mesmos, transcrevendo as passagens em causa, bem como referiram qual o
sentido em que, no seu entender, deveria ter sido decidido, o que tanto bastava para que o douto tribunal da Relação devesse ter procedido à reapreciação da matéria de facto, ao
invés de rejeitar, nesta parte, o recurso.

VII- Não se verifica a alegada violação do ónus de especificação dos concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, sendo que os Apelantes especificam de forma bastante explícita, utilizando inclusivamente negrito na formatação do texto, quais as questões a submeter à reapreciação dos Venerandos Desembargadores,
identificando as seguintes:

d) -O falecido autor, pai dos RR, em 2000, doou-lhes o terreno em discussão nos presentes autos, em troca de obras que o réu MM realizou na casa do mesmo, tendo o réu MM construído um estaleiro, um armazém e procedido ao cultivo de frutas e flores;

e. Que desde aquele ano e sem interrupção até à presente data, os RR. mantiveram-se na posse do referido prédio, cultivando-o, utilizando os imóveis por si construídos e usufruindo de todas as suas utilidades e suportando os respetivos impostos e encargos, sem oposição de quem quer que fosse e com conhecimento de toda a gente agindo sempre de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo, por isso, uma posse pública, contínua e de boa-fé, que dura há mais de vinte anos, pelo q ue o adquiriram por usucapião;

f. Os RR. têm agido e agem na convicção de que têm exercido e exercem um direito próprio, correspondente ao direito de propriedade do aludido prédio, à vista de todos, sem oposição de ninguém, de forma pacífica e continuada.

VIII - Identificando de novo tais pontos de facto em sede de apresentação de conclusões do recurso.

IX - Em consequência, a decisão de rejeição do recurso na parte em que se recusa a apreciar a factualidade posta em causa consubstanciada em tal violação, deverá ser revogada e ser o recurso aceite e submetido a julgamento quanto à matéria de facto e sobre o mérito da causa, por falta de verificação dos pressupostos processuais que justificaram tal decisão de rejeição do recurso.

X - Não se verifica a alegada violação do ónus de especificação da decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, sendo clarividente a especificação das decisões que no entender dos Recorrentes deveriam ser proferidas pelo Tribunal a quo, identificando-as no texto do recurso, bem como nas suas conclusões.

XI - Pelo que, também aqui não se alcança que os Recorrentes tenham incorrido no vício supra invocado, pelo que deverá a decisão de rejeitar o recurso com base no invocado incumprimento do ónus de especificação de decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, ser revogada com base na violação do disposto no art. 640.º do CPC e substituída por outra que admita o recurso de Apelação e leve à apreciação da matéria de facto e consequentemente do mérito da causa.

XII - Não se verifica a alegada falta de indicação exata das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

XIII. Nos pontos de facto que considera incorretamente julgados, verdade é que os ora Recorrentes indicaram com precisão os depoimentos que fundam o seu recurso e alegações de recurso, identificando sempre o nome da testemunha em causa e o respetivo ficheiro falta de gravação que serve de base ao suporte de tal depoimento. Resulta apenas da norma que o Recorrente tem de indicar com precisão as passagens da gravação em causa, nunca resultando da norma que a exactidão apenas será viável pela indicação dos tempos do depoimento referenciado.

XIV. Com efeito, os ora Recorrentes identificaram as passagens dos depoimentos, tendo o Tribunal a quo todas as condições de se pronunciar sobre a matéria de facto em causa e sujeita a recurso.

XV - Consequentemente, ao ter decidido como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 640.º do CPC, por adotar uma interpretação não consentânea com a letra e o espírito da norma, devendo tal decisão ser revogada e substituída por outra que
admita o recurso de Apelação e leve à apreciação da matéria de facto e consequentemente do mérito da causa.

XVI - Com tal rejeição, deixou o tribunal da Relação de apreciar questão que se lhe impunha que apreciasse, o que lhe estava vedado, sendo nulo o douto acórdão proferido, nos termos dos artigos 615.° alínea d) e 666.° do Código de Processo Civil, nulidade essa que ora expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

XVII - Mas o certo é que tal entendimento, salvo melhor opinião, encontra-se em oposição ou contradição com o douto Acórdão, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 21/03/2019, no Processo n° 3683/16.6T8CBR.C1.S2,
da 2a Secção, em que é Relatora a Exma. Senhora Doutora Juiz Conselheira Rosa Tching – acórdão fundamento –, cuja cópia se junta, que considera que o Tribunal de Recurso não se deve abster de reapreciar a prova gravada ainda que o recorrente não
indique com "exactidão", as passagens da gravação em que se encontrem registados os depoimentos que impõem decisão diversa.

XVIII - Conforme se refere no mencionado Acórdão fundamento, “É que, como adverte o Acórdão do STJ, de 28.04.2016 (processo n.º 1006/12.2TBPRD,P1.S1.), dando voz à jurisprudência cada vez mais consolidada neste Supremo Tribunal, é necessário que o cumprimento do ónus de a legação p revisto no art.640.º do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspetos de ordem material, por forma a não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no mesmo artigo, havendo, por isso, que extrair do texto legal soluções conformes com estes princípios.

Assim, nesta linha de entendimento, salienta-se, no já citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015 ,que na interpretação da norma do art. 640.º do CPC não pode deixar de se ter em consideração a filosofia subjacente ao atual CPC, acentuando a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos e exigências puramente formais, carecidos de uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação- evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjetivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas combinações ou preclusões processuais.”

XIX- Ambos os Acórdãos – Acórdão recorrido e Acórdão fundamento – foram proferidos no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito – ónus a cargo dos recorrentes que impugna a decisão sobre a matéria de facto
imposto pelo artigo 640° n° 2 alínea a) do CPC – e não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

XX- Pelo que, mesmo que não houvesse qualquer contradição entre acórdãos – e há – sempre deveria tal questão ser discutida e a Revista Excepcional admitida, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 672° do Código de Processo Civil.

XXI- A verdade é que a rejeição liminar do recurso na parte relativa à impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto, quando os ora recorrentes cumpriram o "cerne" material, ou o ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto do seu recurso e de fundamentação concludente da sua impugnação, é uma sanção demasiado gravosa para uma eventual falha de indicação de uma questão meramente formal, ou ónus secundário.

XXII- No caso concreto do autos, tendo os RR/Recorrentes, nas alegações que interpuseram para o Tribunal da Relação de Lisboa, indicado as passagens da gravação em que se fundaram para sustentar ter havido erro na apreciação da prova gravada, com
referência à sessão a que pertenciam e aos minutos indicados na acta de início e fim, tendo transcrito, os depoimentos das testemunhas que, no seu entendimento, serviam
para contrariar a decisão sobre a matéria de facto dada pelo Tribunal recorrido e impunham decisão diversa, que indicaram, bem como tendo referido qual o sentido em
que, no seu entender, deveria ter sido decidido, deve entender-se que cumpriram, no essencial, os ónus impostos pelo artigo 640.° do Código de Processo Civil, como, aliás, entende o douto Acórdão Fundamento, pelo que devia o seu recurso, na parte relativa à impugnação da matéria de facto, ter sido apreciado e decidido.

XXIII- O douto Acórdão recorrido, ao entender que as indicações dadas pelos RR/Recorrentes nas alegações que interpuseram para o Tribunal da Relação de Lisboa e supra explanadas, não cumpriram o ónus imposto pela alínea a) do n° 2 do artigo 640°
do Código de Processo Civil, por "omissão da indicação exacta que se determina na alínea a) do n° 2 do artigo 640.º", optou por tese que o levou a decisão oposta à do douto
Acórdão fundamento.

XXIV- Há pois, oposição de julgados entre os dois Acórdãos (recorrido e fundamento), verificando-se o requisito da alínea c) do n° 1 do artigo 672° do Código de Processo Civil, devendo ser admitida a Revista Excepcional.

XXV- Quando assim se não entenda, então deve ser admitida a Revista nos termos gerais, porquanto entendem os ora recorrentes não se verificar a dupla conforme (impeditiva do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça), porquanto a reapreciação
das provas é um "poder" próprio do Tribunal da Relação, sem qualquer correspondência com a decisão da primeira instância, não existindo, consequentemente, no entender dos ora recorrentes, uma questão comum sobre a qual tenham sido proferidas duas decisões
uniformes, para tanto aqui se dando por reproduzidas as alegações ora produzidas.

Termos em que se requer seja revogado o acórdão recorrido e o recurso interposto pelos ora Recorrentes admitido na parte relativa à impugnação da matéria de facto, com todas as legais consequências.»

Os autores contra-alegaram, sustentando a rejeição ou a improcedência do recurso. Formularam as conclusões seguintes:

«1 - Os recorrentes pretendem pôr em causa uma alegada não admissão do seu anterior recurso, a qual manifestamente não existiu.

2 - E, de qualquer forma, o presente recurso não seria a forma processualmente adequada para reagir a essa não admissão.

3 - Nos termos do art.° 615.°, n.° 4 do CPC também não seria o recurso a forma admissível para reagir a supostas nulidades do Acórdão recorrido.

4- Sucedendo ainda que a alegada nulidade se reporta a uma suposta rejeição do anterior recurso (Conclusão XVI) que não existiu e portanto nada há a apreciar em sede de "nulidades".

5- É por demais evidente que os ora-recorrentes, no seu anterior recurso, não identificaram quais os excertos dos depoimentos das testemunhas de que se pretenderiam prevalecer.

6 - A latere, diga-se que não procederam a essa indicação porque tal era materialmente impossível, dado que as testemunhas nada disseram sobre as questões que os recorrentes pretendiam ver como provadas!!!

7- Não existindo idêntica factualidade na situação apreciada no "acórdão fundamento" que invocam, não pode haver lugar à revista excepcional prevista no art.° 672.°, n.º 1, al. a) do CPC.

8- Não se verificam as condições para ultrapassagem da regra da "dupla conforme".

9 - Não sendo admissível o presente recurso.

10 - De qualquer forma, e no que diz respeito à questão de fundo, a mesma assenta em factualidade que não foi posta em causa pelos recorrentes e resultava da sua própria confissão, factualidade essa que é incompatível com aquela que os recorrentes vieram inovadoramente invocar no seu anterior recurso para a 2.a instância e contradiz totalmente aquilo que tinham alegado na sua contestação.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, ou rejeitado».

3. Vem provado e não provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

“Factos Provados

1. No Serviço de Finanças de ... está descrito, sob o artigo matricial 93, da secção D, um prédio rústico em ... (alínea A) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

2. AA foi, juntamente com os seus 12 filhos, herdeiro de RR, com quem foi casado até ao falecimento desta, sob o regime de comunhão geral de bens (alínea B) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

3. Correu termos, no então Tribunal Judicial de ..., processo de inventário com o n.º 31/73, 2ª secção, por morte de, além do mais, de SS e PP, aí figurando como filho e herdeiro, entre outros, AA, casado com RR, de cuja “Descrição de Bens”, sob a verba n.º 4, consta “Um prédio rústico e benfeitorias, com um palheiro coberto de colmo, no sítio da ..., freguesia de ..., que confina pelo norte com herdeiros de TT, sul com UU e outros, leste com o córrego e oeste com herdeiros de VV; na matriz sob o art. 259 (…). Não descrito na Conservatória do registo Predial de ...”, no âmbito do qual foi, por sentença proferida em 10 de outubro de 1975 e transitada em julgado, adjudicado 7/16 avos do mencionado prédio sob a verba n.º 4 (alínea C) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

4. Atualmente, o prédio n.º 93, referido em 1., confronta também com herdeiros de WW e XX, a Sul com YY, sendo que a antiga parcela que se encontra inscrita sob o art.º 94º confronta com os herdeiros do dito UU, a leste com herdeiros de ZZ e Oeste, atualmente com a Estrada ... 102 (alínea D) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

5. O réu é filho de AA e de sua falecida esposa (alínea E) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

6. Por volta de 2009, AA necessitou de obras em sua casa, as quais foram realizadas por seu filho, o réu (alínea F) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

7. Por escritura pública de justificação lavrada no dia 7 de março do ano de 2009, no Cartório Notarial de QQ, o réu declarou que é “dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, de dois prédios rústicos, sitos em ..., freguesia de ..., concelho de ...:

I) Um com área de duzentos e cinquenta metros quadrados, que confronta a Norte com Herdeiros de TT, Sul e Nascente com Ribeiro e Poente com Estrada ... 101, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 95 da Secção “D” 8…);

II) Outro com área de sete mil e quinhentos metros quadrados, que confronta a Norte e Poente com herdeiros de WW, Sul YY e outros, e Nascente com Estrada ... 102, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 93, da secção “D” (…).

Que nenhum destes prédios se acha descrito na Conservatória do Registo Predial de ....

Declarou também o réu “que os referidos prédios, que então faziam parte do inscrito na matriz sob o artigo 3º da secção “D”, entretanto dividido em quatro prédios, vieram à posse do justificante no ano de mil novecentos e sessenta e sete, no estado de solteiro, por doação não titulada de seus avós OO e mulher PP que também era conhecida por PP (…).

Que desde aquele ano e sem interrupção até à presente data, o justificante manteve-se na posse dos referidos prédios, cultivando-os, usufruindo de todas as suas utilidades e suportando os respetivos impostos e encargos, sem oposição de quem quer que fosse e com conhecimento de toda a gente agindo sempre de forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo, por isso, uma posse pública, contínua e de boa-fé, que dura há mais de vinte anos, pelo que os adquiriu por usucapião, não tendo, todavia, dado o modo de aquisição, documento que titule o seu direito de propriedade” (alínea G) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

8. Na Conservatória do Registo Predial de ..., encontra-se descrito sob o número 1166/20090522, da freguesia de ..., um prédio rústico, sito em ..., com área total de 7500m2, a confrontar a norte e poente com herdeiros de WW, sul com YY e nascente com Estrada ... 102, inscrito na matriz sob o artigo 93, da secção “D”, e aí inscrita, com a Ap. 1739 de 2009/05/22, aquisição a favor dos réus por usucapião (alínea H) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

9. O réu nasceu em 04.10/1964 (alínea I) dos “Factos admitidos por acordo ou provados por documento”).

10. O réu ensaiou culturas de kiwis.

11. Os réus procederam, em parte do prédio referido em 8., ao cultivo de árvores de fruto, como kiwis e maçãs, assim como flores, bem como utilizam o armazém e o estaleiro que os réus construíram.

12. À vista de toda a gente, sem oposição de ninguém.

13. O que foi conhecimento do autor e são e foram do conhecimento de todos os demais filhos.

Factos não provados

a) Após o trânsito em julgado da sentença referida em 3., em outubro de 1975, AA, conjuntamente com os seus irmãos, tios e primos, permutaram entre si os bens que faziam parte do inventário no âmbito do qual foi proferida tal sentença, pondo fim à compropriedade sobre os mesmos;

b) Tendo-lhe sido adjudicados os 9/16 do prédio;

c) Enquanto que os demais herdeiros consensualmente passaram a dar-se como donos de outras verbas constantes do mesmo inventário, nas quais AA, também consensualmente, deixou de ter qualquer direito;

d) Após a construção de duas estradas, o prédio ficou dividido em três novos prédios, inscritos sob os artigos 93º, 94º e 95º;

e) Presentemente corresponde à área total de 7.500m2 e confronta a norte com uma estrada ... entretanto construída e que levou à separação das duas parcelas, atualmente inscritas sob os art.º 94.º e 95.º, as quais, a norte confrontam com os ditos herdeiros de TT e a Leste com o dito córrego;

f) Desde 1976 que o AA e sua falecida esposa vêm agricultando o prédio referido em 1., recolhendo o mato, e a erva, aproveitando o arvoredo e a pastagem, como se seus proprietários fossem, à vista de todos, de forma pacífica e sem oposição de ninguém;

g) O autor veio a autorizar que o réu utilizasse uma furna existente na estrema oeste do prédio e seus arredores para que depositasse material de construção relacionado com a sua atividade profissional empreiteiro;

h) O AA deu autorização para que o réu depositasse os materiais de construção no prédio referido em 1.;

i) Tendo-se verificado a necessidade de acesso àquela furna, AA autorizou que o réu abrisse até aí um caminho a partir da Estrada ...n.º 102;

j) Devido ao forte declive do barranco que delimita a estrada, esse acesso foi aberto a partir do ponto mais baixo do barranco, na zona leste do prédio;

l) Desde então, o réu utilizou a zona em redor de furna, por vezes designada como “...”, para depósito de materiais relacionados com a construção civil;

m) O referido em 10. Ocorreu nas zonas adjacentes à passagem que abrira;

n) Sem que nunca tivesse sido feita qualquer demarcação da área que o réu utilizava;

o) Tal área não atinge uma quarta parte do prédio;

p) O autor nunca teve qualquer conhecimento da doação referida em 7.;

q) O prédio referido em 8., no ano de 1967, foi doado ao réu marido, no estado de solteiro, por seus avós, OO e mulher PP, que também era conhecida por PP, residentes que foram ao sítio da C... .. ......;

r) O referido em 11. ocorreu desde o referido em q), e foi levado a cabo pelos os réus, por si e pelos seus antecessores e, o réu marido, por intermédio pelos seus representantes, enquanto menor, tendo ali procedido ao cultivo nêsperas e anonas;

s) O referido em 12. ocorreu de forma contínua e sem interrupções, sempre na convicção de que não lesavam interesses de terceiros.

t) O referido em 13. verifica-se desde há mais de vinte e trinta anos.»

4. O presente recurso tem como objecto a questão de saber se os recorrentes cumpriram ou não os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil para a impugnação, perante a Relação, da decisão sobre a matéria de facto.

Encontrando-se preenchidos os pressupostos gerais de admissibilidade de recurso e enquadrando-se o acórdão recorrido no n.º 1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, admite-se a revista, com efeito meramente devolutivo (n.º 1 do artigo 676.º do Código de Processo Civil), não sendo caso de “revista excepcional” e, portanto, de envio do processo à Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “a dupla conformidade de decisões da 1.ª Instância e da Relação, nos termos definidos pelo n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, não constitui obstáculo à apreciação da aplicação feita pela Relação, seja dos requisitos exigidos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil para a impugnação da decisão de facto da 1ª Instância, seja dos poderes que são conferidos à 2ª Instância pelo artigo 662.º, no recurso de revista (“normal”, por oposição à “revista excepcional”, que tem requisitos específicos de admissibilidade – artigo 672.º do Código de Processo Civil e pressupõe a ocorrência de dupla conformidade das decisões das instâncias). Observa-se frequentemente que, quanto a uns e a outros, não existem duas decisões, o que, por si só seria suficiente para excluir a eventualidade de dupla conforme” (excerto retirado de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Julgamento de facto em 1.ª e 2:ª Instâncias, Jurismat, n.º 12, 2020, pág. 203 e segs., pág. 216).

5. Como também se recordou em outro acórdãos – por tratar-se de questão repetidamente colocada ao Supremo Tribunal de Justiça –, seguindo-se aqui o acórdão de 11 de Julho de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 121/06.6TBOBR.P1.S1 «Como o Supremo Tribunal de Justiça já por diversas vezes observou (cfr. por exemplo o acórdão de 4 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 e jurisprudência nele citada, e ainda os acórdãos de 29 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 39/2002.E1.S1 ou de 30 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1), “a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão. Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), ‘a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. (…) Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um ‘especial ónus de alegação’, no que respeita ‘à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação’, em decorrência ‘dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta. Daí que se estabeleça’, continua o mesmo preâmbulo, ‘no [então] artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do [então] artigo 705’. O ónus especificamente criado foi, assim, justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma ‘delimitação do objecto do recurso’ e uma ‘fundamentação’, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998). O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, ‘especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgado’ e ‘os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida’. Mas, se ‘os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados’, passou a caber-lhe, ‘sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC’.O artigo 690º-A veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que em sua substituição acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo os ónus referidos (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que implicassem decisão diversa da proferida), mas determinando que, sendo possível ‘a identificação precisa e separada dos depoimentos’, que cabe ao recorrente, ‘sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição’.

Como também se teve já a ocasião de observar (cfr. “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Centro de Estudos Judiciários, Dezembro de 2013, pág. 395 e segs)., a reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de ‘conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto’, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt .

Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente:

– manteve a indicação obrigatória ‘dos concretos pontos de facto’ que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

manteve o ónus da especificação dos ‘concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida’ (al.b),

– exigiu ao recorrente que especificasse a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas’ (al. c),
sob pena de
rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta ‘das passagens da gravação em que se funda’ o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder apresentar a ‘transcrição dos excertos’ relevantes.

Cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, então caberá à Relação julgar o recurso, nos termos amplos acima referidos.”

Estes ónus, no entanto, têm que ser entendidos à luz da respectiva função, como se recorda no acórdão de 29 de Outubro de 2015 deste Supremo Tribunal, www.dsgi.pt, proc. nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, não devendo tornar-se em requisitos desproporcionadamente exigentes, tendo em conta o objectivo, em primeiro lugar, de delimitação e fundamentação do recurso e, em segundo lugar, de permitir ao tribunal de recurso encontrar sem dificuldade os pontos dos elementos de prova gravados que o recorrente tem por mal apreciados: “Percorrendo, deste modo, os regimes processuais que têm vigorado quanto a este tema, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes.(…) o incumprimento do referido ónus secundário, tendente apenas a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contem a gravação da audiência, deverá ser avaliado com muito maior cautela: é que, por um lado, o conceito usado pela lei de processo (exacta indicação das passagens da gravação) é, até certo ponto, equívoco, pressupondo a necessidade de distinguir entre a (insuficiente) mera indicação e a indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados; por outro lado, por força do princípio da proporcionalidade, não parece justificável a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa – não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado (como ocorrerá normalmente nos casos, como o dos autos, em que tal indicação do recorrente das passagens da gravação, é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso)».

Finalmente, importa também lembrar (cfr. acórdão de 8 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1 « (…) que se discutiu, ainda no domínio da lei anterior ao Código de Processo Civil de 2013 e após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 39/95, se, ao apreciar o recurso da decisão de facto sem imediação, mas com base no registo de prova que, em primeira Instância, havia sido produzida e apreciada de acordo com os princípios da oralidade e da imediação, a Relação se devia limitar a verificar a congruência entre o julgamento de facto impugnado e a respectiva fundamentação ou, diferentemente, se lhe cabia decidir de acordo com a convicção a que chegasse, nos termos do princípio da livre apreciação da prova. A jurisprudência que veio a formar-se no Supremo Tribunal de Justiça foi neste último sentido (…). Cfr. apenas como exemplo, os acórdãos de 15 de Maio de 2008, www.dgsi.pt, proc. n.º 08B1205, de 12 de Maio de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 13951/16.1T8LSB.L2.L1.S2, de 17 de Dezembro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 603/17.4T8LSB.L1.S1 ou de 16 de Dezembro de 2020, proc. n.º 4016/13.9TBVNG.P1.S3: “É hoje jurisprudência seguida por este Supremo que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.»

Na verdade, o objectivo do Código de Processo Civil de 2013 de “conferir maior eficácia à 2.ª Instância para o exame da matéria de facto”, a que se fez já referência, não se esgotou na ampliação dos seus poderes, “revelou-se igualmente na consagração expressa da regra da livre apreciação da prova pela Relação, quando julga o recurso sobre a matéria de facto – n.º 5 do artigo 607.º, aplicável à apelação por força do disposto no artigo 663.º, n.º 2 (cfr. por exemplo o acórdão n.º 588/12.3TBPVL.G2.S1).” – mesmo acórdão de 8 de Março de 2022.

6. Foi proferido e notificado às partes o seguinte despacho:

«No ponto IV das contra-alegações apresentadas pelos recorridos no recurso de revista acima identificado, afirma-se o seguinte:

“IV

Aliás, não se consegue perceber com que fundamentos pretendem as alterações da matéria de facto indicadas na sua ‘conclusão VII’, dado que não põem em causa (seria difícil fazê-lo...) a factualidade consagrada no ‘ponto 7’ da sentença da 1.ª instância que se acha em total oposição com a sua pretensão.

A este respeito, cabe transcrever o alegado nas anteriores contra-alegações e recordar que:

...os R.R. tinham peticionado, em sede reconvencional, que lhes fosse reconhecida a propriedade do prédio em litígio, por o terem adquirido por usucapião, ‘no ano de 1967, por doação de seus avós OO e mulher ..’ (art.° 24.° da contestação), tal como consta da escritura de justificação que os AA. vieram impugnar (art.° 23.° da contestação)

Porém, nada disso se provou, e, mais surpreendentemente ainda, o próprio R, confessou ser totalmente falso aquilo que tinha declarado nessa justificação.

Surgindo agora os recorrentes a pretenderem que fique julgado como provado que o seu falecido pai, em 2000, doou-lhes ‘terreno em discussão nos presentes autos...’ (conclusão XVIII) tratando-se de matéria que nunca foi alegada, nem logicamente o poderia ser, dado contradizer frontalmente a posição assumida pelos R.R. no art.° 24.° da sua contestação.

E, nem sequer poderiam invocar uma mais do que fantasiosa doação em 2000, ‘do terreno em discussão nos presentes autos’, quando o próprio ora-recorrente nas suas declarações de parte, apenas reivindicou uma área de 4.300m2 apesar de estar assente que o ‘terreno em discussão’ apresenta uma área muito superior não tendo sido alegado pelos recorrentes qual a zona que estaria abrangida pela sua suposta posse.”

Tratando-se de alegação susceptível de pôr em causa a utilidade do conhecimento da questão de saber se os recorrentes cumpriram ou não os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, na impugnação da matéria de facto que deduziram no recurso de apelação, por eventualmente significar uma alteração da causa de pedir da reconvenção, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, convidam-se os recorrentes a pronunciarem-se sobre essa utilidade, e os recorridos, posteriormente, a responderem, caso os recorrentes venham pronunciar-se.»

Os recorrentes não se pronunciaram.

7. Sendo complexa a causa de pedir do pedido reconvencional, integrada seguramente pelos factos concretos dos quais pretendem retirar a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio por usucapião, mas também, conforme alegam na contestação, a “doação de seus avós”, ocorrida no ano de 1967, facto que relevaria para se saber a que título se iniciou a detenção do prédio em causa – não sendo alegada, na contestação, qualquer doação, em 2000, pelo pai do réu marido, nem factos que poderiam vir a ser entendidos como apossamento (cfr. al. a) do artigo 2363.º do Código Civil e, por ex., o acórdão de 30 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 392/03.0TBCNF.P1.S1), sempre seria inútil determinar a apreciação da impugnação da decisão de facto, posto que se concluísse que estariam preenchidos os correspondentes ónus, impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil.

Restringindo-se o objecto do presente recurso à questão de saber se os recorrentes cumpriram os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil na impugnação, perante a Relação, da decisão sobre a matéria de facto, impugnação essa que, como se admitiu no despacho atrás transcrito, significa uma alteração da causa de pedir da reconvenção, o que não é admitido em recurso, resta negar provimento à revista.

Assim, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 17 de Abril de 2024

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora)

José Maria Ferreira Lopes

Nuno Pinto de Oliveira