Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4902/14.9T2SNT.L1.S1-A
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REQUISITOS
MATÉRIA DE FACTO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OBJECTO DO RECURSO
REVISTA EXCEPCIONAL
REVISTA EXCECIONAL
CONCLUSÕES
CONTA BANCÁRIA
CONTRATO DE MANDATO
Data do Acordão: 02/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: CONFIRMADA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO AMPLIADO DA REVISTA / FUNDAMENTOS DO RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 672.º, AL. C), 686.º, 688.º, N.º1, 689.º, N.ºS 1 E 2, 692.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 2 DE OUTUBRO DE 2014, PROC. N.º 268/03.0TBVPA.P2.S1-A, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. Como em todos os recursos, o objecto do recurso para uniformização de jurisprudência é delimitado pelas conclusões do recorrente, completadas, se necessário, pelo texto das alegações de recurso.

II. O objecto do juízo de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência não coincide com o objecto do juízo de admissibilidade da revista excepcional: neste confrontou-se o acórdão da Relação com o acórdão fundamento; naquele tem de se confrontar o acórdão do STJ (acórdão recorrido) com o acórdão fundamento do STJ.

III. De qualquer forma, ainda que a decisão do STJ fosse idêntica à da Relação – o que não é o caso dos autos –, o juízo de admissibilidade da revista excepcional não condiciona o juízo do relator e da conferência quanto à admissibilidade ou não do recurso para uniformização de jurisprudência.

IV. Não ocorre contradição de julgados, por faltar a identidade do núcleo essencial da matéria litigiosa, condição necessária para que se verifique a identidade da questão fundamental de direito, quando: no acórdão recorrido se decidiu que a ré estava obrigada a prestar contas porque foi feita prova de que a autorização para movimentar as contas foi concedida “no interesse da autora”; enquanto no acórdão fundamento, em que se concluiu inexistir obrigação de o réu prestar contas, não foi feita prova de que a autorização para movimentar as contas do falecido pai das partes tivesse sido concedida no interesse do mesmo.

Decisão Texto Integral:
Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça



1. A fls. 29 e segs. foi proferida decisão de não admissão do recurso para uniformização de jurisprudência com, o seguinte teor:

1. Notificada do acórdão proferido por este Supremo Tribunal em 23 de Junho de 2016, vem AA interpor o presente recurso para uniformização de jurisprudência, invocando contradição entre a solução normativa acolhida naquele acórdão e a adoptada no acórdão que indica como acórdão fundamento do recurso (o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Julho de 2003, proc. nº 03A1913) de que junta cópia, existindo nos autos certidão comprovativa do trânsito em julgado. Formula as seguintes conclusões:

1. Só terá de prestar contas no âmbito da acção especial prevista no artigo 941º do Código de Processo Civil quem, no exercício da sua administração, tenha obtido receitas ou realizado despesas ou tenham ocorrido ambas as situações (cobrança de receitas e realização de despesas), visto que o processo especial de prestação de contas visa exactamente o apuramento de umas e outras, a apresentar em forma de conta-corrente, e a determinação do eventual saldo resultante.

2. O processo de prestação de contas não pode ser utilizado para outras finalidades não previstas na lei processual (neste sentido cfr. acórdão do STJ de 01.07.2003, proferido no Pº 03A1913, Relator: Dr. Afonso Correia e Luís Filipe Pires de Sousa, in "Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas", pág. 153, parcialmente transcritos no corpo das presentes alegações).

3. Nos presentes autos, a Autora pretende que a Ré lhe preste contas porque, no seu dizer, lhe passou uma procuração para movimentar uma conta bancária, não tendo, no entanto, alegado que a Ré tenha administrado bens dela Autora com geração de créditos e débitos recíprocos a apurar na acção de prestação de contas e a apresentar em forma de conta-corrente.

4. Logo, a acção especial de prestação de contas não é o meio adequado para a AUTORA alcançar a finalidade que pretende com a presente acção, por não se tratar de uma situação de "administração de bens, geradora de recíprocos créditos e débitos, a apurar na acção (. . .).

5. O meio adequado seria a acção declarativa com processo comum.

6. O douto acórdão recorrido, ao negar provimento à Revista e confirmar o douto acórdão que decidiu a Apelação, na parte em que esta entendeu que a acção especial de prestação de contas era o meio adequado e que a Ré estava obrigada a prestar contas à Autora, fez, com o devido respeito e salvo melhor opinião, errada interpretação dos artigos 941 ° e 944°, nº 1 do Código de Processo Civil.

7. Fundamento específico da recorribilidade: contradição entre acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, já transitados em julgado, proferidos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (artigo 688°, nº 1 do CPC)

Nestes termos, e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente se dignarão suprir, deverão as presentes alegações ser julgadas procedentes e, consequentemente, concedendo provimento ao recurso, ser proferido acórdão que,

a) decida a questão controvertida no sentido acolhido pelo acórdão fundamento;

b) fixe jurisprudência no sentido de a acção especial de prestação de contas se destinar exclusivamente aos casos em que se verifique uma administração de bens geradora de débitos e créditos recíprocos a apresentar em forma de conta-corrente;

revogue o douto acórdão recorrido, substituindo-o por outro que declare que não se verifica a obrigação de prestar contas por parte da Ré/recorrente.


A Recorrida não contra-alegou.


2. A admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência exige o preenchimento dos pressupostos previstos no art. 688º, nº 1, do Código de Processo Civil, no qual se dispõe o seguinte: “As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”.

No caso dos autos, as conclusões não identificam a questão fundamental de direito, sendo necessário indagá-la no texto das alegações, na parte que aqui se transcreve:


“Da breve exposição que antecede, resulta que se mantém a oposição, agora, entre o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.06.2016, transitado em 26.09.2016, e o douto acórdão fundamento de 01.07.2003.

Oposição que se resume no seguinte:

Enquanto o douto acórdão recorrido entende que:

- quem está autorizado a movimentar conta bancária de outrem, no âmbito de procuração ou mandato, está obrigado a prestar contas ao titular da conta bancária;

O douto acórdão fundamento entende que:

- a acção de prestação de contas é exclusiva dos casos em que se verifique uma administração de bens geradora de débitos e créditos recíprocos a apresentar em forma de conta corrente

Perante a apontada oposição de decisões, a R., ora Recorrente, entende, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que a questão controvertida deverá ser decidida no sentido acolhido no douto acórdão fundamento, pelas razões que passa a expor.

O OBJECTO (LEGAL) DA ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS

A Autora "veio propor acção especial de prestação de contas", pedindo que "a Ré lhe preste contas e ainda que seja condenada a pagar-lhe o saldo que venha a apurar-se" porque, no dizer da Autora, esta constituiu a Ré procuradora para movimentar a conta bancária em questão e "a R. terá ordenado transferências e feito levantamentos da conta da A, no montante de € 165.231,01, os quais não foram gastos pela R. em benefício da A .... ".

Ora, dispõe o artigo 941° do Código de Processo Civil que: "a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por obiecto o apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se" (sublinhado nosso).

Por sua vez, dispõe o nº 1 do artigo 944° do mesmo Código:

"As contas que o réu deva prestar são apresentadas em forma de conta-corrente e nelas se especifica a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respetivo saldo"

Assim, importa saber se a acção de prestação de contas é o meio adequado, face à causa de pedir e ao pedido formulado pela Autora na respectiva p.i., para ser satisfeita a pretensão da mesma.

E não é, como se demonstrará.

Com efeito, resulta claramente do transcrito artigo 941º do Código de Processo Civil que a acção de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas.

Isto é, só terá de prestar contas no âmbito desta acção especial quem, no exercício da sua administração, tenha obtido receitas ou realizado despesas ou tenham ocorrido ambas as situações (cobrança de receitas e realização de despesas), visto que o processo especial de prestação de contas visa exactamente o apuramento de umas e outras e a determinação do eventual saldo resultante.

"Estando o processo de prestação de contas especialmente desenhado para essa finalidade, não pode ser utilizado para outras finalidades não previstas na lei processual"

É este o entendimento da doutrina e da jurisprudência maioritária dos Tribunais Superiores. Cfr., por todos, o douto acórdão do STJ de 01.07.2003, proferido no Pº 03A 1913, Relator: Dr. Afonso Correia (acórdão fundamento), disponível em […] no qual se lê:

" ... no ensino dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela (7) CC Anotado, II, 4g ed., nota 5 ao arte. 1161º), «a obrigação de prestação de contas (al. d)) só tem interesse para o mandante quando haja, em relação às partes, créditos e débitos recíprocos. Não parece de aceitar a doutrina ensinada em Itália, sob a influência de autores alemães e franceses, de que a prestação de contas, neste caso, existe, mesmo que o acto não tenha tido, nas relações entre mandante e mandatário, reflexos patrimoniais. Prestar contas é, para estes autores, «fornecer ao mandante o pleno conhecimento de quanto aconteceu na actuação da relação de mandato. No prestar contas, escreve Mirabelli ... o mandatário é obrigado, pois, a comunicar ao mandante todos os elementos que lhe interessam, entre os quais, como exemplo, está o nome do terceiro com o qual se celebrou o negócio, se o mandante tiver nisso interesse, e a demonstração da regularidade das operações realizadas» (cfr. a mesma doutrina em Minervini, ob. Cit., nº. 38).

Parece-nos que o cumprimento destas obrigações está previsto nas duas alíneas anteriores, e que não há, hoje, entre nós, nenhuma razão para não dar à expressão «prestar contas» o significado que ela tem em todas as outras disposições legais, atribuindo-lhe, porventura, o sentido corrente que, para muitos autores, tem no Código francês, quando preceitua que tout mandataire est tenu de rendre compte de sa gestion (arts. 1993º), ou que possivelmente teria no artigo 1339º do Código de 1867 (o mandatário é obrigado a dar contas exactas da sua gerência).

Também nos parece inaceitável a doutrina, igualmente defendida em Itália, como consequência da primeira, de que a obrigação de prestar contas não importa a aplicação das normas relativas ao processo de prestação de contas previsto na lei processual. Não pode duvidar-se, entre nós, da aplicação a este caso, não havendo acordo entre os interessados quanto ao saldo da conta, do disposto nos artigos 1014º e seguintes do Código de Processo Civil. Estes preceitos distinguem, como é sabido, entre a prestação forçada de contas, requerida por quem tem direito de a exigir, e a prestação espontânea, efectuada por iniciativa do obrigado».

Ora, da matéria assente resulta que a procuração foi outorgada com o único fim de o procurador movimentar as contas que seu pai tinha nos dois identificados Bancos, o que fez, resgatando promissórias e saldando as contas três e cinco dias depois da procuração e quase um ano antes de o pai mandante e representado falecer.

Não houve, portanto, qualquer administração de bens geradora de recíprocos créditos e débitos a apurar na acção a que se refere o artº 1014º, a apresentar em forma de conta-corrente, como dito no artº 1016º, ambos do CPC. E não está, por isso, o R. obrigado a prestar contas." (sublinhado e negrito nosso).

Neste mesmo sentido se pronunciou o douto acórdão do ST J de 09/02/2006, proferido no Pº 05B4061, disponível em […] onde, com interesse para a questão sub iudice, se lê:

1/( ... ) Daí que, em boa verdade, se possa concluir que a prestação de contas só tem interesse para o requerente (mandante) quando haja, em relação às partes, créditos e débitos recíprocos, não sendo de aplicar este processo quando o acto não tenha tido, nas relações entre mandatário e mandante, reflexos patrimoniais.

Essa administração terá necessariamente de ser susceptível de gerar receitas, podendo também impor a realização de despesas; e do apuramento dessas duas realidades, resultará ou não um saldo que o administrador terá de pagar.

Com efeito, "a prestação de contas visa a definição de um quantitativo como saldo e tal finalidade pode sempre alcançar-se por uma conta de receitas e despesas, sempre que esta forneça os elementos que permitam conhecer da origem das primeiras e do destino das segundas". (8)

Por isso, em nosso entender, não havendo qualquer reciprocidade de créditos e débitos que justifiquem o presente processo especial, restará à autora (como aliás é apontado já na sentença da 1ª instância) intentar uma acção de condenação, visando o reconhecimento de que o dinheiro levantado fazia parte da herança aberta por morte da DD e, consequentemente, a sua reposição ao acervo hereditário. (9)

Com efeito, no caso concreto, não ficou provado, nem podia ficar porque a autora o não alegou, que houve uma administração dos valores levantados, da qual tenham resultado créditos e débitos recíprocos entre a falecida DD e o réu marido, limitando-se a matéria provada a evidenciar levantamentos efectuados pelo réu, razão pela qual não tem qualquer fundamento o pedido de prestação de contas deduzido.

Ademais, há que convir em que, no caso sub judice, os actos praticados pelo réu marido em nome da DD hão-de ter-se como praticados por esta, donde resulta, evidentemente, que o representante não tem contas a prestar. Tudo se passa como tendo sido a própria DD, titular das contas bancárias, quem efectuou as movimentações monetárias em causa.

Não houve, portanto, qualquer administração de bens geradora de recíprocos créditos e débitos a apurar na acção a que se refere o art. 1014º do C.Proc.Civil, não estando, em consequência, o réu obrigado a prestar contas.”

Também no mesmo sentido se pronuncia Luís Filipe Pires de Sousa, in "Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas", pág. 153, onde se lê:

“A acção de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração, não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado. Apenas pode discutir-se na acção de prestação de contas o valor ou a inscrição de receitas alegadamente efectivas e não de receitas virtuais. O disposto no artigo 1016º (apresentação das receitas e despesas em conta-corrente) não se compagina com a determinação de receitas ou despesas não realizadas efectivamente, virtuais (283 - cfr. acórdão do STJ de 20.6.2002, Moreira Alves,03A073)

Caso pretenda averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas, deve o autor recorrer ao processo comum e não ao processo especial de prestação de contas.

Do mesmo modo não deverá ser instaurado processo especial de prestação de contas quando o autor deduzir pretensão que consista em:

- ( ...)

- condenação da ré no pagamento de determinada quantia com fundamento na sua apropriação ilícita, mesmo que exista a obrigação de prestar contas (285) cfr. acórdão do T Rel. de Coimbra de 19.01.2010, Manuel Capelo, 579/08)

- ( ... )

No caso dos autos, verifica-se que a Autora intentou a presente acção especial de prestação de contas porque, no seu dizer, lhe passou uma procuração para movimentar uma conta bancária e esta gastou determinada quantia em benefício não da Autora.

Isto é, a Autora não alega, e naturalmente não prova, que a Ré tenha administrado bens dela Autora e que essa administração tenha gerado créditos e débitos recíprocos a apurar na acção de prestação de contas prevista no artigo 941º do Código de Processo Civil e a apresentar em forma de conta-corrente, nos termos do disposto no n° 1 do artigo 944º do mesmo Código.

Logo, a acção especial de prestação de contas não é o meio adequado para a Autora alcançar a finalidade que pretende, atentos a causa de pedir e o pedido formulado, não assistindo, por isso, à Autora, no âmbito desta acção especial, o direito de exigir à Ré prestação de contas e o dever reciproco da Ré lhas prestar.”


      Do texto das alegações resulta, patentemente, que a Recorrente entende que a questão fundamental de direito subjacente a ambos os acórdãos é uma questão de índole processual, concretamente, a correcção da forma processual adoptada.          

      Ora, no acórdão recorrido afirma-se o seguinte:

“4. O objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo (art. 635º, nº 4, do CPC, nas quais se identificam as seguintes questões:

- Erro na forma do processo;

- Existência de obrigação de a R. prestar contas à A.

Contudo, como se verifica pelo acórdão de fls. 470, designadamente da respectiva fundamentação, a admissão da revista excepcional circunscreveu-se à questão ali indicada como objecto de contradição dos acórdãos considerados, pelo que a apreciação do alegado erro na forma de processo se encontra excluída do presente recurso. De qualquer forma, não tendo a questão sido suscitada na contestação nem tendo sido conhecida oficiosamente na 1ª Instância, sempre estaria precludido (arts 193º, nº 1, e 200º, nº 2, do Código de Processo Civil) o seu conhecimento.

O objecto do presente recurso está assim limitado à questão substantiva de determinação da existência ou não da obrigação de prestação de contas da R. à A. que, em seguida, se aprecia. Se se concluir afirmativamente, então o cumprimento da obrigação terá de ser feito na presente acção especial de prestação de contas.”


      Deste modo, não tendo o acórdão recorrido conhecido da questão da forma de processo, mas apenas da questão substantiva (encontra-se ou não a R. adstrita à obrigação de prestar contas à A.), nele nada se decidiu sobre a questão do alegado erro sobre a forma processual, que a Recorrente apresenta como sendo a mesma questão fundamental de direito subjacente ao acórdão recorrido e ao acórdão fundamento.

     Ora, nos termos gerais do art. 635º, nº 4, do CPC, o objecto do recurso para uniformização de jurisprudência é delimitado pelas conclusões do recorrente, completado – se necessário, como no caso dos autos – pelo texto das alegações. Tal como resulta da transcrição das alegações, supra, ponto 2., a Recorrente enuncia apenas a questão processual como sendo a questão fundamental de direito relativamente à qual existirá oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.

Assim – reafirme-se – não tendo a questão do alegado erro na forma processual sido conhecida no acórdão recorrido, por definição, não pode existir oposição de julgados quanto a tal questão. E só ela pode ser considerada no presente recurso porque é a única questão formulada no mesmo.

     Falta, assim, um pressuposto essencial do recurso para uniformização de jurisprudência: que o objecto do recurso seja a contradição de julgados sobre “a mesma questão fundamental de direito”, e que tal contradição se verifique efectivamente (cfr. art. 688º, nº 1, do CPC).


3. Pelo exposto, e em apreciação liminar, nos termos do art. 692º, nº 1, do Código de Processo Civil, não se admite o recurso.


2. Vem a Recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no art. 692º, nº 2, do Código de Processo Civil, invocando, em síntese, os seguintes fundamentos:

I – Contradição entre o acórdão fundamento e o acórdão do STJ de 23.06.2016

- Diversamente do que se entendeu na decisão do relator, nos presentes autos não está em causa a questão do erro na forma processual, mas sim a questão do direito de acção de prestação de contas prevista no artigo 941º do CPC;

- Tendo a revista sido admitida como revista excepcional, com fundamento em contradição de julgados entre o acórdão da Relação dos autos e o acórdão fundamento (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 1 de Julho de 2003), a confirmação pelo STJ da decisão da Relação implica necessariamente que exista oposição de julgados entre o acórdão dos autos (acórdão recorrido) e o dito acórdão fundamento, pelo que o recurso para uniformização de jurisprudência deve ser admitido.

II – A contradição entre o acórdão fundamento e o acórdão do TRL de 20.10.2015

- Mesmo que se conclua não existir contradição de julgados nos termos indicados no ponto I, sempre é de reconhecer existir contradição de julgados entre o acórdão da Relação dos autos e o acórdão fundamento do STJ, de 1 de Julho de 2003;

- Tal basta para justificar a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência.

III – Os princípios e o reconhecido interesse da unificação de jurisprudência

- A função de orientação e uniformização de jurisprudência cometida ao STJ impõe a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, designadamente por existir paralelismo entre a situação dos autos e a situação prevista no art. 686º do CPC.


Vejamos.


3. A primeira linha argumentativa da Recorrente consiste em invocar que, diversamente do que se entendeu na decisão do relator, nos presentes autos não está em causa a questão do erro na forma processual, mas sim a questão do direito de acção de prestação de contas prevista no artigo 941º do CPC.

    Recorde-se que o acórdão de 23 de Junho de 2016 (acórdão recorrido) decidiu:

- Não conhecer da questão processual (do alegado erro sobre a forma do processo);

- Conhecer da questão substantiva (existência ou não da obrigação de prestar contas à luz do direito civil), concluindo afirmativamente.

     Contudo, no presente recurso para uniformização de jurisprudência, a questão fundamental de direito indicada pela Recorrente – relativamente à qual entendeu existir contradição de julgados – foi a questão processual como se pode verificar pela passagem das alegações de recurso supra transcrita. Ora, como em todos os recursos, o objecto do recurso para uniformização de jurisprudência é delimitado pelas conclusões do recorrente, completadas, se necessário, pelo texto das alegações de recurso. Verifica-se que a Recorrente indicou a questão da forma de processo como sendo a questão fundamental de direito. Não tendo o acórdão recorrido conhecido dessa questão, não pode, por definição, existir contradição de julgados, nos termos enunciados pela Recorrente.


4. Ainda que assim seja – e para que não subsistam quaisquer dúvidas quanto à inviabilidade do presente recurso para uniformização de jurisprudência – admite-se apreciar os argumentos que a Recorrente vem invocar em sede de impugnação para a conferência, mas que não invocou nas alegações do mesmo recurso.

    Organizou tais argumentos em três pontos, com o conteúdo supra indicado. São eles os seguintes:

I – Contradição entre o acórdão fundamento e o acórdão do STJ de 23.06.2016

II – A contradição entre o acórdão fundamento e o acórdão do TRL de 20.10.2015

III – Os princípios e o reconhecido interesse da unificação de jurisprudência.


5. A função de orientação e uniformização de jurisprudência cometida ao STJ (ponto III) não pode ser exercida a não ser dentro dos quadros legalmente previstos e verificando-se os respectivos pressupostos. Assim sendo, o regime do art. 686º, do CPC, que a Reclamante invoca como respeitando a situação paralela à dos autos não tem aqui qualquer cabimento. Trata-se antes do regime do julgamento ampliado de revista, que pode ser proposto ao Presidente do STJ antes de proferido o acórdão de revista. No caso dos autos, tendo o acórdão de revista sido proferido em 23 de Junho de 2016, não pode tal regime ser aplicável.


6. Quanto ao que se invoca no ponto II da reclamação, no sentido de que sempre será de se reconhecer existir contradição de julgados entre o acórdão da Relação dos autos e o acórdão fundamento do STJ de 1 de Julho de 2003, bastando isso para justificar a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência, trata-se de argumentação sem qualquer viabilidade. Com efeito, como resulta expressamente do art. 688º, nº 1, do CPC, a contradição de julgados como pressuposto do recurso para uniformização de jurisprudência respeita a dois acórdãos do STJ e não a um acórdão da Relação e outro do STJ.


7. Deste modo, concentremos a nossa atenção no argumento subordinado ao ponto I da reclamação e que, em síntese, é o seguinte: tendo a revista sido admitida como revista excepcional, com fundamento em contradição de julgados entre o acórdão da Relação dos autos e o acórdão fundamento (acórdão do STJ de 1 de Julho de 2003), a confirmação pelo STJ da decisão da Relação implica, necessariamente, que exista oposição de julgados entre o acórdão dos autos (acórdão recorrido) e o dito acórdão fundamento, pelo que o recurso para uniformização de jurisprudência deve ser admitido.

     Esta construção revela um raciocínio aparentemente lógico, mas que, em rigor, se funda nos seguintes equívocos interpretativos:

(i) Equívoco de considerar que a decisão do STJ, que confirme a decisão da Relação, tem necessariamente a mesma fundamentação que esta última;

(ii) Equívoco de considerar que a decisão de admissão da revista excepcional, com fundamento em contradição de julgados entre o acórdão da Relação dos autos e o acórdão fundamento (para os efeitos do art. 672º, nº 1, alínea c), do CPC), condiciona a decisão do relator e da conferência de admissão ou não do recurso para uniformização de jurisprudência (para os efeitos do art. 692º, nº 1, do CPC).

Como se sabe, duas decisões no mesmo sentido, proferidas no mesmo processo, podem ter fundamentação total ou parcialmente distinta. O que significa que o objecto do juízo de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência não coincide com o objecto do juízo de admissibilidade da revista excepcional: neste confrontou-se o acórdão da Relação com o acórdão fundamento; naquele tem de se confrontar o acórdão do STJ (acórdão recorrido) com o acórdão fundamento do STJ.

     Além disso, mesmo que a decisão do STJ fosse em tudo idêntica à da Relação – o que não é o caso dos autos –, o juízo de admissibilidade da revista excepcional não condiciona o juízo do relator e da conferência quanto à admissibilidade ou não do recurso para uniformização de jurisprudência. Com efeito, o regime do art. 689º, nºs 1 e 2, do CPC, que atribui ao relator e à conferência a competência para apreciar da existência ou não da contradição de julgados, vale para todos os recursos para uniformização de jurisprudência, sem exclusão daqueles que digam respeito a acórdãos recorridos que – numa revista excepcional admitida com base na alínea c), do art. 672º, do CPC, como a dos autos – confirmem o acórdão da Relação tanto quanto à decisão como quanto à fundamentação. O juízo de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência exige a análise aprofundada da alegada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, incluindo a detalhada ponderação da factualidade subjacente a cada um das decisões.

 A ratio de tal exigência é evidente: a contradição de julgados constitui o objecto do recurso para uniformização de jurisprudência. Sem tal contradição efectiva o Pleno das Secções Cíveis não pode ser chamado a decidir.


8. Segundo a orientação reiterada deste Supremo Tribunal, a verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência previstos no art. 688º, nº 1, do CPC, implica que as soluções alegadamente em conflito preencham as seguintes condições (tal como enunciadas no acórdão de 2 de Outubro de 2014 (proc. nº 268/03.0TBVPA.P2.S1-A), in www.dgsi.pt:

“- terão de corresponder a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se por isso no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: este requisito implica, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão para os litígios que cumpria solucionar se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica, não integrando contradição o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respectiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados;

- devem ter na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto;

- é necessário que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma ainda um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduza em mero obter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica”.

No caso dos autos, torna-se manifesto que falta a condição da identidade do núcleo essencial da matéria litigiosa. Com efeito:

- No acórdão recorrido decidiu-se que a R. estava obrigada a prestar contas à A. porque foi feita prova de que a autorização para movimentar as contas foi concedida “no interesse da autora”;

- Ao passo que, no acórdão fundamento, em que se concluiu inexistir obrigação de o R. prestar contas à A., não foi feita prova de que a autorização para movimentar as contas do falecido pai de ambos tivesse sido concedida no interesse deste último.

Perante esta decisiva diferença na factualidade subjacente a uma e outra decisão, não existe identidade da questão fundamental de direito apreciada, pelo que não se verifica contradição de julgados, nos termos e para os efeitos do art. 688º, nº 1, do CPC.

Afigura-se que aquilo que a Reclamante pretenderia alcançar só poderia, eventualmente, ser considerado se o acórdão fundamento tivesse concluído pela existência da obrigação de prestação de contas e, simultaneamente, pela inviabilidade de o correspondente direito ser exercido na acção especial de prestação de contas. Não foi, porém, esta a decisão do acórdão fundamento.


9. Pelo exposto, confirma-se a decisão de não admissão do recurso.


Custas pela Reclamante.


Lisboa, 02 de Fevereiro de 2017


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Bettencourt de Faria

João Bernardo