Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
239/20.2T8VRL.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
DUPLA CONFORME
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
SUCUMBÊNCIA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CONSTITUCIONALIDADE
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Tendo a ré impugnado o acórdão recorrido quanto a diferentes componentes indemnizatórias  de danos não patrimoniais pela morte do sinistrado, verifica-se que: (i) tais componentes indemnizatórias não são entre si nem autónomas nem cindíveis, uma vez que todas integram a categoria dos danos não patrimoniais previstos no art. 496.º do CC, a compensar segundo juízos de equidade; (ii)  foram alteradas pela Relação em sentido desfavorável à ré; (iii) pelo que, de acordo com a orientação fixada pelo AUJ n.º 7/2022, não se formou dupla conforme entre as decisões das instâncias, sendo o recurso admissível.

II. O AUJ n.º 7/2022, tendo fixado o sentido em que deve ser interpretado o conceito normativo de dupla conforme, não se pronunciou sobre uma situação como a dos autos em que, não apenas uma das partes, mas ambas, interpuseram recurso de revista, impugnando, em sentidos opostos, a decisão da Relação quanto à mesma categoria de danos (os danos não patrimoniais pela morte do sinistrado).

III. Em tal situação, admitido o recurso da ré, a não admissão do recurso dos autores põe em causa o respeito pelo princípio da igualdade de armas, manifestação tanto princípio da igualdade de tratamento (art. 13.º da CRP) como da garantia de um processo equitativo (art. 20.º da CRP).

IV. Com efeito, a razão de ser da dupla conforme, enquanto obstáculo à admissibilidade do recurso de revista, é a racionalização do acesso ao terceiro grau de jurisdição, sem, porém, se sobrepor ou confundir com a ratio do pressuposto da sucumbência.

V. Numa situação como a dos autos, em que ambas as partes impugnam os valores indemnizatórios fixados a título de compensação por danos não patrimoniais e em que o STJ não pode deixar de apreciar tal questão na perspectiva da ré, fica postergada a própria razão de ser do regime da dupla conforme, tornando-se injustificado e, consequentemente, arbitrário, não apreciar a mesma questão tanto na perspectiva da ré como na perspectiva dos autores.

VI. As exigências da interpretação conforme à Constituição da norma do n.º 3 do art. 671.º do CPC levam a concluir pela admissão do recurso dos autores na parte em que estes impugnaram o quantum indemnizatório atribuído pela Relação a título de compensação por danos não patrimoniais.

VII. De acordo com a jurisprudência do STJ, quando este Tribunal é chamado a pronunciar-se sobre o cálculo da indemnização que haja assentado decisivamente em juízos de equidade, não lhe compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo.

VIII. A sindicância do juízo equitativo não afasta, porém, a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto.

IX. Além do mais, não se pode ignorar a existência de parâmetros indemnizatórios para as situações de perda da vida, fixados pela Provedoria de Justiça, em nome do Estado Português, para as vítimas dos incêndios do ano 2017, não obstante tais parâmetros terem sido adoptados em circunstâncias muito particulares e – por não revestirem carácter normativo – não serem de aplicação directa para além dessas circunstâncias.

X. Tudo ponderado, afigura-se ser de manter os montantes indemnizatórios fixados pelo TR; em particular, no que se refere ao quantum indemnizatório pelos danos do sinistrado que antecederam a morte, e independentemente da falta de percepção cognitiva pelo lesado do gravíssimo estado em que se encontrava ao longo de 43 dos 51 dias que antecederam a morte, não pode deixar de se atribuir relevância à lesão de um bem jurídico essencial da personalidade, inerente à dignidade da pessoa humana; a que acresce a consideração do sofrimento (dores e ansiedade) muito elevado do lesado nos períodos em que esteve consciente.

XI. Confirmando-se que a sentença fixou equitativamente a compensação por danos não patrimoniais segundo parâmetros actualizados, temos que – em resultado da aplicação conjugada dos arts. 566.º, n.º 2, e 805.º, n.º 3, segunda parte, do CC, tal como interpretadas pelo AUJ n.º 4/2002, não merece censura a decisão do acórdão da Relação de manter, nesta parte, que a contagem dos juros moratórios se faça a partir da data da sentença.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. AA, BB e CC, na qualidade de viúva e filhos do falecido DD, respectivamente, intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Vitória Seguros, S.A., pedindo que se reconheça e declare que o acidente descrito nos autos se ficou a dever única e exclusivamente à culpa do condutor do veículo ligeiro de passageiros ..-..-CN e, consequentemente, seja a R. condenada a pagar:

a) À A. AA, a quantia de € 376,594,41 (€ 285.210,00 + € 91.384,41, esta última quantia resultante de requerimento de ampliação do pedido apresentado em 13.06.2021, deferido por despacho proferido em audiência de julgamento), a título de indemnização pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do acidente;

b) Ao A. BB, a quantia de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos em consequência do acidente;

c) À A. CC, a quantia de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos em consequência do acidente;

d) Pagar juros legais contados desde a data de citação até integral pagamento; e

e) Pagar custas e procuradoria condigna.

Alegam os AA. o seguinte:

Na sequência de acidente de viação, ocorrido no dia 7 de Outubro de 2018, cerca das 17.10 horas, na Estrada Regional ...., Km 9,650, concelho ..., distrito ..., faleceu DD, marido e pai dos AA..

Foi interveniente neste acidente o veículo ligeiro de passageiros, tipo misto, com a matrícula ..-..-CN, conduzido pelo seu proprietário EE, nele seguindo como passageiro a vítima DD.

O acidente ficou a dever-se à culpa exclusiva do condutor da viatura, que, ao despistar-se e invadir a berma da estrada, realizou uma condução descuidada, desatenta, precipitada e imprudente, violando regras de circulação impostas pelo Código de Estrada.

À data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo ..-..-CN, propriedade de EE, encontrava-se transferida para a aqui demandada Victória Seguros, S.A., através da apólice n.º ...58.

Concluem pelos pedidos indemnizatórios supra enunciados.

Devidamente citada, veio a R. contestar, admitindo a existência do acidente e a responsabilidade do seu segurado, assim como a transferência da responsabilidade civil emergente da circulação do veículo interveniente no acidente, por via do referido contrato de seguro, válido e eficaz à data da ocorrência do acidente.

No mais, impugna, por desconhecimento, a factualidade relativa aos danos patrimoniais e não patrimoniais, concluindo pela procedência da acção conforme a prova que vier a ser produzida.


2. Por sentença de 3 de Julho de 2021 foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente, declarando-se que:

i) o acidente dos autos se ficou a dever exclusivamente à culpa do condutor do “CN”; e

ii) os Autores únicos e universais herdeiros do sinistrado DD e, consequentemente, condena-se a Ré VITÓRIA SEGUROS, S.A., a pagar:

1. À autora AA, viúva,

a) - a quantia global de €184.900,00 (cento e oitenta e quatro mil e novecentos euros), a título de indemnizações, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento;

b) - a quantia de €1.310,00 (mil trezentos e dez euros), a título de despesas de funeral, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

2. Ao autor BB, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de indemnização, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento.

3. À autora CC, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de indemnização, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde a presente decisão até integral pagamento.

4. Julga-se improcedente o remanescente dos pedidos deduzidos pelos Autores e dele se absolve a Ré».


3. Inconformados com tal decisão, interpuseram recurso de apelação tanto os AA. como a R. seguradora.

Por acórdão de 7 de Abril de 2022 foi decidido o seguinte:

«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação da Ré seguradora, e, parcialmente procedente, o recurso de apelação dos Autores, elevando-se para o valor de € 70.000,00 o quantum indemnizatório relativo à perda do direito à vida do sinistrado, elevando-se para o valor de € 40.000,00 o quantum indemnizatório relativo aos danos morais do sinistrado, e, para o valor de € 40.000,00 o quantum indemnizatório relativo aos danos morais da Autora, viúva do sinistrado, e, no tocante à indemnização por dano patrimonial fixado em c) supra (€ 1.500,00 € pela perda de rendimento pelo período de 50 dias a que esteve internado), quanto a este valor se contando os respectivos juros de mora desde a data da citação, e, em tudo o mais se mantendo o decidido.».


4. Vêm os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando extensas conclusões nas quais, em síntese, pretendem:

- Que sejam fixados em montantes mais elevados as quantias indemnizatórias respeitantes:

- Aos danos patrimoniais futuros, seja pela «perda do contributo remuneratório, enquanto dano patrimonial pela frustração de alimentos», seja «pela perda da utilidade económica das tarefas agrícolas que a vítima deixou de poder executar no granjeio do terreno de produtos para consumo de casa»;

- Ao «dano referente ao sofrimento da vítima antes da morte»;

- Ao «dano sofrido pelos filhos em consequência da morte do seu pai».

- Que seja alterada a data a partir da qual se vencem juros moratórios.

           

5. A R. contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso dos AA. pelas seguintes razões:

«Pese embora as decisões judiciais sejam impugnáveis por meio de recurso (art.º 627.º, n.º 1, do CPC), a admissibilidade do presente recurso está condicionada, através de limites objectivos fixados na lei (cfr. Carlos Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, pág. 83).

Um dos limites ou obstáculos é a verificação da dupla conforme, o qual está previsto no art.º 671.º, n.º 3, do CPC, que dispõe:

“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

O artigo seguinte reporta-se à revista excepcional, pelo que é irrelevante para a admissão da revista normal, única interposta. E os casos em que o recurso é sempre admissível estão previstos no art.º 629.º, n.º 2, do CPC.

Não se trata de nenhum dos casos previstos nas alíneas a), b), c) ou d) desse número, nem o recorrente invoca alguma delas.

No presente caso, verifica-se o obstáculo da dupla conforme, resultante do citado art.º 671.º, n.º 3, em todos os segmentos decisórios impugnados pelos Autores, senão vejamos:

Os Autores recorrem dos danos patrimoniais futuros, dos quais já recorreram para o Tribunal da Relação, tendo esta instância confirmado, sem voto de vencido e com a mesma fundamentação, a decisão de primeira instância (€ 54.000,00 + € 14.400,00), verificando-se dupla conforme.

Vêm ainda os Autores recorrer do dano da pré-morte, de que também recorreram para o Tribunal da Relação, tendo esta instância aumentado o valor indemnizatório de € 25.000,00 para €40.000,00. Ora esta decisão é em sentido mais favorável aos Autores, o que a equipara à dupla conforme.

Recorrem os Autores dos danos morais sofridos pelos filhos, assim como já o fizeram para o Tribunal da Relação e esta segunda instância manteve o valor indemnizatório arbitrado pela primeira instância a cada filho, sem voto de vencido e com a mesma fundamentação, verificando-se a dupla conforme.

Os Autores recorrem ainda da data a partir da qual deverão ser calculados os juros. A primeira instância decidiu que os juros em análise seriam calculados desde a sentença. Os Autores recorreram, mas o Tribunal da Relação manteve a decisão da primeira instância, (com excepção no tocante ao dano patrimonial fixado em € 1500,00, pela perda de rendimento pelo período de 50 dias em que esteve internado, contando-se aqui desde a citação), verificando-se, uma vez mais, a dupla conforme.

Ora, em todos os segmentos decisórios impugnados pelos Autores operou a dupla conforme e, das duas uma, ou os Autores desconhecem em que consiste a dupla conforme – queremos crer que não – ou o presente recurso é a consequência da litigância com apoio judiciário, que permite a escalada das instâncias judiciárias, mesmo que contra legem.

Este recurso não é legalmente admissível, pelo que deverá ser rejeitado.

Termos em que o presente recurso não deverá ser admitido por manifesta inadmissibilidade legal.».


6. Também a R. Seguradora interpôs recurso de revista, concluindo no sentido de serem reduzidos os seguintes montantes indemnizatórios:

- O quantum indemnizatório relativo à perda da vida do sinistrado;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais do sinistrado no período que antecedeu a morte;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais da A. viúva.

7. Não foram apresentadas contra-alegações ao recurso da R..


II – Admissibilidade dos recursos


1. Por despacho da relatora foram as partes notificadas para, ao abrigo do art. 655.º do Código de Processo Civil, se pronunciarem sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso interposto pelos AA., com fundamento em que, de acordo com a orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a conformidade das decisões das instâncias, que obsta à admissibilidade da revista (art. 671.º, n.º 3, do CPC), abrange situações como a dos autos nas quais o apelante – no caso, os apelantes AA. – retirou/retiraram benefício (reformatio in melius) da decisão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância.

Vieram os AA. pronunciar-se pela admissibilidade do recurso, convocando diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que afirmam que a dupla conforme assenta na confirmação irrestrita da decisão da 1.ª instância pela Relação, não se incluindo no conceito, portanto, as situações em que o apelante foi beneficiado pela decisão da Relação.

A Recorrida pugnou pela inadmissibilidade do recurso, reiterando o afirmado em sede de contra-alegações recursórias.


2. Importa assinalar que, na pendência da presente instância de recurso, e precisamente em matéria de dupla conforme entre as decisões das instâncias em acções indemnizatórias, foi proferido, em 20.09.2022, pelo Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 7/2022, publicado no Diário da República, Iª Série, de 18.10.2022. Dispõe o seguinte:

«Em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a figura da dupla conforme ínsita no artigo 671.º, n.º3, do CPC, impeditiva da interposição da revista normal, é avaliada em função do benefício (reformatio in melius) que o apelante retirou do acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância, e aferida, separadamente, para cada segmento decisório, autónomo e cindível, em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.».

Passemos, em seguida, a ajuizar da admissibilidade do recurso dos AA. e do recurso da R. em função da transcrita decisão uniformizadora.

1.1. Recorde-se que os AA. peticionaram que a R. seja condenada a indemnizá-los pela quantia total de € 376.594,41, sendo:

- € 70.000,00 pela perda da vida do sinistrado DD;

- € 50.00,00 por danos não patrimoniais sofridos pelo sinistrado no período que antecedeu a morte;

- € 100.000,00 (€ 40.000,00 + € 30.000,00 + € 30.000,00) por danos não patrimoniais sofridos, respectivamente, pela A. viúva e por cada um dos AA. filhos;

- € 1.500,00, a título de perda de rendimento do sinistrado durante o período de internamento;

- € 150.906,64 (€ 86.400,00 + € 64.506,67), a título de danos patrimoniais futuros;

- € 62.877,77 (€ 36.000,00 + € 26.877,77) pela perda de utilidade económica das tarefas agrícolas que o sinistrado deixou de realizar.

- € 1.310,00 por despesas com o funeral do sinistrado;

- Quantias estas acrescidas de juros vencidos e vincendos até integral pagamento.


1.2. A sentença da 1.ª instância condenou a R. a pagar as seguintes quantias:

- À A. viúva:

a) A quantia global de € 184.900,00, a título de indemnizações, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde a sentença até integral pagamento; quantia composta pelas seguintes parcelas:

- € 60.000,00 – perda da vida;

- € 25.000,00 – danos não patrimoniais do sinistrado;

- € 30.000,00 – danos não patrimoniais próprios da A. viúva;

- € 54.000,00 – perda de rendimentos futuros;

- € 14.400,00 – perda da utilidade económica das tarefas agrícolas que a vítima deixou de executar;

- € 1.500,00 – perda de rendimento no período de internamento da vítima.

b) A quantia de € 1.310,00, a título de despesas com o funeral do sinistrado, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

- A cada um dos AA. filhos, a quantia de € 20.000,00 por danos não patrimoniais próprios.


1.3. Em sede de apelação os AA. impugnaram:

- O quantum indemnizatório relativo à perda da vida do sinistrado;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais do sinistrado no período que antecedeu a morte;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais da A. viúva e do A. filho BB;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos patrimoniais futuros;

- A data do início da contagem dos juros de mora.


1.4. Por sua vez, a R. Seguradora impugnou:

- O quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais do sinistrado no período que antecedeu a morte;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais da A. viúva e dos AA. filhos;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos patrimoniais futuros.


1.5. O acórdão da Relação, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, julgou improcedente o recurso da R. e parcialmente procedente o recurso dos AA.:

- Elevando para o valor de € 70.000,00 o quantum indemnizatório relativo à perda da vida do sinistrado;

- Elevando para o valor de € 40.000,00 o quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais do sinistrado no período que antecedeu a morte;

- Elevando para o valor de € 40.000,00 o quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais da A. viúva;

- E, no respeitante à indemnização (€ 1.500,00) pela perda de rendimento do sinistrado no período em que esteve internado), que os respectivos juros de mora se contam desde a data da citação;

- No mais manteve o decidido pela 1.ª instância.


2. Quanto ao recurso de revista da R. Seguradora – e aplicando o critério interpretativo do conceito normativo de dupla conforme (art. 671.º, n.º 3, do CPC), consagrado pelo AUJ n.º 7/2022, no sentido de segmentar a decisão recorrida por componentes indemnizatórias – importa, antes de mais, ter presente quais as componentes indemnizatórias que a R. vem impugnar para o Supremo Tribunal de Justiça. São elas as seguintes:

- A componente indemnizatória relativa à perda da vida do sinistrado;

- A quantia indemnizatória relativa aos danos não patrimoniais do sinistrado no período que antecedeu a morte;

- A quantia indemnizatória relativa aos danos não patrimoniais da A. viúva.

Ora, na medida em que: (i) estas três componentes indemnizatórias não são, entre si, nem autónomas nem cindíveis, uma vez que todas integram a categoria dos danos não patrimoniais previstos no art. 496.º do Código Civil e a compensar segundo juízos de equidade; (ii)  foram alteradas pela Relação em sentido desfavorável à R.; (iii) pelo que, de acordo com a orientação fixada pelo AUJ n.º 7/2022, não se formou, quanto a tais componentes, dupla conforme entre as decisões das instâncias, sendo o recurso admissível.


3. Quanto ao recurso de revista dos AA., confirma-se que todas as componentes indemnizatórias impugnadas pelos AA. em sede de apelação foram ou mantidas ou aumentadas pela Relação.

Recordemos que os AA. vieram impugnar a decisão do acórdão recorrido a respeito do seguinte: quantum indemnizatório atribuído a título de danos patrimoniais futuros; quantum indemnizatório atribuído a título de danos não patrimoniais pelo sofrimento que antecedeu a morte e pelo sofrimento do filho BB da vítima directa; momento a partir do qual vencem juros moratórios.

Temos, pois, que, o quantum indemnizatório fixado pelo Tribunal da Relação para compensação da categoria danos não patrimoniais é posto em causa, em sentidos divergentes, tanto no recurso da R. como nos recurso dos AA..

Ora, o AUJ n.º 7/2022, tendo fixado o sentido em que deve ser interpretado o conceito normativo de dupla conforme, não se pronunciou, a nosso ver, sobre uma situação como a dos autos em que, não apenas uma das partes, mas ambas, interpõem recurso de revista, impugnando, em sentidos opostos, a decisão da Relação quanto à mesma categoria de danos (os danos não patrimoniais pela morte do sinistrado).

Em tal situação, admitido o recurso da R. seguradora, a não admissão do recurso dos AA. põe em causa o respeito pelo princípio da igualdade de armas, manifestação tanto princípio da igualdade de tratamento (art. 13.º da Constituição da República Portuguesa) como da garantia de um processo equitativo (art. 20.º da CRP). Com efeito, a razão de ser da dupla conforme, enquanto obstáculo à admissibilidade do recurso de revista, é a racionalização do acesso ao terceiro grau de jurisdição, sem, porém, se sobrepor ou confundir com a ratio do pressuposto da sucumbência (art. 629.º, n.º 1, do CPC). Assim sendo, numa situação como a dos autos – em que ambas as partes impugnam os valores indemnizatórios fixados a título de compensação por danos não patrimoniais, e em que o Supremo Tribunal de Justiça não pode deixar de apreciar tal questão na perspectiva da R. –, fica postergada a própria razão de ser do regime da dupla conforme, tornando-se injustificado e, consequentemente, arbitrário, não apreciar a mesma questão tanto na perspectiva da R. como na perspectiva dos AA..

Pelo exposto, considera-se que as exigências da interpretação conforme à Constituição da norma do n.º 3 do art. 671.º do CPC, levam a concluir pela admissão do recurso dos AA. na parte em que estes impugnaram o quantum indemnizatório atribuído pela Relação a título de compensação por danos não patrimoniais. Sendo que, por revestir a natureza de segmento decisório não autónomo me cindível em relação ao segmento decisório em matéria de danos não patrimoniais, é também admissível a impugnação da decisão da contagem de juros sobre o mesmo quantum indemnizatório (isto é, por danos não patrimoniais).


Cumpre apreciar e decidir.


III – Fundamentação de facto

Foi dado como provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):

1. No dia 07 de Outubro de 2018, cerca das 17 horas e 10 minutos, na Estrada Regional ...., Km 9,650, em União de freguesias ..., ... e ..., concelho ..., distrito ..., ocorreu um acidente de viação.

2. Na altura estava bom tempo e o piso encontrava-se seco.

3. No local do acidente a via é uma estrada pavimentada de linha curva à esquerda atento o sentido de marcha do veículo ligeiro de passageiros, tipo misto, marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-..-CN (doravante designado por “CN”) e de boa visibilidade.

4. Foi interveniente neste acidente, o referido veículo “CN”.

5. O veículo “CN” era conduzido pelo seu proprietário EE.

6. O aludido acidente de viação traduziu-se num despiste do veículo ligeiro de passageiros.

7. O veículo ligeiro de passageiros “CN” circulava no sentido V.../P..., com destino à residência do sinistrado/finado, DD, sita na freguesia ....

8. E após descrever uma curva para a sua esquerda, e sem que nada o fizesse prever, o condutor do veículo perdeu o controlo do mesmo e entrou em despiste, invadindo a berma do lado direito.

9. O condutor do veículo “CN” ao aperceber-se que não conseguia controlar a trajectória da viatura, ainda travou, mas a viatura seguiu em frente,

10. Partiu/arrancou um poste de granito de guarda e protecção rodoviária.

11. Tendo caído, depois, numa ribanceira.

12. Por via de tal despiste, o veículo automóvel “CN” capotou.

13. Tendo depois embatido numa árvore que o imobilizou.

14. No momento do acidente, o sinistrado/finado, DD, circulava como passageiro, no banco traseiro do veículo “CN”.

15. O malogrado, DD era marido da primeira autora e progenitor dos segundo e terceiros autores.

16. O finado, DD, logo após o acidente, foi assistido, no local, pelo INEM, onde lhe foram ministrados os primeiros socorros.

17. Logo de seguida e face à gravidade e politraumatização dos ferimentos e queixas do sinistrado, foi transportado para o C..., EPE, onde recebeu os primeiros cuidados clínicos.

18. Como consequência directa e necessária do acidente, a vítima sofreu múltiplos traumatismos.

19. Lesões essas que foram causa directa e necessária da morte do malogrado DD.

20. Tanto na altura do acidente como nas horas que se seguiram até à entrada para o bloco operatório, o malogrado DD sentiu pavor e ao ver-se ferido e sofreu (muitas) dores.

21. Dores essas associadas a um enorme desconforto e angústia.

22. Ao aperceber-se que o despiste e consequente queda do veículo para uma ribanceira era inevitável, o marido e pai dos AA. sentiu medo das consequências que resultariam para a sua integridade física, nomeadamente vir a sofrer ferimentos graves, ou mesmo perder a vida, como sucedeu.

23. O marido e pai dos AA. permaneceu internado no Centro Hospitalar ..., durante 51 dias, desde .../10/2018 até .../11/2018, data em que faleceu.

24. Esteve ligado a uma máquina de suporte vital a fim de lhe provocar ventilação mecânica evasiva e assim se manter vivo.

25. Dado a politraumatização que o marido e pai dos AA. foi vítima, durante o período em que esteve internado no Centro Hospitalar ... foi submetido a múltiplas intervenções cirúrgicas, nomeadamente, nos dias 7, 10, 15, 19, 24, 27 e 31 de Outubro de 2018 e 7 e 14 de Novembro de 2018.

26. As cirurgias efectuadas à vítima foram todas ministradas com recurso a sedoanalgia/anestesia geral.

27. Face à gravidade dos traumatismos de que o marido e pai dos AA. foi vítima, o mesmo acabou por perecer no dia .../11/2018.

28. O malogrado marido e pai dos AA. faleceu com 63 anos de vida (nasceu a .../01/1955).

29. Era pessoa robusta - não lhe sendo conhecida qualquer doença -, alegre e com gosto pela vida.

30. Trabalhava como jornaleiro de Segunda-Feira a Sábado e auferia por jorna a quantia de 30,00€.

31. Era uma pessoa trabalhadora.

32. O finado, DD, era pessoa dedicada à esposa e aos filhos.

33. Era ainda uma pessoa comunicativa e prestável.

34. Tinha muitos amigos com quem partilhava o seu entusiasmo pela vida.

35. A morte do DD deixou profundamente consternados todos os familiares e amigos.

36. A A., AA e o finado, DD, casaram-se entre si a 13/10/1979.

37. Durante os 39 anos de constância do matrimónio, viveram sempre como um casal estável e feliz, sem atritos, discussões e sem violência.

38. A A., AA, não se conforma com a morte do seu querido marido, vivendo momentos de permanente ansiedade e angústia pela recordação de tão trágico dia.

39. A A., AA, sempre viveu do rendimento auferido pelo finado seu marido.

40. Tendo dedicado toda a sua vida às lides domésticas e educação dos seus filhos.

41. O facto da A., AA, ser doméstica e não auferir qualquer rendimento tem contribuído para o agravamento do seu estado psíquico e emocional,

42. Vivendo da ajuda dos seus familiares, uma vez que era o seu marido quem sustentava e custeava todas as despesas domésticas.

43. Os AA., BB e CC, sofrem psicologicamente e emocionalmente, a perda do seu pai, não se conformando com o seu desaparecimento precoce.

44. Continuarão a padecer com a ausência da figura paterna, sem o acompanhamento, o amparo, a assistência, o carinho e o afecto do pai.

45. Os AA., BB e CC, tinham uma forte ligação afectiva ao pai, com quem tinham um excelente relacionamento.

46. O filho, BB, vivia com o seu pai, convivendo com ele diariamente, tomando com ele as refeições, passeando com ele e tendo nele o seu confidente e apoio.

47. A filha, CC, apesar de não viver com os pais, tinha uma forte ligação afectiva, de amparo e de carinho com o seu pai.

48. Por causa da morte do malogrado DD, os AA. sofreram um grande abalo e desgosto, de que ainda não recuperaram.

49. Os AA. estimavam, amavam e sempre viveram em plena harmonia com o falecido, e a sua morte abalou profundamente os sentimentos e a saudade que sentem pelo seu marido e pai.

50. O decesso do malogrado, DD, teve e vai ter repercussões ao nível da vida material e económica dos AA.

51. O malogrado, DD, era jornaleiro e, à data do acidente, trabalhava na vindima 8 dias por semana.

52. Auferia por jorna a quantia de €30,00.

53. O período das vindimas perdura até finais de Outubro.

54. Com a excepção do período das vindimas, habitualmente, o finado, DD, trabalhava de Segunda-Feira a Sábado,

55. Descansando aos Domingos e feriados.

56. No período de internamento, que decorreu de .../10/2018 a .../11/2018 (50 dias), o sinistrado DD não auferiu quaisquer rendimentos.

57. O finado, DD, era uma pessoa trabalhadora.

58. Granjeava, ainda, o malogrado, DD, a título gratuito, uma pequena propriedade onde o mesmo colhia cerca de 300 litros de vinho por ano e cultivava e colhia batatas e demais produtos hortícolas para seu consumo.

59. A vítima aproveitava o período pós-laboral, feriados e Domingos para granjear a vinha e cultivar os produtos hortícolas da época.

60. E nessa actividade, retirava daquela propriedade os produtos agrícolas, vinho, batatas, tomates, alfaces, ervilhas, favas e outros legumes necessários à subsistência do agregado familiar.

61. Com o seu decesso a A., AA, viu-se obrigada a contratar pessoas para executar os trabalhos que o seu marido efectuava naquela propriedade.

62. A execução dos trabalhos agrícolas que a vítima executava no prédio que, correspondente ao que teria de pagar a outra pessoa que contratasse, tinha uma utilidade económica não inferior a €250,00 por mês.

63. As despesas com o funeral do sinistrado importaram em €1.310,00 e foram suportadas pela A./viúva.

64. À data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo ..-..-CN, propriedade de EE, achava-se transferida para a R. Vitória Seguros, S.A., através da apólice nº. ...58.

65. O falecido DD de entrada na sala de emergência do Hospital ... consciente e colaborante, com graves e múltiplos traumatismos.

66. Foi sujeito a múltiplas intervenções abdominais e, durante o internamento no serviço de Medicina Intensiva, sedado e com necessidade de ventilação mecânica evasiva.

67. No dia 19/11/2018, foi transferido para a enfermaria, encontrando-se “vigil” e com respiração espontânea por traqueostomia.

68. O quantum doloris, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, é fixável no grau 7.


Foi dado como não provado que:

a) As dores que as lesões lhe ocasionaram, perduraram durante todo o período em que esteve internado.

b) Que o sofrimento, medo, receio da morte e de nunca mais poder ver o seu cônjuge e filhos, desespero e angústia, mediou entre a data do acidente e a data do falecimento.


IV – Questões a apreciar


Conforme resulta do decidido no ponto II do presente acórdão, importa reapreciar os valores indemnizatórios atribuídos pelo acórdão recorrido aos AA. a título de compensação por danos não patrimoniais, sendo que:

- O quantum indemnizatório relativo à perda da vida do sinistrado foi fixado em €70.000,00, pretendendo a R. que o mesmo seja reduzido para €60.000,00;

- O quantum indemnizatório pelos danos não patrimoniais do sinistrado no período que antecedeu a morte foi fixado em € 40.000,00, pretendendo a R. que o mesmo seja reduzido para €25.000,00 e pretendendo os AA. que seja aumentado para €50.000,00;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais da A. viúva foi fixado em €40.000,00, pretendendo a R. que o mesmo seja reduzido para €30.000,00;

- O quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais do filho BB foi fixado em €20.000,00, pretendendo os AA. que o mesmo seja aumentado para €30.000,00.


V – Fundamentação de direito


1. No que se refere à compensação pecuniária de danos de natureza não patrimonial devem ser tidos em conta os seguintes princípios gerais, tal como enunciados no acórdão deste Supremo Tribunal de 28.01.2016 (proc. n.º 7793/09.8T2SNT.L1.S1)[1], consultável em www.dgsi.pt:

«- A compensação dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496°, n° 1, do CC), não pode - por definição - ser feita através da fórmula da diferença. Deve antes ser decidida pelo tribunal segundo um juízo de equidade (art. 496°, n° 4, primeira parte, do CC), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do art. 494°, do CC;

- Como tem sido considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por exemplo, o acórdão de 6 de Abril de 2015, proc. n° 1166/10.7TBVCD.P1.S1, com remissão para o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. n° 272/06.7TBMTR.P1.S1, e para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. n° 381/2002.S1, todos em www.dgsi.pt), “a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito»”; se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (...), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”;

- A sindicância do juízo equitativo não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto. Nos termos do acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 2012, proc. n° 875/05.7TBILH.C1.S1, www.dgsi.pt, “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art° 13° da Constituição”. Exigência plasmada também no art. 8°, n° 3, do CC: “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.». [negritos nossos]

Além do mais, não se pode ignorar a existência de parâmetros indemnizatórios para as situações de perda da vida, fixados pela Provedoria de Justiça, em representação do Estado Português (cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 157-C/2017), para as vítimas dos incêndios do ano 2017[2] [parâmetros seguidos de perto na fixação, pela mesma entidade (cfr. Resolução do Conselho de Ministros n.º 4/2019), de indemnizações a favor das vítimas da derrocada da Estrada Municipal 255, ocorrida em 19 de Novembro de 2018, no concelho de Borba[3]], não obstante tais parâmetros terem sido adoptados em circunstâncias muito particulares e – por não revestirem carácter normativo – não serem de aplicação directa para além dessas circunstâncias.

São eles os seguintes:

«Guiando-se pelos princípios da universalidade e da igualdade e procurando um resultado justo e adequado que tenha em conta as circunstâncias absolutamente dramáticas dos incêndios, a Provedora de Justiça decidiu:

Fixar em 80 mil euros o dano pela perda da vida (dano morte).

Fixar em 70 mil euros o valor-base do dano pelo sofrimento antes da morte. Este valor foi majorado em função dos familiares que partilharam as circunstâncias que ditaram a morte e do tempo de agonia da vítima.

As duas parcelas foram pagas em conjunto aos herdeiros, seguindo a ordem do Código Civil.

O valor-base dos danos não-patrimoniais, destinados a compensar os familiares pela dor da perda, foi fixado nos seguintes termos:

 • Em 40 mil euros no caso de cônjuge/unido de facto, pais e filhos. Este valor foi majorado quando o familiar acompanhou a vítima no momento do evento lesivo, tendo sido aplicada uma segunda majoração tratando-se de filho menor cujos pais tenham ambos perecido no incêndio ou de mãe/pai que perdeu um filho menor.

Na falta dos anteriores, o valor-base foi fixado em 20 mil euros para avós ou irmãos que coabitassem com a vítima, e (na falta destes) em 10 mil euros para irmãos ou sobrinhos. Em ambos os casos, houve lugar a majoração quando o requerente estava com a vítima no momento do evento, sendo esta mais elevada caso se tratasse de um menor.».

Reitera-se que estes parâmetros indemnizatórios, a suportar pelo Estado, foram definidos pela Provedoria de Justiça em circunstâncias muito específicas, não revestindo tal definição natureza normativa nem, consequentemente, vinculando os tribunais. Isto dito, porém, afigura-se que, em nome da coerência interna do sistema, tanto a existência como o conteúdo dos referidos parâmetros não pode ser deixada de ser tida em conta na apreciação judicial dos casos concretos. Neste sentido, ver o acórdão deste Supremo Tribunal de 19-04-2018 (proc. n.º 196/11.6TCGMR.G2.S2), consultável em www.dgsi.pt.


2. Como fundamento para reduzir o quantum indemnizatório relativo à perda da vida do sinistrado (fixado em €70.000,00, pretendendo a R. que o mesmo seja reduzido para €60.000,00), limita-se a mesma R. a invocar a necessidade de ser fixado em linha com os valores fixados em outras decisões deste Supremo Tribunal:

- «Analisando a jurisprudência mais recente, supra citada: no acórdão de 24 de setembro de 2020, proc. n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1, fixou-se a indemnização pela perda do direito à vida em € 54.000,00, tendo a vítima 75 anos de idade; no acórdão de 19 de dezembro de 2018, proc. n.º 1178/16.7T8VRL.L1, fixou-se a mesma indemnização em € 60. 000,00, tendo a vítima de 61 anos idade. De resto, no acórdão 5 de junho de 2018, proc. n.º 370/12.8TBOFR.C1.S2, em que a vítima tina apenas 44 anos de idade, foi fixada a indemnização pelo dano morte em € 65.000,00.».

- «Nesta análise comparativa, verifica-se mais conforme com a jurisprudência recente, o valor fixado pelo Tribunal de Primeira Instância (€ 60.000,00).».

Vejamos.

A impugnação da quantia indemnizatória atribuída aos AA. pelo dano morte do sinistrado, assenta exclusivamente na alegada necessidade de o aproximar, ou igualar, com os valores fixados pela jurisprudência deste Supremo Tribunal.

A este respeito, basta referir, a título exemplificativo, que os acórdãos de 04-06-2020 (proc. n.º 2732/17.5T8VCT.G1.S1), de 25-02-2021 (proc. n.º 4086/18.3T8FAR.E1.S1) e de 03-03-2021 (proc. n.º 3710/18.2T8FAR.E1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt, fixaram em € 80.000,00 o quantum indemnizatório pelo dano morte – sendo também este o valor fixado para o dano morte nos supra referidos parâmetros definidos pelo Provedoria de Justiça – para concluir não ser excessivo o montante a este título atribuído pela tribunal a quo aos AA..

Improcede pois, nesta parte, a pretensão da R..


4. No que se refere ao quantum indemnizatório pelos danos não patrimoniais do sinistrado no período que antecedeu a morte (fixado em € 40.000,00), pretendendo a R. que o mesmo seja reduzido para € 25.000,00 (valor fixado pela 1.ª instância), e os AA. que seja aumentado para € 50.000,00.

Pretende a R. que o mesmo seja reduzido para € 25.000,00, alegando essencialmente o seguinte: «Atendendo ao caso concreto, nomeadamente a que dos 51 dias em que esteve internado, 43 dias esteve em coma, sem consciência, nem dor e, relativamente aos restantes dias, não ficou demonstrado que tivesse consciência do seu estado, mas somente a possibilidade de reagir a estímulos, entende a recorrente, salvo melhor opinião, que não há qualquer fundamento para a alteração do valor [tal como decidido pela Relação].».

Pretendem os AA. que o valor seja aumentado para € 50.000,00, invocando, no essencial, o seguinte: «Face à gravidade e intensidade do sofrimento físico e psíquico causadas directamente pelas lesões sofridas e pelas intervenções cirúrgicas e ainda a angústia sentida e suportadas pela vítima entre o momento em que sofre a lesão e o momento da morte, parece-nos que ponderando o princípio da igualdade, analisando comparativamente os valores arbitrados em outras situações equivalentes e acima aludidas, que o valor de 50.000,00 € pedido pela recorrente peca por escasso.».

Relevam os seguintes factos provados:

16. O finado, DD, logo após o acidente, foi assistido, no local, pelo INEM, onde lhe foram ministrados os primeiros socorros.

17. Logo de seguida e face à gravidade e politraumatização dos ferimentos e queixas do sinistrado, foi transportado para o C..., EPE, onde recebeu os primeiros cuidados clínicos.

18. Como consequência directa e necessária do acidente, a vítima sofreu múltiplos traumatismos.

20. Tanto na altura do acidente como nas horas que se seguiram até à entrada para o bloco operatório, o malogrado DD sentiu pavor e ao ver-se ferido e sofreu (muitas) dores.

21. Dores essas associadas a um enorme desconforto e angústia.

22. Ao aperceber-se que o despiste e consequente queda do veículo para uma ribanceira era inevitável, o marido e pai dos AA. sentiu medo das consequências que resultariam para a sua integridade física, nomeadamente vir a sofrer ferimentos graves, ou mesmo perder a vida, como sucedeu.

23. O marido e pai dos AA. permaneceu internado no Centro Hospitalar ..., durante 51 dias, desde .../10/2018 até .../11/2018, data em que faleceu.

24. Esteve ligado a uma máquina de suporte vital a fim de lhe provocar ventilação mecânica evasiva e assim se manter vivo.

25. Dado a politraumatização que o marido e pai dos AA. foi vítima, durante o período em que esteve internado no Centro Hospitalar ... foi submetido a múltiplas intervenções cirúrgicas, nomeadamente, nos dias 7, 10, 15, 19, 24, 27 e 31 de Outubro de 2018 e 7 e 14 de Novembro de 2018.

26. As cirurgias efectuadas à vítima foram todas ministradas com recurso a sedoanalgia/anestesia geral.

27. Face à gravidade dos traumatismos de que o marido e pai dos AA. foi vítima, o mesmo acabou por perecer no dia .../11/2018.

Perante a factualidade dada como provada, que relevância deve atribuir-se ao argumento da R. segundo o qual a compensação pelos danos não patrimoniais da vítima no período que antecedeu a morte deve ser reduzida para € 25.000,00 porque «dos 51 dias em que esteve internado, 43 dias esteve em coma, sem consciência, nem dor e, relativamente aos restantes dias, não ficou demonstrado que tivesse consciência do seu estado, mas somente a possibilidade de reagir a estímulos».

O problema foi apreciado, em termos particularmente expressivos, no acórdão deste Supremo Tribunal de 28-02-2013 (proc. n.º 4072/04.0TVLSB.C1.S1)[4], consultável em www.dgsi.pt:

«A especificidade do caso dos autos radica na circunstância de não ter ficado demonstrada a consciência por parte do lesado do seu estado de total incapacidade, pelo que não teria tido este uma efectiva percepção subjectiva, ainda que mínima, da extrema e irreversível degradação do seu padrão e qualidade de vida, ao longo dos quase 6 anos que precederam a morte : ou seja, não está demonstrado que tenha ocorrido o sofrimento psicológico inerente a ter de suportar, durante esse período prolongado, as sequelas absolutamente frustrantes e incapacitantes das lesões sofridas.

 Considera-se que é pertinente, a este propósito, distinguir, para efeitos de cômputo da indemnização, entre o plano objectivo da perda e degradação extrema do padrão de vida do sinistrado, enquanto lesão objectiva de um bem jurídico essencial da personalidade, ligado à própria dignidade da pessoa humana, que ocorre independentemente da percepção cognitiva pelo lesado do estado em que se encontra, envolvendo  a drástica carência de autonomia e de eliminação das possibilidades de realização pessoal; e o plano subjectivo, decorrente de – a tal estado objectivo – se ter de adicionar o sofrimento psicológico necessariamente inerente à consciência, ainda que difusa ou mitigada, da total falta de autonomia pessoal e de qualidade de vida e da frustração irremediável de todos os projectos e satisfações alcançáveis no decurso da vida pessoal do lesado.».

Não obstante estas considerações terem sido proferidas a respeito de um caso em que o período que antecedeu a morte se prolongou por seis anos, e não apenas por 51 dias, como ocorreu no caso dos autos, afigura-se que a distinção proposta – entre o plano objectivo (lesão de um bem jurídico essencial da personalidade) e o plano subjectivo (sofrimento psicológico) – tem também aqui inteira aplicação. Significa isto que, independentemente da falta de percepção cognitiva pelo lesado do gravíssimo estado em que se encontrava ao longo de 43 dos 51 dias que antecederam a morte, não pode deixar de se atribuir relevância à lesão de um bem jurídico essencial da personalidade, inerente à dignidade da pessoa humana. A que acresce a consideração do sofrimento (dores e ansiedade) muito elevado do lesado nos períodos em que esteve consciente.

Não se verifica assim o invocado erro nos pressupostos do juízo da Relação nesta parte. Razão pela qual, na apreciação do montante fixado (€ 40.000,00) – que a R. pretende reduzir e os AA. aumentar, apenas será de ponderar a conformidade com os parâmetros indemnizatórios que vêm sendo praticados, reconhecendo-se, embora, que, em matéria de compensação de danos que antecedem a morte, são muito significativas as especificidades de cada caso concreto.

No recente acórdão deste Supremo Tribunal de 15-09-2022 (proc. n.º 2374/20.8T8PNF.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, manteve-se em € 20.000,00 o quantum indemnizatório pelos danos que antecederam a morte num caso com contornos não tão graves  do que os dos autos.

Atendendo a este parâmetro, assim como ao facto de os valores indemnizatórios pelo dano que antecedeu a morte, ter sido definido pela Provedoria da Justiça em nível bem mais elevado do que vem sendo praticado pelos tribunais (€ 70.000,00, com possibilidade de majoração), considera-se ser de manter o valor fixado pela Relação, improcedendo quer a pretensão dos AA. quer a da R..


5. No que se reporta ao quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais próprios da A. viúva (fixado em € 40.000,00), pretendendo a R. que seja reduzido para €30.000,00, invoca esta última essencialmente o seguinte:

- «o Tribunal de Primeira Instância teve em atenção as decisões Jurisprudenciais proferidas em situações similares e, bem assim, as circunstâncias do caso concreto.».

- «Acresce que, revisitando a Jurisprudência mais recente do STJ, verificamos, no acórdão de 24 de setembro de 2020, proc. n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1, vítima com 75 anos, valor atribuído ao cônjuge, a título de dano não patrimonial, a quantia de € 20.000,00.».

Vejamos.

A R. limita-se, também aqui, a invocar que o valor indemnizatório atribuído a título de compensação pelos danos não patrimoniais da viúva do sinistrado é excessivo em confronto com o valor fixado no acórdão deste Supremo Tribunal de 24-09-2020. Ora, compulsada esta decisão constata-se que nela estava em apreciação a possibilidade de reduzir e não de aumentar os montantes indemnizatórios, não servindo assim de referência para a resolução do caso sub judice.

Com maior pertinência refira-se o acórdão de 25-02-2021 (proc. n.º 4086/18.3T8FAR.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt, no qual o Supremo Tribunal fixou em € 35.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais próprios do unido de facto da vítima directa falecida.

Atendendo, por um lado à necessidade de progressiva actualização dos montantes indemnizatórios e, por outro lado, à correspondência entre o quantum indemnizatório atribuído à A. viúva pelo tribunal a quo e o valor definido pela Provedoria de Justiça para o cônjuge/unido de facto das vítimas directas, nos casos em que, em nome do Estado, foi chamada a fazê-lo, considera-se que, também nesta parte, a pretensão da R. deve improceder.


6. Relativamente ao quantum indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais próprios do filho BB (fixado em € 20.000,00), pretendem os AA. que seja aumentado para € 30.000,00, alegando dever fazer-se uma distinção entre este filho que habitava com o pai falecido e a outra filha, concluindo:

- «Pelo que o montante de 20.000,00 € confirmado pelo d. acórdão em reapreciação a título de indemnização por danos morais sofridos pela morte precoce de seu pai e com o qual vivia, afigura-se-nos como inadequado à luz dos princípios de equidade e de razoabilidade que devem pautar a aplicação da justiça, não se encontrando em sintonia com outras indemnizações que o Supremo Tribunal de Justiça tem consolidado.».

Quid iuris?

Relevam os seguintes factos provados:

28. O malogrado marido e pai dos AA. faleceu com 63 anos de vida (nasceu a .../01/1955).

29. Era pessoa robusta - não lhe sendo conhecida qualquer doença -, alegre e com gosto pela vida.

32. O finado, DD, era pessoa dedicada à esposa e aos filhos.

33. Era ainda uma pessoa comunicativa e prestável.

35. A morte do DD deixou profundamente consternados todos os familiares e amigos.

43. Os AA., BB e CC, sofrem psicologicamente e emocionalmente, a perda do seu pai, não se conformando com o seu desaparecimento precoce.

44. Continuarão a padecer com a ausência da figura paterna, sem o acompanhamento, o amparo, a assistência, o carinho e o afecto do pai.

45. Os AA., BB e CC, tinham uma forte ligação afectiva ao pai, com quem tinham um excelente relacionamento.

46. O filho, BB, vivia com o seu pai, convivendo com ele diariamente, tomando com ele as refeições, passeando com ele e tendo nele o seu confidente e apoio.

47. A filha, CC, apesar de não viver com os pais, tinha uma forte ligação afectiva, de amparo e de carinho com o seu pai.

48. Por causa da morte do malogrado DD, os AA. sofreram um grande abalo e desgosto, de que ainda não recuperaram.

49. Os AA. estimavam, amavam e sempre viveram em plena harmonia com o falecido, e a sua morte abalou profundamente os sentimentos e a saudade que sentem pelo seu marido e pai.

Da factualidade provada (em especial dos factos 46 e 47) não resulta que o sofrimento do filho BB pela perda do pai tenha sido mais grave do que o sofrimento da filha CC pela mesma perda, não se vislumbrando que o facto de aquele habitar com o pai permita, só por si, e tratando-se de um filho maior, concluir em sentido diferente. Neste sentido, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-11-2016 (proc. n.º 62/14.3T8PVZ.P1.S1), consultável em www.dgsi.pt.

Improcede, assim, nesta parte, a pretensão dos AA..


7. Finalmente, no que respeita à questão do início da contagem de juros sobre as quantias compensatórias dos danos não patrimoniais, invocam os AA. que, ao abrigo do art. 805.º, n.º 3, segunda parte do Código Civil, «os juros moratórios deverão ser contabilizados desde a citação da R/recorrida para a ação declarativa».

Dispõe o n.º 3 do art. 805.º do CC:

«Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.».

Acerca da segunda parte desta norma, afirma-se o seguinte:

«A segunda parte do nº 3 é o resultado de um aditamento operado pelo DL n.º 262/83, de 16 de Junho, diploma que introduziu várias alterações no CC, designadamente ao nível de matérias nas quais o fenómeno da inflação assume especial relevância. A interpretação e aplicação desta norma não se mostrou pacífica, suscitando-se inúmeros problemas interpretativos, entre os quais assumem maior importância os respeitantes à aplicação no tempo das alterações ao artigo 805.º, n.º 3, e à conjugação da nova redação com o regime do artigo 566.º, n.º 2.

(...)

(...) a conjugação sistemática desta norma com outras disposições relativas ao cálculo da obrigação de indemnizar, mormente com o artigo 566.º, n.º 2, constitui a questão essencial. Ao nível da jurisprudência, o tratamento deste problema passou pelo reconhecimento da eventual duplicação da indemnização em virtude da aplicação simultânea do regime do artigo 805.º, n.º 3 com o critério base do artigo 566.º, n.º 2.». (Maria da Graça Trigo /Mariana Nunes Martins, Anotação ao artigo 805.º, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 1131).

A questão da conjugação da segunda parte do art. 805.º, n.º 3 com a norma geral do n.º 2 do art. 566.º, ambas do Código Civil, veio a ser resolvida da seguinte forma pelo AUJ n.º 4/2002:

«Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.».

Aplicando este critério ao caso dos autos, tudo depende de saber se a sentença, ao fixar os montantes indemnizatórios por danos patrimoniais e por danos não patrimoniais, o fez ou não de forma actualizada à data mais recente que pôde ser atendida (cfr. art. 566.º, n.º 2, do CC).

Tal questão foi apreciada pelo acórdão recorrido nos seguintes termos:

«D) - data do início da contagem dos juros de mora

Na sentença recorrida fixaram-se os juros de mora sobre as quantias de indemnização descritas em 1.a), 2 e 3, do dispositivo, desde a data da sentença, por aplicação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Uniformizador de Jurisprudência, n.º 4/02, de 09/05/2002, publicado no DR – Série IA, de 27/06/2002, sendo tais valores de indemnização relativos aos danos morais e danos patrimoniais, estes designadamente:

a) 54.000,00 € pelos danos patrimoniais futuros;

b) 14.400,00 € pelos danos patrimoniais futuros e referente à indemnização por perda da utilidade económica das tarefas agrícolas que a vítima deixou de poder executar no granjeio do terreno de produtos para consumo de casa (vinho, batatas, hortaliças e outros), tarefa que executava no período pós-laboral e aos fins-de-semana e feriados;

c) 1.500,00 € pela perda de rendimento pelo período de 50 dias a que esteve internado.

Defendendo os Autores/apelantes que os juros sobre as indicadas parcelas deverão ser contados desde a citação, invocando que no presente caso não se procedeu a qualquer actualização da indemnização, apenas se aplicando critérios redutores ao cálculo apresentado na sentença, pelo que os juros moratórios deverão ser contabilizados desde a citação da R/recorrida para a acção declarativa, nesta parte se impugnando a decisão recorrida.

(...)

No caso sub judice verifica-se que os danos em causa, de natureza não patrimonial e patrimonial referenciados em a) e b), supra, e, estes relativos aos danos patrimoniais futuros e à indemnização por perda da utilidade económica das tarefas agrícolas, foram fixados na sentença de acordo com actuais valores correspondentes a juízos de equidade, em valoração actualizada, como da sentença decorre, fundamentando-se na decisão que o cálculo indemnizatório se reporta a juízos de equidade e valores de referência na jurisprudência, designadamente do STJ, actualizados, e, designadamente a indemnização por dano patrimonial futuro cfr. cálculo em referência no Ac. STJ de 11/4/2029, citado. E, assim, os indicados juros de mora deverão ser contados desde a sentença, nos termos decididos e por aplicação do indicado acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 4/2002.

Improcedendo, consequentemente a apelação dos Autores no tocante a esta questão, excepto no tocante à indemnização por dano patrimonial fixado em c) 1.500,00 € pela perda de rendimento pelo período de 50 dias a que esteve internado, no tocante a este valor não se demonstrando a fixação de indemnização por equidade mas por mero cálculo matemático, consequentemente, quanto a este montante se contando os respectivos juros de mora desde a data da citação.». [negritos nossos]

Insurgem-se os AA. contra esta decisão, invocando, a págs. 17-19 das alegações, o carácter desactualizado dos critérios utilizados na sentença da 1.ª instância ao recorrer às tradicionais fórmulas matemáticas para a contabilização de danos futuros.

Ainda que os AA. não o exprimam de forma clara, verifica-se que a sua argumentação se dirige à decisão indemnizatória em matéria de danos patrimoniais e não em matéria de danos não patrimoniais. Como apenas esta última está em causa no presente acórdão, e confirmando-se que a sentença fixou equitativamente a compensação por danos não patrimoniais segundo parâmetros actualizados, temos que – em resultado da aplicação conjugada das referidas normas do Código Civil (arts. 566.º, n.º 2, e 805.º, n.º 3, segunda parte), tal como interpretadas pelo AUJ n.º 4/2002 – não merece censura a decisão do acórdão da Relação de manter, nesta parte, que a contagem dos juros moratórios se faça a partir da data da sentença.

Improcede, pois, esta pretensão dos AA..


VI – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedentes ambos os recursos, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas dos recursos pelos respectivos recorrentes, sem prejuízo do apoio judicial de que os autores beneficiam.


Lisboa, 10 de Novembro de 2022


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra (vencida, nos termos da declaração de voto junta)

Paulo Rijo Ferreira (com declaração de voto)



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Vencida quanto à admissibilidade do recurso dos autores.

Entendo, com o devido respeito, que não há razões para desaplicar ou considerar inaplicável ao recurso dos autores o AUJ n.º 7/2022, de 18 de Outubro.

No AUJ n.º 7/2022 uniformizou-se a jurisprudência no sentido de que "a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, [deve ser] avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação (…)”.

Tendo, in casu, o Acórdão da Relação decidido, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, julgar parcialmente procedente o recurso dos autores e elevado o valor da indemnização a título de danos não patrimoniais, não deveria, na minha opinião, admitir-se o recurso em que os autores pretendem suscitar de novo a mesma questão.

Entendo, sempre com o devido respeito, que as razões invocadas, no presente Acórdão, para fundamentar a admissibilidade do recurso dos autores [o respeito pelo princípio da igualdade de armas das partes, a manifestação da garantia de um processo equitativo (artigo 20.º da CRP) e o respeito pelo princípio da igualdade de tratamento (artigo 13.º da CRP)] – não se verificam.

No caso de recursos de ambas as partes, a parte cujo recurso não é admissível (in casu: os autores) não deixa de ter – nunca deixa de ter – a oportunidade de se fazer ouvir e de expor as suas razões contra a pretensão da parte cujo recurso é admissível (in casu: a ré): tem sempre o direito de apresentar contra-alegações, de responder ou contraditar as alegações de recurso (direito este a que, aliás, in casu, os autores não exerceram).

Fica, assim, devidamente salvaguardado o direito ao processo equitativo (cfr. artigo 20.º da CRP) e, em particular, o direito ao contraditório. Quanto ao princípio da igualdade de armas e ao princípio da igualdade de tratamento, eles impõem tão-só uma igualdade material; não impõem – nem nunca poderiam impor – uma igualdade incondicional ou independente da eventual desigualdade da situação relevante das partes.

Daí que o facto de o recurso principal interposto por uma das partes ser admissível não seja razão suficiente para que se admita o recurso subordinado interposto pela outra parte, salvo nos casos especiais previstos na lei. Por exemplo, o facto de o recurso principal interposto por uma das partes ser admissível não é razão suficiente para que se admita o recurso subordinado interposto pela outra parte quando, por exemplo, este último se depara com o obstáculo da dupla conforme (veja-se, a propósito, o AUJ n.º 1/2020, de 27 de Novembro de 2019).

Em conclusão, entendo que o caso dos autos estaria abrangido pelo AUJ n.º 7/2022 e que não existem razões para uma sua interpretação restritiva.


Catarina Serra


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Declaração de Voto

Votei a admissibilidade da revista dos Autores relativamente ao dano não patrimonial porquanto continuo a entender, como expressei na declaração de voto que formulei no AUJ 7/2022, que o entendimento da ‘dupla conforme’ como abrangendo as situações de ‘reformatio in mellius’ atenta contra os princípios constitucionais consagrados nos artigos 2º, 13º e 20º da Constituição da República. E isso independentemente de a parte contrária fazer ou não efectivo uso da faculdade de interpor recurso de revista uma vez que, para que se considere ocorrer aquela violação, basta a possibilidade abstracta da ocorrência da situação que se considera inadmissível.

E por isso mesmo fiquei vencido quanto à inadmissibilidade da revista dos Autores quanto ao dano patrimonial, pois que teria admitido o recurso também nessa parte.

Fiquei, também, vencido na parte em que se entendeu não competir ao STJ julgar segundo a equidade, não lhe competindo a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, estando nessa matéria limitado a assegurar o princípio da igualdade, na medida em que entendo (como ficou expresso no acórdão do STJ, 27MAI2021, proc. 10682/15.3T8LSB.L1.S1) que o STJ pode julgar segundo critérios de equidade. Sendo certo que, em meu modo de ver, foi o que efectivamente veio a ocorrer no acórdão.

Nessa perspectiva subscrevo os termos em que foram apreciados os montantes indemnizatórios em causa, concordando com respectiva decisão.

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Relatado pela relatora do presente acórdão.
[2]http://www.provedor-jus.pt/provedora-de-justica-apresenta-balanco-do-processo-de-indemnizacao-dos-familiares-das-vitimas-mortais-dos-incendios/.
[3] http://www.provedor-jus.pt/borba-provedora-de-justica-conclui-processos-de-indemnizacao/.
[4] Relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego.