Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
135/12.7TBMSF.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO-PROMESSA E DIREITO DE RETENÇÃO
TRADIÇÃO DA COISA
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CONSUMIDOR
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
DIREITO DO CONSUMO - CONSUMIDOR.
DIREITO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS / DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Anotação ao Acórdão do S.T.J. de 19-4-2001, in R.L.J., Ano 133, p. 370, e Ano 134, p. 21.
- Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume I, 6.ª edição, Almedina, Coimbra 2006, p. 102.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, 755.º, N.º 1 AL. F), 759.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 18.º.
LEI N.º 24/96, DE 31/7 (COM AS ALTERAÇÕES DECORRENTES DO DL N.º 67/2003, DE 08-04 E DL 84/2008, DE 08-05): - ARTIGO 2.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19-4-2001 (R.L.J. N.º133-367 E SS.) E DE 25-03-2014,
-DE 29-05-2014 (PROC. N.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1),
-DE 14-10-2014 (PROC. N.º 986/12.2TBFAF-G.G1.S1),
-DE 25-11-2014 (PROC. 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1),
-DE 30-04-2015 (1187/08.0TBTMR-A.C1.S1),
-DE 09-07-2015 (PROC. N.º 1242/10.6YYPRT-A.P1.S1),
-DE 17-11-2015 (PROCESSO N.º 1999/05.6TBFUN-I.L1S1).

*
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ), N.º 4/2014, DE 20-03-2014 (PROC. N.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1).

-*-

ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 356/04, DE 19-5-04, E N.º 466/04, DE 23-6-04.
Sumário :

I – A traditio é um pressuposto indispensável do direito de retenção e que se configura como o poder de facto sobre a coisa que o promitente-vendedor conferiu ao promitente-comprador, ou seja, como um conjunto de atos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo sobre a coisa.

II – Segundo o AUJ n.º 4/2014, a qualidade de consumidor refere-se ao utilizador final dos imóveis, que faz destes um uso próprio, ao qual é alheio o escopo de revenda, mas não implica que o prédio seja urbano e se destine a habitação permanente do promitente-comprador.

III - Não compete a este Supremo Tribunal sindicar o estatuto de consumidor atribuído pelo Tribunal da Relação aos autores, na sua dimensão factual, a não ser em situações excecionais de contradição lógica das presunções judiciais usadas pela Relação com a matéria de facto provada, o que não se verifica no caso concreto.

IV – Não se verifica a inconstitucionalidade dos artigos 755.º, n.º 1 al. f) e 759.º do Código Civil por violação dos princípios da confiança e da proporcionalidade previstos nos artigos 2.º e 18.º da CRP, pois o regime jurídico plasmado naquelas normas, segundo o qual o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, encontra justificação na tutela dos direitos dos particulares. Tem-se entendido que as entidades bancárias cujo crédito está garantido por hipoteca voluntária têm outros instrumentos de tutela da sua posição, o que não ocorre com o promitente-comprador, a parte mais fraca do contrato e com menos acesso à informação.

Decisão Texto Integral:
    

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Relatório

Autores:

- AA e mulher, BB.

Réus:

- CC e mulher DD; e

- Caixa de EE, CRL.

Alegam os autores, em síntese, que celebraram com os 1.ºs réus um contrato promessa de compra e venda, mediante o qual prometeram comprar dois prédios que identificam, dos quais foram de imediato investidos na respetiva posse, tendo pago de sinal e princípio de pagamento um total de € 95.000,00.

Os promitentes vendedores recusam-se a celebrar o contrato definitivo, motivo pelo qual os autores deixaram de ter qualquer interesse na manutenção do referido contrato, pretendendo ser pagos do sinal em dobro.

Concluindo pela procedência da ação, pedem que:

- se declare resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado em14 de Junho de 2012;

- sejam os 1.ºs réus condenados a pagar aos autores a quantia de € 190.000,00, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

- seja reconhecido aos autores o direito de retenção sobre os referidos prédios para garantia do seu crédito e juros vincendos;

- sejam os réus condenados a reconhecer tal direito de retenção sobre os referidos prédios.

Na contestação que apresentou, afirma a Caixa de EE (adiante CEE) que o referido contrato promessa não passa de um estratagema planeado entre os outorgantes para os 1.ºs réus se eximirem às suas responsabilidades e não perderem os imóveis hipotecados, bem sabendo que estavam a prejudicar a CEE.

Neste sentido, nunca os autores entregaram qualquer quantia a título de sinal ou estiveram na posse dos referidos bens imóveis.

Conclui pois pela improcedência da ação e condenação dos autores e 1.ºs réus como litigantes de má fé.

Na réplica, reiteram os autores a sua versão dos factos, afirmando que tinham efetivamente conhecimento da existência da hipoteca, mas afirmavam os 1.ºs réus que o valor em dívida era muito inferior, tendo pois agido de boa fé, mantendo de resto disponibilidade para celebrar a escritura definitiva de compra e venda, mediante o pagamento do remanescente do preço acordado.

Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, não se tendo suscitado nem verificado quaisquer exceções, nulidades ou questões prévias de que cumprisse conhecer e que obstassem ao conhecimento do mérito da causa.

A final foi proferida sentença que julgou a ação procedente nos seguintes termos:

«1. Declara-se resolvido o contrato promessa de compra e venda, celebrado em 14 de Junho de 2012, entre os promitentes vendedores CC e mulher DD e os promitentes-compradores AA e mulher BB.

2. Condenam-se os 1.ºs réus CC e mulher DD a pagar aos autores AA e mulher BB a quantia de €190.000,00 (cento e noventa mil euros), correspondente ao dobro do sinal, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

3. Reconhece-se aos autores, para garantia do seu crédito e juros vincendos, o direito de retenção sobre os prédios objecto do contrato promessa:

- prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e andar com um anexo, sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 41/19850805 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 963; e

- prédio rústico, composto de vinha demarcada do Douro, oliveiras e árvores de fruto, sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …  e inscrito na respectiva matriz sob o artigo15.

4. Condenam-se todos os réus, CC e mulher DD, e Caixa de EE, CRL, a reconhecerem tal direito de retenção dos autores sobre os referidos prédios».

A ré, instituição bancária, não se conformando com o decidido, interpôs recurso de apelação, em que impugnou a matéria de facto e colocou três questões de direito: 1) pressupostos da resolução do contrato de promessa de compra e venda e do direito de retenção; 2) violação do princípio da proporcionalidade e da confiança previstos nos artigos 18.º e 2.º da CRP, ao reconhecer o direito de retenção como garantia real prevalente à hipoteca; 3) litigância de má fé dos autores.

O Tribunal da Relação de Guimarães proferiu acórdão, julgando improcedente a apelação e confirmando a decisão recorrida.  

Inconformada a ré interpõe recurso de revista excecional, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, o qual foi admitido pela formação prevista no art. 672.º, n.º 3 do CPC, para que seja decidida a seguinte questão: «(…) saber se a prevalência do direito de retenção do promitente comprador deve ser sempre reconhecida, ou apenas em determinadas situações, quais sejam aquelas em que o promitente comprador tenha contratado na qualidade de consumidor (quanto a quaisquer bens) e para a habitação própria e permanente (quanto a prédios urbanos)».

Na sua alegação de recurso, a ré formula as seguintes conclusões:

 

«1- A questão a que se reporta o litígio consiste na prevalência do direito de retenção reconhecido ao promitente-comprador com traditio sobre o direito do credor garantido por hipoteca. Uma vez que a hipoteca é a garantia geralmente utilizada para os financiamentos concedidos para aquisição de primeira habitação, evidente se torna que a questão em apreço é de maior relevância social, uma vez que se reporta a um bem de primeira necessidade e a um direito essencial da vida em sociedade (habitação) pois, na medida em que essa garantia não seja segura pode estar em causa a concessão/obtenção dos referidos financiamentos e a correspondente possibilidade de aquisição própria e a constituição de novas famílias, assim nos parecendo “estarem em causa interesses de particular relevância social” – al. b) do n.º1 do art. 672.º do CPC.

2- O mesmo se justifica pelo facto de a hipoteca ser a garantia mais utilizada para a maior parte dos financiamentos com muitas outras e as mais diversas finalidades, estando por isso em causa a segurança de uma grande porção do tráfego jurídico em geral.

3- Por outro lado, igualmente se nos antolha “estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” – al. a) do mesmo dispositivo legal, pois trata de saber se a prevalência do direito de retenção do promitente comprador deve ser sempre reconhecida, ou apenas em determinadas situações, quais sejam aquelas em que o promitente comprador tenha contratado na qualidade de consumidor (quanto a qualquer bem) e para a habitação própria permanente (quando a prédios urbanos).

4- Não deverá ser reconhecido o direito de retenção, muito menos com prevalência sobre a hipoteca previamente constituída a favor da recorrente, nem em relação ao prédio rústico, nem em relação ao prédio urbano, uma vez que a razão que levou o legislador a optar por essa prevalência, segundo o preâmbulo do DL 379/86, de 11 de Novembro, foi a protecção dos consumidores no mercado de habitação, por considerá-los a parte mais débil, sendo que tal ratio deve estar sempre presente na interpretação e aplicação dos normativos desse diploma a todos os casos concretos como o que constitui objecto da presente acção.

5- Este entendimento foi seguido pelo Ac. Do STJ, de 25/11/2014, que assentou a sua decisão no Ac. de Uniformização de Jurisprudência de 4/2014, de 20/03/2014, publicado no DR, I Série, n.º 95, de 19/05/2014, que apesar de não o dizer expressamente, não pode deixar de entender-se que se reporta exclusivamente ao promitente-comprador que detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor.

6 - Acresce que o legislador, ainda que no preâmbulo do referido Decreto-Lei, fez a distinção entre os prédios rústicos e urbanos e, entre estes, os destinados a habitação.

7 - Os AA. supostamente prometeram comprar um prédio rústico e um prédio urbano, assumindo expressamente que este não era para sua habitação, pois habitam na cidade de Amarante e referiram que nunca pernoitaram naquela casa, a qual, por isso, não seria para ser utilizada como habitação própria permanente, não estando assim abrangidos por aquela protecção criada pelo legislador, além de que, dos factos provados também não consta que a casa em questão fosse adquirida para esse fim.

8 - Quanto ao prédio rústico, para além de obviamente não se destinar à habitação, os AA. deixaram bem claro que o mesmo se destinava à exploração agrícola, chegando mesmo a concretizar que a sua intenção era nele implantar uma produção de cogumelos para comercializar, tal como referido pelas testemunhas que sobre isso depuseram e mostraram ter conhecimento e que merecem credibilidade ao Tribunal.

9 - Por tudo quanto fica exposto se conclui que os AA. na celebração do contrato-promessa em causa não contrataram na qualidade de consumidores, por isso não podendo beneficiar da referida protecção legal (direito de retenção) face ao incumprimento dos promitentes vendedores e em detrimento da hipoteca previamente constituída para garantia do crédito da recorrente.

10. Assim não se tendo entendido e decidido, tanto a sentença da 1.ª instância como o acórdão da Relação traduzem incorrecta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente dos arts. 410.º, 755.º, 759.º do C. Civil, bem como violação dos princípios da confiança e da proporcionalidade e constantes dos arts. 2.º e 18.º, n.º 2 da CRP, respectivamente, pelo que,

Após a “apreciação liminar sumária” prevista no art. 672.º do C.P.C., deve o presente recurso ser admitido e, na sua procedência, ser revogado o acórdão recorrido, bem como a sentença de 1.ª instância e em sua substituição ser proferida outra que julgue a acção totalmente improcedente, assim resultando, a nosso ver, devidamente aplicada a lei e realizada a Justiça».

Os autores não apresentaram contra-alegações.

Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se define o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

I – Pressupostos do direito de retenção do promitente-comprador, nomeadamente, a qualidade de consumidor deste; a natureza do prédio (urbano ou rústico); finalidade do prédio (habitação ou outra).

II – Constitucionalidade do regime jurídico fixado no art. 759.º, n.º 2 do CC que determina a prevalência do direito de retenção sobre o crédito hipotecário.

 

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

            II – Fundamentação de facto

            As instâncias fixaram a seguinte matéria de facto, que passamos a transcrever:

«1. Encontram-se inscritos a favor dos primeiros réus os seguintes prédios:

- i. Prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e andar com um anexo, sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º…e inscrito na respectiva matriz sob o artigo …;

- ii. Prédio rústico, composto de vinha demarcada do Douro, oliveiras e árvores de fruto, sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º… e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 15.

2. Encontra-se constituída a favor da primeira ré uma hipoteca sobre o prédio descrito em A), i., inscrita no registo em 20.01.2009, convertida em definitiva em 04.02.2009, com fundamento num contrato de mútuo, para garantia da quantia de € 250 000,00, até ao montante máximo de € 350 000,00.

3. Encontra-se constituída a favor da primeira ré uma hipoteca sobre o prédio descrito em A), ii., inscrita no registo em 20.01.2009, convertida em definitiva em 04.02.2009, com fundamento num contrato de mútuo, para garantia da quantia de € 250 000,00, até ao montante máximo de € 350 000,00.

4. Em 14.06.2012, os autores declararam prometer comprar e os primeiros réus declararam prometer vender os prédios identificados em A), i. e ii., pelo valor de €150.000,00.

5. Naquela data, os autores entregaram aos primeiros réus, a título de sinal, a quantia de € 60.000,00.

6. E, em 26.06.2012, os autores entregaram aos primeiros réus, a título de reforço de sinal, a quantia de € 35.000,00.

7. Os autores e os primeiros réus acordaram que a escritura pública de compra e venda seria celebrada até 15.09.2012.

8. E, nesse momento, os autores entregariam aos primeiros réus a quantia de € 55.000,00.

9. Era aos autores que cabia a marcação da mencionada escritura pública.

10. A escritura pública de compra e venda foi marcada pelos autores para o dia 05.09.2012, pelas 10 horas, no Cartório do Dr. FF, em Lamego.

11. No referido dia, os primeiros réus não compareceram na escritura pública de compra e venda.

12. O primeiro réu comunicou ao autor que não podia pagar o valor garantido pelas hipotecas mencionadas em B) e C).

13. Os autores ocupam os imóveis mencionados desde o dia 14.06.2012».

            III – Fundamentação de direito

1. Entendeu o acórdão recorrido, confirmando a sentença do tribunal de 1.ª instância, que, para a aplicação do art. 755.º, al. f) do CC, basta a prova de que houve tradição, no sentido de transferência para o promitente-comprador do poder de facto sobre a coisa, assim lhe sendo permitida uma relação material com ela, e que, estando em causa dois prédios, um rústico e outro urbano, estes se subsumem à noção de coisa consagrada no artigo 755.º n.º 1 al. f) do C.Civil, não impedindo esta natureza dos prédios a qualidade de consumidor do promitente-comprador nem a aplicação do regime jurídico do art. 759.º, n.º 2 do CC.

2. Invoca o Banco, nas suas conclusões, que o art. 755.º, n.º 1, al. f) do CC deve ser interpretado restritivamente, tal como se entendeu no AUJ n.º 4/2014, de 20-03-2014, que decidiu que o direito de retenção só pode ser invocado contra o credor hipotecário pelo promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor e que esta qualidade exige que o prédio seja urbano e se destine à habitação dos promitentes-compradores.

3. O “Direito de retenção” regulado nos artigos 754º ss do Código Civil “consiste na faculdade que o devedor de uma coisa possui de a não entregar enquanto não for pago do crédito que por sua vez lhe assiste”. Por seu turno a hipoteca é também uma garantia real que concede aos credores o direito a serem pagos pelo valor de certos bens imóveis do devedor, estando os seus créditos devidamente registados. O DL n.º 379/86, de 11/11 alargou o “direito de retenção” a vários casos entre os quais nos cabe destacar o da alínea f) do nº 1 do artigo 755º do CC, o qual estatui que goza de tal direito “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte nos termos do artigo 442º”. Dispõe este normativo legal no seu nº 2: “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objetivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago”.

            O direito de retenção tem sido concedido aos promitentes-compradores, entendendo-se que a constituição de sinal e a tradição da coisa têm subjacente uma forte confiança na firmeza e concretização do negócio, impondo-se, em consequência, com particular acuidade, defender o mais possível o exato cumprimento do contrato e que a execução específica não resulte inoperante mercê da alienação da coisa a terceiro, quando a promessa se encontre destituída de eficácia real. Nesta sequência, tem-se admitido que existe transmissão da posse do promitente-vendedor para o promitente-comprador, não por via do contrato-promessa mas por força do acordo negocial da traditio e da efetiva entrega da coisa. Neste caso o promitente-comprador, que recebe a coisa e a usa como se fosse sua, praticando sobre ela os atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, é um verdadeiro possuidor em nome próprio.

4. O AUJ n.º 4/2014, nos casos em que o administrador da insolvência recusa o cumprimento do contrato-promessa obrigacional em que houve pagamento de sinal e tradição, procede a uma conciliação dos interesses em conflito, restringindo a proteção do promitente-comprador às situações em que ele tem a qualidade de consumidor.

O Acórdão Uniformizador, de 20-03-2014 (proc. n.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1), relatado pelo Conselheiro Távora Vítor, uniformizou a seguinte orientação jurisprudencial:

«No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil».

 

Defende o acórdão uniformizador uma interpretação restritiva da alínea f) do artigo 755º nº 1 do CC, de molde a que apenas se encontre protegido pela prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor, definindo o conceito de consumidor, na nota 10, da seguinte forma: «o promitente comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda», mas não exigindo expressamente que o prédio seja urbano e se destine a habitação. 

Contudo, conforme afirma o acórdão da formação que admitiu esta revista excecional, a fls. 347-353, relatado pelo Conselheiro Nuno Cameira, «a uniformização jurisprudencial a respeito do direito de retenção se circunscreveu ao caso particular do promitente comprador que obteve a tradição do imóvel por parte do promitente vendedor insolvente, mas não o cumprimento do contrato pelo administrador de insolvência; e evidente se torna também que o conceito de consumidor não foi objecto da uniformização».

 

5. Fazendo uma resenha da jurisprudência deste Supremo Tribunal posterior ao AUJ n.º 4/2014, resulta o seguinte:

No acórdão de 29-05-2014 (proc. n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1), relatado pelo Conselheiro João Bernardo, considerou-se que «Para efeitos do Acórdão proferido em revista ampliada em 20.3.2014, no processo n.º 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, deve ser considerado consumidor o promitente-comprador que, na fração prometida comprar, tem um estabelecimento de venda ao público de artigos para o lar, que explora através duma sua sociedade com sede na mesma fração».

            A fundamentação aduzida foi a seguinte:

                A Lei n.º 24/96 define no artigo 2.º, n.º1, consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”

Já o Decreto-Lei n.º24/2014, de 14.2 define consumidor, pare efeitos deste normativo, como “a pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

Este Decreto-Lei transpôs a Diretiva n.º 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, que, no artigo 2.º, define, para efeitos dela mesma:

“Consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;

Profissional: qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue, incluindo através de outra pessoa que actue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional.”

É manifesto que todos estes textos legais conferem ao conceito de consumidor o sentido estrito.

Mas fica alguma dúvida sobre a opção pela distinção que fizemos dentro do conceito estrito, parecendo até pela definição de “profissional” constante da diretiva – que não passou para o texto de origem interna, mas que será de atender em obediência ao princípio da interpretação conforme – que a exclusão se situa só nos casos em que a aquisição, posse, ou uso faz parte da própria atividade profissional.

A inclusão do consumidor no texto uniformizante apoiou-se, como da fundamentação consta, no que defende Miguel Pestana de Vasconcelos, em Cadernos de Direito Privado, n.º33, 3 e seguintes.

Este autor dedica ali a extensa nota de pé de página n.º 25 à noção de consumidor, sustentando que é ponderada e equilibrada, devendo “orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito”, a definição resultante dos artigos 10.º, n.º1 e 11.º, n.ºs 1 e 2 do anteprojeto do Código do Consumidor.

É, então, “consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional.”

Podendo estender-se o conceito às pessoas coletivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transação em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade e às pessoas singulares que atuem na prossecução de fins que pertençam ao âmbito da sua atividade profissional, se provarem o que acaba de ser referido relativamente às pessoas coletivas.

O próprio texto fundamentante do Acórdão Uniformizador fornece na nota n.º10 elementos que permitem vislumbrar o que se quis incluir e excluir quando se inseriu o conceito na parte da uniformização.

Ali se refere que:

“…Não sofre dúvida que o promitente-comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda.”

Deste texto, conjugado com o que vimos referindo em abstrato, cremos poder concluir que do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis.»

No acórdão 14-10-2014, relatado pelo Conselheiro João Camilo (986/12.2TBFAF-G.G1.S1), aplicou-se o conceito de consumidor do AUJ n.º 4/2014, definido conforme o n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31-07, assim se excluindo o reconhecimento do direito de retenção por decorrer da matéria de facto provada que o promitente-comprador destinava as frações a revenda.

 

No acórdão deste Supremo Tribunal, de 25-11-2014 (proc. 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1), relatado pelo Conselheiro Fernandes do Vale, também proferido no contexto da especificidade teleológica do direito da insolvência, entendeu-se que «A uniformização operada pelo AUJ n.º 4/2004, de 20-03-2014, publicado no DR, I Série, n.º 95, de 19-05-2014, e acessível em www.dgsi.pt, reporta-se, exclusivamente, ao promitente-comprador que detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor. Esta deve ser entendida no seu sentido estrito, correspondente à pessoa que adquire um bem ou serviço para uso privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa».

            Neste caso, a qualidade de consumidor foi recusada pelo facto de a promitente compradora ser uma sociedade por quotas e ter, portanto, a qualidade de comerciante.

No acórdão deste Supremo Tribunal, de 30-04-2015 (1187/08.0TBTMR-A.C1.S1), relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes, tendo a instituição bancária invocado na revista que o promitente-comprador não era consumidor, no âmbito de um procedimento declarativo de reclamação, verificação e graduação de créditos, deduzido em 08/11/2011, por apenso a uma execução instaurada em 2008, entendeu-se que «Tendo sido reclamado um crédito emergente do incumprimento definitivo de um contrato-promessa, ainda antes da prolação do AUJ do STJ n.º 4/2014, de 19/05/2014, sem que a reclamante tenha alegado a sua qualidade de consumidora, não tendo as partes nem as instâncias se debruçado sequer sobre tal questão, que só vem suscitada em sede de revista, tal questão assume a natureza de uma questão nova não estritamente jurídica de que já não cumpre conhecer», tendo assim o Supremo confirmado a decisão do Tribunal da Relação que reconheceu o direito de retenção ao promitente-comprador de três lojas de um prédio em construção.

No acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 09-07-2015 (proc. n.º 1242/10.6YYPRT-A.P1.S1), relatado pelo Conselheiro Abrantes Geraldes, em que estava em causa um conflito entre um direito de retenção emergente do incumprimento de um contrato de promessa de compra e venda relativamente a um estabelecimento industrial e uma hipoteca legal para garantia de um crédito a alimentos devidos a filho (do promitente-vendedor, proprietário do imóvel) portador de deficiência, entendeu-se que a questão do conceito de consumidor não podia ser conhecida por não ter sido alegada a factualidade relacionada com a negação ou com a atribuição da qualidade de consumidor e carecerem os autos de elementos para apreciação dessa questão. Contudo, com base nos elementos histórico, sistemático e teleológico de interpretação, decidiu-se a favor da prevalência do crédito a alimentos sobre o direito de retenção por força da diferença substancial entre uma hipoteca voluntária, em causa nas situações tipo de conflito entre direito de retenção e crédito concedido por entidade financeira para a construção de edifícios para venda normalmente destinados a habitação, e uma hipoteca legal para garantir um crédito de alimentos, irrenunciável e indisponível (art. 2008.º do CC). 

O Supremo Tribunal, no acórdão de 17-11-2015 (processo n.º 1999/05.6TBFUN-I.L1S1), relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos, entendeu que, para definir os direitos em apreciação no recurso de revista do Banco recorrente, credor hipotecário, e dos recorridos promitentes-compradores com a tradição de seis frações prediais, se deve operar com o conceito de consumidor, interpretando a norma do art. 755º, nº1, f) do Código Civil, com o sentido acolhido no AUJ n.º 4/2014, de 20.3.2014.

            Aí se entendeu que «O conceito de consumidor que o referido AUJ acolheu foi o conceito restrito, funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa» (Acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-11-2015, processo n.º 1999/05.6TBFUN-I.L1S1).

A qualidade de consumidor foi negada, no caso decidido neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, aos promitentes-compradores por não constarem no acórdão recorrido os elementos da mesma (as frações tinham sido revendidas e não se tinham destinado a uso familiar ou pessoal), nem o Tribunal da Relação recorreu a presunções judiciais para fixar, no caso concreto, o conceito consumidor, por exemplo, a partir do facto de no processo não constar a qualidade de comerciante dos promitentes-compradores. O Supremo entendeu, assim, que não podia substituir-se ao Tribunal da Relação para dar como provada a qualidade de consumidor.

  

            6. O acórdão uniformizador não é fonte de direito, nem tem força obrigatória geral como os antigos assentos, apesar de ser dotado de um particular poder de persuasão.

A aplicação imediata do AUJ n.º 4/2014, defendida pelo acórdão deste Supremo Tribunal, de 17-11-2015, levanta, contudo, o problema dos processos pendentes, em que à data da sua instauração não estava ainda em vigor a restrição do direito de retenção ao promitente-comprador com a qualidade de consumidor.

  

Este acórdão de 17-11-2015, tal como o AUJ n.º 4/2014, foram proferidos no contexto de um processo de insolvência, para os casos em que o administrador da insolvência recusa o cumprimento do contrato promessa obrigacional em que houve traditio, enquanto o caso sub judice se refere a uma ação de condenação intentada pelo promitente-comprador contra os promitentes-vendedores e o credor hipotecário (Banco).

O conceito de consumidor, enquanto conceito restrito e funcional, utilizado no AUJ, surgiu no contexto específico do direito insolvencial.

Pode questionar-se, se o conceito de consumidor é aplicável fora do quadro do processo de insolvência e se funciona como requisito constitutivo e essencial do direito de retenção, cujo ónus de alegação e prova recairia sobre o promitente-comprador, pois o acórdão uniformizador definiu o seu âmbito de aplicação no domínio da recusa de cumprimento do contrato promessa pelo administrador da insolvência e não, em geral, para os casos em que o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa é titular de um crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º do CC.

O acórdão uniformizador não tem por consequência, necessariamente, que a interpretação restritiva do art. 755.º, n.º 1 al. f) do CC defendida pelo Banco, ora recorrente, nomeadamente a sua restrição a prédios urbanos destinados a habitação, tenha aplicação ao caso sub judice, desde logo porque a noção de consumidor não foi objeto da referida uniformização e porque o AUJ, embora tenha citado na sua fundamentação o preâmbulo do DL 386/86, de 11-11, quando definiu o conceito de consumidor na nota 10 não procedeu a semelhante restrição.

  O art. 755.º, al. f) do CC apenas exige a traditio, enquanto situação socialmente atendível, que o legislador entendeu tutelar de forma reforçada, por respeito às expetativas de estabilidade e de segurança associadas à situação de facto criada com a entrega do bem, não distinguindo consoante se trate de prédios urbanos ou rústicos, nem de coisas imóveis ou móveis.

 

Conforme se afirma nos acórdãos deste Supremo Tribunal, de 19-4-2001 (publicado in RLJ nº133-367 e ss, com anotação favorável do Prof. Calvão da Silva, RLJ, Ano 133 - p. 370 e Ano 134 - pág. 21) e de 25-03-2014, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos:  

«A tradição da coisa exprime, na disciplina dos direitos reais, a transmissão da detenção de uma coisa entre dois sujeitos de direito, sendo constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e um elemento positivo, a tradicionalmente chamada apprehensio (acto que exprime a tomada de poder sobre a coisa).

   A alínea b) do artigo 1263.º do C.C., na esteira de uma velha tradição romanista, confere igual valor à tradição material e à tradição simbólica.

   É no elemento positivo da traditio (apprehensio) que se verificam as variações que explicam a distinção entre tradição material e tradição simbólica.

   A tradição é material quando, p. ex., o livreiro entrega em mão o livro ao comprador, ou o vendedor de uma casa leva o comprador a entrar nela, abandonando-a de seguida; será simbólica quando o vendedor de um apartamento entrega as chaves ao comprador, ou o vendedor de uma quinta entrega ao comprador os títulos ou os documentos que justificavam o seu direito, ou, como nos antigos costumes, lhe entregava uma porção de terra do prédio ou, p.ex., uma cepa de uma vinha.

   A tradição material é, portanto, a realizada através de um acto físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.

   A relevância atribuída à tradição simbólica foi a natural consequência de nem sempre a apprehensio poder ser materialmente realizada, por impossibilidade objectiva ou subjectiva, mas o seu uso generalizou-se e diversificou-se de acordo com as necessidades do comércio jurídico.

 O valor simbólico de um acto depende, naturalmente, do tipo de coisa que se transmite, como supra ficou exemplificado e explicado.

 Mas também a traditio material varia de configuração e intensidade, de acordo com a natureza da coisa alienada.

A chamada traditio longa manu ou traditio oculis et affectu, que exprimiam o consenso das partes junto das coisas transmitidas, com o significado de abandono e apprehensio, sofreu, nos direito romano e comum, uma evolução no seio da tradição material, para formas atenuadas de transmissão da coisa.

A traditio material, suposta pelo legislador, não implica, portanto, um acto plasticamente representável, de largar e tomar, bastando-se com a inequívoca expressão de abandono da coisa e a consequente expressão de tomada de poder material sobre a mesma, por parte do beneficiário».         

A traditio configura-se como o poder de facto sobre a coisa que o promitente vendedor conferiu ao promitente-comprador, passando este a ter uma relação material com a coisa, revelada em atos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo que tem sobre a mesma, que fica na sua disponibilidade, renunciando, simultaneamente, o promitente-vendedor do poder que tinha sobre ela.

A tradição basta-se com este poder de facto e não necessita de ser tão enérgica como na aquisição originária, porque está em causa apenas a transferência do poder do promitente-vendedor para o promitente-comprador, e não a aquisição de um direito novo.

O conceito legal de tradição do imóvel é, assim, o principal requisito ou elemento constitutivo do direito de retenção – excluindo-se este direito em todos os casos em que se verifique que, afinal, o promitente-comprador não deu ao imóvel uso real, permanente e efetivo, afetando-o à satisfação dos seus interesses e necessidades de forma que se justificasse a tutela reforçada da confiança na estabilidade da sua posição jurídica.

            7. Vejamos os factos dados como provados:

«1. Encontram-se inscritos a favor dos primeiros réus os seguintes prédios:

- i. Prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e andar com um anexo, sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º… e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 963;

- ii. Prédio rústico, composto de vinha demarcada do Douro, oliveiras e árvores de fruto, sito no ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º … e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 15.

2. Encontra-se constituída a favor da primeira ré uma hipoteca sobre o prédio descrito em A), i., inscrita no registo em 20.01.2009, convertida em definitiva em 04.02.2009, com fundamento num contrato de mútuo, para garantia da quantia de € 250 000,00, até ao montante máximo de €350 000,00.

3. Encontra-se constituída a favor da primeira ré uma hipoteca sobre o prédio descrito em A), ii., inscrita no registo em 20.01.2009, convertida em definitiva em 04.02.2009, com fundamento num contrato de mútuo, para garantia da quantia de €€ 250 000,00, até ao montante máximo de €350 000,00.

4. Em 14.06.2012, os autores declararam prometer comprar e os primeiros réus declararam prometer vender os prédios identificados em A), i. e ii., pelo valor de €150.000,00.

5. Naquela data, os autores entregaram aos primeiros réus, a título de sinal, a quantia de € 60.000,00.

6. E, em 26.06.2012, os autores entregaram aos primeiros réus, a título de reforço de sinal, a quantia de €35.000,00.

7. Os autores e os primeiros réus acordaram que a escritura pública de compra e venda seria celebrada até 15.09.2012.

8. E, nesse momento, os autores entregariam aos primeiros réus a quantia de €55.000,00.

9. Era aos autores que cabia a marcação da mencionada escritura pública.

10. A escritura pública de compra e venda foi marcada pelos autores para o dia 05.09.2012, pelas 10 horas, no Cartório do Dr. FF, em Lamego.

11. No referido dia, os primeiros réus não compareceram na escritura pública de compra e venda.

12. O primeiro réu comunicou ao autor que não podia pagar o valor garantido pelas hipotecas mencionadas em B) e C).

13. Os autores ocupam os imóveis mencionados desde o dia 14.06.2012».

                 

São pressupostos gerais do reconhecimento do direito de retenção sobre o objeto prometido vender: a) – a existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real; b) – a entrega da coisa objeto do contrato-promessa; c) – a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato-promessa, pelo promitente vendedor, nos termos do art. 442.º, n.º 2, 2.ª parte do CC.

Quando o promitente-comprador reclama o crédito em procedimento de liquidação universal, o AUJ exige um requisito adicional: que o promitente-comprador tenha a qualidade de consumidor em sentido restrito e funcional.

É que, como se tem entendido no domínio do direito insolvencial, a lei procede a uma reconfiguração da relação entre o promitente-comprador e o promitente-vendedor, fazendo surgir novos poderes e deveres. O alcance e o âmbito do direito de retenção são assim definidos em articulação com o direito insolvencial. Aqui trata-se de um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (ressalvados os que sejam titulares de prevalência sobre os demais) ou a satisfação dos credores pela forma prevista no plano de insolvência.

Neste sentido, afirma o citado acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 09-07-2015, que o «ACUJ incidiu unicamente sobre os pressupostos do reconhecimento do direito de retenção num quadro de insolvência do promitente-vendedor, sendo convocados para tal acórdão uniformizador não apenas os arts. 759º, nº 2, e 755º, nº 1, al. f), do CC, mas ainda preceitos do CIRE respeitantes a contratos-promessa celebrados antes da declaração de insolvência. A solução que foi fortemente influenciada pelo facto de a insolvência implicar, a par da liquidação total da massa insolvente, a convocação universal dos credores, o que explicaria a interpretação restritiva que foi adoptada no sentido de excluir do benefício os promitentes-compradores que não tenham a qualidade de “consumidores”. Em consequência, a invocação do referido aresto uniformizador vem ocorrendo essencialmente em acórdãos deste Supremo no âmbito de recursos de revista emergentes de reclamações e de graduações de créditos em processo de insolvência(…)».

Contudo, apesar das diferenças entre os dois processos, execução singular e execução universal, o princípio da igualdade e a unidade do sistema jurídico concorrem para que os pressupostos do direito de retenção tenham de ser os mesmos em ambas as situações (neste sentido, cf. acórdão de 30-04-2015).

 

A noção de consumidor segundo o artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, de 31/7 (com as alterações decorrentes do DL n.º 67/2003, de 08-04 e DL 84/2008, de 08-05), é a seguinte: «Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios».

  

O Banco coloca a questão de saber se os imóveis protegidos por direito de retenção do promitente-comprador são apenas os prédios urbanos destinados a habitação, por ser esta a razão que levou o legislador a optar pela prevalência do direito de retenção, segundo o preâmbulo do DL 379/86, de 11 de novembro, ou se podem ser quaisquer bens imóveis (rústicos ou urbanos), independentemente da finalidade dos mesmos ser a habitação ou outra, invocando que no caso vertente está em causa, conforme terão declarado os promitentes, um objetivo de exploração agrícola do prédio rústico. Invoca a favor da sua tese o conceito de consumidor em sentido restrito e funcional definido no AUJ n.º 4/2014.

 No caso concreto, estamos perante uma ação de condenação interposta pelos promitentes-compradores contra os promitentes-vendedores e o Banco, credor hipotecário, sem que tenha havido qualquer declaração de insolvência do promitente-vendedor.

Os imóveis objeto da promessa são um prédio urbano e um prédio rústico.

As instâncias consideraram provada a tradição e a relação material dos promitentes-adquirentes com a coisa. 

De acordo com a matéria de facto provada, os autores ocupam os imóveis prometidos vender, um prédio urbano e um prédio rústico, desde o dia 16 de Junho de 2012, a data em que foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda, e em nenhum lugar do processo aparecem identificados como comerciantes, nem consta da matéria de facto que dêem aos prédios utilização profissional.

             

No caso vertente, os promitentes-compradores não têm a qualidade de comerciante e essa qualidade não decorre do eventual exercício de atividade agrícola alegado pelo Banco, pois «(…) não são comerciantes as pessoas (singulares ou colectivas) que exercem uma actividade agrícola, valendo aqui um conceito amplo de agricultura, que compreende a actividade agrícola em sentido estrito e tradicional (cultivo da terra para obtenção de colheitas) a silvicultura, a pecuária, e ainda a cultura de plantas e a criação de animais sem terra ou em que esta apresenta carácter acessório. Com efeito, a lei exclui a agricultura dos domínios do comércio. Para não sair do CCom., vejam-se os arts. 230.º, §§ 1.º (1.ª parte) e 2.º, 464.º, n.ºs 2 e 4.º» (Cf. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume I, 6.ª edição, Almedina, Coimbra 2006, p. 102).

           

O facto de o prédio rústico ser composto de vinha demarcada do Douro, oliveiras e árvores de fruto não significa que se pretenda fazer dele um uso profissional, nem tal circunstância ficou provada ou resulta do processo.

   

Estamos perante um processo pendente à data em que o AUJ n.º 4/2014 foi proferido, o que coloca problemas delicados, conforme se afirma no voto de vencido do Conselheiro Lopes do Rego, no citado AUJ, pois a questão da qualidade de consumidor não era, à data da instauração do processo, um requisito constitutivo do direito de retenção do promitente-comprador, e, por isso, não foi alegado nem provado, não integrando a matéria de facto.

            E o conceito de consumidor, conforme se afirma, no acórdão de 30-04-2015, «não se trata de uma questão estritamente jurídica, envolvendo também uma componente factual que não fora, oportunamente, trazida aos autos e cujo relevo não era então razoável supor».

Deparamo-nos, portanto, no caso concreto, com uma matéria de facto insuficiente para decidir tal questão no sentido alegado pelo recorrente.

Não se verifica qualquer elemento nos autos que permita a este Supremo Tribunal afirmar ou negar a qualidade de consumidor do promitente-comprador.

Contudo, o Banco invocou o AUJ n.º 4/2014, no recurso de revista. Já na alegação de apelação invocou a interpretação restritiva do art. 755.º, al. f) do CC em relação aos prédios destinados a habitação, mas sem citar o AUJ, pugnando pelo não reconhecimento do direito de retenção do promitente-comprador por alegadamente lhe faltar a qualidade de consumidor no mercado da habitação.

O acórdão recorrido considerou, no uso do seu poder de apreciação da matéria de facto, que o promitente-comprador tem a qualidade de consumidor final, o que significa que o Tribunal da Relação entendeu que os imóveis objeto da promessa não se destinavam a revenda nem a uso profissional, considerando sem relevo no contexto específico do caso, saber se os autores tinham habitação permanente, ou não, na parte urbana do prédio e que um dos prédio fosse rústico, pois o art. 755.º, al. f) do CC não distingue consoante o tipo de coisa objeto do contrato promessa, abrangendo indiferentemente bens móveis e imóveis, e dentro destes, prédios urbanos ou rústicos.

Com efeito, o facto de o preâmbulo do DL 379/86, de 11/11 se referir às necessidades especiais de proteção dos promitentes-compradores no mercado da habitação não impõe que apenas os promitentes-compradores que visam fazer do imóvel uma primeira habitação tenham esta proteção, até porque a letra da lei não distingue os imóveis que se destinam a habitação própria e permanente dos outros (por exemplo, segunda habitação), nem tão pouco os urbanos dos rústicos, e se fosse essa a vontade do legislador, tê-lo-ia feito. Por outro lado, está vedado ao intérprete atribuir à lei um sentido que não tenha uma correspondência, ainda que mínima, na sua letra.

Em relação ao conceito de consumidor, não compete a este Supremo Tribunal sindicar o estatuto de consumidor, enquanto conceito factual, atribuído pela Relação aos autores, a não ser em situações excecionais de contradição lógica das presunções judiciais usadas pela Relação com a matéria de facto provada, o que não se verifica no caso concreto.

 

Segundo a orientação jurisprudencial fixada no AUJ a qualidade de consumidor refere-se ao conceito restrito e funcional, segundo o qual o consumidor é a pessoa singular, destinatária final do bem transacionado, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa.

 

Na jurisprudência que se segue ao AUJ, conforme exposto, utiliza-se ora um conceito mais restrito de consumidor, segundo o qual estão excluídos todos os sujeitos que tenham a qualidade de comerciantes e aqueles que destinem o imóvel a revenda (acórdãos de 14-10-2015, 25-11-2014, 17-11-2015); ora um conceito mais amplo, em que só está excluído do conceito de consumidor aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis, mas aceitando que seja consumidor o promitente-comprador que exerce o comércio no imóvel, uma loja de venda ao público de produtos para o lar (acórdão de 29-05-2014).

Sendo assim, uma vez que a noção de consumidor até agora adotada neste Supremo Tribunal acentua a qualidade de sujeito final na transação do bem, excluindo apenas os comerciantes e aqueles que destinam o imóvel a revenda para obtenção de lucro, julgamos que o acórdão recorrido decidiu bem, reconhecendo a qualidade de consumidor aos promitentes-compradores.

Em consequência, aceitamos a decisão e a fundamentação do acórdão recorrido e entendemos que o crédito dos promitentes-compradores, pelo incumprimento do contrato-promessa pelos promitentes-vendedores, está garantido pelo direito de retenção, que prevalece sobre o crédito hipotecário do Banco, por aplicação conjunta dos arts. 755.º, n.º 1, al. f) e 759.º, n.º 2 do CC.

 

            8. Afirma o recorrente que esta interpretação da lei, segundo a qual o direito de retenção prevalece sobre o crédito hipotecário, mesmo que este beneficie de registo anterior, padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança (art. 2.º da CRP) e da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2 da CRP).

O Tribunal Constitucional tem decidido pela não inconstitucionalidade, como resulta designadamente dos Acórdãos nº 356/04, de 19-5-04, e nº 466/04, de 23-6-04, considerando digno de tutela, pelo legislador ordinário, os interesses dos promitentes-compradores. Vem, assim, recusando a declaração de inconstitucionalidade, uma vez que a prevalência de uma garantia oculta, como o direito de retenção, sobre uma garantia real registada, como a hipoteca voluntária, encontra justificação na tutela dos direitos dos particulares. Tem-se entendido que as entidades cujo crédito está garantido por hipoteca voluntária têm outros instrumentos de tutela da sua posição, o que não ocorre com o promitente-comprador, a parte mais fraca do contrato e com menos acesso à informação.

Para tratar esta questão remetemos para a orientação definida no AUJ n.º 4/2014, e que tem sido repetidamente adotada no Tribunal Constitucional:

«Ora a dilucidação desta problemática depende essencialmente de uma ponderação dos valores e interesses legítimos vigentes na sociedade num determinado momento histórico. E considerações semelhantes valem também no tocante ao princípio da proporcionalidade, também informador do sistema jurídico; a sua aplicação ao caso concreto terá que fazer-se tendo em vista os valores que se entende constituírem os prevalentes na comunidade, harmonizando-os axiologicamente entre si. Como em muitos outros setores do ordenamento jurídico, também aqui, ao nível do contrato promessa, o legislador no seu poder-dever de corrigir desequilíbrios e tomando em linha de conta os interesses e riscos em presença, entendeu propender para a proteção da parte mais débil, o promitente-comprador, face ao credor hipotecário, desde que aquele tivesse entregue ao outro outorgante o sinal e obtido a tradição do objeto do contrato. Assim e na linha do entendimento do que tem vindo a ser repetidamente decidido por este Supremo Tribunal e ainda pelo Tribunal Constitucional, não vemos que haja qualquer inconstitucionalidade naquela opção legislativa. A acrescer ainda a estas razões, não pode igualmente esquecer-se que no momento em que a garantia hipotecária se constituiu, já estavam em vigor os artigos 755º nº 1 alínea f) e 759º nº 2 do Código Civil, o que reforça a necessidade de o credor hipotecário ter de acautelar-se contra os efeitos para eles possivelmente nefastos daquela preferência. Não se argumente pois de igual modo que os princípios da previsibilidade e segurança seriam afetados pela concessão e prevalência do direito de retenção; trata-se de mais uma escolha do legislador, à semelhança de outras – v.g. créditos de trabalhadores - que evidencia claramente uma ponderação de interesses em atenção à parte mais fraca no âmbito da relação contratual, o que implica necessariamente compressão de alguns direitos com vista à busca de uma solução mais equitativa; é o que sucede quanto à prevalência excecional do crédito emergente de contrato promessa ainda, que de natureza obrigacional, sobre a hipoteca, desde que se tenha verificado a tradição do respetivo objeto acompanhada pelo pagamento total ou parcial do preço. Poder-se-á dizer, parafraseando um acórdão deste Supremo Tribunal, estarem assim presentes, na interpretação exposta das normas aplicadas, os critérios práticos da justa medida, razoabilidade e adequação material ínsitos no princípio da proporcionalidade que temos vindo a comentar».

            Improcedem, pois, todas as conclusões da alegação de revista do recorrente.

IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 16 de fevereiro de 2016


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Sebastião Póvoas

Alves Velho