Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1832/15.0T8GMR.G1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
INCONSTITUCIONALIDADE
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
AÇÃO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DIREITO DE PREFERÊNCIA.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / PRINCÍPIO DA IGUALDADE / DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS / HABITAÇÃO E URBANISMO.
Doutrina:
-Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Teses, Universidade Católica, Porto, 2006, p. 184 e ss.;
-Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 7.ª edição, Almedina, p. 308;
-Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2.ª reimpressão, Coimbra, 1987, p. 187 e ss.;
-J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 2007, p. 339;
-Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.ª Edição, Coimbra, p. 204 ; Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, Almedina, 1980, p. 251-252 ; Vida Judiciária, n.º 108, 2007, p. 9;
-Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 121;
-José Pedro Carneiro Cadete, Da preferência do arrendatário habitacional, 2011, p.7-8, in www.google.pt/search?q=direito+de+preferencia+arrendat%C3%A1rio+Cadete&rlz=1C1VFKB_enPT768PT769&oq=direito+de+preferencia+arrendat%C3%A1rio+Cadete&aqs=chrome..69i57.7838j1j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8;
-Menezes Cordeiro, Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, p. 262;
-Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 51.º, I, 1991, p. 68;
-Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2.ª Edição, Almedina, p. 266;
-Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, Almedina, p. 639-640;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª edição, Coimbra Editora, p. 568;
-Pires de Lima, Sobre a controvérsia, RLJ, ano 95.º, p. 197 e ss.;
-Sá Carneiro, RT, ano 80.º, p. 322 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1091.º, N.º1, ALÍNEA. A);
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º E 65.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 28-01-1997, IN CJ/STJ, V, 1.º, P. 77;
-DE 13-02-1997, IN CJ/STJ, V, 1.º, P. 104;
-DE 02-06-1999, IN CJ/STJ, VII, 2.º, P. 129;
-DE 22-10-2009, PROCESSO N.º. 446/09;
-DE 21-01-2016, PROCESSO N.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1;
-DE 21-01-2016, PROCESSO N.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRUBUNAL CONSTITUCIONAL:


-ACÓRDÃO N.º 319/00, IN DR, II SÉRIE, DE 18/10/2000, P. 16785/16786;
-ACÓRDÃOS N.ºS 186/90, 563/96, 14/2000, 187/2001, 509/2002 E 232/2003, IN ATC, 16.º VOLUME, 383 E SS. 33º VOLUME, 47 E SS., DR, I SÉRIE-A, DE 16-05-1996, II SÉRIE, DE 19-02- DE OUTUBRO DE 2000, IDEM, IDEM, DE 26 DE JUNHO DE 2001, IDEM, I SÉRIE-A, DE 12 DE 2003, E DE 17 DE JUNHO DE 2003;
-DE 03-11-2016, IN DR N.º 235/2016, II SÉRIE, DE 09-6-2016.
Sumário :
I – Atento o teor do artigo 1091.º, n.º1, al. a), do CC, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado;

II - O arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada;

III – A interpretação da norma ínsita no art. 1091º, nº1, al. a), do CC, no sentido atrás mencionado, não viola os princípios constitucionais consagrados nos arts. 13º e 65º, da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório


1. AA instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, CC, DD, EE, FF, e GG, S.A., pedindo que:

- Seja reconhecido o seu direito de preferir à 6ª co-ré (GG, S.A.) na compra - efetuada por ela aos demais co-réus - do prédio urbano, sito na Rua …, nº …, da União das freguesias de …, concelho de Vizela;

- Seja reconhecido o seu direito de haver para si o dito imóvel, pelo valor pelo qual foi alienado à 6ª co-Ré (GG, S.A.) pelos demais co-Réus;

- Seja ordenado o cancelamento da Apresentação 845, de 2014/05/08, e da Apresentação 2788, de 2014/12/23, relativa ao mesmo prédio (descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de …, sob o nº 5…/19…6);

- Seja ordenado o cancelamento de quaisquer outras inscrições prediais averbadas ao prédio urbano aqui em causa, relativas a qualquer transmissão ou oneração do direito de propriedade por parte da 6ª co-Ré (GG, S.A.).

Para tanto, alegou, em síntese, que:

Em 24.5.1994, e por escritura pública, tomou de trespasse um estabelecimento de café e snack-bar, incluindo o direito ao respetivo arrendamento, instalado no rés-do-chão do prédio urbano identificado nos autos, não constituído em propriedade horizontal, pertencendo uma metade indivisa conjuntamente aos 1º a 4º réus, por a terem adquirido por sucessão mortis causa, e a outra outra metade indivisa à 5ª ré, por a haver adquirido por doação.

Mais alegou que os réus venderam o direito de que eram titulares sobre o dito prédio à 6ª ré (GG, S.A.) sem lhe comunicarem previamente o projeto de venda, para que pudesse exercer o direito legal de preferência que o art. 1091º, nº 1, al. a), do C.C. lhe reconhece.

Alegou ainda só ter tido conhecimento da segunda venda realizada no dia 12.1.2015, e da primeira venda em data posterior a esta, por ele próprio ter então consultado o registo predial do imóvel em causa.

2. Os 1º, 2º, 3º, 4º e 6º réus contestaram. Em sua defesa, além de arguirem a exceção de caducidade, alegaram que, ao outorgar a escritura de compra e venda relativamente ao direito a metade indivisa do prédio em causa, pretenderam transferir esse direito para a 6ª ré no âmbito de um acordo de partilha (em vida), celebrado entre os vendedores, não tendo havido, por isso, qualquer recebimento do preço declarado. Sustentam, por isso, que o autor não beneficia de qualquer direito de preferência no negócio referido, uma vez que tal direito se mostra limitado à venda ou à dação em cumprimento e se mostra também afastado quanto à metade indivisa adquirida pela 5ª Ré, dado que o direito de preferência do comproprietário prevalece sobre o do arrendatário.

Mais alegaram que, sob pena de abuso de direito, a ser reconhecido o invocado direito de preferência, deverá ter-se em conta, não o preço declarado na escritura, mas o valor real do imóvel, ou seja EUR 130.000,00, acrescido ainda das despesas exigidas pela aquisição.

3. Foi requerida a intervenção principal de HH, marido da 3ª ré, o que foi deferido. O interveniente contestou, pedindo que a ação fosse julgada improcedente.

4. Na 1ª instância, foi proferida sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu os réus do pedido.

5. Inconformado com esta decisão, o autor interpôs recurso para o Tribunal da Relação de …, tendo sido proferido acórdão a confirmar integralmente a sentença recorrida.

6. De novo irresignado, veio o autor interpor recurso de revista excecional para este Supremo Tribunal, admitido pela Formação a que alude o art.º. 672º, nº 3, do CPC.

Nas suas alegações, o autor, em conclusão, disse:

1 - A apreciação da existência do direito de preferência do arrendatário de prédio urbano não constituído em regime de propriedade horizontal trata, salvo melhor opinião, uma questão de enorme relevo jurídico, cuja dilucidação urje resolver, na medida em que se impõe descortinar e tornar coerente o entendimento dos Tribunais em casos semelhantes em função do elevado número de arrendamentos efetuados em prédios não constituídos em regime de propriedade horizontal.

2 - Pois, a tese das instâncias recorridas cria uma divisão dicotómica nos arrendatários: os que podem e os que não podem exercer o direito de preferência, tutelando de modo diverso situações substantivamente iguais, discriminando negativamente o arrendatário que, não obstante usufruir de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal tem relativamente a ela contrato de arrendamento válido e o frutifica e dele retira benefícios, mesmo de índole social, presumivelmente tão relevantes como os oriundos de contratos incidentes sobre fração juridicamente autónoma.

3 - Nesta situação, a tese das instâncias, além de violar o princípio constitucional, ínsito no art. 65° da C.R.P., de acesso à habitação própria, relativamente a muitos milhares de inquilinos, viola o princípio da igualdade perante a lei, ínsito no art. 13° da lei fundamental.

4 - As questões de constitucionalidade, que a tese das instâncias suscita, terão a relevância jurídica exigida pelo disposto na alínea a) do n.°1 do art. 672° do C.P.C, e a resolução das mesmas será claramente necessária para uma boa aplicação do direito, sendo que as inadmissíveis consequências da questão versada nos presentes autos terá a relevância social a que alude o disposto na alínea b) do n.° 1 do art. 672° do C.P.C.

5 - Além disso, existem no presente caso, fatores que pelo seu circunstancialismo podem e devem servir de exemplo e de sedimentação jurisprudencial de maneira a evitar a subjetividade das instâncias inferiores que ao fim ao cabo vão agindo de acordo com as convicções ou perceções momentâneas.

6 - Não só pela multiplicidade de relações jurídicas a que esta questão de direito é direta e potencialmente aplicável, mas sobretudo no que concerne à necessidade de estabilização jurisprudencial do entendimento a sufragar em relações análogas, diremos ainda que tal relevância social surge ainda mais vincada com a necessidade e busca da maior segurança jurídica possível.

7 - Assim, por se tratar de matéria recorrentemente tratada nos tribunais nacionais, de elevada sensibilidade e abrangência social e de díspares interpretações jurídicas por parte das várias instâncias jurisdicionais, importará a presente apreciação levar a uma melhor e mais coerente aplicação do direito sendo que, nesse sentido, poderá e deverá ser concedida e admitida a revista excecional do presente recurso, pois, para além de se encontram preenchidos os pressupostos previstos no artigo 672°, número 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, também o acórdão recorrido se encontra em manifesta contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de … no dia 23/06/2015, sob o processo 1275/12.8TBCBR.C1, já transitado em julgado, cujo relator é Carlos Moreira, proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

8 - O Acórdão fundamento que o recorrente apresenta - Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de … no dia 23/06/2015, sob o processo 1275/12.8TBCBR.C1, cujo relator é Carlos Moreira - encontra-se em contradição com o Acórdão recorrido, quanto ao sentido e alcance a dar à atual redação do artigo 1091°, n° 1, alínea a) do Código Civil, já que apresentam conclusões e efeitos totalmente divergentes entre si.

9 - Enquanto para o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de …, no âmbito do processo n° 1832/15.0T8GMR.G1, se defende que, tendo o atual art. 1091° do C.C., face ao anterior art. 47° do R.A.U., deixado de fazer referência a «prédio urbano» e a «fração autónoma» (substituindo-as por «local arrendado»), e tendo ainda eliminado qualquer disposição prevendo a licitação entre plúrimos arrendatários interessados em exercer concorrentes direitos de preferência, o arrendatário, há mais de três anos, do prédio não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência - sobre a parte arrendada, ou sobre a totalidade desse mesmo prédio - na respetiva compra e venda, ou na sua dação em pagamento, defendendo a existência de uma forçada coincidência entre o objeto do direito de preferência e o objeto do contrato de arrendamento.

10 - Para o acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de …, no âmbito do processo n° 1275/12.8TBCBR.C1, em acórdão datado do dia 23/06/2015, o arrendatário do prédio não constituído em regime de propriedade horizontal, continua a ter, perante o disposto no artigo 1091°, n° 1, alínea a) do C. C, direito de preferência na venda ou dação em pagamento do prédio.

11 - Alegando, para o efeito que, o evoluir histórico do instituto da preferência do locatário habitacional (desde a Lei n° 63/77 até à atual redação do artigo 1091° do Código Civil), não pode ser havido como "correção dogmática" desse instituto, visando restringir o exercício da preferência aos casos em que a coisa locada tenha individualidade jurídica própria, além de que, nem da análise do preâmbulo da Lei n.° 6/2006 de 27 de Fevereiro, nem da análise da sua exposição de motivos, decorre que o legislador teve a intenção de afastar o direito de preferência do locatário na compra e venda de todo o imóvel sempre que este se não encontre subordinado ao regime de propriedade horizontal.

12 - Na verdade, a expressão "local arrendado" continua a ser sinónimo de imóvel onde o arrendamento se situa, sendo que, a supressão das expressões "prédio urbano ou de sua fração autónoma" não alterou, nem para mais (no sentido de os titulares de fração autónoma terem direito de preferência sobre a totalidade do prédio sujeito ao regime de propriedade horizontal), nem para menos (no sentido de suprimir o direito de preferência aos arrendatários de prédios que, por facto que lhes é alheio, não estão sujeitos ao regime de propriedade horizontal), o significado da sobredita expressão.

13 - Nem tão-pouco a supressão do n.° 2 do artigo 47° do RAU contribui para essa interpretação face ao que continua a dispor o Código Processo Civil quanto ao exercício de direitos de preferência concorrentes ou que respeitem a várias pessoas (artigos 1032°; 1036°; 1037°).

14 - Pois, se o legislador tinha a intenção de suprimir o direito de preferência dos arrendatários de parcelas não autónomas deveria ter dado redação diversa ao artigo 1091° do Código Civil face à conhecida posição da doutrina e jurisprudência dominantes quando ao significado a dar à expressão "local arrendado" cujo conteúdo, reitera-se não é alterado pela supressão das expressões "prédio urbano ou de sua fração autónoma".

15 - Acresce que, os argumentos que têm vindo a ser invocados por alguma doutrina e jurisprudência para não se poder exercer o direito de preferência relativamente a todo o imóvel não colhem, porquanto, o que importa é interpretar a amplitude e conteúdo da expressão «local arrendado» atentos, primacialmente, os elementos lógico e teleológico da hermenêutica jurídica e a sensata e razoável ponderação dos interesses em dilucidação.

16 - Por outro lado, o direito de preferência do arrendatário não pode ser considerado como um direito excecional, e assim, a interpretar restritivamente o direito, mas antes como um normal direito conferido por lei na razoável ponderação de tais interesses.

17 - E, por último, para os que invocam que, a interpretação que se fazia, não se limitava a conceder ao arrendatário a propriedade da sua habitação, mas sim de todo um prédio, o que não se revela no seu interesse, há que ter presente que o direito de preferência não é de exercício obrigatório.

18 - Pelo que, se o prédio não está constituído em propriedade horizontal o «local arrendado» nunca pode ser alienado, qua tale, isto é, autonomamente, mas apenas incorporado no todo do prédio, pois, se assim não for, o arrendatário nunca teria direito a preferir, nem ao prédio como um todo, nem à parte locada.

19 - Tal total e inelutável restrição não colhe cobertura, nem no elemento literal da lei, nem na defesa dos fitos que a preferência pretende prosseguir e supra sumariamente mencionados e retiraria, nestes casos de não autonomização jurídica das frações do prédio, qualquer aplicação ao art.° 1091° do Código Civil.

20 - Assim, perante o extremismo da tese contrária, o melindre da situação, e a polémica que já vinha de trás, se o legislador pretendesse tal proibição, tê-la-ia adrede e inequivocamente plasmado. Não o tendo feito, vedado está ao intérprete operar tal entendimento restritivo, ademais com argumentos algo rebuscados e de cariz formal que postergam e conflituam com valores e desideratos de índole substancial, como os suprarreferidos.

21 - O perigo das contradições existentes, coloca a olho nu uma incerteza cabal da justiça e uma discrepância grotesca na análise da mesmíssima questão de direito, com conclusões diversas, peio que, se crê estar assim preenchida a alínea c), do n° 2 do artigo 672° do Código de Processo Civil, devendo, como tal, a revista excecional ser admitida e julgada procedente, conferindo ao Autor o direito de preferência na compra e venda do imóvel melhor identificado no artigo 1° do articulado de petição inicial.

22 - Caso se considere que, em face do disposto na alínea a) do artigo 1091° do Código Civil, o recorrente não tem direito a preferir na compra da totalidade do imóvel melhor identificado no artigo 1° do articulado de petição inicial, sempre teria direito a preferir na compra da parte do imóvel que lhe está arrendado, uma vez que, não existem razões materiais que justifiquem a diferença de tratamento entre arrendatários de frações autónomas e de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal, sob pena de se violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.° da Constituição.

23 - Desde logo, porque essas razões materiais haveriam de se encontrar numa diferente situação de facto e de direito dos arrendatários de andares em prédios não constituídos em propriedade horizontal, e não na diferente situação jurídica do local arrendado, que é estranha à relação locatícia e cuja configuração não depende da sua vontade, na medida em que a propriedade horizontal pode ser livremente constituída e desconstituída pelo(s) proprietário(s) no decurso daquela relação, sem com ela interferir.

24 - Se o legislador considera que a atribuição do direito de preferência na compra e venda do local arrendado constitui um caminho para a concretização do direito à habitação dos arrendatários consagrado no artigo 65.° da Constituição, na medida em que consolida e estabiliza a relação jurídica que estes mantêm com a sua casa de morada, teria que justificar em que é que o facto de aquele local não constituir uma unidade predial autónoma altera a natureza dos interesses tutelados.

25 - Como não altera, por maioria de razão, o direito de preferência dos arrendatários tem de se definir pelo objeto do seu direito (de arrendamento) e não pelo objeto do direito (de propriedade) do senhorio.

26 - Assim, sendo o direito de preferência um direito real de aquisição normativamente atribuído, nada obsta a que ele permita a aquisição apenas da parte do prédio que corresponde ao objeto do direito do arrendatário, como aliás a doutrina e a jurisprudência tem entendido ser juridicamente possível, mesmo sem norma legal expressa, em casos de aquisição originária parcial resultante de usucapião ou de acessão imobiliária fundadas na posse ou na ocupação de apenas parte de um prédio.

27 - Motivo pelo qual, se o supra exposto não proceder, deve ser proferida sentença que conceda ao recorrente direito a preferir na compra da parte do imóvel que lhe está arrendado, sob pena de se verificar uma restrição inadmissível do direito do inquilino, o qual ficaria sempre privado desse direito no caso de habitar parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal.


7. Nas contra-alegações, pugnou-se pela manutenção do acórdão recorrido.

8. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas[1] (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), importando, assim, decidir se:

a) - Face ao disposto no artigo 1091.º, nº1, al. a), do CC, assiste ao arrendatário de parte de um prédio, não constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência na venda da totalidade do prédio ou, pelo menos, quanto à parte do prédio que corresponde ao objeto do arrendamento;


b) - Se é inconstitucional a norma do artigo 1091.º, nº1, al. a), do CC se interpretada no sentido de negar o direito de preferência do arrendatário em casos como os referidos em a).



***


II – Fundamentação de facto


9. Factos provados:


1 - Por escritura pública de trespasse e arrendamento celebrada no dia 24 de Maio de 1994, no Primeiro Cartório Notarial de …, lavrada de folhas 54 a 55 do livro de escrituras diversas nº 148-B, II e mulher, JJ, declararam trespassar a AA (aqui Autor), pelo preço de Esc. 10.000.000$00 que já receberam, e este declarou aceitar, com todas as instalações próprias dele, seus móveis e utensílios e demais elementos que o integram, incluindo-se o direito ao respectivo arrendamento, o estabelecimento comercial de café e snack-bar, instalado no rés-do-chão do prédio urbano, sito na rua Dr. …, da freguesia das ..., ..., deste concelho e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 260 (conforme escritura pública que é fls. 12 e seguintes dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida). 

2 - Mais declararam II e mulher, na mesma escritura pública, que o referido prédio pertence a KK (…) e a LL (…) a quem vem sendo paga a renda mensal de vinte e oito mil, oitocentos e vinte escudos (conforme escritura pública que é fls. 12 e seguintes dos autos, já dada por integralmente reproduzida).

3 - O prédio identificado no facto provado número 1, encontra-se atualmente inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2739º da União das Freguesias de … (São Miguel e São João), no Serviço de Finanças de …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 5…/1…6 da freguesia ... (conforme certidão permanente do registo predial que é fls. 17 e seguintes dos autos, e caderneta predial urbana que é fls. 19 e seguintes dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas).

4 - Por escritura pública de doação celebrada a 16 de Dezembro de 2010, no Cartório Notarial da Dr.ª MM, sito em …, KK declarou doar, por conta da sua quota disponível, a sua filha FF (aqui 5ª Ré), e esta declarou aceitar, entre outros, metade indivisa do prédio urbano, composto de casa de cave, rés-do-chão, primeiro e segundo andares e logradouro, destinado a habitação, sito na Rua …, freguesia de …, do concelho de Vizela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vizela sob o número cinquenta e nove – …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 260 (conforme escritura pública que é fls. 35 e seguintes dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida).

5 - Depois de celebrada a escritura referida no número anterior, metade do valor da renda passou a ser paga a BB (aqui 1ª Ré), na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de LL, e a outra metade à 5ª Ré (FF) (artigo 6º da p.i.).

6 - Por título de compra e venda autenticado, celebrado no dia 22 de Dezembro de 2014, perante o Sr. Solicitador NN, com a cédula profissional …, na cidade do Porto, lavrada no livro vinte, de folhas oitenta e seis a folhas noventa e um, a 5ª Ré (FF) declarou vender a GG, S.A. (aqui 6ª Ré), pelo preço de € 65.000,00, já recebido, a metade indivisa referida no facto provado anterior (conforme título de compra e venda que é fls. 43 e seguintes dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido).

7 - Por título de compra e venda autenticado, celebrado no dia 07 de Maio de 2014, perante o Sr. Solicitador NN, com a cédula profissional …, na cidade do Porto, lavrado no livro dezoito, de folhas trinta e seis a quarenta e quatro, BB (aqui 1ª Ré), CC (aqui 2º Réu), DD (aqui 3ª Ré) e EE (aqui 4ª Ré), declararam vender à 6ª Ré (GG, S.A.), pelo preço de € 37.500,00, já recebido, ½ do prédio urbano composto de cave, rés-do-chão, primeiro, segundo andares e logradouro, sito na Rua … n.º …, destinado a habitação e comércio, descrito na Conservatória do registo predial de Vizela sob o n.º 5… com a inscrição a favor do autor da herança pelas inscrições AP – 6 de 1974/07/09, AP – 61 de 1987/01/26 e AP – 62 de 1987/01/26, mas devidamente habilitados pela escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 28.10.1996 no Cartório Notarial de Esposende no lv.º 41-D a fls. 40 que se arquiva, inscrito na matriz sob o artigo 289 da união das freguesias de … (…), anteriormente era o artigo 260 da freguesia de … (conforme título de compra e venda que é fls. 53 e seguintes dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido).

8 - Encontram-se feitas as seguintes inscrições no registo do prédio descrito sob o n.º 5…/1…6, da freguesia …, na Conservatória do Registo Predial de Vizela: Apresentação n.º 845, de 2014/05/08, aquisição de ½ a favor da GG, S.A., por compra DD, CC, BB e EE; Apresentação n.º 2788 de 23.12.2014, aquisição de ½ a favor da GG, S.A., por compra FF (conforme. certidão permanente do registo predial que é fls. 17 e seguintes dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida).

9 - O Autor teve conhecimento no dia 12 de Janeiro 2015 de que tinha ocorrido a compra e venda aludida no facto provado número 6, através do e-mail que nessa data lhe foi enviado por HH (aqui Réu interveniente principal provocado), reproduzido a fls. 25 dos autos (artigo 9º da p.i.).

10 - No dia 28 de Janeiro de 2015, o Autor enviou à 1ª Ré (BB) uma carta registada, requerendo que a mesma o informasse a quem é que deveria proceder ao pagamento da renda (artigo 10º da p.i.).

11 - Em resposta, a 1ª Ré (BB) enviou ao Autor a carta que é fls. 27 dos autos, datada de 23 de Fevereiro de 2015, informando-o que, a partir de 01 de Janeiro de 2015, devem fazer um só pagamento de renda do café (…) para a conta com o seguinte NIB: 003…9, em nome da “GG” da qual sou a Administradora Única (artigo 11º da p.i.).

12 - A 6ª Ré (GG, S.A.) suportou, por força da celebração dos títulos mencionados nos factos provados números 6 e 7, o valor global de € 9.251,50 (nove mil duzentos e cinquenta e um euros e cinquenta cêntimos) com as seguintes despesas: a) IMT referente ao contrato de 04.05.2014 – € 2.467,50; b) IS referente ao contrato de 04.05.2014 – € 300,00; c) despesas com contrato de 04.05.2014 e respectivo registo - € 1.000,00; d) IMT referente ao contrato de 22.12.2014 – € 4.420,00; e) IS referente ao contrato de 22.12.2014 – € 544,00; f) Despesas com o contrato de 22.12.2014 – € 315,00; g) Emolumento de registo predial de 23.12.2014 – € 245,00 (artigo 9º da contestação dos 1ª a 4ª, e 6ª Réus).

13 - Em 30 de Abril de 2014, a 1ª Ré (BB), o 2º Réu (CC), a 3ª Ré (DD) e a 4ª Ré (EE), outorgaram um contrato que denominaram «Acordo de Partilha em Vida», declarando que eram, à data, os únicos acionistas da aqui 6ª Ré (GG, S.A.) (artigo 9º da contestação dos 1ª a 4ª e 6ª Réus).

14 - O contrato referido no número anterior destinou-se a partilhar os bens que eram propriedade da 1ª Ré (BB) e de seu falecido marido, pai dos demais Outorgantes, LL (artigo 9º da contestação dos 1ª a 4ª, e 6ª Réus).

15 - Com vista a concretizar o objetivo referido nos factos provados números 13 e 14, os interessados acordaram ceder às 3ª Ré (DD) e 4ª Ré (EE) a totalidade das ações que por partilha lhes pertenciam na 6ª Ré (GG, S.A.), determinando-se que a aqui 1ª Ré (BB) e os demais herdeiros de LL se comprometem, entre outros contratos a realizar, a integrar o prédio aqui em causa, entre outros, «no património da dita sociedade GG, através das competentes escrituras e a débito da conta suprimentos da 1ª outorgante, BB, na referida sociedade GG» (artigos 28º e 29º da contestação dos 1ª a 4ª, e 6ª Réus).

16 - Acordando-se entre todos os herdeiros de LL outras transferências de património e pagamentos, com vista à efetivação da partilha aí acordada e documentada (artigo 30º da contestação dos 1ª a 4ª, e 6ª Réus).

17 - A escritura mencionada no facto provado número 7 teve como objetivo último a transferência da propriedade da metade indivisa do imóvel aqui em causa para a 6ª Ré (GG, S.A.), no âmbito do acordo de partilha em vida celebrado entre os aí Vendedores, descrito nos factos provados números 13 a 16 (artigo 14º da contestação dos 1ª a 4ª, e 6ª Réus).


***


10. Factos não provados

1 - Em momento que precedeu a venda, foi comunicado ao Autor o projeto de transmissão do imóvel da esfera patrimonial dos 1ª Ré (BB), 2º Réu (CC), 3ª Ré (DD) e 4ª Ré (EE) para a 6ª Ré (GG, S.A.) (artigo 3º da contestação dos 1ª a 4ª, e 6ª Réus).

2 - Desde que foi feito o respectivo registo, que o Autor tem conhecimento da venda referida no número anterior (artigo 2º da contestação dos 1ª a 4ª, e 6ª Réus).

3 - A 6ª Ré (GG, S.A.) não procedeu ao pagamento do valor constante do aludido contrato, a título de preço, nem os demais Outorgantes receberam tal montante como contrapartida da transferência da propriedade da metade indivisa do imóvel (artigo 15º da contestação dos 1ª a 4ª, e 6ª Réus).


***


III - Fundamentação de Direito

11. Invocando ser titular do direito de preferência na compra e venda do prédio onde se encontra instalado o local de que é arrendatário e ter sido preterido no exercício desse direito potestativo, veio o autor instaurar a presente ação, ao abrigo do disposto no art. 1410º, do CC, aplicável ex vi do art. 1091º, nº4, do mesmo Código.

Como referido no acórdão da Formação que admitiu este recurso de revista excecional, importa reponderar a questão objeto da alegada contradição de acórdãos, qual seja a de saber se o arrendatário de uma parte de prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, tem, ou não, direito de preferência na venda do prédio.


É entendimento unânime deste Supremo Tribunal que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente à data da celebração do ato de alienação, por o direito legal de preferência não passar de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário e que, só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo (cf., entre outros, o ac. do STJ de 21.01.2016, proc. nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

In casu, à data da outorga das escrituras públicas de compra e venda (22.12.2014 e 7.5.2014), vigorava (como ainda hoje) o disposto no art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), pelo que será à luz deste normativo (aplicável ex vi do disposto no art. 59º, nº1, do NRAU), que será apreciado se assiste ao autor o direito de preferir, na qualidade de arrendatário desde 24.5.1994 do rés-do-chão do prédio urbano objeto dos atos translativos do direito de propriedade.

Vejamos, então.

No acórdão sob impugnação, confirmando-se integralmente a sentença, considerou-se que, face ao disposto no art. 1091º, nº 1, al. a) do C.C, o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal não goza do direito de preferência em caso de venda da totalidade do prédio urbano onde está situado o local arrendado.

Em abono desta tese, confrontando o atual regime com o pretérito (cf. art.ºs 47.º a 49.º do RAU), escreveu-se no acórdão recorrido que:

“Se na «fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador (…) soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (art. 9º, nº 3 do C.C.), não é crível que haja - leviana ou imponderadamente - substituído duas expressões com sentidos jurídicos precisos («prédio urbano» e «fração autónoma»), por uma outra, também técnico-juridicamente precisa («local arrendado»), eliminando ainda a referência à eventual licitação entre arrendatários preferentes, sem que subjacente a essa sua ação estivesse a intenção de consagrar um novo regime.

(…)

Se a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico» (art. 9º, nº 1 do C.C.), dir-se-á que qualquer uma destas normas - porque limitativa da liberdade contratual, consagrada no art. 406º do C.C. - tem necessariamente carácter excecional, impondo ao intérprete-aplicador uma atitude de cautela na definição das obrigações impostas ao sujeito passivo, vinculado à preferência, numa aplicação do princípio favorabilia amplianda, odiosa restringenda.

(…)

A justificação que preside à atribuição do direito de preferência a favor do locatário é a de facilitar a aquisição do prédio, proporcionando o acesso à propriedade a quem beneficia já de direito de gozo mais ou menos prolongado sobre esse bem, ao mesmo tempo que se solidifica a paz social, ao eliminar potenciais conflitos entre locador e locatário.

(…)

O exercício do direito de preferência do arrendatário urbano - por forma a adquirir o direito de propriedade sobre a sua habitação - para além dela, extravasa aquele que seria o seu legítimo interesse. (…)”.

Por sua vez, o acórdão fundamento proferido pelo Tribunal da Relação de …, em 23.6.2015, proc. 1275/12, movendo-se no mesmo quadro normativo, perfilhou o entendimento de que o arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, beneficia, perante o disposto no artº 1091º nº1 al. a) do CC, de direito de preferência na venda ou dação em pagamento de todo o prédio onde se encontra instalado o locado.

Em prol desta solução, argumentou-se que:

“… A não consagração no artº 1091º do CC dos aludidos termos do art. 47º, do RAU não é decisiva. O que importa é interpretar a amplitude e conteúdo da expressão «local arrendado» atentos, primacialmente, os elementos lógico e teleológico da hermenêutica jurídica e a sensata e razoável ponderação dos interesses em dilucidação.

(…)

O direito de preferência do arrendatário não pode ser considerado como um direito excecional, e assim, a interpretar restritivamente o direito, mas antes como um normal direito conferido por lei na razoável ponderação de tais interesses.

(…)

A justificação que preside à atribuição do direito de preferência a favor do locatário é a de facilitar a aquisição do prédio, proporcionando o acesso à propriedade a quem beneficia já de direito de gozo mais ou menos prolongado sobre esse bem, ao mesmo tempo que se solidifica a paz social, ao eliminar potenciais conflitos entre locador e locatário.

Na verdade, o preferente é apenas um primus inter pares, devendo sujeitar-se e satisfazer as melhores condições de venda que o vendedor tenha conseguido obter.

(…)

Se o prédio não está constituído em PH, o «local arrendado» nunca pode ser alienado, qua tale, ie. autonomamente, mas apenas incorporado no todo do prédio.

Tal total e inelutável restrição não colhe cobertura, nem no elemento literal da lei, nem na defesa dos fitos que a preferência pretende prosseguir (…) e retiraria, nestes casos de não autonomização jurídica das frações do prédio, qualquer aplicação ao artº 1091º.

E tutelaria de modo diverso situações substantivamente iguais, discriminando negativamente o arrendatário que, não obstante usufruir de parte de prédio não constituído em PH, tem relativamente a ela contrato de arrendamento válido e o frutifica e dele retira benefícios, mesmo de índole social, presumivelmente tão relevantes como os oriundos de contratos incidentes sobre fração juridicamente autónoma.

(…)

Se o legislador pretendesse tal proibição, tê-la-ia adrede e inequivocamente plasmado. Não o tendo feito, vedado está ao intérprete operar tal entendimento restritivo, ademais com argumentos algo rebuscados e de cariz formal que postergam e conflituam com valores e desideratos de índole substancial, como os supra referidos.”.

Confrontados com as referidas decisões em oposição, a questão em análise sobre a qual este Supremo é chamado a pronunciar-se coloca-nos perante um problema de interpretação da lei, concretamente da norma do artigo 1091º, nº1, al. a), do CC, importando, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º, do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Nesta tarefa interpretativa, afigura-se-nos de toda a conveniência começar por delinear, em traços gerais, os antecedentes do regime jurídico do direito legal de preferência do arrendatário consagrado no art. 1091º, do CC, a fim de percecionar melhor os contornos da questão que somos chamados a decidir.

Ora bem.

O direito de prelação a favor do arrendatário urbano foi introduzido pela Lei nº 1662, de 4.9.1924, em cujo art. 11º se atribuía a preferência (apenas) ao “principal locatário, comercial ou industrial, de prédios urbanos” na venda do prédio.

No âmbito da reforma da locação, Sá Carneiro defendia a extensão do direito de preferência ao arrendatário habitacional, projeto que a Câmara Corporativa não acolheu, argumentando que o direito de preferência implica uma séria restrição ao direito de propriedade, embaraçando o comércio jurídico e, por isso, só deveria ser admitido com caráter muito excecional.[2]

A Lei nº 2030, de 22.6.1948, no seu art. 66º, nº1, veio, então, conferir expressamente aos titulares de arrendamentos para profissão liberal idêntico direito e incluir a “dação em pagamento” nos negócios sujeitos a preferência.

Tendo esta lei suscitado dúvidas de interpretação quanto a saber se era exigível como pressuposto do direito de preferir o facto de o inquilino exercer a sua atividade no locado há mais de um ano, o novo Código Civil veio consagrar no seu art. 1117º a posição então defendida por Pires de Lima[3], conferindo, em caso de venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado, a preferência ao arrendatário que nele exercesse o comércio ou indústria há mais de um ano, bem como aos arrendatários que exercessem no prédio profissão liberal (cf. art. 1119º, que remete para o art. 1117º).

Por outro lado, estabeleceu-se no nº4 do art. 1117º que, quando houvesse dois ou mais preferentes, se abria entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.

Só com a aprovação da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto se veio a reconhecer o direito de preferência ao inquilino habitacional, e sem dependência de duração mínima do contrato, consignando-se no seu preâmbulo que o legislador visava desta forma dar uma contribuição para a implementação de uma política de acesso à habitação própria, consagrada no art.65.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Posteriormente, o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, reafirmou o direito legal de preferência do arrendatário urbano, seja para habitação, comércio e indústria ou exercício de profissão liberal e, perante a diversidade de regimes existentes, uniformizou a matéria nos arts. 47º a 49º, daquele diploma.

Estabelecia-se, então, no art. 47º, do RAU que:

“1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano;

2. Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.”.

A norma em questão suscitou várias dúvidas, designadamente quanto a saber se a expressão “local arrendado” fazia – ou não - supor a autonomização jurídica deste e se, não estando constituída a propriedade horizontal sobre o prédio, o direito de preferência do arrendatário podia ser exercido em caso de venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio.

A doutrina e a jurisprudência maioritárias entendiam que, no caso de alienação da totalidade do prédio, não subordinado ao regime da propriedade horizontal, a preferência teria que ser exercida em relação a todo o prédio e, por isso, competiria a todos os coarrendatários de partes do mesmo imóvel, abrindo-se licitação entre eles.[4]

Mais recentemente, o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, manteve a preferência do arrendatário na compra e venda ou dação em cumprimento, repondo em vigor, no seu art. 3º, o art. 1091º, do CC[5], com a seguinte redação:

“1 - O arrendatário tem direito de preferência:

a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;

(…)

3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º

4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º.”[6].

A terminologia utilizada não logrou, porém, sanar as dúvidas existentes no seio do RAU, concretamente quanto à extensão do objeto da preferência do arrendatário, em particular se não estiver constituída a propriedade horizontal sobre o prédio.

Disso mesmo nos dá conta o presente processo, pois, como se viu, o acórdão recorrido (confirmando a sentença) negou o direito de preferência invocado pelo autor, enquanto o acórdão fundamento, em situação similar, reconheceu o direito de preferência ali em causa.

Tomando posição sobre a problemática em questão, é nosso entendimento que, no caso dos autos, as instâncias decidiram acertadamente.

Com efeito.


Como decorre do art. 9º, do CC, a letra da lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe, desde logo, como assinala Baptista Machado, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Coimbra, 1987, págs., 187 e segs., a função negativa de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou, pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.


Nesta sede, ter-se-á presente, como refere Castanheira Neves, in O Actual Problema Metodológico da Interpretação, RLJ, Ano 117º, 193 e ss., que o legislador não usa palavras e exprime enunciados, que terão porventura um sentido línguistico-gramatical comum, apenas para comunicar esse sentido comum. Quer antes prescrever uma intenção jurídica através dessas palavras; ou seja, o referente do seu texto é um sentido jurídico.


Ora, o art. 1091º do C.C., face ao anterior art. 47º do R.A.U., deixou de fazer referência a «prédio urbano» e a «fração autónoma» (substituindo estas expressões por «local arrendado»). Além disso, eliminou qualquer referência a licitação entre os diversos arrendatários interessados em exercer concorrentes direitos de preferência.


Nesta conformidade, conhecendo o legislador a controvérsia gerada pelo art. 47º, do RAU e devendo presumir-se que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. art. 9º, do CC), ao remover – voluntária e conscientemente - do art. 1091, nº1, al. a), do CC as expressões que permitiam justificar, segundo alguns, a possibilidade do exercício da preferência sobre todo o imóvel, parece-nos que deixou bem clara a sua intenção de restringir a preferência do arrendatário na venda ou dação do local objeto do contrato de arrendamento («local arrendado») aos casos em que o mesmo seja autonomamente transacionável, o que implica necessariamente a prévia submissão do prédio ao regime da propriedade horizontal.

Na fixação do sentido e alcance da lei, podem (e devem) convocar-se outros elementos que ajudem a precisar o sentido (decisivo) da norma interpretanda.


Lembremos, em primeiro lugar, que a preferência, impondo-se unilateralmente à contraparte, restringe o comércio jurídico e a liberdade de contratar, valores fundamentais do nosso ordenamento. É, assim, incontestável que, na medida em que faculta a aquisição de uma propriedade, mesmo contra a vontade do próprio titular, o instituto assume natureza excecional.


Ora, ao atribuir a preferência ao arrendatário, o legislador terá pretendido facultar-lhe o acesso à habitação ou instalações próprias, pondo termo ao arrendamento. E não mais que isso!


Sendo assim, admitir a preferência para além do local efetivamente arrendado traduzir-se-ia numa vantagem dada ao arrendatário que transcende o fim visado pela lei.


Tal como observa Menezes Cordeiro, in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, pág. 262, “transformar o inquilino de um fogo em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objetivo legal, que apenas visaria lucrativos negócios imobiliários.”.


Também Oliveira Ascensão perfilha idêntica posição, in «Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano», Revista da Ordem dos Advogados, ano 51.º, I, 1991, p. 68, quando afirma que a preferência «não tem por fim propiciar a expansão do direito para além do seu objeto».


De igual forma, sobre a extensão do direito de preferência do arrendatário, Januário Gomes, in Vida Judiciária, n.º 108, 2007, pág. 9, refere que “…num quadro de desvinculação do regime do arrendamento, a manutenção de direitos de preferência na venda não faz muito sentido.”.


Seguindo esta mesma orientação, escreve também José Pedro Carneiro Cadete, “Da preferência do arrendatário habitacional, 2011, págs.7-8[7], que: “… a extensão do objeto da preferência a todo o prédio indiviso levantava vários problemas, nomeadamente nos casos em que existia mais do que um arrendatário de uma parte daquele. Por outro lado, extrapolava o objetivo da preferência no arrendamento, na medida em que não se limitava a conceder ao arrendatário a propriedade da sua habitação, mas sim de todo um prédio, o que não se revela no seu interesse.”.

Por outro lado, tendo o legislador, em 2006, ampliado para três anos o requisito da prévia duração do arrendamento (cf. al. al. a), in fine, do nº1, do art. 1091º, do CC) que, anteriormente, era de um ano, está também a dar, a nosso ver, um sinal restritivo no âmbito do exercício do direito de preferência, sublinhando o valor da estabilidade, na ligação ao locado (e não ao prédio).


Em convergência com esta orientação que vimos defendendo, se pronunciou este Supremo Tribunal, no acórdão de 21.1.2016, proferido no proc. 9065/12.1TCLRS.L1.S1, (Relator: Cons. Tavares de Paiva), disponível em www.dgsi.pt, e no qual se pode ler:

“A consagração do direito de preferência do arrendatário na compra e venda do local arrendado sugere, só por si, que o legislador teve em vista o locado e não também o prédio urbano indiviso que o abrange mas nele não se esgota.

É indefensável o alargamento do local arrendado ao prédio onde se insere o locado porque a parte sobrante não foi objeto do arrendamento e não se pode considerar arrendado; (…)

Não oferece ambiguidade ou polissemia a expressão empregue pelo legislador; local arrendado é, repete-se, o exato espaço que as partes acordaram ser objeto do arrendamento: nem mais, nem menos.

(…)

O texto do n.º1 do artigo 1091.º tem, por aqui e desde já, a função negativa de eliminar o sentido de o local arrendado abranger, não apenas o andar, também o prédio que não foi objeto do contrato de arrendamento; e, tem a função positiva de, comportando um só sentido – o de que local arrendado é o locado contratualmente definido – ser esse o sentido da norma.

Também cumpre considerar a evolução legislativa que a consagração do direito de preferência do arrendatário conheceu, e, bem assim, a polémica jurisprudencial e doutrinária que, a paripassu, foi suscitando, tudo em ordem a compreender a redação atual do referido artigo 1091.º do Código Civil.  

(…)

O preceito consagrador da preferência legal reveste-se, porém, de índole excecional, pois traduz uma limitação da liberdade de contratar – artigo 405.º do CC – na vertente relativa à escolha da contraparte, e, de índole imperativa/injuntiva, pois que lhe subjazem razões de interesse público.

(…)

Se o direito de preferência nasce do direito de arrendamento e justifica-se na relação próxima (tendencialmente duradoura) entre o arrendatário e a coisa locada, afigura-se ajustado, equilibrado, e proporcional que o primeiro não suplante o segundo quanto ao objeto, e antes haja rigorosa identidade entre a extensão da coisa locada e a da coisa preferida.

Por fim, os casos paralelos de preferência no ordenamento jurídico não permitem extrair argumento decisivo na interpretação do preceito.

Ainda assim, saliente-se que o legislador não utilizou a expressão “local arrendado” apenas na norma constante do artigo 1091.º do CC.

Também, por exemplo, no artigo 1067.º do CC, a respeito do “fim do contrato”, estabeleceu, no n.º 2, “quando nada se estipule o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões”: aqui, é igualmente claro que o “local arrendado” é o objeto físico do contrato de arrendamento, como também já entendido naqueloutro artigo.”.

Como resulta do exposto, este acórdão debruça-se sobre a questão agora trazida à apreciação deste Supremo Tribunal, pelo que não poderia deixar de ser por nós especialmente ponderada, designadamente por força do disposto no art. 8º, nº3, do CC, segundo o qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”.


Nessa medida, a solução que defendemos colhe do mencionado acórdão argumentos reforçados no sentido de ser afastado o direito de preferência do arrendatário, quando o prédio onde se situa o ocado não estiver constituído em propriedade horizontal.


Em face do exposto, resta concluir que o artigo 1091.º, n.º1, al. a), do CC deve ser assim interpretado:


- O direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado;


- O arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada.


***


12. Da inconstitucionalidade

O recorrente entende que a interpretação do artigo 1091.º, nº1, al. a), do CC no sentido fixado pelas instâncias e agora acolhido por este Supremo Tribunal, viola o disposto nos arts. 13.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa.

Sobre a constitucionalidade daquela norma, já este Supremo Tribunal se pronunciou no acórdão de 21.1.2016, a que acima fizemos referência, em termos que, dada a proximidade com a presente situação, passamos a transcrever:

“O artigo 13.º, intitulado “princípio da igualdade”, prescreve no n.º1 que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, e, no n.º 2 que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Por sua vez, o artigo 65.º, consagra, no n.º1, que Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar e, no n.º2, que para assegurar tal direito, incumbe ao Estado: a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social; b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.

(…)

Comece-se por referir que não se alcança – nem os recorrentes explicam – em que medida a interpretação do disposto no artigo 1091.º do Código Civil, na dimensão normativa de que os arrendatários de parte alíquota do prédio não têm direito de preferência na sua venda, briga com o comando constitucional afirmado no art. 65.º da CRP.

Nele, apenas se afirma o direito dos cidadãos à habitação e não à habitação própria, como dito pelos recorrentes na mira de justificarem, por detrás desse direito, a consagração do direito de propriedade sobre a habitação.

O que o preceito afirma é o direito à habitação, que no caso dos autores está assegurado por via do contrato de arrendamento, e não também, o direito de propriedade ou à habitação própria, com o que poderia contender o não reconhecimento do direito de preferência.

Também dele não consta, na densificação desse direito, qualquer dever de o Estado implementar política conducente à obtenção de habitação própria no âmbito dos contratos de arrendamento, o que poderia sugerir, entre outras soluções, a eleição do direito de preferência do arrendatário na compra do imóvel arrendado como sua concretização primacial.

Portanto, por aqui, não ocorre qualquer inconstitucionalidade material.

E, também não se crê que ela existe por putativa afronta ao artigo 13.º da CRP.

O significado da redação de tal princípio está, por um lado, na proibição das desigualdades (sentido primário negativo), que consiste na vedação de privilégios e de discriminações, e, por outro lado, na imposição de tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes) e de tratamento desigual de situações desiguais (sentido positivo) - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 121.

A igualdade jurídico-formal proclamada pela lei, que abrange, quaisquer direitos e deveres existentes na ordem jurídica portuguesa e o seu âmbito de proteção comporta três dimensões: (i) proibição do arbítrio, no sentido em que são inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; (ii) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; e (iii) obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural – J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora 2007, pág. 339.

O princípio constitucional da igualdade caracteriza-se, pois, como proibição do arbítrio, permitindo apenas que se possam estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objetivamente fundadas, sem as quais se incorrerá nesse arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objetivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes. É essencial que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada – cfr. Ac. TC nº 319/00, Diário da República, II série, de 18/10/2000, pág. 16785/16786.

O princípio da igualdade reclama, essencialmente, que seja conferido tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais, asserção repetidamente salientada na jurisprudência do Tribunal Constitucional - cf. Acórdãos n.ºs 186/90, 563/96, 14/2000, 187/2001, 509/2002 e 232/2003, publicados, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, 383 e segs., idem, 33º volume, 47 e segs., Diário da República, I Série-A, de 16 de Maio de 1996, idem, II Série, de 19 de Outubro de 2000, idem, idem, de 26 de Junho de 2001, idem, I Série-A, de 12 de Fevereiro de 2003, e de 17 de Junho de 2003.

Em concreto, ainda que possa haver coincidência entre a parte do prédio indiviso e a fração autónoma do prédio constituído em propriedade horizontal, que, quando arrendadas, não facultarão, no primeiro caso, e, facultarão, no segundo caso, direito de preferência na venda, tal coincidência é meramente física e não jurídica.

Com efeito, no primeiro caso, aquela parte não é, no mundo do direito, e mais propriamente por força do disposto nos artigos 202.º e 203.º, ambos do CC, uma coisa, e, por consequência, não tem autonomia jurídica, pelo que não pode por si ser objeto autónomo de relações juridicamente válidas, invalidando, por força do disposto no artigo 1090.º, n.º1 e 417.º, ambos do CC, o exercício do direito de preferência; já no segundo caso, inversamente, a fração autónoma decorrente da opção voluntária de constituição do prédio em propriedade horizontal tomado pelo proprietário, é uma coisa, que o sistema reputa de juridicamente autónoma, e do que faz decorrer a possibilidade de poder destacar-se de todo o prédio e ser, apenas ela, objeto de negócios jurídicos e fonte, por isso do direito de preferência a favor do arrendatário – artigos 1416.º e 1417.º, ambos do CC.

Sendo os objetos do arrendamento, no caso de um andar de um prédio não constituído e de uma fração de um prédio constituído em propriedade horizontal, realidades jurídicas diferentes, existe, na base, uma situação que o sistema diversifica e que legitima o tratamento diferenciado, e coerente, na negação e na atribuição, respectiva, do direito de preferência.

As situações não são, pois, iguais, legitimando a desigualdade jurídica do objeto o tratamento diferenciado do feixe de direitos que se lhes associam. 

Por aqui, então, não existe qualquer afronta do direito de igualdade.

Também não haverá quando esteja em causa o direito de preferência em relação à totalidade do prédio, visto que, e desde já, em passo algum se afirma a existência do direito de preferência do arrendatário de fração autónoma sobre a totalidade do prédio, antes tendo, pela nossa parte, concluído que o direito de preferência se circunscreve, originariamente, ao “local arrendado”, se passível de autonomização.

Ora, somente do reconhecimento do direito de preferência do arrendatário da fração autónoma relativamente a todo o prédio, poderia decorrer a interrogação sobre o tratamento desigualitário do arrendatário de parte do prédio indiviso, o que se negou.

Também por aqui, não ocorre qualquer inconstitucionalidade. “.

Subscrevemos, por inteiro, esta argumentação.

Não oferece, portanto, dúvidas a constitucionalidade da norma, interpretada no sentido que vimos defendendo.

Aliás, a conformidade constitucional da construção interpretativa da preferência do arrendatário, adotada pelo Supremo Tribunal neste acórdão e também pelas instâncias neste processo, foi já objeto de decisão favorável pelo Tribunal Constitucional, em acórdão de 3.11.2016, publicado no DR nº 235/2016, II Série, de 9.6.2016, para cuja fundamentação remetemos.

Não vemos, pois, razões para nos afastar desta orientação, cumprindo reafirmar que a norma do art. 1091º, nº1, al. a), do CC, na interpretação adotada, não viola os princípios constitucionais assinalados pelo recorrente (nem quaisquer outros).

Improcede, pois, a revista.


***



IV – Decisão


13. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar integralmente o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 24 de Maio de 2018


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

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[1] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).
[2] Cf, para mais desenvolvimentos, Januário Gomes, Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, Almedina, 1980, págs. 251-252.
[3] Sobre a controvérsia, v. Pires de Lima, RLJ, ano 95º, págs. 197 e ss e Sá Carneiro, RT, ano 80º, págs. 322 e ss.
[4] Neste sentido, cf. Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 7ª edição, Almedina, pág. 308; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 568; Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, Almedina, págs. 639-640 e Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, 2.ª edição, Almedina, pág. 266; Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Teses, Univ Católica, Porto 2006, págs. 184 e ss. Em sentido oposto, Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de preferência no RAU, in ROA, ano 51, pág. 68 e Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, Coimbra, pág. 204. Na jurisprudência, podem consultar-se, entre outros, os acs. do STJ de 28.1.97, CJ/STJ, V, 1º, 77, de 13.2.97, CJ/STJ, V, 1º, 104 e de 2.6.99, CJ/STJ, VII, 2º, 129. Na jurisprudência, entre outros, cf. o Ac. do STJ de 22.10.2009, proc. 446/09, disponível in www.dgsi.pt
[5] Foi precisamente ao abrigo deste último normativo que o acórdão recorrido (confirmando a sentença) negou o direito de preferência invocado pelo autor, enquanto o acórdão fundamento, em situação similar, decidindo em sentido contrário, reconheceu o direito de preferência ali em causa.
[6] Redação  que se mantém inalterada.
[7]Disponível em: https://www.google.pt/search?q=direito+de+preferencia+arrendat%C3%A1rio+Cadete&rlz=1C1VFKB_enPT768PT769&oq=direito+de+preferencia+arrendat%C3%A1rio+Cadete&aqs=chrome..69i57.7838j1j8&sourceid=chrome&ie=UTF-8