Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5164/07.0TTLSB-B.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO STJ
DESPESAS DE ALOJAMENTO
Data do Acordão: 05/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECER DA NULIDADE DO ACÓRDÃO NEGADA REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL LABORAL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DECLARAÇÃO / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Abílio Neto, “Código de Processo do Trabalho” Anotado”, 169.
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. V, 143.
- António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, Almedina, 3.ª Edição, 367 e ss.; Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª Edição, 2017, 407 e ss.; Recursos no Processo do Trabalho – Novo Regime, 116.
- José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 645 e ss..
- M. Januário Gomes, Arrendamentos para Habitação, 2.ª Edição, Almedina, 1996, 62 e ss..
- Pereira Coelho, em “Breves Notas”, Rev. Leg. Jur., 126.º, 19; Arrendamento – Direito Substantivo e Processual, Coimbra, 1988.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 5, 662.º, N.º 4, 674.º, N.º 3, PRIMEIRA PARTE, 682.º.
CÓDIGO DE PROCESSO DE TRABALHO (CPT): - ARTIGOS 77.º, N.º 1, 81.º, N.º 1.
REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (RAU): - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 30/1/2002, 6/3/2002, 24/4/2002, 20/1/2004, 3/3/2004, 27/1/2005, 12/1/2006, 24/5/2006, 8/6/2006, 22/10/2008, E, MAIS RECENTEMENTE, DATADO DE 22/02/2017, PROCESSO Nº 5384/15.3T8GMR.G1.S1, TODOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 5/11/2014, PROCESSO N.º 279/08.OTTBC.P1.S1, DE 16/06/2015, NO PROCESSO N.º 962/05.1TTLSB.SB.L1.S1, DE 1/10/2015, NO PROCESSO N.º 4531/12.1TTLSB.L1.S1 E DE 19/11/2015, NO PROCESSO N.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, TODOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 13/01/2015, PROCESSO N.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, 1.ª SECÇÃO, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
-DE 30/06/2016, 07/07/2016 E 14/07/2016, PROCESSO N.º 605/11.4TTLRA.C1.S1, NO PROC. Nº 487/14.4TTPRT.P1.S1 E NO PROC. 506/12.9TTTMR-A.E1.S1, RESPECTIVAMENTE, E DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 07/02/2017, PROCESSO N.º 3071/13.6TJVNF.G1.S1, DA 1.ª SECÇÃO, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 403/2000, PUBLICADO NO D.R. DE 13 DE DEZEMBRO DE 2000, II SÉRIE, E N.º 439/2003, DE 30 DE SETEMBRO, AMBOS DISPONÍVEIS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :
I – Em sede de revista, o Supremo Tribunal de Justiça pode, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 674º, nº 3, segunda parte, do Novo CPC, apreciar o erro na fixação dos factos provados quando se verifique ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto.

II – Não sendo o caso, por inexistência de violação do direito probatório material, prevalece a apreciação e modificação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação no uso do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no nº 5, do art. 607º, do Novo CPC, e dos amplos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º do mesmo Código.

III – Tendo o trabalhador alegado e provado que pagou como contrapartida, a um terceiro, determinado valor mensal pela utilização de uma habitação que lhe foi cedida, durante determinado período, por aquele, e a que a empregadora se comprometera contratualmente a pagar ao Autor, a título de despesas de alojamento, o que não fez, deve a Ré ser condenada no reembolso dessas despesas, não sendo exigível ao trabalhador, no contexto que se apurou, que faça a prova das quantias pagas nos termos estipulados pelo art. 7º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I – 1. AA deduziu no Tribunal do Trabalho de Lisboa incidente de liquidação contra:

BB, Lda.

Pedindo que o valor pecuniário devido pela R. seja fixado em € 63.078,55, acrescido de juros moratórios.

Alegou para o efeito e em síntese que:

Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22/5/2013, foi a Ré condenada a pagar ao Autor “os valores pecuniários devidos, a título de alojamento, alimentação e viagens ao ..., que tenha efectuado, nos exactos termos e períodos de tempo consignados nos pontos 21 e 22 dos factos provados, a apurar em sede de liquidação”.

E esses valores devidos pela Ré ao Autor correspondem a:

- Desde 15/11/2000 até 31/10/2001, o Autor habitou uma casa pagando mensalmente de renda o montante € 598,56;

- De 1/11/2001 até Setembro de 2004, o Autor habitou outra casa, pagando mensalmente de renda € 500,00, a que acrescia os custos com o condomínio e consumo de gás;

- Entre 15/11/2000 e 28/12/2006, o A. despendeu diariamente a quantia de € 20,00, com alimentação, devendo ser descontado o valor dos subsídios de alimentação pagos pela Ré;

- Com a viagem ao ..., entre Fevereiro e Março de 2004, o Autor despendeu € 905,54.

Por conseguinte, o Autor liquida o valor pecuniário devido pela Ré nos seguintes termos:
a) A título de alojamento: € 26.225,39;
b) A título de alimentação: € 35.947,62;
c) A título de viagens ao ...: € 905,54.

Tudo num total de € 63.078,55, a que acrescem os juros moratórios legais vencidos e contados desde a notificação à Ré da presente liquidação efectuada pelo Autor.

Deve, assim, a Ré ser condenada no pagamento dessa quantia.

2. A R. apresentou contestação argumentando, em síntese, que:
Apenas reconhece que é devedora da quantia de € 13.033,04, nada mais sendo devido ao Autor.
Acresce que disponibilizou habitação ao Autor e nunca o autorizou a arrendar casa em substituição da habitação que pôs ao seu dispor.
O Autor nunca lhe solicitou o reembolso das rendas que agora invoca ter pago, nem tão pouco lhe entregou ou mostrou o respectivo contrato de arrendamento, que também só agora alega ter celebrado. E as despesas que apresenta relativas ao condomínio e consumos de gás não estão nem nunca foram incluídos no direito a alojamento contratado.
Quanto ao valor diário da alimentação a considerar tem que se atender que a Ré, em 2006, pagava a título de subsídio de refeição € 11,00 por dia e não a quantia que é pedida.
Aceita o valor reclamado pelo Autor relativamente ao custo da viagem ao ....

3. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, em 2 de Junho de 2015, com o seguinte dispositivo:


«O Tribunal, considerando o incidente de liquidação parcialmente procedente, porque apenas parcialmente provado, decide:
a) Condenar a Ré pagar ao Autor a quantia de 13.033.04 €, à qual deverão acrescer os juros de mora devidos, à taxa legal em vigor, nos termos do art. 559º do CC, contabilizados desde o vencimento de cada uma das prestações até integral pagamento.»

4. Inconformado, o A. apelou, impugnando a decisão quer quanto à matéria de facto, quer quanto à aplicação do direito.

5. Mediante Acórdão exarado em 13 de Julho de 2016, o Tribunal da Relação de Lisboa deliberou nos seguintes termos:


«Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, alterando a sentença recorrida, liquidam a dívida da Ré para com o Autor em € 19.713,39 (Dezanove Mil, Setecentos e Treze Euros e Trinta e Nove Cêntimos), condenando-se a Ré a pagar essa quantia ao Autor, acrescida de juros de mora devidos à taxa legal em vigor, nos termos do art. 559º do CC, contabilizados desde o vencimento de cada uma das prestações até integral pagamento.
Custas em ambas as instâncias a cargo de Autor e Ré, na proporção de 1/3 para o Autor e 2/3 para a Ré.»

6. Irresignada a R. interpôs recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

A) Bem andou a Douta Sentença do Tribunal de 1a Instância, ao passo que o Tribunal da Relação condenou aleatoriamente quantias sem para tanto existir nem fundamentação jurídica, nem matéria de facto provada.
B) O STJ condenou a Ré a pagar as quantias efectivamente pagas, a título de alojamento, e a apurar em sede de liquidação.
C) A Relação enquanto instância de recurso pode alterar as decisões de facto de 1a instância desde que tal resulte da matéria provada, que pode reanalisar, o que não fez no presente caso, limitando-se a alterar aleatoriamente a decisão de 1a instância e a sua matéria provada.
D) Condenando, pasme-se! a Ré, na quantia de 17.000,00 €, por 34 meses de renda a
500,00 €, que não resultam de nenhuma matéria provada.

E) Só havendo contrato de arrendamento e respectivos recibos relativos aos valores pagos é que seria possível ao Autor provar que tinha pago renda por alojamento, que a Ré não lhe tinha facultado, e poderia a Ré ser condenada a pagá-lo.
F) Caso contrário, como é o caso, não pode haver condenação da Ré ora Recorrente, sem com isso o Tribunal violar caso julgado firmado pelo Acórdão do STJ, de 22.05.2013, e violar, nomeadamente, o disposto na Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.
G) Existe nítida contradição entre a fundamentação e a condenação da Relação, pois se por um lado considera bastante a quantia paga pela Ré, por outro, aumenta-a em 1,50 €, sem qualquer justificação adicional.
H) Primeiro, diz-se na decisão que: Socorrendo-nos do disposto no art. 566°, nº 3, do CC, e das regras do bom senso e da experiência comum, é de reconhecer que o valor adiantado pela Ré, tendo em conta uma média dos anos de 2000 a 2006, não se afasta do que é razoável considerar-se, tendo-se presente que os valores a considerar não têm de se referir a preços praticados na restauração", para depois condenar a Ré, aqui Recorrente, em mais 1,50 €. O que não faz sentido.
I) Note-se que, ainda hoje, em Setembro de 2016, a quantia paga a título de subsídio de alimentação cifra-se por lei em € 4,27, tal como definido pelo Governo. Assim, além de aleatória e contraditória com o que deu por provado, o Tribunal “a quo” não fundamenta a referida alteração.
J) Quanto à viagem ao ..., a mesma já está contemplada na quantia paga, no montante de 905,54 €, e a liquidação compreende 12.127,50 €, a título de alimentação, acrescida do valor da viagem ao ..., o que dá o valor global de liquidação de 13.033,04 €, pelo que não se percebe a razão da condenação em valor superior.
Deve, assim, ser revogado o Acórdão da Relação.
7. O A., por seu turno, apresentou contra-alegações, concluindo:

1. A Relação reapreciou a matéria de facto impugnada e, em conformidade, alterou bem o respectivo nº 3, fundamentando-se expressamente no depoimento da testemunha CC conjugado com os documentos de fls. 16 a 22.
2. Encontra-se assente o facto do pagamento pelo Recorrido de € 500,00 mensais, durante 34 meses, como contrapartida pela utilização para habitação de um andar.
3. O que está em causa, e releva, é precisamente esse dano, a diminuição patrimonial correspondente a esse pagamento, e não a invocação de um contrato de arrendamento. Além do mais, mesmo que nulo o contrato de arrendamento, tal nulidade não afasta a obrigação do pagamento pelo inquilino do valor correspondente à utilização factual que fez do locado, conforme art. 289º, n°1, do Código Civil.
4. Inexiste qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão no que respeita à liquidação em € 12,50, relativamente ao valor diário de alimentação. Entendendo que um valor razoável se afastava, mas não muito, do aceite pela Recorrente, o Acórdão sob recurso aumentou-o apenas em € 1,50. Esta decisão, a pecar, será por defeito, que não por excesso, pelos motivos aduzidos nos nºs 8 e 9 supra das alegações.
5. O Acórdão sob recurso liquidou os valores devidos ao Recorrido a título de prestações de alojamento, alimentação e viagem ao ..., subtraindo, subsequentemente, ao somatório desses valores o montante pago pela Recorrente, em 28/07/2015, por conta das quantias reclamadas neste incidente de liquidação, pelo que não tem qualquer fundamento a nova condenação invocada pela Recorrente e adição do valor da viagem ao ....

8. O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de ser negada a revista e confirmado o Acórdão recorrido, por entender que a decisão fez correcta aplicação do direito – cf. fls. 287 e 288.

9. O mencionado Parecer, notificado às partes, não obteve qualquer resposta.

10. Preparada a deliberação, cumpre apreciar as questões suscitadas nas conclusões da alegação do Recorrente, exceptuadas aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução entretanto dada a outras, nos termos preceituados nos arts. 608.º, n.º 2, e 679º, ambos do CPC.

Salienta-se, contudo, que não se confundem com tais questões todos os argumentos invocados pelas partes, aos quais o Tribunal não está obrigado a responder.[1]
II – QUESTÕES A DECIDIR:

- Em sede recursória as questões suscitadas centram-se em saber:

1. Da nulidade do Acórdão, nomeadamente por contradição entre os fundamentos e a decisão;

2. Da alteração da matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação se podia ter sido alterada a matéria de facto do ponto 3), dos factos provados;

3. Do valor a liquidar se o custo da viagem ao ... (€ 905,54) já está contemplado na quantia paga pela Ré.

Analisando e Decidindo.


III – FUNDAMENTAÇÃO:
       
        I – DE FACTO
      
- A factualidade considerada provada pelas Instâncias é a seguinte:

1. Por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, proferida em 22.05.2013, foi a Ré condenada a pagar ao Autor: “os valores pecuniários devidos, a título de alojamento, alimentação e viagens ao ..., que tenha efectuado, nos exactos termos e períodos de tempo consignados nos pontos 21 e 22 dos factos provados, a apurar em sede de liquidação”.
2. Desde 15 de Novembro de 2000 até 31 de Outubro de 2001, o Autor habitou na casa Vivenda “M...”, sita na …., ..., ... – ..., que lhe foi facultada por DD.
3. Desde 01 de Novembro de 2001, até ter ido viver com a sua actual cônjuge, em Setembro de 2004, o Autor habitou no …., do nº …, da …, ..., ..., a qual lhe foi facultada por EE, e a quem, como contrapartida, pagava € 500,00 mensais (Facto alterado pelo Tribunal da Relação).[2]
4. O Autor deslocou-se ao ... em Fevereiro e regressou em Março de 2004, e suportou o valor de 905,54 €, referente à despesa com a viagem.
5. Facto eliminado pelo Tribunal da Relação.
6. O Autor nunca obteve da Ré autorização para arrendar a casa sita nas …, nem a casa de ..., nem lhe apresentou qualquer recibo de rendas pagas.
7. A Ré confessa-se devedora ao Autor das quantias de 12.127,50 €, a título de alimentação, no período de 15/11/2000 a 28/12/2006, bem como do valor da viagem ao ....
8. Por conta dos valores reclamados na acção e em causa neste incidente de liquidação, o Autor recebeu da Ré, a 28/7/2015, a quantia de € 17.587,15 – (Facto aditado pelo Tribunal da Relação).


II – DE DIREITO

1. Questão Prévia: da nulidade alegada pela Ré

1.1. Foi suscitada pela Ré, nas suas alegações, a existência de contradição entre a fundamentação e a condenação determinada pelo Tribunal da Relação na parte que diz respeito ao subsídio de almoço, em cujo montante teria sido condenada a pagar ao Autor.
Na versão da Ré, a Relação incorreu na referida contradição ao considerar que era bastante a quantia paga pela Ré a título de subsídio de almoço, mas não obstante tal facto, acabou por decidir aumentá-la em 1,50 €, sem qualquer justificação adicional ou alteração fáctica – (cf. alíneas G) e H) das conclusões).
Esta alegação, embora não tenha sido qualificada expressamente como tal pela Ré, e surja no meio do teor das suas conclusões, não pode deixar de se considerar como se assumindo, juridicamente, como uma nulidade, prevista expressis verbis no art. 615º, nº 1, alínea c), do Novo CPC. Nessa medida, e em face dos termos em que se mostra alegada, impõe-se a sua análise prévia.

1.2. Sobre a questão de saber se tal quantia deveria ser paga ao Autor a título de subsídio de almoço, com a consequente condenação da Recorrente, consta o seguinte no Acórdão recorrido:
«Quanto à alimentação,
Nada está provado relativamente a valores de alimentação gastos pelo Autor entre 15/11/2000 e 28/12/2006.
No entanto, a própria Ré reconhecendo, e bem, a evidência naturalística da necessidade básica de qualquer pessoa se alimentar e o seu consequente custo, avançou com um valor diário igual ao dobro do subsídio de refeição que era pago ao Autor em 2006, ou seja, € 11,00 (€ 5,50 x 12).
Pretende o Autor que o valor diário se fixe em € 20,00.
Socorrendo-nos do disposto no art. 566º-3 do CC e das regras do bom senso e da experiência comum é de reconhecer que o valor adiantado pela Ré, tendo em conta uma média dos anos de 2000 a 2006, não se afasta muito do que é razoável considerar-se, tendo-se presente que os valores a considerar não têm que se referir a preços praticados na restauração.
Assim, entendemos ser de liquidar o valor da alimentação diária do Autor em € 12,50, entre 15/11/2000 e 28/12/2006.
Consequentemente a quantia a este título ascende a € 27.562,50 [(73 meses x 30 dias + 15 dias) x 12,50]».

Diz a Recorrente, por referência ao excerto citado, que o Tribunal da Relação incorreu em contradição entre a fundamentação e a condenação ao decidir aumentar o subsídio de alimentação diário em 1,50 €, sem qualquer justificação adicional. Pretende, pois, com estes fundamentos, obter a procedência das nulidades apontadas.
Sucede, porém, que o argumento invocado pela Ré contradição entre a fundamentação e a condenação – porque integrando a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), do NCPC, exigia que a Recorrente tivesse procedido à sua arguição expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso, conforme previsto no art. 77.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.
O que não aconteceu, em clara violação da exigência estatuída no citado nº 1, do art. 77º, do CPT.

1.3. Com efeito, estabelece esta norma que a arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso.
Quer isto dizer que a Recorrente não só deve fazer menção expressa da arguição de nulidades no requerimento em que interpõe o recurso, como também o deve fazer separadamente. E não, como se assiste no caso sub judice, nas conclusões de recurso que apresentou.

Salienta-se que no âmbito do direito processual do trabalho, o regime de arguição de nulidades da sentença de 1ª instância ou do Acórdão da Relação diverge do regime geral que vigora no direito processual civil, porquanto se exige que o Recorrente previamente – no próprio requerimento que dirige ao Tribunal e no qual dá a conhecer que interpõe recurso – faça expressa menção de que este se funda em nulidades da sentença e nas questões relativas ao conhecimento do mérito da causa com vista à obtenção da revogação/improcedência da decisão recorrida.
Essa expressão de vontade e a respectiva motivação – ainda que sinteticamente – deve ser feita logo no requerimento de interposição do recurso.
De todo o modo, nas alegações, a lei impõe ao recorrente o ónus de apresentar e explanar os motivos que confluem para as arguidas nulidades, culminando com as conclusões onde se fará a síntese das diversas questões suscitadas, designadamente sobre as eventuais nulidades da sentença/acórdão e sobre o mérito da causa.
Apesar de no processo laboral o requerimento de interposição de recurso dever conter a alegação do recorrente, nos termos preceituados no art. 81º, nº 1, do CPT, não pode confundir-se o requerimento de interposição de recurso com a alegação de recurso. O requerimento é dirigido ao Tribunal que proferiu a decisão – art. 637º, nº 1, do CPC – e a alegação é dirigida ao Tribunal Superior devendo conter as razões da discordância em relação à sentença e os fundamentos que, no entender do recorrente, justificam a sua alteração ou revogação.

Em tais situações em que o Recorrente viola a norma em análise, por no requerimento de recurso nada ter aduzido, limitando-se a formular a arguição das nulidades da sentença nas suas alegações e conclusões, é pacífico o entendimento desta Secção Social, do Supremo Tribunal de Justiça, que tal preceito também é aplicável à arguição de nulidades relativamente a Acórdãos da Relação.
Exige-se, por conseguinte, que a arguição das eventuais nulidades seja igualmente feita nos mesmos termos, expressa e separadamente, no requerimento de interposição de recurso de Revista, com a inerente impossibilidade de delas se conhecer quando tenham sido arguidas somente nas alegações de recurso, por violação do disposto no art. 77º, do CPT.[3]

1.4. Aliás, tem sido neste sentido que se tem decidido tal questão, conforme resulta de inúmeros Acórdãos desta Secção Social do STJ e que encontra acolhimento em diversos Autores,[4] cuja justificação radica na necessidade de agilizar a resolução final dos conflitos do foro laboral, possibilitando ao Tribunal a rápida e clara detecção das nulidades arguidas e o respectivo suprimento.
Entendimento que o legislador, conquanto estivesse ciente das críticas que foram dirigidas a este regime especificamente previsto para o foro laboral, decidiu manter, não obstante ter procedido a uma alteração a essa norma, introduzida pelo Decreto-Lei nº 295/2009, de 13/10, ao Código do Processo do Trabalho, depois de concretizada a ampla reforma do regime dos recursos no processo civil, através do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.

Questão sobre a qual o Tribunal Constitucional igualmente se pronunciou decidindo não julgar inconstitucional o referido normativo, conforme resulta dos seus Acórdãos nº 403/2000, publicado no D.R. de 13 de Dezembro de 2000, II Série, e nº 439/2003, de 30 de Setembro[5], podendo ler-se, neste último Acórdão, o seguinte:
(…)
“…Este Tribunal Constitucional decide: a) não julgar inconstitucional, face ao disposto nos artigos 2º, 20º, 205º e 207º da Constituição da República Portuguesa, e ao princípio da proporcionalidade, a norma constante do art. 77º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de Novembro, na interpretação segundo a qual, devendo o requerimento de interposição do recurso ser logo acompanhado das respectivas alegações, numa única peça processual, as nulidades da sentença recorrida não podem ser conhecidas pelo Tribunal Superior, caso tenham sido apenas arguidas, expressa e separadamente, na parte das alegações e não na parte do requerimento de interposição do recurso – (sublinhado nosso).

1.5. Ora, no caso sub judice, não tendo a Recorrente respeitado a referida norma – art. 77º, nº 1, do CPT – porquanto não suscitou a nulidade do Acórdão nos termos explicitados – de forma expressa e separadamente –, limitando-se a fazer referência à mesma nas suas conclusões, não se poderá tomar conhecimento da invocada contradição entre a fundamentação e a condenação, por incumprimento do disposto no art. 77.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.

2. Posto isto, centrando o litígio na sua essência e cotejados os elementos inseridos no processo, verifica-se que:
Os presentes autos respeitam a incidente de liquidação instaurado em 08.10.2013, no âmbito de acção declarativa iniciada em 2007 e definitivamente julgada por Acórdão desta Secção, do Supremo Tribunal de Justiça, de 22/5/2013.

Nos termos desse Acórdão do STJ a Ré foi condenada a pagar ao Autor:
“Os valores pecuniários devidos, a título de alojamento, alimentação e viagens ao ..., que tenha efectuado, nos exactos termos e períodos de tempo consignados nos pontos 21 e 22 dos factos provados, a apurar em sede de liquidação.”

Sobre quais sejam esses valores, a liquidar em sede do presente incidente, as partes, tais como as instâncias, divergem no seu entendimento, estando assim em causa o montante global devido pela Ré ao Autor, v.g., a título de alojamento, de modo a reembolsá-lo da quantia que este alega ter despendido com a sua habitação.

Nomeadamente há que apurar se:
1º - O Tribunal da Relação podia alterar o ponto 3) dos factos provados, e consignar que o Autor pagou pelo seu alojamento o valor mensal de 500,00 €, entre 01.11.2001 e Setembro de 2004, na medida em que não foram apresentados quaisquer recibos e/ou contrato de arrendamento comprovativos;
2º - O valor da viagem ao ... – € 905,54 – já está contemplado na quantia paga pela Ré, uma vez que, em caso afirmativo, não pode a Ré ser condenada de novo no seu pagamento.

Analisando cada uma das questões de per se.

3. Primeira Questão: erro na modificação da matéria de facto provada

3.1. A Recorrente começa por se insurgir contra a alteração da matéria de facto operada pela Relação, na parte em que conferiu nova redacção ao ponto 3) dos factos provados.

De acordo com o disposto no artigo 682.º, nºs 1 e 2, do Novo Código de Processo Civil (NCPC), «aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado», sendo que «a decisão proferida pelo Tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, a não ser no caso excepcional previsto no n.º 3 do art. 674.º».

Deste modo, nos termos desta disposição legal, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa só pode ser objecto de recurso de revista quando haja ofensa de «disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova».

Acresce que, por força do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do NCPC, «o processo só volta ao Tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou quando ocorram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito».

Por conseguinte, neste domínio da matéria de facto, impera a regra de que a sua fixação é da competência exclusiva das instâncias, com excepção do preceituado no art. 674º, nº 3, e 682º, nº 3, ambos do NCPC (vide tb. o art. 662º, nº 4, do NCPC).

Quer isto dizer que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de revista e no âmbito desse recurso, apenas conhece de matéria de direito, ressalvadas as situações previstas nos normativos legais citados, e em que ocorra ofensa do direito probatório material, assim se distinguindo, nesta matéria, das instâncias, a quem cabe legalmente a delimitação da matéria de facto e a modificabilidade da decisão sobre tal matéria.

Restrição que, contudo, não é absoluta, como decorre da remissão que o nº 2 do art. 682º faz para o art. 674º, nº 3, do NCPC, norma que atribui ao Supremo a competência para sindicar o desrespeito de lei no que concerne à violação de norma expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Entendeu-se que, em tais circunstâncias, o Supremo não deveria ficar indiferente a erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, podendo constituir fundamento de revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a respectiva força probatória de determinado meio de prova.[6]

3.2. A Jurisprudência tem tido o cuidado de explicitar o conteúdo que deriva do comando do art. 674º, nº 3, do NCPC, salientando que o STJ, apesar de se tratar de um Tribunal de revista, em que a sua competência está confinada ”prima facie” às questões de direito, isso não impede que possa sindicar a forma e o modo como as instâncias procederam à aplicação das normas de direito probatório e de que se serviram para obtenção dos juízos e veredictos que alcançaram por efeito da mesma.

Sobre esta matéria o Acórdão do STJ, de 13/01/2015[7], é bastante elucidativo e inscreve-se na linha do que tem sido defendido pelo citado Autor e por Lebre de Freitas nos seus escritos, podendo ler-se o seguinte.

“I – O STJ é, organicamente, um tribunal de revista, pelo que a sua competência para a cognoscibilidade, em matéria de recurso (revista), está confinada a questões de direito (cf. arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do NCPC (2013)), cabendo-lhe o papel residual de sindicar a forma e o modo como as instâncias procederam à aplicação das normas de direito probatório de que se serviram para obtenção dos juízos e veredictos que alcançaram por efeito da mesma.
 II – O STJ pode, assim, sindicar a decisão da matéria de facto, provinda das instâncias, em duas hipóteses: (i) quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência; ou (ii) quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória de algum dos meios de prova admitidos no sistema jurídico português”.
(…)

 Ou mais recentemente no Acórdão do STJ[8], de 07/02/2017, onde se decidiu:
          (…)
“2 - O S.T.J. limita-se a aplicar aos factos definitivamente fixados pelo Tribunal recorrido o regime jurídico adequado.
3 - São excepções a esta regra a existência de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
4 - Em suma, o S.T.J. só pode conhecer do juízo de prova fixado pela Relação quando tenha sido dado por provado um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou tiverem sido violadas as normas reguladoras da força de alguns meios de prova.
5 - Nesta área o S.T.J. está a sindicar a aplicação de normas jurídicas movendo-se, então, em sede de direito”. (…)

Também esta Secção do STJ já se pronunciou, nos mesmos termos, sobre tal matéria, conforme decorre nomeadamente dos Acórdãos de 30/06/2016, 07/07/2016 e 14/07/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt.[9]

         3.3. No caso em apreço, conforme se referenciou supra, a Ré Recorrente insurge-se contra a alteração da matéria de facto operada pela Relação, na parte em que conferiu nova redacção ao ponto 3), dos factos provados, culminando na sua condenação a pagar ao Autor a quantia de € 17.000,00, a título de rendas mensais.

Da análise da sentença da 1ª instância constava como facto provado e inserido no ponto 3), o seguinte:
“Desde 01 de Novembro de 2001, até ter ido viver com a sua actual cônjuge, em Setembro de 2004, o A. habitou no …., do n.º …, da …, ..., ..., a qual lhe foi facultada por EE”.

Pelo Tribunal da Relação foi este ponto alterado, tendo-lhe sido conferida a seguinte redacção:
“Desde 01 de Novembro de 2001, até ter ido viver com a sua actual cônjuge, em Setembro de 2004, o A. habitou no …., do n.º …, da ..., ..., ..., a qual lhe foi facultada por EE e a quem, como contrapartida, pagava € 500,00 mensais”.

Ou seja: pela Relação foi acrescentado o facto relativo ao pagamento de uma quantia mensal como contrapartida pela referida habitação facultada ao Autor.

Para tal, entendeu aquele Tribunal que a expressão – “e a quem, como contrapartida pagava € 500,00 mensais” – resultou provada dos documentos juntos aos autos a fls. 16 a 22 (extractos de transferências bancárias) e do depoimento da testemunha CC.

Com efeito, a este propósito, pode ler-se o seguinte no Acórdão recorrido:

«Quanto ao facto provado nº 3.
3 - Desde 01 de Novembro de 2001 até ter ido viver com a sua actual cônjuge, em Setembro de 2004, o A habitou no …, do nº …, da ..., ..., ..., a qual, lhe foi facultada por EE.
Pretende o Autor que se acrescente a este facto que “…, e a quem como contrapartida pagava € 500,00 mensais suportando igualmente o custo com o consumo de gás”.
Do depoimento da testemunha CC conjugado com os documentos de fls. 16 a 22 retira-se que o Autor pagava uma renda de casa mensal no valor de € 500,00 mensais. Já quanto ao gás não se provou que o Autor pagasse o consumo de gás sendo que os docs. juntos a fls. 28 a 35, por si só, mostram ser recibos emitidos a favor de CC.
Por isso, o facto provado nº 3 passa a ter a seguinte redacção:
“3- Desde 01 de Novembro de 2001 até ter ido viver com a sua actual cônjuge, em Setembro de 2004, o A habitou no …, do nº …, da ..., ..., ..., a qual lhe foi facultada por EE e a quem, como contrapartida pagava € 500,00 mensais.”» - (sublinhado nosso).

Porém, a Ré/Recorrente defende o contrário, alegando, em síntese, que:
- Disponibilizou habitação ao Autor facultando a este alojamento gratuito, tendo o Autor, aquando da celebração do contrato de trabalho com a Ré, passado a residir na Rua …, nº …, …, ..., habitação que lhe foi cedida pela sócia-gerente da Ré, em cumprimento do acordado entre as partes;
- Nunca autorizou o Autor, nem este nunca obteve da Ré, por qualquer forma, consentimento para arrendar casa em substituição daquela que lhe havia sido inicialmente disponibilizada, tal como nunca lhe mostrou quaisquer recibos comprovativos do pagamento de qualquer renda.
E, por isso, tal circunstancialismo fáctico não podia ter sido dado como provado pelo Tribunal da Relação.

Entendimento que, contudo, não pode ser sufragado.

3.4. Desde logo porque não se provou o circunstancialismo fáctico alegado pela Ré.
Acresce que, como se referiu, cabe nos poderes da Relação alterar/modificar a matéria de facto em face da prova produzida e incorporada nos autos, nos termos consagrados pelo art. 662º do Novo CPC.

Com efeito, decorre deste normativo que a Relação pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto fixada pela 1.ª instância, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, tendo o legislador atribuído ao Tribunal da Relação poderes não só para proceder à reponderação da decisão recorrida, como também ao reexame da causa, determinando, se o entender, a renovação dos meios de prova produzidos pela 1.ª instância ou até a produção de novos meios de prova, nas circunstâncias ali previstas.
A determinação dos factos pela Relação, após a reapreciação da prova, deve decorrer da análise crítica dos elementos probatórios para o efeito apreciados, de acordo com a própria convicção que a Relação sobre eles forma. Estando, porém, limitada, pelas regras impostas pelo direito probatório material, ou seja, pelas regras que atribuem força probatória plena a determinados meios de prova e/ou pelas que impõem que a prova de determinado facto se faça por certo meio probatório.

Quer isto dizer que o princípio da livre apreciação da prova plasmado no n.º 5, do art. 607.º, do Novo CPC, vigora para a 1.ª instância e, de igual modo, para a Relação, quando é chamada ou decide reapreciar a matéria de facto.

Contudo, e conforme ressalta dos pontos anteriores, estes amplos poderes de reapreciação da matéria de facto conferidos à Relação pelo legislador não são extensíveis ao Supremo Tribunal de Justiça, porquanto, em sede de revista, a intervenção do STJ destina-se exclusivamente a apreciar a observância das regras de direito material probatório, nos termos conjugados dos arts. 674.º, n.º 3 e 682.º, n.º 2, do CPC, ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do n.º 3 deste último preceito legal.

3.5. É certo que de acordo com o regime legal do arrendamento urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, se estabelece no seu art. 7º, n.º 1, e em qualquer das suas redacções (pois tal normativo sofreu sucessivas alterações) que “o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito”.
E que o n.º 2 do mesmo normativo, na redacção introduzida pelo mencionado Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, passou a estabelecer que a inobservância da forma escrita só pode ser suprida pela exibição do recibo de renda e determina a aplicação do regime de renda condicionada, sem que daí possa resultar aumento de renda”.

Porém, a aplicação desta norma que, logo de início, gerou na Doutrina dificuldades de interpretação acerca da natureza da formalidade consubstanciada na exigência de um “escrito” (forma escrita) para a celebração do contrato de arrendamento urbano, e sobre as consequências da sua inobservância[10], foi criada tendo como objectivo regular a celebração dos arrendamentos urbanos, incluindo os arrendamentos para habitação.
E para prova desses arrendamentos entendeu o legislador fixar o princípio de que a inobservância da forma escrita só pode ser suprida pela exibição do recibo de renda.

Quanto à falta de exibição desse recibo, Januário Gomes é claro: nesse caso, o contrato celebrado é nulo.

Nulidade que não pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal de modo a não ficar precludida a possibilidade de o arrendatário exibir eficazmente o recibo de renda para os efeitos do nº 3 do art. 7º.[11]

No mesmo sentido navega Pereira Coelho [12] ao salientar que:
(…) “O arrendatário pode exibir recibos de renda que o senhorio lhe tenha passado, o que naturalmente fará se quiser fazer valer o contrato, que, nesse caso, terá plena validade”.

3.6. Ora, acontece que, in casu, o que está em causa não é a celebração de um contrato de arrendamento para habitação, mas tão só o pagamento por parte do Autor de uma contrapartida mensal” a um terceiro, pela utilização de uma habitação que lhe foi cedida.
Estamos, pois, perante uma situação jurídica diferente da celebração de um contrato de arrendamento e, nessa medida, a prova do pagamento desse alojamento, como contrapartida pela cedência e fruição do referido local para habitação pode ser efectuada por qualquer meio probatório legalmente admissível, v.g., por testemunhas, cujos depoimentos podem ser conjugados, ou não, com outro tipo de documentos.
Ou seja, não se exige a exibição ou junção dos citados recibos de renda.
Até porque, estando em causa o pagamento de despesas de alojamento não têm necessariamente estas que resultar de um arrendamento.

O mesmo é dizer que a prova pode ser efectuada quer por meio de produção de prova testemunhal, quer documental.

E tendo o Tribunal da Relação de Lisboa procedido à alteração do acervo fáctico provado – concretamente do ponto 3) – dando como assente que o Autor pagou o valor mensal ali referido, e aditado, na parte final do ponto 3), a expressão e a quem, como contrapartida pagava € 500,00 mensais, com base nesses meios de prova testemunhal e documental, a conclusão a extrair é a de que nada tem o STJ para sindicar nesta matéria.

3.7. Com efeito, neste ponto, a Relação fundamentou a alteração à matéria de facto nos seguintes termos:

Do depoimento da testemunha CC conjugado com os documentos de fls. 16 a 22 retira-se que o autor pagava uma renda de casa mensal no valor de € 500,00 mensais. Já quanto ao gás não se provou que o autor pagasse o consumo de gás sendo que os docs. juntos a fls. 28 a 35, por si só mostram ser recibos emitidos a favor de CC.
Por isso, o facto provado nº 3 passa a ter a seguinte redacção:
“3 - Desde 01 de Novembro de 2001 até ter ido viver com a sua actual cônjuge, em Setembro de 2004, o A. habitou no 1º dto, do nº 11, da ..., ..., ..., a qual lhe foi facultada por EE e a quem, como contrapartida pagava € 500,00 mensais – (sublinhado nosso).

Ou seja: o Tribunal da Relação deu como provado que o Autor habitou na casa que lhe foi facultada por EE, a quem efectuava o pagamento de uma contrapartida mensal no valor de € 500,00”.
E fê-lo com base no depoimento dessa testemunha conjugado com os “documentos de fls. 16 a 22” (documentos que contemplam extractos bancários, com as transferências alegadas pelo Autor e efectuadas da sua conta para a da referida testemunha EE).

Embora a Relação tivesse referido na sua fundamentação que “o autor pagava uma renda de casa”, a verdade é que consignou logo a seguir, na matéria de facto provada, não aquela frase, mas sim as seguintes expressões: contrapartida”, enquanto reportada ao pagamento, e facultada”, para identificar o tipo de cedência ao Autor da habitação de um terceiro.
Pode, assim, concluir-se que a anterior alusão a “uma renda” não passou do mero uso de uma palavra com o significado corrente na linguagem comum e não com o conteúdo jurídico que a lei lhe confere no regime legal do arrendamento urbano.

Por conseguinte, não está adstrita a nenhuma outra formalidade, não tendo de observar as exigências legais estatuídas expressamente no art. 7º do regime do arrendamento urbano (RAU).

Razão pela qual não se verifica, no caso sub judice, ofensa de disposição expressa de lei consagrada na segunda parte do nº 3, do art. 674º do Novo CPC.

Quer isto dizer que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa quanto à modificabilidade da matéria de facto não pode, nessa parte, ser sindicada pelo STJ, por força do preceituado nos arts. 662º, nº 4, 674º, nº 3, primeira parte, e 682º, nº 1, todos do Novo CPC.

3.8. Assim sendo, e tendo esta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 22/05/2013, condenado a Ré a pagar ao Autor “os valores pecuniários devidos a título de alojamento, alimentação e viagens ao ..., nos exactos termos e períodos de tempo consignados nos pontos 21 e 22 dos factos provados, a apurar em sede de liquidação”, esses valores são devidos nos termos em que se mostrarem apurados.
Por conseguinte, a este incidente de liquidação apenas interessa o apuramento dos factos que levem à determinação do valor das prestações devidas pela Ré ao Autor conforme a referida condenação do Supremo Tribunal de Justiça.
E uma vez reconhecido o direito ao Autor a receber as despesas de alojamento de acordo com os termos do contrato de trabalho celebrado entre ambas as partes, no qual a Ré se obrigou a tal, e tendo a Ré já sido condenada, o que se pretende alcançar com os presentes autos é reembolsar o Autor das despesas que, a esse título, efectuou e que a Relação considerou provadas.

       Destarte, improcede a revista nesta parte, mantendo-se a condenação da Ré no pagamento ao Autor da quantia relativa a despesas de alojamento, nos termos decididos pelo Acórdão recorrido.

4. Segunda Questão: quanto à quantia relativa à viagem ao ...

4.1. A propósito da viagem ao ... e o seu custo, o Acórdão recorrido decidiu nos seguintes termos:
«Quanto ao valor da viagem ao ..., que não foi objecto de recurso tendo a Ré aceite o pagamento de € 905,54 a esse título, tal valor terá de ser adicionado».

Insurge-se a Ré/Recorrente argumentando que ao adicionar esse valor, a Relação duplicou a sua condenação nesse valor.

Vejamos.

4.2. Analisados os autos, verificamos que a Ré sempre admitiu que devia ao Autor a quantia de € 905,54, pela viagem ao ..., e € 12.127,50, a título de alimentação, tendo por isso liquidado a sua dívida para com aquele em € 13.033,04 (€ 905,54 + € 12.127,50).
O que fez logo em sede de contestação.

Foi justamente nessa importância, acrescida de juros, que a Ré foi condenada a pagar pela 1.ª instância, por sentença proferida em 02 de Junho de 2015.
Na sequência dessa condenação, a Ré acabou por pagar ao Autor a quantia de € 17.587,15 (€ 13.033,04, acrescida de juros), através do cheque fotocopiado, de fls. 180.

Com base nesse documento, o Tribunal da Relação aditou o facto n.º 8 com a seguinte redacção:

«Por conta dos valores reclamados na acção e em causa neste incidente de liquidação, o Autor recebeu a quantia da Ré, a 28/7/2015, a quantia de € 17.587,15» (cf. página 7).

Sucede porém que, pese embora a Relação tenha efectivamente adicionado o valor da viagem ao ... ao montante total da liquidação, certo é que procedeu também ao desconto da quantia de € 17.587,15, já paga pela Ré, onde se incluía o valor de € 905,54, alusivo à referida viagem ao ....

Com efeito, no Acórdão recorrido concluiu-se nos seguintes termos:

«Por fim, ao montante global apurado € 37.300,54 (17.000,00 + 19.395,00 + 905,54) terá de se abater o montante entretanto pago pela Ré de € 17.587,15, como resulta do facto provado, acrescentado com o nº 8.
Assim, face ao exposto liquida-se globalmente o valor de € 19.713,39 (37.300,54 – 17.587,15)

Posto isto, parece óbvio que, se é certo que o valor da viagem ao ... – € 905,54 – já está contemplado na quantia paga pela Ré (fls. 180), certo é também que não foi objecto de nova condenação no seu pagamento por parte da Relação.

Ao fazer referência ao valor já pago pela Ré e ao abatê-lo da referida quantia o Tribunal da Relação não duplicou nenhum valor.

Nestes termos, não assiste razão à Recorrente nesta matéria.

Razão pela qual improcede a revista nesta parte.





IV – DECISÃO:

- Face ao exposto, acorda-se em:
 
1. Não tomar conhecimento do recurso no que respeita à nulidade imputada ao Acórdão recorrido;
2. Julgar improcedente a presente revista e, em consequência, confirma-se o Acórdão recorrido.

- Custas da revista a cargo da Ré, parte vencida.


- Anexa-se sumário do presente Acórdão.


Lisboa, 18 de Maio de 2017



Ana Luísa Geraldes (Relatora)



Ribeiro Cardoso



Ferreira Pinto

_______________
[1] Cf. neste sentido, por todos, José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, Coimbra Editora, págs. 645 e segts., reiterando a posição anteriormente expressa por Alberto dos Reis, in “CPC Anotado”, Vol. V, pág. 143, e que se mantém perfeitamente actual nesta parte, em face dos preceitos correspondentes e que integram o Novo CPC.
[2] Salienta-se que este facto, na parte final sublinhada, apresenta esta redacção em virtude de ter sido alterado pelo Tribunal da Relação, e constitui, conforme se elencou supra, uma das questões sobre as quais incide o presente recurso de revista e que será, por isso, objecto da nossa análise.
[3] Neste sentido cf. os Acórdãos do STJ, datados de 30/1/2002, 6/3/2002, 24/4/2002, 20/1/2004, 3/3/2004, 27/1/2005, 12/1/2006, 24/5/2006, 8/6/2006, 22/10/2008, todos inseridos em www.dgsi.pt. e, mais recentemente, datado de 22/02/2017, Relatado por Chambel Mourisco, proferido no âmbito do processo nº 5384/15.3T8GMR.G1.S1.
[4] Cita-se, a este propósito, os Acórdãos do STJ., desta Secção, de 5/11/2014, exarado no âmbito do processo nº 279/08.OTTBC.P1.S1, de 16/0672015, no processo nº 962/05.1TTLSB.SB.L1.S1, de 1/10/2015, no processo nº 4531/12.1TTLSB.L1.S1 e de 19/11/2015, no processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Cf. tb. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Processo do Trabalho” – “Novo Regime”, pág. 116, e Abílio Neto, in “CPT Anotado”, pág. 169.
[5] Ambos os Acórdãos encontram-se disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
[6] Neste sentido, cf. António Santos Abrantes Geraldes, em “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2016, Almedina, 3ª Edição, págs. 367 e segts. Cf. tb do mesmo Autor, para maior desenvolvimento, a 4ª Edição, 2017, págs. 407 e segts.
   Assim se decidiu, igualmente, nos Acórdãos desta Secção do STJ, de 30/06/2016 e de 14/Julho/2016, relatados pela aqui Relatora, no âmbito dos processos nº 605/11.4TTLRA.C1.S1 e nº 506/12.9TTTMR-A.E1.S1, respectivamente, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do STJ, proferido no processo nº 219/11.9TVLSB.L1.S1, 1ª Secção, Relatado por Gabriel Catarino, e disponível em www.dgsi.pt.
[8] Acórdão do STJ, proferido no processo nº 3071/13.6TJVNF.G1.S1, da 1ª Secção, Relatado por Sebastião Póvoas, e disponível em www.dgsi.pt. [9] Acórdãos proferidos no âmbito do proc. n.º 605/11.4TTLRA.C1.S1, no proc. nº 487/14.4TTPRT.P1.S1 e no proc. 506/12.9TTTMR-A.E1.S1, respectivamente, todos relatados pela aqui Relatora e disponíveis em www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido, cf., nomeadamente, M. Januário Gomes, em “Arrendamentos para Habitação”, 2ª Edição, Almedina, 1996, págs. 62 e segts.
[11] Ibidem, págs. 62 e segts.
[12] Cf. Pereira Coelho, em “Breves Notas”, Rev. Leg. Jur., 126º, pág. 197. Sublinhado nosso.
Neste sentido, cf. também, “Arrendamento – Direito Substantivo e Processual”, do mesmo Autor, Coimbra, 1988, onde aborda desenvolvidamente a temática do arrendamento, mas incidindo a sua análise de acordo com a legislação anterior à vigência do R.A.U.