Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1069/16.1T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INTERESSE NO SEGURO
NULIDADE
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
ABUSO DO DIREITO
SEGURO FACULTATIVO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
SUCUMBÊNCIA
VALOR DA CAUSA
BOA FÉ
APÓLICE
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / CONTEÚDO DO DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª Edição, Almedina, p. 39 a 41 e 349;
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, Volume V, reimpressão, 3.ª Edição 1952, Coimbra Editora, 2007, p. 220;
- Antunes Varela, Das Obrigações em geral, 4.ª Edição, Volume I, p. 131 ; Abuso do direito, Rio, 1982 ; Abuso do direito, BMJ, n.º 85, p. 253;
- Castanheira Neves, Questão de facto, Questão de direito, Volume I, p. 513 e ss.;
- Fernando Augusto Cunha e Sá, Abuso do Direito, 1973, Lisboa, p. 164/188 e 454;
- José Vasques, Contrato de Seguro, p. 355 e 356;
- Júlio Gomes, Cadernos de Direito Privado, nº. 3, p. 62;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, p. 63;
- Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, Volume, I, p. 585 e ss.;
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I, p. 317;
- Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, p. 37;
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição actualizada, p. 437 e ss.;
- Romano Martinez, Direito dos Seguros, p. 91 e ss.;
- Vaz Serra, RLJ, Ano 113º, p. 301.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1305.º.
CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, 639.º, N.º 1 E 672.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 07-02-2008, CJSTJ, TOMO I, P. 90;
- DE 06-02-2014, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-09-2014, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-01-2015, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 19-02-2015, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-04-2015, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-05-2015, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-11-2015, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-06-2016, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Como direito adjectivo, a lei processual estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso, podendo dizer-se que a admissibilidade de um recurso depende do preenchimento cumulativo de três requisitos fundamentais: a legitimidade de quem recorre, ser a decisão proferida recorrível e ser o recurso interposto no prazo legalmente estabelecido para o efeito.

II. Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal, sendo que, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atender-se-á somente ao valor da causa, fazendo-se, assim, depender a admissibilidade do recurso de dois requisitos cumulativos: o valor da causa e o valor da sucumbência

III. Somente deixa de actuar a dupla conforme, a verificação de uma situação, conquanto o acórdão da Relação, conclua pela confirmação da decisão da 1ª instância, em que o âmago fundamental do respectivo enquadramento jurídico, seja diverso daqueloutro assumido e plasmado pela 1ª Instância, quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a decisão proferida na sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada.

IV. O segurado do contrato de seguro facultativo por danos, deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato, constituindo o interesse segurável, um dos princípios fundamentais do direito do contrato de seguro.

V. Se o tomador e segurado por conta própria, no contrato de seguro facultativo, não é proprietário ou sequer detentor, do objecto do contrato de seguro, não tem interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, uma vez que o próprio, não corre qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil em caso de sinistro do veículo objecto do contrato, importando que o contrato de seguro seja nulo.

VI. Se o veículo segurado é conduzido, habitualmente, por pessoa diversa do tomador e segurado, impõe-se à seguradora, enquanto conhecedora deste facto, colher do tomador e segurado, elementos sobre quem é o proprietário do veículo segurado, qual o seu interesse na celebração do contrato de seguro, e, ao constatar o desencontro entre a identidade do proprietário do bem a segurar e o tomador do respectivo seguro, outrossim, que informe o tomador e segurado da pertinência em considerar o proprietário do veículo objecto do contrato de seguro, como segurado, sendo que a omissão deste dever, por parte da seguradora, encerra violação do principio da boa-fé, não lhe sendo legítimo poder eximir-se ao cumprimento do contrato de seguro, quando o desconhecimento das circunstâncias relevantes para apreciação do risco, resultou da sua falta de diligência.

VII. A concretização dos riscos cobertos resultará de os mesmos serem indicados na apólice, integrada por condições gerais, especiais e particulares, ou de, pelo contrário, se evidenciarem na apólice os riscos excluídos, caso em que se considerarão cobertos todos os restantes.

VIII. Impõe-se à seguradora que aja com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, pelo que o atraso injustificado da seguradora na gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, poderá responsabilizar a seguradora no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo, sendo que o dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art.º 1305º do Código Civil, com violação do respectivo direito de propriedade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO


AA, instaurou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BB - Companhia de Seguros, S.A., articulando, com utilidade, que, ao conduzir o seu veículo (...-FJ-...), numa estrada com dois sentidos de marcha e uma via em cada um desses sentidos, foi encandeado por um veículo todo-o-terreno que surgiu pela sua frente, em sentido oposto, com as luzes de estrada ligadas (vulgo, máximos), invadindo a via onde o Autor transitava (da direita, atento o seu sentido de marcha).

Para evitar a colisão com este veículo, o Autor desviou o ...-FJ-... para a direita indo embater no veículo ...-EA-... que estava estacionado na faixa de rodagem, provocando o embate da frente deste automóvel na traseira do ...-...-DJ, então estacionado à frente do ...-EA-....

O Autor assumiu a culpa na eclosão do acidente, elaborando a respectiva declaração amigável, mas a Ré não assumiu a responsabilidade.

Da colisão resultaram danos para o veículo do Autor, na parte frontal, cuja reparação a Ré considerou inviável, considerando uma situação de perda total, com um valor de veículo de €17.000,00.


Entretanto, o Autor vendeu o ...-FJ-... no estado de salvado pelo valor de €1.602,00, pelo que, a Ré deveria ter pago ao Autor a quantia de €15.398,00.

Depois do acidente, a imobilização do veículo provocou inúmeros transtornos, quer familiares, quer sociais, ao Autor, na medida em que o obrigava a pedir a amigos e familiares viaturas emprestadas para se deslocar, não tendo a Ré providenciado por um automóvel de substituição, situação que ainda subsistia à data da petição inicial, dano que o Autor estima em €50,00/dia (valor que pagaria se recorresse a um rent-a-car), cuja reparação reclama, num total de €25.950,00, considerando decorridos 519 dias desde o dia do acidente, a que acresce o valor que se vier a apurar até ao efectivo e integral pagamento da indemnização devida pela Ré. 

A Ré declinou a sua responsabilidade apenas 148 dias depois da participação do sinistro, quando o deveria ter feito no prazo de 15 dias a contar do dia 6 de Abril de 2015, até 24.4.2015, devendo pagar €100,00 ao Autor e igual quantia a favor do Instituto de Seguros de Portugal por cada dia de atraso, o que perfaz a quantia de €12.400,00.

Acrescenta ainda que a Ré é parte legítima, por força do contrato de seguro no qual lhe foi transferida a responsabilidade civil por danos próprios.

O acidente ocorreu no dia 31 de Março de 2015 e o Autor foi dono e legítimo proprietário do ...-FJ-... até ao dia 27 de Maio de 2015, quando vendeu o salvado.

Conclui o Autor formulando o seguinte pedido:

“(…) deve a presente ação ser julgada totalmente procedente por provada e, em consequência, ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 53.748,00 (cinquenta e três mil setecentos e quarenta e oito euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, até integral e efetivo pagamento.

Condenada ainda a quantia ao Autor a quantia que se vier a vencer, desde a presente data até efetivo e integral pagamento, a título de paralisação e privação de uso da viatura acidentada, na quantia diária de € 50,00 (cinquenta euros).”


Regularmente citada, a Ré apresentou contestação, alegando não ter obrigação de indemnizar o demandante porque o contrato de seguro que vigorava na data do acidente para o ...-FJ-... fora celebrado com CC, com coberturas de choque, colisão e capotamento, mas sem que ela tivesse qualquer interesse no bem seguro, que nem sequer lhe pertencia.

Era, aliás, o Autor, seu proprietário, que o utilizava diariamente e providenciava pela sua manutenção e conservação, tratando-o como coisa sua.

A Ré, nada contratou com o Autor, pelo que, por respeitar a um seguro de danos, o ajuizado contrato é nulo.

Outrossim, sustenta a Ré que o alegado acidente de viação nunca ocorreu, sendo que os danos materiais nos veículos envolvidos não são compatíveis com a descrição que o Autor faz do acidente, pelo que, também por essa razão não há obrigação de indemnizar.     

A Ré comunicou a CC, a segurada e titular do contrato, em 7 de Abril de 2015, que a reparação custaria €14.277,00, valor que poderia aumentar após a desmontagem, sendo que nada tinha que comunicar ao Autor por nada ter contratado com ele.

Sendo o valor do veículo de apenas €10.000,00, na data da peritagem, havia perda total.

Ademais, invoca a Ré que, não tendo sido contratado o lucro cessante, nunca teria de pagar ao Autor qualquer indemnização pela paralisação do automóvel, e, mesmo que assim não fosse, a obrigação de pagamento de tal indemnização sempre cessaria com a venda do salvado.

Também não é devida a sanção pecuniária compulsória reclamada, muito menos ao Autor que não celebrou qualquer contrato de seguro com a Ré, sendo que a comunicação da Ré à segurada, pela qual declinou a sua responsabilidade, foi atempada.

Concluiu a Ré pela improcedência da acção.

Notificado para o efeito, o Autor não respondeu à matéria de excepção alegada na contestação.

Dispensada a audiência prévia, foi fixado o valor da causa em €53.748,00 e proferido despacho saneador tabelar a que se seguiu, a fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova.


Calendarizada a audiência final, foi esta realizada com observância do formalismo legal, tendo o Tribunal de 1ª Instância proferido decisão, de facto e de direito, consignando no respectivo dispositivo:

“Pelo exposto, decide-se julgar a acção parcialmente procedente, por provada e consequentemente, condenar a ré «BB – COMPANHIA DE SEGUROS, SA» a pagar ao autor AA a quantia de €10.900,00 (dez mil e novecentos euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, até efectivo e integral pagamento.

No mais, decide-se absolver a ré do pedido.

Custas por autor e ré na proporção do respectivo decaimento.”


Inconformados, Autor e Ré recorreram de apelação, tendo o Tribunal da Relação conhecido dos interpostos recursos, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi consignado:

“Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação da R. e parcialmente procedente a apelação do A. e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, julgando-se parcialmente procedente a ação, e condena-se a R., BB – COMPANHIA DE SEGUROS, SA a pagar ao A., AA:

a) A quantia de € 9.298,00 relativa a indemnização pela perda total do veículo;

b) A quantia que for devida na data em que for efetuado o pagamento da quantia referida em a), calculada até essa data, à razão de € 10,00 por dia, desde o dia 8.6.2015, de que já está vencido até à data da citação o montante de € 4.530,00 (correspondente a 453 dias).

c) Os juros de mora, à taxa legal, relativos à quantia referida em a) e à quantia de € 4.530,00 referida em b), contados desde a citação, até integral pagamento. 

Custas da apelação do A. e da apelação da R., por um e por outro, na proporção do decaimento. Custas da ação na proporção do decaimento.”


É contra esta decisão que a Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. se insurge, formulando as seguintes conclusões:

“1. Face aos factos provados, verifica-se que o contrato de seguro, a que os presentes autos dizem respeito, é nulo,

2. O que determina que a Ré não esteja obrigada ao cumprimento da prestação que contratualmente para si advinha do invocado contrato de seguro.

3. A nulidade do contrato de seguro decorre do facto de a segurada não ter interesse digno de protecção legal no bem seguro, aliás, não tem nenhum interesse no bem seguro.

4. Não ficou provado que a Ré não fez quaisquer diligências no sentido de apurar que o veículo seguro pertencia a um terceiro que não a segurada proponente do seguro ou que omitiu o dever de análise e confirmação da declaração de risco.

5. Mas mesmo que a Ré tivesse tal obrigação - e não tem - esse facto não isenta o potencial tomador do seguro e/ou o segurado do dever de prestar as devidas informações com vista à correcta apreciação do risco que vai ser seguro.

6. A seguradora não é obrigada a adivinhar que o bem seguro não pertence ao segurado, pois que o natural e expectável é que quem segura tenha um interesse patrimonial no bem seguro.

7. Por isso, a única conclusão a tirar dos factos provados é a de que o contrato é nulo e a Ré não está obrigada a indemnizar.

8. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou os arts. 24°,43°, 44°, 47° e 123º do RJCS (DL nº 72/2008) e bem assim nos arts. 298°, 397° e 405° do CC, o que impõe a revogação da douta sentença recorrida e a consequente absolvição da Ré do pedido.

9. Mesmo que assim se não entenda, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre o acórdão recorrido está em contradição com o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n° 47112002.01,S1, da 7ª' Secção, em que foi relator o Ex.mo Conselheiro Sr. Dr. Alberto Sobrinho, publicado na Internet, de cujo sumário consta o seguinte: “... não pertencendo o veículo ao tomador do seguro e sendo ele alheio à sua manutenção e circulação, é evidente que não tem qualquer interesse patrimonial na celebração do contrato ... pelo que o seguro é nulo” e que transitou em julgado.

10. Por isso, se não pela via do recurso de revista ordinária, pela via da revista excepcional, deve a questão da nulidade do contrato de seguro ser apreciada e decidida nos termos expostos.

11. No que concerne à condenação da Ré na quantia referente à privação de uso, entende a Ré que o Tribunal recorrido decidiu contra a lei e de forma injusta, pois que.

12. Não só não ficou provado nenhum dano do Autor a título de privação de uso do seu veículo, pois que usou outros veículos de familiares e de amigos,

13. Como ainda, porque a Ré, porque nada contratou com o Autor, não tem obrigação de o indemnizar, sendo ainda certo que, por ter havido destruição do veículo do Autor, não há lugar a indemnização por privação de uso.

14. Seja como for, uma vez que o contrato de seguro é de danos, é facultativo e não foi contratada a cobertura de privação de uso, a Ré não pode em circunstância alguma ser condenada a pagar ao Autor qualquer quantia a título de privação de uso.

15. Ao decidir como decidiu (condenando a Ré no pagamento de uma indemnização por privação de uso), o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 123° e 130° do RJCS e ainda nos arts. 342°, 397°, 405°, 562°, 564° e 566° do Cod. Civil.

16. Mesmo que assim se não entenda, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre o acórdão recorrido está em contradição com os seguintes doutos acórdãos

- acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21-02-2018, proferido no Proc. nº 32/17.0T8GDM.P1.

- acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/02/2017, proferido no Proc. nº

842/14.0TJPRT.P1;

- acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14/03/2016, proferido no Proc. nº

4876/12.0TBSTS.P1 ;

- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/05/2015, proferido no Proc. n° 127/14.1 TBSCD.C!;

- acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18/10/2016, proferido no Proc. nº 264/13.0TBPCV.C1,  transitados em julgado e que decidiram que no contrato de seguro de danos, se não  foi contratada a respectiva cobertura, a seguradora não está obrigada a indemnizar o segurado pela privação de uso.

17. Por isso, se não pela via do recurso de revista ordinária, pela via da revista excepcional, deve a questão da indemnização pela privação de uso ser apreciada e decidida nos termos expostos.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, nos termos expostos, como é de lei e de Justiça!”


Houve contra-alegações apresentadas pelo Recorrido/AA, suscitando questão prévia traduzida na invocada inadmissibilidade do recurso interposto, concluindo, em todo o caso, pela improcedência do recurso apresentado pela Recorrente/BB - Companhia de Seguros, S.A.., aduzindo, para o efeito as seguintes conclusões:

“1 - A Apelante apresentou recurso de revista ordinário e, se assim não for entendido, recurso de revista excecional.

2 - Salvo melhor opinião em contrário, entende o Recorrido não assistir razão à Recorrente, desde logo, porque operou, in casu, a dupla conforme na decisão vertida pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto.

3 - Em matéria de interposição de recurso de revista, somos confrontados com urna limitação imposta pelo legislador em situações de dupla conforme: com ressalva dos casos estatuídos na lei e sem prejuízo dos casos em que seja de admitir revista excecional, não é admissível revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância - cf, n° 3 do art, 671º do Novo CPC.

4 - Quer isto dizer que o recurso de revista não é admissível desde que ambas as decisões - a da 1ª instância e a da Relação - decidam no mesmo sentido, confirmando o Tribunal da Relação a decisão proferida pela 1ª instância sem que seja lavrado voto de vencido e sem que a fundamentação seja essencialmente diferente,

5 - Caso em que se verifica a situação jurídica que a jurisprudência e a doutrina denomina de “dupla conforme” e que impede a interposição de recurso para o STJ.

6 - A 1.ª Instância proferiu sentença onde condena a Ré/Recorrente a pagar ao Autor/Recorrido a quantia de € 10.900,00 (dez mil e novecentos euros), acrescido de juros de mora, é taxa legal, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento.

7 - No mais, decidiu absolver a Ré/Recorrente do pedido.

8 - A 1.ª instância considerou, primeiramente, válido o contrato de seguro subscrito entre Maria Manuela Garrido e a aqui Ré/Recorrente, que previa a cobertura de danos próprios da viatura automóvel com a matrícula ...-FJ-....

9 - Segundo, que o acidente ocorreu nas circunstâncias de tempo, modo e lugar narrados na petição inicial.

10 - E que o custo da reparação da viatura automóvel do Autor, por força do sinistro dos autos, estava orçado em € 14.277,00 (catorze mil duzentos e setenta e sete euros), ou seja em situação de perda total, pois o valor transferido para a Ré/Recorrente era de € 10.900,00 (dez mil e novecentos euros).

11 - Por último, deu como provado que a viatura automóvel acidentada era utilizada pelo Autor e pela sua companheira nas deslocações profissionais e de lazer de ambos, servindo igualmente para levar a filha menor à escola e que a sua paralisação causou ao Autor transtornos, obrigando-o a recorrer a transportes públicos e a pedir emprestadas viaturas automóveis a familiares.

12 - Por sua vez, o Insigne Tribunal da Relação do … considerou válido o contrato de seguro aqui em crise, seguindo a argumentação legal da 1.ª instância,

13 - Assim como considerou não existir qualquer erro de julgamento na decisão da matéria de facto.

14 - Apenas procedeu ao desconto do valor do salvado na indemnização a arbitrar ao Autor, pois, apesar de estar dado como provado a venda do salvado por parte do Autor, não foi esse valor descontado na indemnização que a Ré/Recorrente teria de pagar ao Autor.

15 - Assim, na matéria da aplicação do direito o Acórdão do Tribunal da Relação do … confirmou, integralmente, e sem qualquer voto de vencido e, com fundamentação idêntica, a decisão proferida em primeira instância.

16 - Idêntica quanto ao núcleo essencial da sua fundamentação jurídica, remetendo, inclusivamente, para o conteúdo da decisão da 1.ª Instância.

17 - No caso concreto, apreciando as decisões no exclusivo segmento da aplicação do direito, verificasse conforme se referiu, que ambas as instâncias decidiram pela procedência da validade do contrato de seguro subscrito pela CC, sogra do Autor, com a Ré/Recorrente, com base no mesmo enquadramento jurídico,

18 - Não relevando para tal, argumentos jurídicos marginais, a emissão de uma resposta não inteiramente coincidente a uma determinada questão jurídica ou a introdução de alguma questão que apenas sirva para reforçar o resultado alcançado.

19 - Estamos assim na presença da dupla conforme, e, nessa medida, deverá ser improcedente a pretensão da Ré/Recorrente, não devendo o presente recurso ser apreciado, pois existem duas decisões “conformes”.

20 - Posto isto, somos ainda propelidos no entendimento de que estava ainda vedada a possibilidade da Ré/Recorrente apresentar recurso de revista, tendo presente o princípio da sucumbência.

21 - O Autor demandou, nos presentes autos, a Ré, peticionando que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 53.748,00 (cinquenta e três mil setecentos e quarenta e oito euros) e ainda a quantia de € 50,00 (cinquenta euros) diários, a titulo de privação do uso da sua viatura automóvel, desde a data da propositura da açâo, até efetivo e integral pagamento.

22 - Em 1.ª Instância a Ré/Recorrente foi condenada a pagar ao Autor a quantia de € 10.900,00 (dez mil e novecentos euros) e na 2.ª Instância a quantia de € 13.828,00 (treze mil oitocentos e vinte e oito euros), acrescido de € 10,00 (dez euros) diários, até o dia em que for efetuado o pagamento.

23 - Ou seja, aquele valor é inferior a metade do valor da alçada do Supremo Tribunal de Justiça, o que impede a Ré/Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 629º n.º 1 do C.P.C.

24 - Assim, são estes os argumentos utilizados e que impedem esse Distinto Suprema Tribunal de Justiça de conhecer do recurso apresentado pela Ré/Recorrente.

25 - Por fim, a Ré/Recorrente alega que o Acórdão sob censura encontra-se em contradição com outros acórdãos que identifica no seu recurso.

26 - Para a revista ser admissível como excecional é, desde logo, necessário que a decisão em causa seja uma decisão que admita recurso nos termos do art, 678.°, n.º 1, do CPC;

27 - Ou que o recurso da decisão seja sempre admissível nos termos do n.º 2 do mesmo diploma; que inexista uma disposição especial da lei que não admita, na hipótese que se encontre em análise, recurso para o STJ; que se trate de recurso de acórdão da Relação proferido sobre decisão da 1.ª instância que tenha posto termo ao processo ou sobre despacho saneador que decida de mérito da causa.

28 - Resulta claro que estava vedada a interposição do recurso de revista à Ré/Recorrente, uma vez que o valor da sucumbência é inferior a metade do valor da alçada do Tribunal da Relação, concluindo-se assim pela inadmissibilidade da revista excecional

29 - Por outro lado, no recurso de revista excecional incumbe ao recorrente o ónus de indicar os elementos referidos no art. 672, n.º 2, do CPC, sob pena de rejeição do recurso.

30 - Da leitura das alegações apresentadas pelo Recorrente não se vislumbra que tenha cumprida o preceituado no artigo 672.º do CPC,

31 - Face ao supra exposto, entendemos, salvo melhor opinião em contrário, que o douto acórdão do Distinto Tribunal da Relação do … não merece qualquer reparo.

32 - Devendo o recurso de revista apresentado pela Ré/Recorrente ser rejeitado por inadmissibilidade legal.

Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Venerandas Excelências, deverá ser mantido o douto Acórdão recorrido, Julgando improcedente o presente recurso, assim se fazendo inteira e costumada Justiça”.


Foram colhidos os vistos.


Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. Além do conhecimento da questão prévia invocada pelo Recorrido/Autor/AA atinente à admissibilidade do recurso de revista interposto, as questões a resolver, recortadas das alegações apresentadas pela Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., consistem em saber se:

(1) O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, concretamente, (a)) o ajuizado contrato de seguro, padece de nulidade, outrossim, (b)) a condenação da Ré na quantia referente à privação de uso do veículo ...-FJ-..., não tem sustentação legal?  


II. 2. Da Matéria de Facto


Factos Provados:

1. Até Maio de 2015, o Autor foi o proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ...-FJ-...;

2. Nessa data, estava em vigor o contrato de seguro celebrado entre a Ré e CC, titulado pela apólice 96…2, pelo qual foi transmitida para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel de matrícula ...-FJ-..., até ao limite de €5.000.000.000,00 para a reparação de danos corporais e de €1.000.000,00 para a reparação de danos materiais, bem como a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento – à data pelo capital de €10.900,00 (dez mil e novecentos euros) e sem franquia a cargo do segurado - tudo conforme condições particulares e gerais juntas a fls. 42 e segs. com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido;

3. Nesse contrato de seguro o aqui autor figura como condutor habitual;

4. No dia 31 de Março de 2015, pelas 22 e 30 minutos, o Autor conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Ford, modelo focus, com a matrícula ...-FJ-..., pela Rua …., em …, Maia, em direcção à Via Norte (Nacional 14);

5. No local, a estrada apenas possui uma faixa de rodagem para cada um dos sentidos de trânsito;

6. Na dita Rua …, encontrava-se estacionado, no lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido de trânsito do veículo conduzido pelo Autor, o veículo comercial com a matrícula ...-...-DJ;

7. No mesmo lado direito da aludida faixa de rodagem, imediatamente antes do DJ, encontrava-se igualmente estacionado o veículo ligeiro de passageiros, da marca BMW, com a matrícula ...-EA-...;

8. No momento em que se aproximava daqueles dois veículos estacionados, o Autor cruzou-se com um veículo todo-o-terreno que seguia em sentido contrário;

9. O qual tinha acabado de sair da Via Norte e entrava na Rua …, em direcção a Leça do Balio;

10. Circulava de forma a ocupar a faixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia em sentido contrário, por onde na ocasião, seguia o veículo do Autor;

11. Procurando evitar o embate com este veículo, o Autor desviou o veículo que conduzia para o seu lado direito e foi embater na traseira do veículo de matrícula EA;

12. Com a força deste embate, o veículo de matrícula EA foi projectado para a frente, indo embater com a sua frente, na traseira do veículo de matrícula DJ;

13. Em virtude do embate, o veículo de matrícula FJ sofreu danos e ficou imobilizado na Rua …;

14. Foi elaborada a participação amigável do acidente que foi remetida à Ré;

15. Após peritagem realizada ao veículo, o custo da reparação foi orçado em €14.277,00;

16. A Ré enviou à tomadora do seguro, que recebeu, a carta datada de 7 de Abril de 2014, cuja cópia está junta a fls. 39 vs e 40, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde, além do mais, comunicava que considerava a reparação economicamente inviável;

17. Em 27 de Maio de 2015, o Autor vendeu a viatura de matrícula FJ no estado de salvado à sociedade “DD, S.A.”, recebendo o preço de €1.602,00;

18. À data do acidente, a Ré havia dado ao veículo de matrícula FJ o valor de €10.900,00;

19. Por carta de 26 de Agosto de 2015 – cuja cópia está junta a fls. 14 com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido - a Ré comunicou à tomadora do seguro que não assumia a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do acidente, alegando que estes não se apresentam compatíveis com a dinâmica do acidente participado”;

20. O veículo de matrícula FJ era utilizado pelo Autor e pela sua companheira nas deslocações profissionais e de lazer de ambos, servindo igualmente para levar a filha menor à escola,

21. A imobilização do seu veículo causou ao Autor transtornos, obrigando-o recorrer a transportes públicos e a pedir emprestados viaturas automóveis a familiares e a amigos para se deslocar.

Factos não Provados:

a. O veículo identificado em 8) seguia a uma velocidade superior a 50 km/hora e com as luzes de máximos ligadas;

b. Em Maio de 2015, a Ré informou o Autor que a viatura não tinha reparação;

c. Era o autor quem utilizava exclusivamente o veículo de matrícula FJ;

d. Aquando da apresentação da proposta de seguro, a tomadora CC não informou a Ré que estava a efectuar o seguro em nome de outrem..


II. 3. Do Direito


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjectivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código Processo Civil.


II. 3.1. O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, concretamente, (a)) o ajuizado contrato de seguro, padece de nulidade, outrossim, (b)) a condenação da Ré na quantia referente à privação de uso do veículo ...-FJ-..., não tem sustentação legal? (1)

Questão prévia.

Antes mesmo de conhecer do recurso interposto, impõe-se a apreciação da questão preliminar suscitada pelo Recorrido/Autor/AA, consubstanciada na alegada inadmissibilidade do interposto recurso de revista.

Para tanto, sustenta o Recorrido/Autor/AA, com utilidade, que a Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A.., apresentou recurso de revista ordinário, e, se assim não for entendido, recurso de revista excepcional, todavia, entende não assistir razão à Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., desde logo, tendo presente o princípio da sucumbência.

Na verdade, tendo o Autor demandado a Ré, peticionando a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €53.748,00 e ainda a quantia de €50,00 diários, a titulo de privação do uso da sua viatura automóvel, desde a data da propositura da acção, até efectivo e integral pagamento, e tendo a 1.ª Instância condenado a Ré a pagar ao Autor a quantia de €10.900,00, e a 2.ª Instância a quantia de €13.828,00, acrescida de €10,00 diários, até o dia em que for efectuado o pagamento fixado pela perda total do veículo ...-FJ-..., importa dizer, ser este valor inferior a metade do valor da alçada do Tribunal de que se recorre, tornando inadmissível a interposição do recurso ordinário da revista, impedindo o Supremo Tribunal de Justiça de conhecer do recurso interposto.

Ademais, sustenta o Recorrido/Autor/AA, ter-se operado, in casu, a “dupla conforme” na decisão vertida pelo Tribunal da Relação do Porto, confirmando o Tribunal da Relação a decisão proferida pela 1ª Instância sem que tivesse sido lavrado voto de vencido e sem que a fundamentação seja essencialmente diferente, impedindo, necessariamente, a interposição de recurso de revista excepcional, não devendo ser apreciado o interposto recurso, pois, existem duas decisões “conformes”, a par de que, estando vedada a interposição do recurso de revista ordinário, uma vez que o valor da sucumbência é inferior a metade do valor da alçada do Tribunal da Relação, importará também concluir pela inadmissibilidade da revista excepcional, outrossim, tão pouco foi cumprido o art.º 672º do Código Processo Civil.

Cuidemos, assim, da questão prévia suscitada pelo Recorrido/Autor/AA atinente à admissibilidade do recurso de revista interposto pela Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A..

Vejamos.

A previsão expressa dos tribunais de recurso na Lei Fundamental, leva-nos a reconhecer que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, porém, já não está impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões.

Como direito adjectivo, a lei processual estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso, podendo dizer-se que a admissibilidade de um recurso depende do preenchimento cumulativo de três requisitos fundamentais, quais sejam, a legitimidade de quem recorre, ser a decisão proferida recorrível e ser o recurso interposto no prazo legalmente estabelecido para o efeito.

No caso que nos ocupa, não sofre reserva, a legitimidade da Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. para interpor o recurso, tendo sido este apresentado tempestivamente, e, neste concreto pressuposto, uma vez que o requerimento de interposição de recurso obedeceu ao prazo legalmente estabelecido, sendo, aliás, pacificamente aceite, outrossim, a decisão de que recorre, foi-lhe desfavorável (conforme se consignou no dispositivo do acórdão apelado: “Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação da R. e parcialmente procedente a apelação do A. e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, julgando-se parcialmente procedente a ação, e condena-se a R., BB – COMPANHIA DE SEGUROS, SA a pagar ao A., AA: a) A quantia de € 9.298,00 relativa a indemnização pela perda total do veículo; b) A quantia que for devida na data em que for efetuado o pagamento da quantia referida em a), calculada até essa data, à razão de € 10,00 por dia, desde o dia 8.6.2015, de que já está vencido até à data da citação o montante de € 4.530,00 (correspondente a 453 dias). c) Os juros de mora, à taxa legal, relativos à quantia referida em a) e à quantia de € 4.530,00 referida em b), contados desde a citação, até integral pagamento. Custas da apelação do A. e da apelação da R., por um e por outro, na proporção do decaimento. Custas da ação na proporção do decaimento”, encontrando-se a dissensão quanto a ser a decisão proferida recorrível.

Conforme decorre dos autos, foi fixado o valor da causa em €53.748,00 (cinquenta e três mil, setecentos e quarenta e oito euros).

O consignado valor releva para efeitos processuais, nomeadamente, no que respeita à alçada do tribunal (artºs. 296º, n.º 2, 299º, n.º 1, e 306º, do Código Processo Civil).

Em matéria de recursos, importa atender ao estatuído no n.º 1 do art.º 629º do Código Processo Civil (Decisões que admitem recurso), concretamente, no que ao caso sub iudice interessa: “1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.”.

Daqui decorre, pois, que só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal, sendo que, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atender-se-á somente ao valor da causa.

O aludido segmento normativo faz depender a admissibilidade do recurso de dois requisitos cumulativos: o valor da causa e o valor da sucumbência, tendo esta exigência complementar (sucumbência), em vista restringir as questões que devem ser submetidas à apreciação dos tribunais superiores, evitando que conheçam de decisões em processos, cujo valor ou sucumbência não exceda determinado montante.

Observa-se que a alçada é o limite de valor até ao qual o tribunal julga sem recurso ordinário, importando, por regra, que a parte vencida possa apenas insurgir-se contra a decisão, recorrendo, se o valor da causa exceder a alçada do tribunal que a proferiu e se tiver decaído em, pelo menos, metade dessa alçada, neste sentido, Professor Alberto dos Reis, apud, Código de Processo Civil, Anotado, Volume V, reimpressão, 3.ª edição 1952, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, página 220.

Assim, dependendo a admissibilidade do recurso de dois requisitos cumulativos, quais sejam, o valor da causa e o valor da sucumbência, temos que, uma vez fixada a alçada da Relação, em matéria cível, em €30.000,00, conforme prevenido no art.º 44º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), decorre que em princípio, só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em processos de valor superior àquele, outrossim, considerando o enunciado requisito de recorribilidade atinente ao valor da sucumbência, importa atentar que a parte vencida, para poder recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, tem de se insurgir contra uma decisão que lhe seja desfavorável em valor também superior a metade da alçada do Tribunal da Relação, isto é um valor condizente a, pelo menos, €15.000,01.

Resulta dos autos que, em 1.ª Instância, a Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. foi condenada a pagar ao Autor/AA a quantia de €10.900,00, e na 2.ª Instância a pagar ao Autor/AA a quantia de €9.298,00, relativa a indemnização pela perda total do veículo, acrescida da quantia que for devida na data em que for efectuado o pagamento desta quantia de €9.298,00, calculada até essa data, à razão de €10,00 por dia, desde o dia 8.6.2015, de que já está vencido até à data da citação o montante de €4.530,00, correspondente a 453 (quatrocentos e cinquenta e três) dias, com juros de mora, à taxa legal, relativos à quantia de €9.298,00, e à quantia de €4.530,00, contados desde a citação, até integral pagamento, donde, não está somente em causa a condenação da Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., ao pagamento da quantia de €13.828,00, conforme pugnado pelo Recorrido/Autor/AA, condizente à perda total do veículo e indemnização pela privação do uso do veículo, vencida até à citação (€9.298,00+€ 4.530,00), acrescendo, conforme decorre do acórdão, a quantia que for devida até à data em que for efectuado o pagamento da quantia de €9.298,00, relativa à privação do uso do veículo, calculado à razão de €10,00 por dia, importando condenação em montante a liquidar ulteriormente.

Donde, se atentássemos apenas às quantias objecto de condenação líquida, tornar-se-ia manifesto que, situando-se a sucumbência da Recorrente no valor de €13.828,00, o recurso não seria admissível por falta de preenchimento do requisito relativo à proporção do decaimento (sucumbência), a qual, sublinhamos, deve ser superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão impugnada, todavia, como adiantamos, o Tribunal da Relação condenou igualmente a Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., conforme consignado no dispositivo do acórdão objecto deste recurso de revista, numa quantia ilíquida, sem que existam quaisquer elementos nos autos que a permitam quantificar, acrescendo que a Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. também questiona, na revista interposta, este preciso segmento do dispositivo condenatório.

Assim sendo, quando esteja em causa pedidos que não tenham uma clara tradução monetária ou pedidos genéricos, como é o caso sub iudice, o legislador, consciente de que nestas circunstâncias, não se mostra fácil ou possível quantificar a sucumbência (no caso em apreço desconhecemos quando é que a Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., caso seja confirmada a decisão do Tribunal da Relação, pagará a quantia de €9.298,00, atinente à perda total do veículo ...-FJ-..., sabendo nós que a indemnização pela privação do uso do veículo, calculado à razão de €10,00 por dia, terá como termo final a data do pagamento desta quantia, conforme condenação do Tribunal da Relação, estando, por ora, calculada até à data da citação), acolheu uma solução que determina considerar, nestas situações de dúvida, acerca do valor da sucumbência, apenas ao valor da causa, conforme estatuído no direito adjectivo civil, art.º 629º, n.º 1, do Código Processo Civil, acima transcrito, razão pela qual, não sendo, no caso sub iudice, possível quantificar o valor da sucumbência da Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. na parte condizente à condenação ilíquida, temos que distinguir o valor do processo (€53.748,00), e, como tal, é apodíctico reconhecer que o presente recurso de revista preenche todos os requisitos enunciados e necessários à admissibilidade do recurso de revista ordinário.

Contudo, como já adiantamos, o Recorrido/Autor/AA, não se limita a questionar a admissibilidade do recurso de revista ordinário, em razão do valor da sucumbência, o que este Tribunal ad quem, não sufragou, outrossim, sustenta o Recorrido/Autor/AA ter-se operado a “dupla conforme” na decisão vertida pelo Tribunal da Relação do …, e, por esta razão, reclama, que o recurso de revista ordinário, também não seja admissível.

A este propósito há que convocar as regras recursivas adjectivas civis, concretamente o art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, atinente à irrecorribilidade das decisões do Tribunal da Relação em consequência da dupla conforme, nos precisos termos aí concretizados (…não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância …).

Daqui decorre que o art.º 671º n.º 3 do Código do Processo Civil condizente ao n.º 3 do art.º 721º do anterior Código do Processo Civil, com a redacção resultante do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, importa agora que a decisão da segunda instância não tenha uma fundamentação essencialmente diferente da decisão de primeira instância para que actue a dupla conforme, ao contrário do que acontecia com a alteração adjectiva civil, imposta pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, em que se abstraía da fundamentação do acórdão da segunda instância para que se verificasse a dupla conforme.

Levado a cabo a exegese do consignado normativo adjectivo civil o Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que somente deixa de actuar a dupla conforme, a verificação de uma situação, conquanto o acórdão da Relação, conclua pela confirmação da decisão da 1ª instância, em que o âmago fundamental do respectivo enquadramento jurídico seja diverso daqueloutro assumido e plasmado pela 1ª Instância, quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a decisão proferida na sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada.

Importa, pois, para que se torne inverificável a dupla conforme, pese embora o acórdão da Relação confirme a decisão da 1ª instância, a não aquiescência, pela Relação do enquadramento jurídico sufragado em 1ª Instância, antes, adopte uma solução jurídica inovatória, que aporte preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros enunciados no aresto apelado, neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2014; de 18 de Setembro de 2014; de 8 de Janeiro de 2015; de 19 de Fevereiro de 2015, de 30 de Abril de 2015, de 28 de Maio de 2015, de 26 de Novembro de 2015, e de 16 de Junho de 2016, in, http://www.dgsi.pt/stj.

A este propósito, defende Abrantes Geraldes, apud, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 349, “que com o CPC de 2013 foi introduzida uma nuance: deixa de existir dupla conforme, seguindo a revista as regras gerais, quando a Relação, para a confirmação da decisão da 1ª instância, empregue “fundamentação essencialmente diversa”. A admissibilidade do recurso de revista, no caso do acórdão da Relação ter confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, está, assim, dependente do facto de ser empregue “fundamentação substancialmente diferente”.

Aclarando o sentido e alcance da expressão “fundamentação essencialmente diferente”, elucida Abrantes Geraldes, apud, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 352, que “a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspectos essenciais”.

Ademais, não se pode esquecer que a dupla conforme se afere também pelo teor das decisões finais.

No caso sub iudice, confrontadas as decisões proferidas, divisamos, com clareza que a decisão da 1.ª Instância ao “(…) julgar a acção parcialmente procedente, por provada e consequentemente, condenar a ré «BB – COMPANHIA DE SEGUROS, SA» a pagar ao autor AA a quantia de €10.900,00 (dez mil e novecentos euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, até efectivo e integral pagamento. No mais, decide-se absolver a ré do pedido. Custas por autor e ré na proporção do respectivo decaimento” diverge, inequivocamente, da decisão proferida pelo Tribunal da Relação que conheceu do recurso interposto daquela sentença, consignando, no respectivo dispositivo “Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação da R. e parcialmente procedente a apelação do A. e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, julgando-se parcialmente procedente a ação, e condena-se a R., BB – COMPANHIA DE SEGUROS, SA a pagar ao A., AA:

a) A quantia de € 9.298,00 relativa a indemnização pela perda total do veículo;

b) A quantia que for devida na data em que for efetuado o pagamento da quantia referida em a), calculada até essa data, à razão de € 10,00 por dia, desde o dia 8.6.2015, de que já está vencido até à data da citação o montante de € 4.530,00 (correspondente a 453 dias).

c) Os juros de mora, à taxa legal, relativos à quantia referida em a) e à quantia de € 4.530,00 referida em b), contados desde a citação, até integral pagamento. 

Custas da apelação do A. e da apelação da R., por um e por outro, na proporção do decaimento. Custas da ação na proporção do decaimento”.

Outrossim, ao alterar a sentença apelada, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, aduziu um enquadramento jurídico diverso daqueloutro assumido e plasmado pela 1.ª Instância, sustentado em preceitos e interpretações normativas diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a decisão proferida na sentença apelada, mormente acerca da privação do uso do veículo, encerrando um enquadramento jurídico substancialmente diferente, assumindo uma real divergência nos aspectos essenciais do enquadramento jurídico, para sustentar a solução alcançada.

Pelo exposto, não verificada a dupla conforme, tendo em consideração o estabelecido no citado art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, impõe-se a este Tribunal ad quem, na decorrência do enquadramento jurídico e normativo consignados, conhecer do objecto da revista, não cabendo a apreciação do recurso de revista excepcional, nos termos do art.º 672º n.º 1 a) do Código de Processo Civil, subsidiariamente invocada, cuja bondade do conhecimento, importaria, caso não se tivesse admitido a revista, o cumprimento do estatuído no art.º 672º n.º 3 do Código Processo Civil, com a remessa dos autos à formação para verificação dos pressupostos referidos, concretamente, na alínea a) do n.º 1 do art.º 672º do Código de Processo Civil.

Admitido o recurso de revista, apreciada que foi a questão preliminar invocada pelo Recorrido/Autor/AA, é chegada a altura de relembrar as questões já enunciadas, cujo conhecimento cumpre a este Tribunal ad quem.

“O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, concretamente, (a)) o ajuizado contrato de seguro, padece de nulidade, outrossim, (b)) a condenação da Ré na quantia referente à privação de uso do veículo ...-FJ-... não tem sustentação legal?”.

Perante a facticidade demonstrada, o Tribunal recorrido concluiu: “Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação da R. e parcialmente procedente a apelação do A. e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, julgando-se parcialmente procedente a ação, e condena-se a R., BB – COMPANHIA DE SEGUROS, SA a pagar ao A. AA:

a) A quantia de € 9.298,00 relativa a indemnização pela perda total do veículo;

b) A quantia que for devida na data em que for efetuado o pagamento da quantia referida em a), calculada até essa data, à razão de € 10,00 por dia, desde o dia 8.6.2015, de que já está vencido até à data da citação o montante de € 4.530,00 (correspondente a 453 dias).

c) Os juros de mora, à taxa legal, relativos à quantia referida em a) e à quantia de € 4.530,00 referida em b), contados desde a citação, até integral pagamento. 

Custas da apelação do A. e da apelação da R., por um e por outro, na proporção do decaimento. Custas da ação na proporção do decaimento.”

As questões que neste segmento do recurso se colocam, recortadas das conclusões apresentadas pela Recorrente/BB - Companhia de Seguros, S.A., identificam-se (à excepção da impugnação da decisão de facto e respectivas consequência jurídicas) com aqueloutras já colocada ao Tribunal recorrido, que julgou parcialmente procedente a apelação da Ré, e parcialmente procedente a apelação do Autor, alterando, assim, a sentença recorrida, julgando parcialmente procedente a acção.

O Tribunal a quo, problematizou, considerando:

“Somos chamados a decidir as seguintes questões:

1. Do recurso da R.:

a) Nulidade do contrato de seguro;

b) Erro de julgamento na decisão em matéria de facto;

c) Consequência jurídicas da alteração daquela decisão;

d) Desconto do valor do salvado na indemnização por perda total do veículo.

2. Do Recurso do A.:

d) O seguro facultativo e a atribuição de indemnização por privação do uso do veículo.”

O aresto recorrido evidencia os conceitos e institutos jurídicos atinentes à causa, sendo que não encontramos dificuldade em entender o processo intelectivo do Tribunal a quo que decidiu com propósito e segurança.

O Tribunal recorrido, acompanhando, com critério, o objecto dos recursos interpostos, e ao formular as questões que importava apreciar, não deixou de as sustentar.

Assim, o Tribunal a quo, começou por enunciar, com utilidade, a facticidade relevante para apreciação da apelação, conhecendo, de seguida, da invocada nulidade do contrato de seguro, sendo que aprovamos a exegese consignada no aresto apelado, respigando do acórdão os seguintes considerandos:

“Até maio de 2015, o A. foi o proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ...-FJ-....

Nessa data, estava em vigor o contrato de seguro celebrado entre a R. e CC, titulado pela apólice 96…62, pelo qual foi transmitida para a R. a responsabilidade civil emergente da circulação daquele veículo para a reparação de danos corporais e para a reparação de danos materiais, bem como a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento.

Nesse contrato de seguro, o A. figura como condutor habitual.

(…) Resultou não provado que o A. fosse utilizador exclusivo do veículo FJ e que, aquando da apresentação da proposta de seguro, a tomadora CC não informou a R. que estava a efetuar o seguro em nome de outrem” donde concluiu, e bem, “Estamos, pois, perante uma situação em que o proprietário do veículo não é o tomador do seguro nem nele figura como segurado, mas apenas como condutor habitual, sendo sua tomadora CC. No entanto, é o A. que, por via da ação, aciona o contrato de seguro facultativo contra o segurador por danos próprios no veículo.”

Posto isto, o Tribunal apelado sublinha a concreta questão, objecto do recurso, e discorre, com desenvoltura e acerto, sobre o respectivo enquadramento jurídico, afirmando, com propriedade:  

“A questão é saber se, nestas condições, o contrato deve ser considerado nulo, por falta de interesse digno de proteção legal do A. relativamente ao risco coberto, nos termos do art.º 43º, nº 1, da Lei do Contrato de Seguro (LCS).

(…) Se no contrato de seguro é necessariamente parte o segurador e o tomador, nem sempre o segurado coincide com este último. O segurado, enquanto pessoa que se situa dentro da esfera de proteção direta e não meramente reflexa do seguro, surge muitas vezes no contrato como a pessoa por conta da qual o tomador celebra o contrato. Nas situações mais simples, o segurado será o próprio tomador, mas noutros casos poderá haver um ou mais terceiros segurados, justamente as pessoas que, não tendo contratado o seguro, ficam por ele cobertas.  

O risco é, evidentemente, o elemento nuclear do seguro: não há seguro sem risco.

(…) O que, no caso, se discute é a validade de um contrato de seguro de danos na sua cobertura facultativa, relativa a danos materiais ocorridos no veículo FJ por choque, colisão e capotamento, contratados entre a CC e a R.

Na perspetiva da R., o A. não foi tomador nem é segurado no contrato de seguro e, como tal, não tem um interesse digno de proteção legal tutelado pelo contrato.

(…) Dispõe aquele art.º 43º, sob o nº 1, que “o segurado deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato”.

É esta uma regra legal imperativa (art.º 12º da LCS).

Segundo o nº 2 do mesmo artigo, “no seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros”.

A existência de um interesse segurável constitui, com efeito, um dos princípios fundamentais do direito do contrato de seguro. “O interesse no seguro não é um simples aspecto particular do regime jurídico do contrato de seguro, é um elemento essencial, do qual depende a validade do contrato; e essa essencialidade do interesse manifesta-se, além do mais, na natureza absolutamente imperativa da disposição (art. 12.°) (…) é configurado como a relação que liga uma pessoa ao objecto desse interesse (…) O interesse apresenta, assim, uma dupla dimensão: por um lado é a relação entre um sujeito e o objecto desse interesse [v.g. art. 125.°, n.ºs 2 e 3], e, por outro lado, é o valor pecuniário (do interesse) exposto ao risco”.

(…) O interesse será a relação económica existente entre um sujeito (o segurado) e um bem exposto ao risco, a qual assumirá uma feição jurídica, na medida em que releva a relação jurídica que lhe está subjacente.

(…) É fundamental chamar agora à colação o art.º 47º da LCS, segundo o qual: “1 - No seguro por conta própria, o contrato tutela o interesse próprio do tomador do seguro. 2 - Se o contrário não resultar do contrato ou do conjunto de circunstâncias atendíveis, o seguro considera-se contratado por conta própria.

De fundamental, emerge do nº 1 que, no seguro por conta própria, o tomador do seguro é também o segurado e o beneficiário do contrato, pelo que o contrato traduz a coincidência de três posições jurídicas, a de tomador do seguro, segurado e beneficiário. Do nº 2 resulta uma presunção ilidível de seguro por conta própria, tal como decorria já do ora revogado art.º 428°, § 2°, do Código Comercial. A diferença essencial reside na circunstância de, para além da apólice, se dever agora também perscrutar o conjunto de circunstâncias atendíveis, o que resulta da desnecessidade de observância de forma especial no contrato de seguro (art.º 32° da LSC).

Tendo sido tomador do seguro CC, caso nada resulte em contrário do contrato ou do conjunto de circunstâncias atendíveis inerentes à sua celebração, o seguro considera-se firmado por conta própria da tomadora que, assim, é também a segurada e beneficiária do contrato.

Deve notar-se que, quando o tomador do seguro atue por conta do segurado, no designado seguro por conta de outrem, é essencial que o segurado seja identificado na apólice (art.º 37°, n° 2, al. b), da LCS), sob pena de o seguro se considerar contratado por conta própria (art.º 47.°, nº 2, da mesma lei) e, consequentemente, inexistindo interesse no seguro por parte do tomador, o seguro ser nulo.”

Revertendo ao caso sub iudice o Tribunal recorrido concluiu, nesta particular questão em apreciação:

“Retomando agora a análise dos factos relevantes, constata-se que o A. figura nos termos da apólice como condutor habitual do veículo. Não há ali qualquer outra referência à sua pessoa, designadamente à qualidade de segurado. Também não estão provadas quaisquer circunstâncias que possam relevar decisivamente no sentido afastar que a constituição do seguro por conta própria (da tomadora).

Temos para nós que não é por o A. ter sido identificado no seguro (apenas) como condutor habitual e se ter demonstrado agora que foi o proprietário do FJ e de o ter utilizado habitualmente com a sua companheira no desenvolvimento da vida doméstica que permite concluir que a tomadora constituiu a relação de seguro por conta dele.

Havemos, assim, de considerar que a CC é tomadora e segurada por conta própria no contrato de seguro. Porém, não sendo sua proprietária ou sequer detentora, não se conhecendo qualquer titularidade ou mesmo simples utilização do FJ, não tem ela um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto. (…) Sendo segurado quem não corre qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil em caso de acidente automóvel, faltará o interesse segurável, pelo que o contrato estará ferido de nulidade.

Respondendo, assim, afirmativamente, à enunciada primeira questão, o Tribunal recorrido, não deixou de realçar, de seguida, com vista a adequar a declarada nulidade do articulado contrato de seguro ao caso sub iudice, que importa equacionar se, a Ré/Seguradora poderá opor a reconhecida nulidade do ajuizado contrato de seguro, ao Autor, declaradamente lesado no acidente.

“As seguradoras são a parte mais forte na relação de seguro. O contrato de seguro é normalmente um contrato de adesão, com exceção das condições particulares de cada apólice, apenas destinadas à identificação do tomador, segurado e beneficiários, assim como a regular algumas particularidades e condições relacionadas com eles.

O tomador, para a celebração do contrato, está obrigado a prestar declarações exatas relativamente às circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador (art.º 24º, nº 1, da LCS), designadamente sobre o bem que pretende segurar e sobre as pessoas dos interessados no seguro, mas é dever do segurador esclarecer o tomador e solicitar-lhe as informações que considerar necessárias à celebração do contrato e à sua vigência. Segundo o nº 2 do mesmo artigo, “o segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.° 1, bem como do regime do seu incumprimento, …”.

Nos termos do art.º 18º da LCS, “sem prejuízo das menções obrigatórias a incluir na apólice, cabe ao segurador prestar todos os esclarecimentos exigíveis e informar o tomador do seguro das condições do contrato”.

Estabelece-se, assim, a cargo do segurador um dever geral de esclarecimento e informação ao tomador do seguro que o habilite à compreensão das condições do contrato, concretizando ainda os elementos de informação a constar obrigatoriamente de documento escrito disponibilizado ao tomador do seguro, antes de este se vincular.

 (…) É absolutamente normal que o segurador ou o mediador, para uma boa compreensão e determinação do interesse do tomador, lhe solicite a exibição de documentos como a carta de condução, o título de registo de propriedade, o certificado de inspeção periódica obrigatória, o livrete da viatura, o documento único automóvel e o registo do veículo com identificação do proprietário.

O dever de boa fé impõe-se a ambos os contratantes.

(…) Não é razoável nem aceitável que o segurador, ao celebrar o contrato de seguro, se desinteresse completamente de saber quem é o proprietário do veículo, em que qualidade e com que interesse age o tomador, designadamente se é ele o seu dono, se é apenas locatário ou ainda se o detém a qualquer outro título, muito especialmente quando fica a saber, por indicação do tomador, e anota na apólice, que é outra pessoa o seu condutor habitual.

(…) Conhecida a condução habitual do A., a R. deveria ter questionado a tomadora sobre quem era o proprietário do FJ, que interesse tinha ela no seguro, e se queria segurar o veículo no âmbito dessa mesma condução, informando-a de que seria conveniente considerar o A. como segurado. Em vez disso, a R. contratou a apólice com quem não tinha qualquer interesse no seguro.”

Tudo visto, remata o Tribunal a quo no aresto em escrutínio:

“ (…) A inobservância da diligência mínima, com vista ao exato conhecimento do risco a que aceitou dar cobertura, implica, por aplicação dos princípios da boa fé e do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprio, que aquela deverá suportar as inerentes consequências, não podendo, para se desvincular da execução do contrato, escudar-se posteriormente numa nulidade do contrato para a qual, com a sua omissão, contribuiu e teve oportunidade (e o dever) de evitar, solicitando informação essencial e mais detalhada à tomadora.”

No que respeita à segunda questão trazida ao conhecimento deste Tribunal ad quem, qual seja, saber se tem sustentação legal, a condenação da Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., no pagamento de uma indemnização ao Autor/AA, em razão da privação de uso do veículo automóvel, sua propriedade, e interveniente no ajuizado acidente de viação, o Tribunal a quo começou por fazer o enquadramento fáctico da questão, mencionando:

“O A. pediu a condenação da R. a pagar-lhe, a título de indemnização, o montante de € 50,00 diários, correspondente aos danos que sofreu com a privação do uso do seu veículo desde a data do acidente até ao pagamento da indemnização devida, liquidando em € 25.950,00 o valor em dívida à data da interposição da ação.

(…) Na apólice em causa, de seguro facultativo, não foi contratada a cobertura por privação do uso do veículo.”

Com vista a responder à pretensão jurídica arrogada, aliás, não reconhecida em 1.ª Instância, o Tribunal recorrido, considerou, a propósito, e muito justamente, a nosso ver, o enquadramento jurídico, suportado em doutrina e jurisprudência que citou com parcimónia.

“Dispõe o nº 2 do art.º 130º relativo ao seguro de coisas, que “o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado”.

Nestes casos, o regime supletivo é o da não cobertura.

O subsequente nº 3 determina que o disposto naquele nº 2 se aplica igualmente quanto ao valor de privação de uso de veículo. Tal significa que, ao menos por regra, no seguro facultativo, o segurador só responde quanto ao valor da privação do uso de veículo se tal for contratado.

No caso não foi.”

Assim, numa primeira abordagem à questão enunciada, o Tribunal recorrido concluiu que: “Por se situar fora da cobertura contratada, e não tendo o segurado pagado os prémios correspondentes a uma cobertura de privação do uso do veículo que o contrato podia prever (e não previu), em princípio, seria injusto e violaria o contrato, a reparação desse dano” adiantando, porém, de seguida que:

“É o (eventual) atraso injustificado da seguradora que está em causa. (…) A R. estava obrigada a solucionar a questão tão depressa quanto possível e com a diligência devida.

No seguro automóvel obrigatório, por exemplo, há normas específicas que impõem à seguradora especial diligência e prontidão na regularização dos sinistros (…).

Não obstante se tratar aqui de um seguro facultativo, não estando em causa o relevante interesse de terceiros tutelado no seguro obrigatório, a celeridade e a colaboração honesta e leal na resolução do sinistro, que se impõem entre o segurador e o tomador, o segurado ou o beneficiário, são deveres que se justificam também neste tipo de contrato por só assim se poderem tomar as medidas necessárias a minorar os prejuízos e a cumprir adequadamente os fins contratuais. Quanto mais depressa se encontre uma solução justa para o caso, tanto melhor.

(…) A boa-fé e os princípios gerais de conduta de mercado, consignados no Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de abril, conduzem as empresas de seguros a garantir uma gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, agindo com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos.”

Regressando ao caso sub iudice divisamos no aresto em escrutínio:

 “(…) as empresas seguradoras devem estar e estão normalmente preparadas, através de funcionários especialistas ou de prestadores de serviço, para dar uma resposta célere ou em tempo razoável também na instrução e decisão dos seus processos, assim cumprindo o desígnio legal.

(…) Apesar de alguma complexidade ligada à suspeita de fraude e ao modo como o acidente se deu, dois meses, a contar da carta de 7 de abril de 2015 seria um período de tempo suficiente e razoável para a realização das necessárias diligências de averiguação por parte da seguradora, mesmo com realização de perícias. Daí que, a partir de 8 de junho de 2015, tenhamos que considerar a existência de um atraso injustificado da R. na decisão de assunção ou não assunção da responsabilidade.

A R. não provou ter dado qualquer explicação à tomadora ou ao segurado durante os quase cinco meses que mediaram o envio das cartas de abril e de agosto.”

Donde, sustentou o Tribunal a quo que “(…) Aquele atraso injustificado aponta para uma quebra do equilíbrio contratual, com violação pela seguradora do princípio da boa fé no cumprimento de deveres acessórios de colaboração intersubjetiva, que se manifestam na necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adotar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal, como seja no cumprimento de deveres de informação e de pagamento atempado da indemnização. Tal atraso irrazoável acarretou dano concomitante: o não pagamento de uma indemnização que o A. integraria, no devido tempo, no preço de aquisição de outro veículo automóvel. Note-se que está em causa a substituição de um veículo (totalmente perdido) por outro que o A. poderia ter adquirido, aproximando-se assim, o mais breve possível da situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o dano.

(…) Não há indemnização sem dano. Este é um dos pressupostos indispensáveis da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar (art.ºs 483º e seg.s e 562º e seg.s do Código Civil). O lesante ou a seguradora responsável, deve reparar o dano de modo a colocar o lesado na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão.

(…) A privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. A privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito.

(…) Pretende o A. que a indemnização pela privação do uso seja contabilizada à razão de € 50,00 por dia, por ser o valor de aluguer de um veículo utilitário novo. Mas, na verdade, nunca o alugou, nunca suportou tal despesa. (…) o dano que advém da simples privação do uso do veículo é suscetível de indemnização calculada pelo recurso à equidade.”

Tudo visto, rematou o Tribunal recorrido no aresto em escrutínio:

“Assim, recorrendo à equidade nos termos do art.º 566º, nº 2, do Código Civil, e atendendo ao conjunto das circunstâncias relativas à privação do uso do veículo, designadamente a falta que fez e a forma como foi substituído, temos como equilibrado compensar a A. pelo valor diário de € 10,00.”

Uma vez subsumidos os factos adquiridos processualmente, o Tribunal a quo dirimiu o conflito trazido a Juízo, conhecendo dos recursos de apelação interpostos, proferindo acórdão que, no essencial, aprovamos, sem deixarmos de sublinhar, no que à primeira questão a resolver respeita – “O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, concretamente, (a)) o ajuizado contrato de seguro, padece de nulidade?” - que o contrato de seguro é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante o pagamento por outrem de determinado prémio, a indemnizá-la ou a terceiro pelos prejuízos causados decorrentes da verificação de certo evento de risco, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Novembro de 2005, in, www.ITIJ/Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.

O contrato de seguro é um negócio formal, que tem de ser reduzido a escrito chamando-se apólice ao documento que o consubstancia e dela devendo constar todas as condições estipuladas entre as partes.

Nos termos do direito substantivo civil a apólice deverá conter os riscos contra que se faz o seguro, outrossim, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, a par de todas as condições estipuladas entre as partes.

A apólice é, pois, o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas, sendo que o âmbito do contrato, consiste na definição das garantias, riscos cobertos e riscos excluídos.

Como sabemos, na fixação do conteúdo de qualquer negócio jurídico interessa, antes do mais, analisar os termos do acordo que os respectivos outorgantes firmaram ao abrigo da liberdade contratual ditada pelo art.º 405º do Código Civil, termos esses que, no contrato de seguro, reiteramos, terão de constar da respectiva apólice, posto que, esta exigência legal de documento, sublinhamos, constitui elemento do contrato, isto é, formalidade ad substantiam (art.º 364º n.º 1 do Código Civil), neste sentido, e sobre a questão, Moitinho de Almeida, apud, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, página 37, bem como, Menezes Cordeiro, apud, Manual de Direito Comercial, volume, I, páginas 585 e seguintes.

Assim, da apólice deverão constar o objecto do seguro, os riscos cobertos, a vigência do contrato, a quantia segura e o prémio ajustado, importando, pois, para aferição do conteúdo do contrato, atender ao objecto do seguro e aos riscos cobertos na apólice, havendo igualmente que ter em conta as estipulações negociais que visam delimitar ou excluir certo tipo de riscos, donde, como defende, Romano Martinez, apud, Direito dos Seguros, páginas 91 e seguintes, e José Vasques, apud, Contrato de Seguro, páginas 355 e 356, o âmbito deste tipo contratual, sublinhamos, passa pela definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos.

A concretização dos riscos cobertos resultará de os mesmos serem indicados na apólice, integrada por condições gerais, especiais e particulares, ou de, pelo contrário, se evidenciarem na apólice os riscos excluídos, caso em que se considerarão cobertos todos os restantes.

Uma vez que o Autor/AA foi, até Maio de 2015, o proprietário do veículo ...-FJ-..., objecto do outorgado contrato de seguro, celebrado entre a Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. e CC, titulado pela apólice 96…2, transmitindo para aquela a responsabilidade civil emergente da circulação do identificado veículo, para a reparação de danos corporais e para a reparação de danos materiais, bem como, a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento, figurando o Autor/AA, como condutor habitual, importa dizer que estamos face a uma situação em que o proprietário do veículo não coincide com o tomador do seguro, nem nele figura como segurado, conquanto seja o Autor/AA que demanda a Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., invocando, para o efeito, o aludido contrato de seguro facultativo, reclamando indemnização por danos próprios sofridos em razão de acidente de viação em que foi interveniente o veículo ...-FJ-....

Coloca-se, assim, a questão em saber se, nestas circunstâncias, o contrato de seguro deve ser considerado nulo, por falta de relevante interesse, credor de protecção legal, do segurado, importando apreciar da validade do ajuizado contrato de seguro de danos na sua cobertura facultativa.

Estatui o art.º 43º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro) “o segurado deve ter um interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato” (n.º1), sendo que “no seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros” (n.º 2).

A existência de um interesse segurável constitui, com efeito, um dos princípios fundamentais do direito do contrato de seguro “o interesse no seguro deve ser específico, actual, lícito e de natureza económica, (…) uma vez que o contrato de seguro se destina a cobrir um risco de carácter patrimonial (…), derivado de uma relação juridicamente relevante do segurado com o objecto do seguro que origine para ele a possibilidade de extrair da coisa segura utilidades ou vantagens de natureza económica, ou de sofrer dano também económico em consequência do exercício de actividade que com ou sobre esse objecto a sua relação jurídica que o abranja lhe permita exercer. E, como é manifesto, destinando-se o contrato de seguro automóvel a transferir para a seguradora a responsabilidade do seu segurado pelo pagamento de indemnizações provocadas por ou com um veículo automóvel, a responsabilidade daquela depende da responsabilidade que sobre o segurado recaia como proprietário ou detentor legítimo do veículo seguro, pressupondo a existência da responsabilidade do mesmo segurado, e nisto consistindo o interesse dele no objecto do seguro”, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Março de 2007.

Neste mesmo aresto, também se consignou, a propósito “Como tem sido jurisprudência dominante, há que considerar que, figurando como segurado quem não corre qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil em caso de acidente automóvel, faltará o interesse segurável, pelo que o contrato estará ferido de nulidade”.

Revertendo ao caso sub iudice, uma vez que o tomador do seguro é CC, e como nada resulta em contrário do contrato, ou do conjunto de circunstâncias atendíveis inerentes à sua celebração, reconhecemos que o seguro se considera outorgado por conta própria da tomadora que, assim, é também a segurada e beneficiária do contrato (art.º 47º da Regime Jurídico do Contrato de Seguro [Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro]).

No ajuizado contrato de seguro por conta própria, o tomador do seguro é também o segurado e o beneficiário do contrato, coincidindo, numa só, as três posições jurídicas, quais sejam, tomador do seguro, segurado e beneficiário.

Adquirido processualmente que CC é tomadora e segurada por conta própria no ajuizado contrato de seguro, não sendo proprietária ou sequer detentora, do objecto do contrato de seguro, temos de reconhecer, sem reserva, como declarado no aresto em escrutínio, não ter a mesma interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, uma vez que a própria, de acordo como os factos apurados não corre qualquer risco patrimonial de responsabilidade civil em caso de sinistro do veículo ...-FJ-..., pelo que, inequivocamente lhe falta o interesse segurável, importando que o articulado contrato de seguro seja declarado nulo, nos termos do art.º 43º, nº 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro).

Reconhecendo este Tribunal de recurso, sufragando o entendimento do Tribunal a quo, a nulidade do ajuizado contrato de seguro, uma vez demonstrado a ausência de interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, por parte da tomadora do seguro, CC, cujo negócio jurídico o Autor/AA invoca, com vista a ser ressarcido dos demonstrados danos, coloca-se a questão, também abordada no aresto recorrido, que consiste em apurar se, reconhecida a nulidade do ajuizado contrato de seguro, será legitimo, a Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., beneficiar dessa mesma declaração de nulidade.

Conforme vem sendo admitido pela nossa Jurisprudência, por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2003, acessível em www.dgsi.pt, sob pena de se esvaziar de conteúdo esse instituto, sempre que, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa-fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, importará reconhecer uma situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape, consagrada no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.

Sendo a nulidade do negócio jurídico uma excepção peremptória, a sua declaração tem como consequência a absolvição total dos pedidos fundados no incumprimento pela Ré das obrigações derivadas da validade do contrato, todavia, há que indagar se a invocação e a declaração da nulidade do contrato, nas concretas circunstâncias provadas, não deve ser afastada ou paralisada, com fundamento em abuso de direito, por violar a boa-fé, nos termos do art.º 334º do Código Civil, sendo esta uma questão de direito de interesse e ordem pública, conforme, aliás, é defendido, na doutrina pelo Professor Vaz Serra, apud, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 113º, página 301, e Professor Mota Pinto, apud, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, páginas 437 e seguintes, ao sustentarem que em certos casos é ilegítimo a invocação da nulidade do negócio jurídico, podendo ser paralisada por abuso de direito.

No que tange a este particular instituto de abuso de direito, estabelece o art.º 334º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser o exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem, neste sentido, Fernando Augusto Cunha e Sá, apud, Abuso do Direito, 1973, Lisboa, páginas 164/188.

A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva.

Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, basta que se excedam esses limites.

Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso do direito consagrado no art.º 334º do Código Civil sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido.

A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar, se houve ofensa da boa-fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito, neste sentido, Professor Antunes Varela, apud, Das Obrigações em geral, 4ª edição, volume I, página 131.

A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido, neste sentido, Professor Castanheira Neves, apud, Questão de facto - Questão de direito, volume I, página 513 e seguintes, Fernando Augusto Cunha de Sá, apud, obra citada, páginas 454 e seguintes, e Professor Antunes Varela, apud, Abuso do direito, Rio, 1982.

Exige-se que o excesso cometido seja manifesto.

Os Tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso.

É esta a lição das legislações, dos autores e da jurisprudência.

O Professor Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” apud, Teoria Geral das Obrigações, página 63, o Professor Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” apud, Abuso do direito, Boletim do Ministério da Justiça nº. 85, página 253.

Para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, atender-se-á às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade.


Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei.

Há direitos acentuadamente subordinados a determinado fim, a par de outros em que se reconhece maior liberdade de actuação ou decisão ao titular (direitos potestativos, direito de propriedade, dentro de certos limites, entre outros), neste sentido, Professor Antunes Varela, obra e volume citados, página 131.

Relativamente à figura do abuso de direito, e no que ao caso trazido a Juízo respeita, importa apreciar a modalidade de venire contra factum proprium - ou Verwirkung do direito alemão ou do instituto do direito inglês designado por Stoppel (impedimento) – o qual consubstancia impedir que uma pessoa adopte uma conduta contrária a uma sua anterior quando esta última tenha criado na contraparte um estado de confiança legitimo.

A ilegitimidade do abuso do direito tem as consequências de todo o acto ilegítimo, podendo dar lugar à obrigação de indemnizar; à nulidade, nos termos gerais de direito; à legitimidade de oposição; ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade, neste sentido, Professor Vaz Serra, apud, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107º, página 25.

Atendendo a este quadro normativo, doutrinal e jurisprudencial, cumpre conjugá-lo com a facticidade demonstrada nos autos para, daí, se concluir se, uma vez reconhecida a nulidade do contrato de seguro, nas concretas circunstâncias provadas, deve, ou não, ser afastada ou paralisada aquela declaração de nulidade, com fundamento em abuso de direito, por violação do princípio da boa-fé.

Concretizemos.

Resultou provado nos autos que até Maio de 2015, o Autor/AA foi o proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ...-FJ-...; nessa data, estava em vigor o contrato de seguro celebrado entre a Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. e CC, titulado pela apólice 96…62, pelo qual foi transmitida, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ...-FJ-..., até ao limite de €5.000.000.000,00 para a reparação de danos corporais e de €1.000.000,00 para a reparação de danos materiais, bem como, a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento – à data pelo capital de €10.900,00 e sem franquia a cargo do segurado - tudo conforme condições particulares e gerais juntas a fls. 42 e segs. com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido; neste contrato de seguro o aqui Autor/AA figura como condutor habitual.

Como sabemos, com vista a outorgar um contrato de seguro, o respectivo tomador, nos termos do art.º 24º, nº 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro), está obrigado a prestar declarações exactas relativamente às circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, concretamente, sobre o bem que pretende segurar e sobre as pessoas dos interessados no seguro.

Atendendo à previsão contida no n.º 4 do art.º 24 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro) “o segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.° 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais” em conjugação com o estatuído no art.º 18º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro) “sem prejuízo das menções obrigatórias a incluir na apólice, cabe ao segurador prestar todos os esclarecimentos exigíveis e informar o tomador do seguro das condições do contrato”, impõe-se ao segurador esclarecer o tomador e solicitar-lhe todas as informações que considerar necessárias à celebração do contrato e à sua vigência, daqui resultando que antes mesmo da outorga do contrato de seguro, o segurador tem a seu cargo um dever geral de esclarecimento e informação ao tomador do seguro que o habilite à compreensão das condições do contrato, concretizando ainda os elementos de informação, a constar obrigatoriamente de documento escrito, disponibilizado ao tomador do seguro.

Cotejados os enunciados normativos do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro), resulta inequívoco que o legislador teve a preocupação de estabelecer uma simetria de obrigações entre o dever do tomador do seguro de prestar informações verdadeiras e o dever da seguradora de escrutinar as declarações prestadas pelo tomador do seguro, pelo menos, as relevantes para apreciação do risco.

Conforme prevenido no art.º 37º, nº 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro), devem constar da apólice, a identificação completa dos documentos que a compõem e a identificação e o domicílio das partes, bem como, justificando-se, os dados do segurado e do beneficiário, donde, cremos, não ser admissível nem tolerável que a seguradora, ao celebrar o contrato de seguro, manifeste alheamento em saber quem é o proprietário do bem, objecto do contrato de seguro, pois, sempre se imporia que nos casos em que se verifique desencontro entre o proprietário do bem a segurar e o tomador do seguro identificado, em razão do equilíbrio de deveres entre o tomador do seguro de prestar informações verdadeiras e o dever da seguradora de escrutinar as declarações prestadas pelo tomador do seguro, que a seguradora indague a qualidade e com que interesse age o tomador, na medida em que estas circunstâncias são relevantes para apreciação do risco.

Outrossim, adquirido processualmente que o veículo segurado era conduzido, habitualmente, pelo Autor/AA, tendo a Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. conhecimento deste facto, impunha-se que a Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. devesse ter colhido da tomadora/CC, elementos pormenorizados, sobre quem era o proprietário do veículo segurado, qual o seu interesse na celebração do contrato de seguro, e, ao constatar o desencontro entre a identidade do proprietário do bem a segurar e o tomador do respectivo seguro, impunha-se que informasse a tomadora/CC da pertinência em considerar o proprietário do veículo objecto do contrato de seguro, como segurado.

A Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. ao deixar de diligenciar no sentido consignado, e a que estava obrigada, conforme resulta dos deveres de informação do segurador, prevenidos no n.º 4 do art.º 24 e art.º 18º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com versão actualizada pela Lei n.º 147/2015, de 9 de Setembro), outorgando, mesmo assim, a apólice com quem não tinha interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, conforme já adiantamos, deixou de apurar as circunstâncias relevantes para apreciação do risco, com vista a prevenir o que se pode considerar um mínimo de exigência necessário à perfeição do contrato, por culpa própria, e ao arrepio dos deveres que se lhe impunha, violando o princípio da boa-fé.

A Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., com o comportamento descrito, criou no Autor/AA a convicção de que poderia circular com o veículo ...-FJ-..., nas circunstâncias em que o fazia, sem que se manifestasse preocupado com qualquer situação que demonstrasse a ausência de interesse digno de protecção legal relativamente ao risco coberto, por parte da tomadora do seguro, CC.

Na situação sub iudice subsumidos os factos, conclui este Tribunal ad quem, uma vez perfilhado o enquadramento jurídico que vimos de discorrer que, na falta de cumprimento, por parte da Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., da diligência exigível para o conhecimento do risco a que aceitou dar cobertura, violando os princípios da boa-fé, não lhe é legítimo poder eximir-se ao cumprimento do contrato de seguro outorgado, uma vez que, sublinhamos, o desconhecimento das circunstâncias relevantes para apreciação do risco, resultou da sua falta de diligência.

O reconhecido abuso do direito tem como consequência, a paralisação de tal direito, isto é, em virtude do exercício do direito à invocação da nulidade do contrato, ser abusivo, o castigo do abusador é a proibição de exercer o direito, e, como tal, manter-se a eficácia do contrato ajuizado, importando, pois, afirmar que, perante a procedência da excepção invocada e reconhecida de abuso de direito, deve ser mantido, neste segmento, o destino da presente demanda, reconhecido no Tribunal a quo.

Na improcedência das alegações trazidas à discussão, em atenção ao consignado enquadramento de facto e de direito, não reconhecemos às mesmas, virtualidades no sentido de se deixar de reconhecer o exercício abusivo do direito na arguição da nulidade do contrato de seguro ajuizado, mantendo, assim, a validade do negócio ajuizado, nos termos e pelas razões consignadas.


No que tange à segunda questão que cumpre conhecer em revista – “O Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica dos factos adquiridos processualmente, (b)) a condenação da Ré na quantia referente à privação de uso do veículo ...-FJ-...é não tem sustentação legal?” – temos de convir que o enquadramento jurídico, ora em escrutínio, também merece a nossa confirmação, o que não invalida que tecemos algumas considerações a tal respeito, reforçando a decisão recorrida.  

Resulta dos autos que o Autor/AA pediu a condenação da Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. a pagar-lhe, a título de indemnização, o montante de €50,00 diários, pelos danos que sofreu com a privação do uso do seu veículo, desde a data do acidente até ao pagamento da indemnização devida, liquidando em €25.950,00 o valor em dívida à data da interposição desta demanda.

Em 1.ª Instância foi negada a indemnização, com o argumento de que a cobertura facultativa do seguro não prevê a reparação da privação do uso.

Todavia, em ordem a responder à pretensão jurídica arrogada pelo Autor/AA, o Tribunal recorrido, considerou, a propósito: “Dispõe o n.º 2 do art.º 130º relativo ao seguro de coisas, que “o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado”.

Nestes casos, o regime supletivo é o da não cobertura. O subsequente nº 3 determina que o disposto naquele nº 2 se aplica igualmente quanto ao valor de privação de uso de veículo. Tal significa que, ao menos por regra, no seguro facultativo, o segurador só responde quanto ao valor da privação do uso de veículo se tal for contratado. No caso não foi.”

E bem.

Vejamos.

Decorre do enquadramento jurídico perfilhado e consignado no presente aresto, inexistir dúvida do dever da Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A. em responder perante o Autor/AA, nos termos do contrato de seguro outorgado com a tomadora/CC, vinculando-se as partes no seu cumprimento integral, nos termos em que nele se regularam os respectivos interesses e em respeito das normas legais imperativas.

Conforme já adiantamos, o contrato de seguro é um negócio formal, que tem de ser reduzido a escrito chamando-se apólice ao documento que o consubstancia, e dela devendo constar todas as condições estipuladas entre as partes, sendo que a apólice deverá conter “os riscos contra que se faz o seguro”, bem como, “em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como, todas as condições estipuladas entre as partes”.

A apólice é, pois, o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas, sendo que o âmbito do contrato, consiste na definição das garantias, riscos cobertos e riscos excluídos.

Como sabemos, na fixação do conteúdo de qualquer negócio jurídico interessa, antes do mais, analisar os termos do acordo que os respectivos outorgantes firmaram ao abrigo da liberdade contratual, termos esses que, no contrato de seguro, reiteramos, terão de constar da respectiva apólice que constitui elemento do contrato.

A concretização dos riscos cobertos resultará de os mesmos serem indicados na apólice, integrada por condições gerais, especiais e particulares, ou de, pelo contrário, se evidenciarem na apólice os riscos excluídos, caso em que se considerarão cobertos todos os restantes.

Resulta da ajuizada apólice que não foi contratado a assunção de responsabilidade da seguradora pela privação do uso do veículo seguro (...-FJ-...), sendo que esta garantia também não está coberta pelo seguro obrigatório nos termos do n.º 1 do art.º 4º do Decreto-Lei n.º 291/2007.

Não tendo o tomador pago os prémios correspondentes a uma cobertura de privação do uso do veículo que o contrato podia contemplar, mas que não previu, a reparação desse dano, a esse título, seria, naturalmente, injusta.

Todavia, já o atraso injustificado da seguradora na gestão célere e eficiente do processo de sinistro, impondo-lhe que aja com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, poderá responsabilizá-la ao pagamento de ajustada indemnização pela privação do uso do veículo, ao abrigo do disposto nos artºs. 562º e seguintes do Código Civil, sendo esta precisamente a questão que se debate nos presentes autos.

O aresto em escrutínio enunciou os factos relevantes para apreciação do atraso injustificado da seguradora na gestão célere e eficiente do processo de sinistro, em debate, retirando conclusões, sufragadas por este Tribunal ad quem e que passamos a considerar:

“O acidente ocorreu no dia 31 de março de 2015, à noite, sendo que cerca de uma semana depois, no dia 7 de abril, a Ré enviou uma carta à tomadora do seguro, onde qualificou o dano como sendo de perda total do veículo em virtude da excessiva onerosidade da reparação face ao valor do veículo na data do sinistro, outrossim, informou que regularizaria a situação de acordo com as garantias contratualmente estabelecidas, porém, sem prejuízo do resultado de diligências ainda em curso necessárias ao esclarecimento cabal das circunstâncias do acidente e seu enquadramento, após o que voltaria a contactar a tomadora, tendo consignado, ademais, “Sem prejuízo do que antecede e sem que tal envolva qualquer compromisso ou reconhecimento de responsabilidade, informamos que de acordo com as garantias contratualmente estabelecidas, o valor actualmente seguro é de € 10900, sendo a franquia no valor de € 0” escreveu ainda naquela missiva: “Não podemos deixar de referir as vantagens da rápida alienação do salvado a fim de se evitarem eventuais situações de desvalorização e/ou custos adicionais relacionados com o parqueamento do veículo na oficina, custos estes que, como compreenderá, não poderão de todo ser imputados a esta seguradora”.

A R. identificou uma potencial empresa adquirente do salvado do Ford Focus, considerando ter oferecido o melhor preço.

O A. vendeu livremente o veículo no dia 27 de maio à empresa indicada pela R.

No dia 26 de agosto, ou seja, cerca de 5 meses depois do sinistro (três meses após a venda do salvado), a R. comunicou à tomadora do seguro que não assumia a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do acidente, alegando que estes não se apresentam compatíveis com a dinâmica do acidente participado, referindo nessa missiva que fora então concluída a instrução do processo na seguradora.

A Ré fundou a recusa de responsabilidade no relatório técnico de reconstrução do acidente, junto aos autos.

Como decorre da facticidade consignada, a Ré sujeitou sempre o pagamento de indemnização por danos a uma averiguação necessária sobre as circunstâncias do acidente.

Em cerca de 7 dias, fez o que podia ser feito: avaliar o dano e a indemnização e disso dar notícia à tomadora do seguro.

Se necessitava de averiguar melhor as circunstâncias do sinistro, enquanto direito que lhe assistia, reservou para momento posterior pronunciar-se sobre a responsabilidade e disso deu conhecimento à tomadora do seguro naquela primeira missiva, de 7 de abril. 

A avaliar pelo relatório que apresentou, a averiguação instrutória revestiu para a seguradora alguma complexidade, tendo aquele sustentado uma posição de rejeição de responsabilidade.

Não obstante, as empresas seguradoras devem estar e estão normalmente preparadas, através de funcionários especialistas ou de prestadores de serviço, para dar uma resposta célere ou em tempo razoável também na instrução e decisão dos seus processos, assim cumprindo o desígnio legal.

(…) Apesar de alguma complexidade ligada à suspeita de fraude e ao modo como o acidente se deu, dois meses, a contar da carta de 7 de abril de 2015 seria um período de tempo suficiente e razoável para a realização das necessárias diligências de averiguação por parte da seguradora, mesmo com realização de perícias. Daí que, a partir de 8 de junho de 2015, tenhamos que considerar a existência de um atraso injustificado da R. na decisão de assunção ou não assunção da responsabilidade.

A R. não provou ter dado qualquer explicação à tomadora ou ao segurado durante os quase cinco meses que mediaram o envio das cartas de abril e de agosto.”

Constitui dano indemnizável toda a perda, prejuízo ou desvantagem resultante da ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.”

Na verdade, o lesante deve reparar todos os prejuízos causados ao lesado que merecerem a tutela do direito de modo a colocá-lo na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão, querendo significar, no que ao caso sub iudice respeita, que o período de reparação, mesmo atraso da reparação ou substituição que não seja imputável ao Autor, deve ser suportado por quem responde pelos danos sofridos pelo lesado.

O dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo susceptível de indemnização, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art.º 1305º do Código Civil, cabendo, assim, pela mera violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.

Este entendimento vem sendo sufragado pela Doutrina e pelos nossos Tribunais superiores.

A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.


Abrantes Geraldes refere que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização” apud, Indemnização do Dano Privação do Uso, páginas 39-41.

Face aos artºs. 562º a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente, pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma actividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no artº. 1305º, do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender, neste sentido, Abrantes Geraldes, apud, obra citada páginas, 39-41.

Na Jurisprudência, por todos, refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Fevereiro de 2008, apud, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, Tomo I, pág. 90, “constitui princípio assente em direito, que a privação ilícita do uso de qualquer bem constitui um dano de que o lesado deve ser compensado (…) a mera indisponibilidade de um veículo, independentemente de, da mesma, terem resultado para o lesado prejuízos económicos quantificados, é passível de indemnização, a calcular nos termos prescritos no artº. 566° nº. 3, do Código Civil, como, aliás, vem sendo sufragado na doutrina” dando-se nota, naquele aresto, da atinente orientação doutrinária - neste sentido, Professor Menezes Leitão, apud, Direito das Obrigações, vol. I, página 317, Cadernos de Direito Privado, anotação do Professor Júlio Gomes, nº. 3, página 62 e Temas do Desembargador Abrantes Geraldes, volume I, páginas 90 e 91.

Pese embora alguma Jurisprudência tenha decidido no sentido do reforço das exigências de prova dos prejuízos emergentes da paralisação do veículo, continuamos a entender que se nos afigura que as circunstâncias que caracterizam este tipo de situações, nomeadamente, as atinentes às dificuldades de prova de alguns factos (de que são exemplo o deixar de passear, ou não ter praticado variadas acções por não poder dispor de automóvel), em conjugação com os despropositados benefícios que esta interpretação traz para as seguradoras (reconhecidamente a parte mais forte na relação contratual de seguro), as quais se sentem mais desobrigadas de fornecer um veículo de substituição, conduzem-nos a perfilhar a Jurisprudência tradicional, aliás maioritária.

Quando a privação do uso recaia sobre um veículo danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos.

Assim, o verificado injustificado atraso, trouxe dano para o Autor, na medida em que o não pagamento de uma indemnização que integraria, no devido tempo, no preço de aquisição de outro veículo, uma vez que está em causa a substituição do veículo ...-FJ-... (perda total), por outro que o Autor poderia ter adquirido, aproximando-se assim, o mais breve possível da situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o dano, impedindo-o de adquirir um veículo substitutivo, tendo ficado privado do respectivo uso desde o dia 8 de Junho de 2015 (data considerada como termo inicial relevante, pelo Tribunal a quo, considerando que a gestão do processo do sinistro, deveria ter ficado concluído no prazo de 2 [dois] meses, após, o sinistro [o que se julga razoável]), até à data em que lhe for paga a indemnização pela perda do total do veículo, …-SJ-….

Demonstrado o dano, e sendo dano que advém da simples privação do uso do veículo, na falta de quantificação objectiva, é legitimo o recurso à equidade para fixar a respectiva compensação, conforme, aliás, assumido nos termos do aresto recorrido, cujos termos e valores encontrados, sufragamos, uma vez que o valor compensatório a atribuir foi calculado com base numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida e que não colide com critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma que não põe em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.

Tendo presente a figura da equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenha em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer o valor aquisitivo do dinheiro na actualidade, entendemos, não merecer reparo o valor fixado pelo Tribunal a quo.


Pelo exposto, considerando o quadro normativo jurisprudencial e doutrinal que acabamos de enunciar, conjugado com a facticidade demonstrada nos autos, entendemos que não merece censura o aresto posto em crise pela Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A., reconhecendo-se, assim, a falta de fundamento das alegações de recurso que ora fomos chamados a conhecer, não tendo as mesmas, quaisquer virtualidades no sentido de alterarem o destino já traçado na presente demanda.


IV. DECISÃO


Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam improcedente o recurso, e, consequentemente, nega-se a revista interposta pela Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A.., confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente/Ré/BB - Companhia de Seguros, S.A.

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Novembro de 2018.


Oliveira Abreu (Relator)

Ilídio Sacarrão Martins

Maria dos Prazeres Beleza (vencida, de acordo com declaração junta)

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“Vencida. Em breve síntese, concederia provimento ao recurso por entender que não há prova que permita sustentar o exercício abusivo do direito da ré de invocar a nulidade do contrato de seguro, por falta de interesse da tomadora (nº 1 do artigo 43º da Lei do Contrato de Seguro). Suponho ainda que, mesmo que estivesse provada violação do dever de informar por parte da seguradora, que me parece não estar, a sanção seria a responsabilidade civil, nos termos gerais (cfr. nº 4 do artigo 24º da mesma Lei).