Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
991/20.5YRLSB.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
RECONHECIMENTO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
ARBITRAGEM INTERNACIONAL
DIREITO INTERNACIONAL
REGIME APLICÁVEL
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
CASO JULGADO
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Da sentença proferida em açcão especial de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira há lugar a recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do estatuído no arº 671º, nº1, do CPC, dado que a Relação actua, excepcionalmente, não como tribunal de recurso, mas como órgão jurisdicional que, em 1.ª instância, apreciou o objecto do litígio.

II. As normas da Convenção de Nova Iorque (CNI) – Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras – são normas de direito internacional cuja primazia e aplicação   preferencial   em   detrimento   do   direito interno (ut art.   8.º   da   Constituição   da República Portuguesa) é expressamente reconhecida na Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14-12, ut art. 55.º).

III. Daí que o disposto nos preceitos constantes do Capítulo X da LAV, sobre o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, tenha um âmbito de aplicação residual (aplicando-se essencialmente às sentenças arbitrais oriundas de Estados que não ratificaram a Convenção de Nova Iorque e com os quais Portugal não tenha celebrado outras convenções internacionais nesta matéria).

IV. Uma sentença arbitral é obrigatória quando já não for suscetível de qualquer recurso ordinário e, por isso, se tenha tornado firme com efeitos de caso julgado, de modo idêntico ao que é próprio das decisões judiciais definitivas, ou seja, transitadas em julgado segundo a lei do país em que a sentença arbitral foi proferida.

V. Deste modo, é admissível um pedido de reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira que já não seja suscetível de recurso ordinário, embora possa ainda estar em tempo a formulação de um recurso extraordinário ou de um pedido de anulação, dado que, designadamente, este último não constitui um recurso, mas uma ação constitutiva própria.

VI. Assim, no regime previsto na CNI, a pendência do recurso de anulação da sentença arbitral não é impeditiva da procedência da acção de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira, nos tribunais portugueses [o que resulta da conjugação dos fundamentos de recusa de reconhecimento e a execução da sentença previstos no art. V (alínea e) do n.º 1 ) com o regime previsto no artigo VI da Convenção (se a CNI concede o poder discricionário de “poder” tomar as medidas previstas neste artigo VI, também admite o caso de as mesmas não serem tomadas ou serem revogadas, prosseguindo a acção de reconhecimento da sentença, mesmo antes do pedido de anulação conhecer decisão definitiva no país de origem da decisão – poder discricionário este que, no nosso direito interno, se encontra concretizado no n.º 2 do art. 56.º da LAV)].

VII. A ordem pública internacional avalia-se caso a caso e à luz dos efeitos jurídicos que uma certa situação pode gerar, sendo um termo rigoroso que deve ser utilizado para salvaguardar casos extremamente graves, visando “impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, conduza, no caso concreto, a um resultado absolutamente intolerável para o sentimento ético-jurídico dominante, ou lese gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local.

VIII. A confirmação da sentença arbitral proferida com violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, conduz a um resultado incompatível com a ordem pública internacional do Estado português.

IX. No que respeita ao fundamento de recusa de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras consubstanciado na contrariedade com a ordem pública internacional, a nossa lei interna (art. 56.º, n.º 1, b), ii), da LAV) prevê um regime mais favorável a esse reconhecimento do que aquele que é previsto na CNI (alínea b) do n.º 2 do artigo V); donde, no que respeita a este específico fundamento de recusa de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, de acordo com o art. 7.º, n.º 1, desta Convenção, ser aplicável a nossa lei interna.

X. Não constitui uma afronta aos princípios do contraditório e da igualdade das partes a circunstância de, perante a injustificada falta de comparência dos Advogados e das testemunhas das Requeridas na audiência (cujo adiamento seria infundado), a testemunha da Requerente ter sido inquirida, tendo o seu depoimento e os depoimentos escritos sido ponderados pelo Árbitro único na prolação da sentença.

XI. Outrossim, a circunstância de se ter dado mais relevância (na decisão arbitral) a uns depoimentos que a outros, insere-se no poder de apreciação e avaliação da prova apresentada, ou seja, no exercício do poder de julgar, pelo que não se vê que, por isso, haja violação desses mesmos princípios.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO


HELIOTROP, SAS, sociedade de direito francês, instaurou, mediante Petição inicial apresentada em 15-04-2020, acção, com processo especial de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira, contra MAGPOWER Soluções de Energia, S.A. (“MAGPOWER”) (1.ª Requerida) e MAGP Inovação S.A. (“MAGP”) (2.ª Requerida), ambas sociedades de direito português, pedindo o reconhecimento, pelos Tribunais Portugueses, da Sentença Arbitral proferida em Paris (França), no dia 04-09-2019, por Árbitro único do Centro de Arbitragem e Mediação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual.

A Requerente juntou aos autos (mediante requerimento apresentado em 06-05-2020) o documento 3 correspondente à certidão e respetiva tradução da referida sentença (em que consta, mediante carimbo nela aposta, que tal decisão transitou em julgado a 21-10-2019), em cujo relatório se refere, além do mais, que o pedido de arbitragem foi recebido pelo Centro de Arbitragem e Mediação da OMPI em 02-08-2018, tendo o seu segmento decisório (constante dos parágrafos 152 a 154) o seguinte teor:

152. A Magpower pagará à Requerente o montante de € 205.842,10 mais juros à taxa legal francesa a partir da data de vencimento indicada na fatura não paga, até à data do pagamento integral.

153. A MAGP pagará à Requerente o montante de € 696.842,00 mais juros à taxa legal francesa a partir das datas de vencimento indicadas em cada uma das três faturas não pagas, até à data do pagamento integral.

154. As Requeridas pagarão à Requerente o montante de € 53.011,59, pelas custas e honorários de advogados incorridos neste processo.


Citadas as Requeridas, vieram deduzir Contestação (que no formulário Citius designaram por Resposta), na qual, invocaram, como fundamentos de oposição ao reconhecimento da sentença, a violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes e, por isso, a violação da ordem pública internacional do Estado Português, e requereram que ficasse suspensa a instância até à prolação de uma decisão definitiva pelo Tribunal Francês competente relativa ao “recurso de anulação” da sentença arbitral estrangeira, o qual havia sido interposto pelas Requeridas e se encontrava pendente com o n.º RG 19/23071 - n.º Portalis 35L7-V-B7D-CBFZE, na Cour d’Appel de Paris - Polo 2, Câmara 16 da Chambre Commerciale Internationale - CCIP-CA.


A Requerente apresentou articulado de Resposta, requerendo que fosse declarado “improcedente o pedido de suspensão da instância” e que, caso assim não se entendesse, se ordenasse a prestação de caução pelas Requeridas de valor nunca inferior a 975.755,60 €.

A Requerente pronunciou-se ainda sobre os fundamentos de oposição ao reconhecimento suscitados pelas Requeridas (ofensa aos princípios do contraditório e da igualdade de armas e ofensa da ordem pública internacional), defendendo a sua improcedência e que seja declarada procedente a presente ação reconhecendo-se a decisão arbitral em apreço.


A Requerente HELIOTROP, SAS veio, por apenso à presente ação, deduzir incidente de prestação de caução (apenso A), requerendo que as Requeridas fossem “ordenadas a prestar caução por valor nunca inferior a 975.755,60 €”.

Por decisão singular de 21-04-2021 foi indeferida essa pretensão. Inconformada com tal decisão, a Requerente deduziu reclamação para a conferência, que foi indeferida, por acórdão de 17-06-2021, mantendo-se a decisão reclamada que indeferiu o pedido da Requerente HELIOTROP, SAS de prestação da caução pelas Requeridas MAGPOWER- SOLUÇÕES DE ENERGIA, S.A. e MAGP INOVAÇÃO S.A.

Em 07-02-2022, no seguimento de dois despachos que determinaram a notificação das partes para se pronunciarem sobre se havia sido proferida decisão sobre tal causa, a Requerente HELIOTROP, SAS veio requerer a junção aos autos de cópia da sentença proferida (em 19-10-2021) pelo tribunal francês e respetiva tradução para língua portuguesa, que julgou totalmente improcedente o recurso de anulação das ora Requeridas, informando que tal sentença poderia ser objeto de recurso até 27-03-2022, para o tribunal superior, a saber, a Cour de Cassation. Mais veio requerer o seguinte:

Requerendo-se a V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores face ao desfecho da ação de anulação pendente no tribunal de Recurso de Paris (Cour D`Apelle de Paris), e tendo presente as diminutas chances das Requeridas de verem revertida tal decisão, que seja ordenado o levantamento da suspensão da instância nos presentes autos, ordenando-se que seja retomada a sua tramitação com o reconhecimento da decisão arbitral objeto dos presentes autos.

Caso assim não se entenda, também pelos motivos já expostos em sede de requerimento inicial e resposta à oposição, decidindo-se pela manutenção da suspensão da instância, requer-se a V. Exas., ante os desenvolvimentos ora reportados nos autos, seja ordenada a prestação de caução pelas Requeridas, nos termos e com os fundamentos anteriormente requeridos.”

De seguida, as Requeridas MAGPOWER-SOLUÇÕES DE ENERGIA, S.A. e MAGP INOVAÇÃO S.A. pronunciaram-se conforme consta do requerimento de 15-02-2022, informando que interpuseram recurso para a Cour de Cassation da decisão proferida em 19-10-2021 pela Chambre Commerciale et Internationale - Pôle 5 - Chambre 6 da Cour d’Appel de Paris, no processo n.º RG 19/2307, afirmando que, em face desse recurso, a decisão arbitral cuja revisão constitui objecto dos presentes autos continua a não estar transitada em julgado, mantendo-se, por isso, válidos todos os pressupostos que determinaram a suspensão da instância no presente processo.

Juntaram um documento em língua francesa.


Foi proferido despacho, em 08-03-2022, que determinou a cessação da suspensão da instância que havia sido decretada e o cumprimento do disposto no art. 982.º, n.º 1, do CPC.


O Ministério Público apresentou alegação, fazendo uma resenha dos factos que emergem dos autos, em particular a circunstância de se encontrar pendente, no tribunal francês competente para o efeito, recurso da sentença que julgou improcedente a ação de anulação da sentença arbitral estrangeira em apreço.

A Requerente também apresentou a sua alegação, elencando os factos que considera provados, em particular os atinentes à tramitação do processo arbitral, bem como da acção de anulação da sentença arbitral estrangeira em apreço, manifestando a sua discordância quanto à pretensão das Requeridas e à posição do Ministério Público e pugnando pela procedência da acção.


A Relação de Lisboa, em acórdão de 28.04.2022, proferiu a seguinte

III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente ação e, em consequência, conceder o reconhecimento, para assim passar a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa, à Sentença Arbitral proferida em Paris (França), no dia 04-09-2019, por Árbitro único do Centro de Arbitragem e Mediação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, cujo segmento decisório (constante dos parágrafos 152 a 154) tem o seguinte teor:

“152. A Magpower pagará à Requerente o montante de € 205.842,10 mais juros à taxa legal francesa a partir da data de vencimento indicada na fatura não paga, até à data do pagamento integral.

A MAGP pagará à Requerente o montante de € 696.842,00 mais juros à taxa legal francesa a partir das datas de vencimento indicadas em cada uma das três faturas não pagas, até à data do pagamento integral.

As Requeridas pagarão à Requerente o montante de € 53.011,59, pelas custas e honorários de advogados incorridos neste processo.”

Mais se decide condenar a 1.ª e a 2.ª Requeridas no pagamento das custas processuais da presente ação, na proporção do respetivo vencimento.


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Inconformadas com esta decisão da Relação que concedeu o reconhecimento à Sentença Arbitral proferida em Paris (França) e não se conformando com a mesma vêm as Requeridas MAGPOWER- SOLUÇÕES DE ENERGIA, SA e MAGP INOVAÇÃO SA, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 985.º n.º 1 e 671.º n.º 1 CPC, interpor Recurso de Revista, apresentando alegações que rematam com as seguintes

CONCLUSÕES

A. No âmbito dos autos supra identificados, foi concedido o reconhecimento, para assim passar a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa, à Sentença Arbitral proferida em Paris (França), no dia 04-09-2019, por Árbitro único do Centro de Arbitragem e Mediação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual.

B. O Tribunal a quo considerou estarem preenchidos in casu os requisitos legalmente exigidos para a procedência da acção de revisão de Sentença Estrangeira, não fundamentando cabalmente tal decisão, tendo o presente recurso por objeto a correta aplicação, nomeadamente, dos artigos 980.º alínea b) e) e f) do CPC.

C. Não se encontram preenchidos, no presente caso, os requisitos legalmente exigidos para a procedência da acção de revisão de sentença estrangeira, nomeadamente as elencadas nos nºs ii) e v) da alínea a), e do nºs ii) da alínea b) do artigo 56º da lei nº 63/2011 de 14 de Dezembro.

D. As Recorrentes alegaram e provaram que se encontra pendente um recurso de anulação da sentença arbitral que sustenta os presentes autos, justificando-se por isso, que fosse ordenada a suspensão do presente processo.

E. Suspensão essa que veio, efectivamente, a acontecer, em 09/12/2020.

F. As Requeridas impugnaram a decisão arbitral perante a Justiça Francesa, pedindo a respectiva anulação, tendo este recurso de anulação a mesma natureza do pedido de anulação da sentença arbitral nos termos do artigo 46º da LAV, sendo regido pelos artigos 1518.º e seguintes do Código de Processo Civil francês, (Code de Procédure Civil) que estabelece que “A sentença proferida em França em matéria de arbitragem internacional apenas admite recurso de anulação”.

G. Por apenso a tal “recurso de anulação”, veio a Recorrida deduzir “incidente com vista à rejeição do recurso de anulação”, sendo que o mesmo foi apreciado em audiência realizada a 29/10/2020, vindo a ser proferida, em 17/11/2020, a decisão final do incidente, que o rejeitou.

H. Por fim, em 19/10/2021, foi proferida decisão desfavorável às Recorrentes no referido “recurso de anulação”, ainda não transitada em julgado, tendo as Recorrentes interposto em 12/01/2022, perante a Cour de Cassation, recurso da decisão proferida pela Cour d’Appel de Paris, aguardando-se o seu desfecho.

I. Assim, não existe qualquer decisão transitada em julgado, tendo sido também esse o entendimento do Ministério Público na alegação que apresentou.

J. Ora, se foi decidido por Douto Despacho de 09/12/2020 proceder à suspensão da instância nos termos e com os fundamentos ali expostos, não se alcança como se justifica depois o levantamento de tal suspensão e a prolação de decisão que concede a revisão da sentença estrangeira, sendo que, conforme demonstrado, se encontra pendente “recurso de anulação” da decisão do Tribunal Arbitral.

K. Pelo que não se pode considerar que a referida decisão, aqui em crise, esteja consolidada na ordem jurídica que a proferiu.

L. Não podendo, por tal motivo, o Tribunal da Relação considerar que tal decisão podia ser revista e confirmada na ordem jurídia portuguesa.

M. A eventual procedência – em que se confia - do pedido de anulação, fará desaparecer da ordem jurídica a sentença revidenda, extinguindo, por essa via, o objecto do presente processo especial.

N. E conduzindo, necessariamente à absolvição das Requeridas.

O. Por esse motivo, constitui causa prejudicial do presente processo.

P. A suspensão da instância ocorreu quando se encontrava pendente o recurso de anulação, com fundamento em “antes de este Tribunal se pronunciar sobre o reconhecimento (ou não) da Sentença Arbitral estrangeira revidenda, aguardará pelo que vier a ser decidido pelo tribunal francês na referida ação de anulação dessa Sentença (…)”.

Q. Tendo a este respeito afirmado o Acórdão recorrido que “se é certo que as Requeridas nãosãoprejudicadas comoprosseguimentodoprocesso,tambémnãoémenos verdade que daí a Requerente acabaria, na posição que defende, por não retirar vantagem ou benefício, não se podendo olvidar que não será por via deste processo que se poderá, sem mais, acautelar as circunstâncias invocadas por aquela, que, a verificarem-se, convocam outros processos/meios processuais, designadamente procedimentos cautelares ou a prestação de caução.”.

R. Atendendo à decisão anterior de suspensão e agora à decisão de concessão da revisão da sentença estrangeira, não transitada em julgado, sem qualquer suporte que fundamente juridicamente tal mudança de orientação, não obstante se tratar de um poderdiscricionário do Tribunal derevisão, a verdadeéquea súbita inversão deposição do Tribunal a quo se revela atentatória dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.

S. Tais princípios implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.”7

T. A segurança jurídica consiste num princípio inerente ao Direito e que supõe um mínimo decerteza, previsibilidadeeestabilidadedas normas jurídicas deforma a queas pessoas possam ver garantida a continuidade das relações jurídicas onde intervêm e calcular as consequências dos atos por elas praticados, confiando que as decisões que incidem sobre esses atos e relações tenham os efeitos estipulados nas normas que os regem.

U. Tal como a alteração súbita e arbitrária de uma norma, a alteração súbita e infundada da orientação do Tribunal, ao fazer cessar a suspensão da instância e conceder a pretendida revisão da sentença estrangeira, preenche a supra referida dimensão subjectiva da segurança jurídica e tem consequências altamente gravosas para as ora Recorrentes.

V. Que, caso se confirme a decisão de que ora se recorre, criará o excessivo e desporoporcionado ónus sobre as Recorrentes, em sede de eventual processo de execução da sentença, de se oporem à execução invocando a pendência de uma acção de anulação da sentença, que não terá efeitos suspensivos a não ser que prestem caução.

W. Contribuindo para o aumento do risco de incumprimento de outras responsabilidades das Recorrentes, que terão de alocar os seus recursos a contestar um processo que não poderia existir, não fosse a concessão do reconhecimento à sentença estrangeira contra a qual, recorde-se, pende uma acção de anulação!

X. Sendo que tudo isso seria evitável se o Tribunal a quo mantivesse a decisão de suspensão da instância até se encontrarem reunidos todos os pressupostos legais para que dela pudesse tomar conhecimento.

Y. Quanto à errada valoração pelo tribunal a quo da violação dos princípios do contraditório e igualdade das partes, o Tribunal a quo entende que a actuação das requeridas, quanto à sua ausência no dia da audiência em 3 de Junho de 2019, é incompreensível e injustificada.

Z. No entanto, importa realçar que os fundamentos probatórios em que assenta a decisão sobre a restante matéria de facto, reduzem-se, precisamente, aos dois depoimentos (do Presidente da Requerente e da testemunha apresentada pela Requerida) como flui com toda a singeleza da leitura da sentença, em particular dos parágrafos 121 e 122.

AA. Na verdade, a violação do princípio da contraditório é tanto mais flagrante quanto é evidente que o Árbitro se baseou principalmente nas declarações da testemunha interrogada durante a audiência de 3 de junho de 2019, e no depoimento escrito de outra testemunha, para concluir pela condenação das Requeridas.

BB. Dada a recusa de adiar a audiência, esta testemunha não pôde ser contra-interrogada nem foi possível às Requeridas pedir esclarecimentos sobre o depoimento escrito da outra.

CC. Quando o certo é que a afirmação em que o árbitro se louva resulta de um equívoco desta testemunha que poderia ter sido esclarecido em audiência, se a Requerida e o seu mandatário, tivessem podido estar presentes.

DD. Não pode, portanto, deixar de se discordar da decisão recorrida, quando a mesma entende não terem ocorrido na actuação do Tribunal Arbitral flagrantes violações dos princípios do contraditório e da igualdade das partes em processo civil.

EE.Como refere o artigo 3º, nº 1, do Código de Processo Civil, “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

FF. Quanto à igualdade das partes, o artigo 4º do mesmo diploma estabelece que “o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.”

GG. Estes princípios resumem-se, afinal, na exigência de um processo equitativo de que fala o artigo 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.

HH. Os quais, como ficou demonstrado, não foram observados na decisão revidenda,oque deveria ter, inevitavelmente, conduzido à recusa da sua confirmação pelo Tribunal a quo, nos termos do artigo 980º do Código de Processo Civil.

II. É, também, inevitável a conclusão de que a confirmação da sentença arbitral proferida com violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, conduz a um resultado incompatível com a ordem pública internacional do estado português.

JJ. AsnormasdoCódigodeProcessoCiviledaConstituiçãocitadaseoconceitodeprocesso equitativo são a expressão de um adquirido civilizacional que vincula o Estado português, interna e internacionalmente.

KK. A natureza destes princípios é de tal modo imperativa e definidora do Estado de Direito que a sua inobservância contamina irremediavelmente qualquer decisão judicial.

LL. Por isso, a confirmação de uma sentença nestas condições, é, por si só, um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, independentemente, do acerto ou desacerto material da decisão.

MM.   A errada aplicação da lei apenas levará à violação da ordem pública internacional quando conduza à aplicação de uma decisão arbitrária, que se afigure contrária aos princípios fundamentais8.

NN. Ao decidir conforme decidiu, o douto Acórdão em apreço violou, entre outras, as seguintes disposições legais: artigos 980.º alíneas b), e) e f), 615.º n.º 1 alíneas b) e c) todos do CPC e ii) e v) alínea a), ii) alínea b) e n.º 2 do art.º 56.º da Lei 63/2011 de 14 de Dezembro.


Nestes termos e nos mais de Direito, deve o, aliás douto, Acordão recorrido ser revogado e, em consequência, ser negado o reconhecimento da sentença revidenda, proferida em Paris (França), no dia 04-09-2019, pelo Árbitro único do Centro de Arbitragem e Mediação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, tudo com as legais consequências, designadamente em matéria de custas, assim se fazendo a costumada, mas sempre esperada,

J U S T I Ç A


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A Requerente HELIOTROP, SAS, apresentou as suas contra-alegações de recurso, concluindo pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.


Foram colhidos os vistos.

Cumpre apreciar e decidir.


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II. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO


A presente açcão especial de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira foi proposta ao abrigo dos arts. 55.º e segs. da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, sendo competente para o efeito o Tribunal da Relação do lugar do domicílio da pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença (art. 59.º, n.º 1, al. h), da LAV), ou seja, o Tribunal da Relação de Lisboa.

Segundo o n.º 8 do art. 59.º da LAV: “Salvo quando na presente lei se preceitue que a decisão do tribunal estadual competente é insusceptível de recurso, das decisões proferidas pelos tribunais referidos nos números anteriores deste artigo, de acordo com o que neles se dispõe, cabe recurso para o tribunal ou tribunais hierarquicamente superiores, sempre que tal recurso seja admissível segundo as normas aplicáveis à recorribilidade das decisões em causa.”

Sendo o STJ o Tribunal hierarquicamente superior ao tribunal da Relação que proferiu a decisão, é admissível a revista nos termos do art. 671.º, n.º 1, do CPC.

Assim se entendeu no acórdão do STJ de 10-11-2016 (Revista n.º 1052/14.1TBBCL.P1.S1 - 7.ª Secção - Lopes do Rego[1]), em que se decidiu que a “norma constante do n.º 1 do art. 671.º do CPC não deve interpretar-se no sentido de pretender excluir cabalmente o exercício do duplo grau de jurisdição nas causas em que a Relação haja excepcionalmente actuado, não como tribunal de recurso, mas como órgão jurisdicional que, em 1.ª instância, apreciou o objecto do litígio – como ocorre com as acções de anulação de sentença arbitral, necessariamente iniciadas perante esse tribunal.”[2].

Argumenta-se nesse aresto que não se vislumbra “numa interpretação funcionalmente adequada do sistema de recursos que nos rege, razão bastante para excluir o normal exercício pelo STJ do duplo grau de jurisdição sobre decisões finais proferidas pela Relação, em acções ou procedimentos que, nos termos da lei, se devam obrigatoriamente iniciar perante elas”, o que também sucede, como se salienta na mesma decisão, para além das acções de anulação de sentença arbitral, com as acções especiais de indemnização contra magistrados ou de revisão de sentença estrangeira.

Assim, no presente caso, tendo as recorrentes legitimidade para recorrer, sendo o recurso tempestivo e encontrando-se paga a taxa de justiça devida, não se verifica qualquer obstáculo à admissibilidade da revista.


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III – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir consistem em saber:

1. Se ocorrem as nulidades previstas nas als. b) e c) do artº 615º do CPC (falta de fundamentação da decisão que concedeu a revisão da sentença estrangeira);

2. Se ocorre a falta de obrigatoriedade da sentença arbitral que é objecto da presente acção para as partes atenta a pendência junto dos tribunais franceses de um “recurso de anulação” que tem por objecto essa decisão – ou seja, se a Sentença em apreço ainda não se tornou obrigatória para as partes, dada a circunstância de se encontrar pendente uma acção de anulação no país onde e ao abrigo de cuja lei foi proferida – cfr. art. 56.º, al. a), v), da Lei n.º 63/2011, de 14-12;

3. Se foram violados os princípios do contraditório e igualdade das partes no processo arbitral que constituem princípios integrantes da ordem pública internacional do Estado Português, o que, a verificar-se, impede o reconhecimento da sentença arbitral.


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III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. FACTOS PROVADOS


Encontram-se provados, face ao acordo e confissão das partes nos articulados e aos documentos juntos nos presentes autos (e também no apenso A), os seguintes factos:

1. Em 19-01-2015 foi celebrado entre a HELIOTROP, SAS, sociedade de direito francês (ora Requerente) e a MAGPOWER Soluções de Energia, S.A. (sociedade de direito português, ora   1.ª   Requerida)   um contrato     intitulado     “Sales Agent/Representative Agreement”, nos termos do qual as partes acordaram, além do mais, que a primeira seria o agente comercial exclusivo da MAGPOWER para a França (cf. doc. 1 junto com a PI).

2. Em 29-01-2016, a HELIOTROP, SAS e a MAGP Inovação S.A. (sociedade de direito português, ora 2.ª Requerida) celebraram um outro contrato designado de “Sales Agent/Representative Agreement”, nos termos do qual acordaram, além do mais, que a primeira seria o agente comercial exclusivo da MAGPOWER para a França (cf. doc. 2 junto com a PI).

3. Em ambos os contratos, foi incluída uma cláusula prevendo o recurso à arbitragem de acordo com as Regras de Arbitragem da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e que “a sentença será vinculativa e final para cada uma das partes” – cf. documentos 1 e 2 juntos com a PI. Vd.

4. Em 02-08-2018, a Requerente HELIOTROP, alegando a falta de pagamento (integral) de quatro faturas (uma enviada à MAGPOWER no valor de 205.842,10 € [datada de 29-09-2016], e outras três [datadas de 28-09-2016, 15-02-2017 e 02-05-2017] dirigidas à MAGP no valor total de 716.284 €) emitidas no cumprimento dos referidos contratos, apresentou pedido de arbitragem no Centro de Arbitragem e Mediação da OMPI, o qual foi recebido (certidão da sentença, incluindo tradução, junta por requerimento apresentado em 06-05-2020 e doc. 2 junto no apenso A com o requerimento inicial).

5. Nesse processo arbitral, as Partes, HELIOTROP SAS, como Requerente, e MAGPOWER Soluções de Energia, S.A., e MAGP Inovação, S.A., como Requeridas, constituíram Advogados como seus mandatários, sendo estas últimas representadas por Advogados de uma sociedade de advogados portuguesa e também de uma sociedade de advogados francesa, tendo o processo corrido os seus termos conforme descrito no relatório da sentença que veio a ser proferida (cuja certidão foi junta por requerimento apresentado em 06-05-2020 e doc. 2 junto no apenso A com o requerimento inicial), cujo teor se dá por reproduzido, designadamente:

- Em 03-10-2018, a Requerente apresentou a sua Petição Inicial com anexos adicionais;

- Em 06-10-2018, o Árbitro único informou por e-mail as partes que, de acordo com o artigo 42(a) e (c) das Regras da OMPI, as Requeridas deveriam apresentar a sua Contestação no prazo de 30 dias após 03 de outubro de 2018;

- Em 05-11-2018, as Requeridas apresentaram por e-mail a sua Contestação com anexos, tendo o Árbitro recebido também, em 08-11-2018, por correio, da Magpower uma cópia em formato papel;

- Em 09-11-2018 o Árbitro único realizou a conferência preparatória com as partes e, no mesmo dia, envio-lhes por e-mail a ata dessa conferência;

- Em 23-11-2018, a Requerente apresentou por e-mail a sua Réplica e solicitou que a sentença assentasse apenas em documentos;

- Em 24-11-2018, o Árbitro único enviou às partes um e-mail solicitando às Requeridas que indicassem até 14-12-2018 se concordavam que a sentença assentasse apenas em documentos;

- Em 14-12-2018, as Requeridas apresentaram a sua Resposta à réplica e responderam, além do mais, que se reservavam o direito de decidir sobre uma audiência para momento posterior, tendo em 31-12-2018, respondido que consideravam a audiência necessária;

- Em 09-01-2019, o Árbitro único discutiu com as partes, por audioconferência, além do mais, um “Calendário e próximos passos”, tendo ficado acordado que se iria rever a necessidade de realizar uma audiência e informar o Árbitro sobre esse ponto o mais tardar em 17-02-2019;

- Em 19-03-2019, depois de o processo ter estado suspenso por acordo das partes, foi retomada a sua tramitação, no seguimento de solicitação da Requerente, vindo a ser, em 26-03-2019, após um “lembrete” enviado por e-mail pelo Árbitro único em 22-03-2019, confirmado pelas Requeridas que mantinham o seu pedido de uma audiência;

- Em 09-04-2019, realizou-se audioconferência, tendo sido acordado com o Árbitro único e as partes a data de 3 de Junho de 2019 para realização da audiência, mais tendo sido, no mesmo dia, enviada pelo Árbitro único uma decisão incluindo um calendário provisório, no qual constava a data de 15-04-2019 para apresentação de testemunhas, a data de 09-05-2019 para apresentação dos depoimentos (escritos) das testemunhas, a data de 13-05-2019 para “apresentação do aviso de ausência de contrainterrogatório de qualquer testemunha”;

- Em 15-04-2019, a Requerente indicou uma testemunha para prestar depoimento em audiência, e as Requeridas arrolaram 4 testemunhas;

- A 16-04-2019, o Árbitro notificou, por e-mail, as partes do local da audiência, relembrando a data da mesma (03-06-2019);

- A 09-05-2019, as Requeridas solicitaram uma prorrogação do prazo para a apresentação dos depoimentos escritos das testemunhas, tendo a Requerente dito que não colocava qualquer objeção a um adiamento até 13-05-2019, que lhes foi concedida, no mesmo dia (09-05-2019);

- A 13-05-2019, as partes apresentaram no processo arbitral os depoimentos escritos das testemunhas acima mencionadas;

- Em 14-05-2017, o Árbitro único informou as partes por e-mail que os depoimentos das testemunhas não estavam em conformidade com as instruções que tinham sido expressas na sua anterior decisão, determinando às partes que as cumprissem, mais informando que estava inclinado para adiar até 17-05-2019 o “prazo para apresentação dos Avisos de Ausência de Contrainterrogatório”, solicitando comentários ou objeções a essa prorrogação, que não foram recebidas;

- Em 16-05-2019, o Árbitro Único prorrogou por e-mail o “prazo para apresentação dos Avisos de Ausência de Contrainterrogatório” até 17-05-2019, data até à qual nenhuma das partes apresentou qualquer “Aviso de Ausência de Contrainterrogatório”;

- Em 27-05-2019, a Requerente informou por e-mail que não pretendia contrainterrogar duas das 4 testemunhas das Requeridas, acrescentando que não necessitava de aguardar pela audiência agendada para 03-06-2019;

- Em 28-05-2019, as Requeridas enviaram e-mail, invocando que não tinha sido cumprido pela Requerente o “adiamento perentório para apresentar o aviso de contrainterrogatório”, razão pela qual tinham assumido que a audiência não se iria realizar, pelo que nem o Advogado signatário (do escritório de Portugal), nem as duas testemunhas estavam disponíveis para a realização da audiência no dia 03-06-2019; acrescentaram que, apesar da consequência excludente daquele incumprimento, estavam dispostas a aceitar a realização desse contrainterrogatório e audiência, desde que fosse fixada uma data adequada;

- Na mesma data, a Requerente opôs-se, alegando, além do mais, que as Requeridas deviam apresentar as duas testemunhas em relação às quais “não foi notificado qualquer aviso de ausência de contrainterrogatório”;

- O Árbitro único decidiu em 29-05-2019 manter o agendamento da audiência, clarificando que estavam obrigadas a comparecer para serem interrogadas na audiência agendada para 03-06-2019 “todas as pessoas que emitiram e assinaram depoimentos de testemunhas”, “exceto aquelas que foram nomeadas num aviso de ausência de contrainterrogatório”, sugerindo ainda que o Advogado das Requeridas se fizesse substituir pelo outro Advogado não impedido (com escritório em França);

- Após insistência das Requeridas, por e-mail, referindo terem assumido de boa-fé que a audiência não teria mais lugar e que, por essa razão, as testemunhas e o Advogado das Requeridas aceitaram novos compromissos, realizou-se conferência telefónica, no dia 31-05-2019, vindo a ser proferida decisão pelo Árbitro único, notificada por e-mail às partes, no mesmo dia, em que, depois de referir, além do mais, que o Advogado das Requeridas tinha explicado a razão do seu mal-entendido em relação às testemunhas, foi negado o pedido de adiamento da audiência;

- Na noite do mesmo dia, as Requeridas responderam por e-mail à Requerente e ao Árbitro único, referindo designadamente que “As Requeridas respeitam essa decisão e reservam todos os direitos em relação à mesma”;

- No dia 03-06-2019, às 00h08, as Requeridas, através de um dos seus Advogados (da sociedade portuguesa), enviaram um e-mail à Requerente e ao Árbitro único com o seguinte teor, no que ora releva: “Serve o presente para confirmar que o Advogado das Requeridas e as testemunhas das Requeridas não poderão comparecer na audiência no horário e local determinados pelo Árbitro, devido aos motivos explicados na troca de correspondência anterior. As Requeridas aguardam com expectativa a decisão do Árbitro sobre a sequência do processo, confiando que tal decisão garantirá que os direitos de defesa das Requeridas possam ser plenamente exercidos”;

- A audiência realizou-se, sem a presença dos Advogados das Requeridas e das duas referidas testemunhas, tendo comparecido a testemunha apresentada pela Requerente (Philippe Julien-Laferriére, que foi identificado como CEO da Requerente), a qual foi interrogada sob juramento pelo Árbitro único e também pelo Mandatário da Requerente, respondendo a questões concretas (sendo as colocadas por este último previamente autorizadas pelo Árbitro), depoimento que foi transcrito (conforme transcrição que consta de anexo à sentença);

- A 05-06-2019, o Árbitro único enviou por e-mail decisão às Partes, declarando o encerramento do processo e convidando-as a apresentar uma relação de custas;

- No dia 17-06-2019, o Árbitro único recebeu do Oficial de Justiça, por e-mail, com cópia para as partes, a versão preliminar da transcrição da audiência, solicitando as suas observações, tendo o Árbitro único, no mesmo dia, enviado, por e-mail, ao Oficial de Justiça, com cópia para as Partes, uma versão revista;

- A 20-06-2019 e 26-06-2019, Requerente e as Requeridas enviaram as respetivas relações de custas, com documentos comprovativos.

6. No dia 04-09-2019, foi proferida a Sentença Arbitral constante da certidão acima referida, a qual, conforme carimbo nela aposta, transitou em julgado a 21-10-2019, tendo o seu segmento decisório o seguinte teor:

152. A Magpower pagará à Requerente o montante de € 205.842,10 mais juros à taxa legal francesa a partir da data de vencimento indicada na fatura não paga, até à data do pagamento integral.

153. A MAGP pagará à Requerente o montante de € 696.842,00 mais juros à taxa legal francesa a partir das datas de vencimento indicadas em cada uma das três faturas não pagas, até à data do pagamento integral.

154. As Requeridas pagarão à Requerente o montante de € 53.011,59, pelas custas e honorários de advogados incorridos neste processo (doc. junto por requerimento apresentado em 06-05-2020 e doc. 2 junto no apenso A com o requerimento inicial).

7.       Inconformadas, as Requeridas vieram, em 11-12-2019, interpor “recurso de anulação” dessa sentença arbitral, na Cour d’Appel de Paris - Polo 2, Câmara 16 da Chambre Commerciale Internationale - CCIP-CA, com o n.º RG 19/23071 – n.º Portalis 35L7-V-B7D-CBFZE, com base no artigo 1520 do Código de Processo Civil francês, invocando designadamente: a violação do princípio do contraditório; a violação da ordem pública internacional do Estado francês, ao abrigo de cuja lei foi proferida; a violação pelo Tribunal da missão que lhe fora confiada pelas partes na convenção arbitral; o erro na declaração de incompetência por parte do Tribunal para decidir sobre o pedido das Requeridas para a fixação de um prazo de pagamento das quantias que fossem consideradas devidas (cf. doc. 4 junto com a oposição).

8.       Por apenso a tal “recurso de anulação”, veio a ora Requerente deduzir “incidente com vista à rejeição do recurso de anulação” (“INCIDENT AUX FINS DE RADIATION DU RECOURS EN ANNULATION”), cujas conclusões apresentou em 10-08-2020, pedindo ao
magistrado encarregado da preparação do processo, considerando os artigos 524 (e 526 antigo) e 1526 do Código de Processo Civil, para:

- Ordenar a rejeição do recurso de anulação interposto em 11 de dezembro de 2019 pelas sociedades MAGPOWER SOLUÇÕES DE ENERGIA SA e MAGP INOVAÇÃO contra a sentença da OM PI proferida em 4 de setembro de 2019 em Paris pelo Senhor Louis Buchmann no processo n.º WIP0A020818 e registado sob o número RG 19/023071,

- Indeferir às sociedades MAGPOWER SOLUÇOES DE ENERGIA SA e MAGP INOVAÇÃO todos os seus argumentos, fins e alegações em contrário,

- Condenar as sociedades MAGP INOVAÇÃO e MAGPOWER SOLUÇOES DE ENERGIA SA solidariamente ao pagamento à sociedade HELIOTROP no montante de 15.000 € com base no artigo 700 do Código de Processo Civil, bem como na totalidade das despesas (cf. documentos e respetiva tradução juntos com o requerimento de 14-03-2021).

9.      Na   resposta   apresentada   nesse    incidente   de    rejeição liminar, as   Requeridas MAGPOWER  e  MAGP  pediram  ao  magistrado   encarregado  da   preparação   do   processo, considerando os artigos 524, 1526, 700, 695 e seguintes do Código de Processo Civil, para:

- DECLARAR E JULGAR a título principal, que o artigo 524 do Código de Processo Civil é inaplicável ao recurso de anulação de sentença arbitral; em consequência indeferir à HELIOTROP seu pedido de rejeição do recurso de anulação interposto pelas sociedades MAGPOWER e MAGP contra a sentença arbitral proferida em 4 de setembro de 2019;

- A título subsidiário, DECLARAR E JULGAR que a execução da sentença arbitral proferida em 4 de setembro de 2019 acarretaria consequências manifestamente excessivas para as sociedades MAGPOWER e MAGP; em consequência, indeferir à HELIOTROP o seu pedido de rejeição do recurso de anulação interposto pelas sociedades MAGPOWER e MAGP contra a sentença arbitral proferida em 4 de setembro de 2019;

- Em qualquer caso, CONDENAR a sociedade HELIOTROP a pagar a cada uma das sociedades MAGPOWER e MAGP a quantia de 15.000 euros nos termos do artigo 700.º do Código de Processo Civil, bem como a totalidade das despesas do incidente (cf. documento 1 e respetiva tradução junto com o requerimento de 14-03-2021).

10.    Esse “incidente com vista à rejeição do recurso de anulação” foi apreciado em audiência realizada a 29-10-2020, vindo a ser proferida, em 17-11-2020, a decisão final do incidente, notificada às partes na mesma data, com o seguinte dispositivo:

1. Rejeitamos o pedido da sociedade HELIOTROP;

2. Rejeitamos as partes dos seus pedidos com base no artigo 700.º do Código de Processo Civil;

3. Condenamos a sociedade HELIOTROP às custas deste incidente (cf. documento 1 e respetiva tradução junto com o requerimento de 14-03-2021).

11.    Em 08-12-2020, no “recurso de anulação”, foi proferido, pelo magistrado responsável pela instrução do processo, despacho a confirmar o seguinte calendário de marcação, estabelecido após consulta:

- data de encerramento: 06 de abril de 2021 às 13:00;

- data para alegações: 15 de junho de 2021 das 14:30 às 16:30 (cf. doc. e respetiva tradução junto com o requerimento de 25-03-2021).

12.     Em 19-10-2021, foi proferida no referido “recurso de anulação”, a sentença cuja cópia e respetiva tradução foi junta com o requerimento de 07-02-2022, ainda não transitada em julgado (por da mesma ter sido interposto recurso pelas ora Requeridas, em 12-01-2022, perante a Cour de Cassation), tendo o seu dispositivo o seguinte teor: “Por estes motivos,

O tribunal,

1 - Declara que não foi interposto recurso de inadmissibilidade da acção,

2 - Julga improcedente o recurso de apelação,

3 - A Heliotrop não tem direito a indemnização por uso indevido,

4 - As sociedades Magpower SOLUÇÕES DE ENERGIA, S.A. e MAGP INOVAÇÃO S.A. são condenadas a pagar à sociedade Heliotrop a quantia de 15.000 euros cada uma, nos termos do artigo 700 do Código de Processo Civil, e condena-as ao pagamento de todas as despesas”.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO


Analisemos as questões suscitadas na revista.


III.2.1. Das nulidades previstas nas als. b) e c) do artº 615º do CPC (falta de fundamentação da decisão que concedeu a revisão da sentença estrangeira).

Imputam as recorrentes nulidade ao acórdão, “porquanto o Tribunal a quo considerou estarem preenchidos os requisitos legalmente exigidos para a procedência da acção de revisão de Sentença Estrangeira, não fundamentando cabalmente tal decisão”.

É manifesta a falta de razão das recorrentes: não ocorre a nulidade ínsita naquelas als. b) (ausência da fundamentação de facto e de direito que justifica a decisão), tal como a prevista na al.  c) (oposição entre os fundamentos e a decisão ou ambiguidade ou obscuridade ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível) do CPC.

Não ocorre a nulidade referida na al. b) visto que, como é amplamente sabido, só a absoluta falta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito que justificam a decisão tornam esta nula, não bastando que a fundamentação ou motivação seja deficiente, insuficiente ou até errada (casos que, em regra, se resolvem nos recursos com a invocação de erro de julgamento)[3].

Assim, não há que confundir esta nulidade com o erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção dos factos concretos à correspondente previsão normativa abstracta, nem, tão pouco, com uma errada interpretação desta, vícios estes só sindicáveis em sede de recurso jurisdicional[4].

Ora, o acórdão recorrido mostra-se fundamentado de facto e de direito, independentemente da sua suficiência e correcção, não se detectando qualquer violação do dever de fundamentação, enquanto garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, sob a perspectiva da legitimação da decisão judicial e da garantia do direito ao recurso, tal como decorre do estatuído no art. 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, do acórdão constam suficientemente especificados os fundamentos de facto e de direito em que assenta, em particular, quanto a estes últimos e pela sua especial relevância para o caso, dos pertinentes artigos da Convenção de Nova Iorque (CNI), isto é, da Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, concluída em Nova Iorque em 10 de Junho de 1958, bem como da Lei n.º 63/2011, de 14-12 (Lei da Arbitragem Voluntária).


E igualmente não ocorre a nulidade ínsita na referida al. c).

Não se vislumbra qualquer oposição entre os fundamentos e decisão, ou alguma ambiguidade ou obscuridade que torne esta ininteligível.

O que se vê, à saciedade, é que as Recorrentes perceberam muito bem o sentido da decisão e os seus fundamentos, a qual procuram atacar em todos os seus múltiplos aspectos. Ou seja, mais não fazem as Recorrentes do que discordar da fundamentação plasmada no acórdão (e até, de certa forma, da decisão de 08-03-2022 – da qual não interpuseram recurso – que determinou a cessação da suspensão da instância e o prosseguimento dos autos).


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Aliás, nunca se preencheriam as invocadas nulidades, dado que as recorrentes não suscitaram devidamente, no seu recurso de revista, as alegadas nulidades do acórdão recorrido.

Como como decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões delimitam o objecto do recurso, não podendo o tribunal superior conhecer de questões nelas não incluídas, salvo as que são de conhecimento oficioso – assim tem entendido de forma uniforme o STJ[5].

Ora, no caso dos autos, as recorrentes omitiram nas conclusões do seu recurso qualquer menção a eventuais nulidades do acórdão, constando apenas na última conclusão “NN”, uma alusão à violação, entre outras disposições legais, do art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC, mas sem que seja invocada minimamente em que se consubstanciou essa violação, ou seja, quais os vícios concretos de que padece o acórdão recorrido.

A falta de inclusão de tal matéria nas conclusões da revista impede, assim, o seu conhecimento por parte do STJ, sendo certo que entendemos ser manifesto não se verificar qualquer vício que pudesse ser oficiosamente conhecido por este Tribunal.


III.2.2. Da alegada falta de obrigatoriedade, para as partes, da sentença arbitral que é objecto da presente acção, atenta a pendência junto dos tribunais franceses de um “recurso de anulação” que tem por objecto essa decisão:  a sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes pelo facto de se encontrar pendente uma ação de anulação no país onde e ao abrigo de cuja lei foi proferida (cfr. art. 56.º, al. a), v), da Lei n.º 63/2011, de 14-12)?


§ Ponto prévio: do enquadramento jurídico


Como se dá conta no acórdão recorrido, é aplicável nos presentes autos a Convenção de Nova Iorque (CNI), isto é, a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras[6].

O estado francês também se encontra vinculado por esta Convenção[7]. Tendo a legislação nacional francesa em matéria de arbitragem sido alterada em 2011, mediante o “Décret n.º 2011-48 du 13 janvier 2011 portant réforme de l'arbitrage”, que pode ser consultado em https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000023417517/

As normas da referida Convenção são normas de direito internacional cuja primazia e aplicação   preferencial   em   detrimento   do   direito interno (cfr.   art.   8.º   da   Constituição   da República Portuguesa) é expressamente reconhecida no art. 55.º da Lei n.º 63/2011, de 14-12 Lei da Arbitragem Voluntária – aqui designada sob a sigla LAV), quando aí se prevê (destaque nosso): “Sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português, as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro só têm eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual português competente, nos termos do disposto no presente capítulo desta lei.”

Isto mesmo tem sido afirmado pela doutrina e jurisprudência, de que é exemplo o acórdão do STJ de 23-10-2014[8], em cujo sumário se lê:  “I - À revisão de sentença arbitral proferida por tribunal arbitral sedeado em Estado que haja subscrito a Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958 aplica-se primordialmente este tratado internacional, estando o tribunal estadual português, a quem é pedido o reconhecimento da mesma, adstrito a recusá-lo quando oficiosamente constate que o resultado a que se chegou naquela decisão contraria a ordem pública internacional do Estado Português.”.

Daí que o disposto nos preceitos constantes do Capítulo X da LAV, sobre o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, tenha um âmbito de aplicação residual, aplicando-se essencialmente às sentenças arbitrais oriundas de Estados que não ratificaram a Convenção de Nova Iorque e com os quais Portugal não tenha celebrado outras convenções internacionais nesta matéria[9].

Sem olvidar, todavia, que por força do princípio do tratamento mais favorável consagrado no artigo VII, n.º 1, da Convenção de Nova Iorque, a aplicabilidade da mesma não prejudica a invocação pelos interessados das disposições mais favoráveis ao reconhecimento constantes do Direito interno dos Estados contratantes, incluindo, pois, as da LAV nacional[10].

Dito isto, passemos à enunciada questão.


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· Apreciando a questão

Invocam as recorrentes a falta de preenchimento dos requisitos legalmente exigidos para a procedência da acção de revisão de sentença estrangeira, previstos nas subalíneas ii) e v) da alínea a), e na subalínea ii) da alínea b), do n.º 1 do artigo 56º da lei nº 63/2011 de 14 de Dezembro (LAV).

Quanto ao requisito previsto na subalínea v) da alínea a) do n.º 1 do art. 56.º da LAV[11], alegam as recorrentes que se encontra pendente um recurso de anulação da sentença arbitral que sustenta os presentes autos, justificando-se por isso que fosse ordenada a suspensão do presente processo, suspensão essa que veio, efectivamente, a acontecer em 09/12/2020, mas que foi levantada, a seu ver, sem justificação.

Com efeito, sustentam as recorrentes que impugnaram a decisão arbitral perante a Justiça Francesa, pedindo a respectiva anulação, tendo este recurso de anulação a mesma natureza do pedido de anulação da sentença arbitral nos termos do artigo 46º da LAV, sendo regido pelos artigos 1518.º e seguintes do Código de Processo Civil francês (Code de Procédure Civil).

Mais referem que, por apenso a tal “recurso de anulação”, veio a Recorrida deduzir “incidente com vista à rejeição do recurso de anulação”, sendo que o mesmo foi apreciado em audiência realizada a 29/10/2020, vindo a ser proferida, em 17/11/2020, a decisão final do incidente, que o rejeitou. Em 19/10/2021, foi proferida decisão desfavorável às Recorrentes no referido “recurso de anulação”, ainda não transitada em julgado, tendo as mesmas interposto em 12/01/2022, perante a Cour de Cassation, recurso da decisão proferida pela Cour d’Appel de Paris, aguardando-se o seu desfecho.

Concluem que não existe qualquer decisão transitada em julgado, tendo sido também esse o entendimento do Ministério Público na alegação que apresentou, pois a eventual procedência do pedido de anulação fará desaparecer da ordem jurídica a sentença revidenda, extinguindo, por essa via, o objecto do presente processo especial.

Apesar de admitirem que a suspensão da instância até à prolação de decisão definitiva no referido “recurso de anulação”, é um poder discricionário do Tribunal de revisão, as recorrentes alegam que a súbita inversão de posição do Tribunal a quo se revelou atentatória dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.

Que dizer?


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Em primeiro lugar, como referido acima e se aponta no acórdão recorrido, ao contrário da argumentação expendida nas alegações de revista, aos presentes autos é aplicável a Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (doravante designada pela sigla CNI), concluída em Nova Iorque em 10 de Junho de 1958, no âmbito das Nações Unidas, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 37/94, de 08-07-1994, que entrou em vigor em 16-01-1995 (cf. Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 142/95, de 21-06).

O art. 2.º desta Resolução estatui que: “Nos termos do n.º 3 do artigo 1.º da Convenção, Portugal formula a seguinte reserva: no âmbito do princípio da reciprocidade, Portugal só aplicará a Convenção no caso de as sentenças arbitrais terem sido proferidas no território de Estados a ela vinculados.”

No presente caso, a sentença arbitral que é objecto do presente processo especial foi proferida no território do Estado francês que também se encontra vinculado à mesma Convenção.

Efectivamente, ambos os Estados – português e francês – são signatários da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, mais conhecida como “Convenção de Nova Iorque” (“C.N.I”), celebrada a 10 de Junho de 1958.

Como consta do acórdão recorrido e segundo informação disponibilizada pela “United Nations Commission on International Trade Law” (UNCITRAL), a França assinou esta Convenção em 25-11-1958, ratificou-a em 26-06-1959, entrando em vigor em 24-09-1959, sendo a mesma publicada no Jornal Oficial da República Francesa de 06-09-1959 através do Decreto n.º 59-1039 de 01-09-1959.

As normas da referida Convenção são normas de direito internacional, pelo que prevalecem sobre o nosso direito interno – nomeadamente prevalecem sobre a Lei da Arbitragem Voluntária (L.A.V.) – , enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português (cfr. art. 8.º da Constituição da República Portuguesa). Tal primazia é, como referido, expressamente reconhecida no art. 55.º da LAV, quando aí se prevê: “Sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português, as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro só têm eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual português competente, nos termos do disposto no presente capítulo desta lei.”[12].

Assim, portanto, por estarmos perante dois Estados signatários da C.N.I, no caso vertente, o disposto neste instrumento internacional prevalece sobre qualquer outro diploma legislativo interno regulador da mesma matéria, entendimento este, precisamente, sufragado no Acórdão recorrido, na medida em que refere:

Daí que o disposto nos preceitos constantes do Capítulo X da LAV, sobre o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, tenha um âmbito de aplicação residual, aplicando-se essencialmente às sentenças arbitrais oriundas de Estados que não ratificaram a Convenção de Nova Iorque e com os quais Portugal não tenha celebrado outras convenções internacionais nesta matéria (como é o caso dos acordos de cooperação concluídos com países de língua oficial portuguesa).”.


Estabelece o artigo I da CNI que: “A presente Convenção aplica-se ao reconhecimento e à execução das sentenças arbitrais proferidas no território de um Estado que não aquele em que são pedidos o reconhecimento e a execução das sentenças e resultantes de litígios entre pessoas singulares ou colectivas. Aplica-se também às sentenças arbitrais que não forem consideradas sentenças nacionais no Estado em que são pedidos o seu reconhecimento e execução.”

Nos termos do n.º 2 “entende-se por “sentenças arbitrais” não apenas as sentenças proferidas por árbitros nomeados para determinados casos, mas também as que forem proferidas por órgãos de arbitragem permanentes aos quais as Partes se submeteram.”


No caso dos autos, não se suscitam dúvidas da verificação da previsão destas normas, pelo que cabe apreciar o caso à luz do regime previsto na CNI, sem prejuízo de muitas das soluções consagradas na LAV seguirem o regime previsto naquela Convenção.


 As recorrentes começam por alegar a falta de verificação do requisito previsto na subalínea v) da alínea a) do n.º 1 do art. 56.º da LAV, que corresponde à alínea e) do n.º 1 do art. V da CNI que dispõe o seguinte: “O reconhecimento e a execução da sentença só serão recusados, a pedido da Parte contra a qual for invocada, se esta Parte fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução forem pedidos a prova:

(…)

e) De que a sentença ainda não se tornou obrigatória para as Partes, foi anulada ou suspensa por uma autoridade competente do país em que, ou segundo a lei do qual, a sentença foi proferida.”


*


Na jurisprudência do STJ não se encontram ainda decisões sobre esta matéria específica, mas na doutrina o que se discute é a questão de saber quando é que uma sentença se torna obrigatória para as partes, nos termos da referida disposição da CNI.


De acordo com alguns autores, a questão deverá ser respondida de acordo com a lei aplicável à sentença, ou seja, no caso concreto dos autos, de acordo com a lei francesa. Entre nós, seguindo essa posição, veja-se MANUEL PEREIRA BARROCAS[13] e DÁRIO MOURA VICENTE[14], defendendo este último que, em princípio, apenas se devem considerar obrigatórias “as sentenças que possam ser executadas segundo a lei daquele país”. No entanto, este autor afirma que “não parece exigível que a sentença, a fim de ser tida como obrigatória, haja sido objeto de um xequátur no país de origem. Aquele requisito pode, além disso, considerar-se preenchido ainda que haja sido interposto recurso contra a sentença arbitral, contanto que este tenha caráter meramente devolutivo. O preceito em anotação consente, assim, uma autonomia mitigada na interpretação do conceito de obrigatoriedade da sentença relativamente à lei do país onde foi proferida”[15].


Segundo uma outra tese, o conceito de “obrigatoriedade para as partes” previsto na CNI deve ser objecto de uma interpretação autónoma, independente da lei aplicável à sentença. Nesse sentido se pronunciou LUÍS DE LIMA PINHEIRO[16], que, baseando-se nesta interpretação autónoma, defende que a decisão pode ser considerada “obrigatória” a partir do momento em que não é susceptível de recurso ordinário. Justifica tal entendimento da seguinte forma: “a omissão da referência aos “meios de recurso ordinário” no texto final da Convenção parece dever-se tão-somente à circunstância de a distinção entre recursos ordinários e extraordinários ser estranha a alguns sistemas nacionais. Do exame dos trabalhos preparatórios da Convenção não resulta que o reconhecimento e a execução devam depender da eficácia da decisão segundo a lei do país de origem. O significado da conexão entre a arbitragem e o país de origem da decisão é muito variável, razão por que não se justifica que o reconhecimento e a execução da decisão dependam da eficácia da decisão perante a lei do país de origem.”.

No mesmo sentido, veja-se MARIA CRISTINA PIMENTA COELHO[17], que, citando VAN DEN BERG[18], defende que: “deverá contudo fazer-se uma interpretação deste termo alheada da lei aplicável à sentença já que o texto da alínea e) não associa a expressão “obrigatória” à referida lei. Ao fazer uma interpretação autónoma desta expressão, o citado autor conclui que a sentença só não será ainda obrigatória para as partes quando for possível revisão do mérito da causa por uma segunda instância arbitral ou pelos tribunais judiciais, ou seja, quando for ainda susceptível de recurso ordinário. Pelo contrário, seria obrigatória ainda que fosse passível de recurso extraordinário ou de anulação. Parece-me correcta esta interpretação.”[19].


Mas, como salientam vários autores, importa atentar na substituição da expressão “definitiva” prevista na Convenção de Genebra relativa à Execução das Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 26 de Setembro de 1927 (aprovada pelo Decreto n.º 18 942, de 11 de Setembro de 1930) pela expressão “obrigatória” prevista na CNI. Como salienta MARIA CRISTINA PIMENTA COELHO[20], esta alteração significa que “deixou de ser necessário que a sentença tenha força executiva no país de origem como acontecia na prática com a previsão da Convenção de Genebra, o que originava a exigência de um duplo xequátur (no país de origem e no país onde se pretendia executar a sentença).”[21].

No mesmo sentido, vejam-se LUÍS DE LIMA PINHEIRO[22], ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO[23] e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA[24].


*


Voltando ao caso concreto dos autos, a lei francesa, à semelhança do que sucede com a lei portuguesa, distingue entre a arbitragem interna regulada nos artigos 1442.º a 1503.º do Code de Procédure Civile, e a arbitragem internacional regulada nos artigos 1504.º a 1527 do mesmo Código.

De acordo com o disposto no artigo 1504.º do referido Código, na redacção introduzida pelo Decreto n.º 2011-48 de 13-01-2011: “Est international l'arbitrage qui met en cause des intérêts du commerce international”[25].

Esta noção de arbitragem internacional é semelhante à consagrada no artigo 49.º, n.º 1, da nossa actual LAV (que manteve o conceito previsto no art. 32.º da anterior Lei de Arbitragem Voluntária n.º 31/86, de 29-08).

A propósito deste conceito, no acórdão do STJ de 29-01-2014[26], entendeu-se que foi adoptado um “conceito lato de arbitragem internacional, no sentido de que compreende as arbitragens cujas partes se encontrem estabelecidas em países diferentes, e também aquelas que – embora apresentem conexão com um só país (v.g. por ambas as partes estarem estabelecidas nele e por as obrigações resultantes da relação material litigada deverem ser aí executadas) – versem sobre litígios emergentes de operações económicas que envolvam a circulação de produtos, serviços ou capitais através das fronteiras (designadamente, por o respectivo objecto ser um bem transferido ou a transferir por uma das partes de ou para outro país).”    

Adoptando a lei francesa esta noção lata de arbitragem internacional, importa salientar que no caso dos autos, não só as partes se encontram estabelecidas em países diferentes (as aqui recorrentes em Portugal e a recorrida em França), como também o presente litígio emerge de um contrato de Agente/Representante de Vendas nos termos do qual a recorrida se obrigava a prestar serviços em território francês relativos à venda de projectos fotovoltaicos de concentração desenvolvidos pelas recorrentes em Portugal.

Assim, julgamos não existirem dúvidas quanto à qualificação da arbitragem em causa como internacional à luz do regime francês.


Assim, são aplicáveis as disposições dos artigos 1504.º a 1527.º do Code de Procédure Civile francês, sendo que o artigo 1506.º remete apenas para algumas disposições que regulam a arbitragem interna.

Sem prejuízo da sentença arbitral poder ser rectificada ou complementada pelo próprio Tribunal arbitral nos termos previstos nos arts. 1485.º e 1486.º do referido Código, de acordo com o disposto nos dois primeiros parágrafos do art. 1484.º, aplicáveis à arbitragem internacional por remissão do referido art. 1506.º, na redacção introduzida pelo Decreto n.º 2011-48 de 13-01-2011, em vigor na data dos factos aqui em causa:

“La sentence arbitrale a, dès qu'elle est rendue, l'autorité de la chose jugée relativement à la contestation qu'elle tranche.

Elle peut être assortie de l'exécution provisoire.”.

(…)[27].

Por outro lado, o artigo 1516.º, na versão introduzida pelo Decreto n.º 2011-48 de 13-01-2011, aplicável ao caso dos autos dispõe que: “La sentence arbitrale n'est susceptible d'exécution forcée qu'en vertu d'une ordonnance d'exequatur émanant du tribunal de grande instance dans le ressort duquel elle été rendue ou du tribunal de grande instance de Paris lorsqu'elle a été rendue à l'étranger.

La procédure relative à la demande d'exequatur n'est pas contradictoire.

La requête est déposée par la partie la plus diligente au greffe de la juridiction accompagnée de l'original de la sentence et d'un exemplaire de la convention d'arbitrage ou de leurs copies réunissant les conditions requises pour leur authenticité.”.[28]

De acordo com o disposto no artigo 1517.º, na versão introduzida pelo mesmo Decreto n.º 2011-48 de 13-01-2011:

“L'exequatur est apposé sur l'original ou, si celui-ci n'est pas produit, sur la copie de la sentence arbitrale répondant aux conditions prévues au dernier alinéa de l'article 1516.

Lorsque la sentence arbitrale n'est pas rédigée en langue française, l'exequatur est également apposé sur la traduction opérée dans les conditions prévues à l'article 1515.

L'ordonnance qui refuse d'accorder l'exequatur à la sentence arbitrale est motivée.”[29].

Nos termos do disposto no art. 1518.º, na versão introduzida pelo mesmo Decreto n.º 2011-48 de 13-01-2011:

“La sentence rendue en France en matière d'arbitrage international ne peut faire l'objet que d'un recours en annulation.”[30].

Tal “recurso de anulação” só pode ter por fundamentos os previstos no artigo 1520.º do referido Código que não envolvem a revisão do mérito da sentença, mas a instauração de tal procedimento acarreta, nos limites do pedido formulado ao tribunal, a impugnação do despacho do juiz que proferiu o exequatur ou a renúncia deste, nos termos previstos no segundo parágrafo do art. 1524.º na versão introduzida pelo Decreto n.º 2011-48 de 13-01-2011 (… Toutefois, le recours en annulation de la sentence emporte de plein droit, dans les limites de la saisine de la cour, recours contre l'ordonnance du juge ayant statué sur l'exequatur ou dessaisissement de ce juge).

Porém, prevê o artigo 1526.º do mesmo Código, na versão introduzida pelo Decreto n.º 2011-48 de 13-01-2011 que:

“Le recours en annulation formé contre la sentence et l'appel de l'ordonnance ayant accordé l'exequatur ne sont pas suspensifs.

Toutefois, le premier président statuant en référé ou, dès qu'il est saisi, le conseiller de la mise en état peut arrêter ou aménager l'exécution de la sentence si cette exécution est susceptible de léser gravement les droits de l'une des parties.”[31].


Do acima exposto, resulta que, segundo a lei francesa, no âmbito da arbitragem internacional, as decisões arbitrais não são susceptíveis de recurso, sendo apenas possível, à semelhança do que sucede com o art. 46.º da nossa LAV, a instauração de uma acção de anulação da sentença arbitral cujos fundamentos não envolvem a revisão do mérito da sentença.

Porém, ao contrário da lei portuguesa em que, de acordo com o disposto no art. 42.º, n.º 7, da LAV, as sentenças arbitrais têm o mesmo carácter obrigatório entre as partes que a sentença de um tribunal estadual transitada em julgado e a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual, independentemente de qualquer processo de reconhecimento, no ordenamento francês, mesmo em sede de arbitragem internacional, a sentença arbitral só está sujeita à execução forçada em virtude de uma ordem de exequatur emitida pelo Tribunal de Grande Instance em cuja jurisdição foi proferida ou pelo Tribunal de Grande Instance de Paris quando foi proferida no estrangeiro (artigo 1516.º acima transcrito).

No caso dos autos, analisando os documentos apresentados pela requerente com a sua petição inicial, podemos constatar que, na última página da cópia da sentença arbitral aqui em causa, foi aposta pelo “Tribunal de Grande Instance de Paris”, a declaração de exequatur (“ordonnance d’exequatur”).

A instauração da acção de anulação da sentença arbitral pelas aqui recorrentes implica, segundo a lei francesa acima referida, a impugnação do despacho do juiz que proferiu o exequatur (segundo parágrafo do art. 1524.º). Porém, como também acima se referiu, a instauração desse “recurso de anulação”, bem como um eventual recurso interposto do despacho que concedeu o exequatur, não têm efeitos suspensivos, sem prejuízo do Tribunal poder suspender ou ajustar a execução da sentença, se esta execução for susceptível de ferir gravemente os direitos de uma das partes, o que no caso dos autos não foi alegado que tenha sucedido (artigo 1526.º acima transcrito).

De todo o acima exposto, decorre, em primeiro lugar, que a sentença arbitral que é objecto destes autos não é passível de recurso ordinário, ou seja, transitou em julgado, mas a lei francesa exige, para que a sentença arbitral possa ser objecto de execução, a emissão de uma declaração de exequatur por parte de um Tribunal estadual, o que sucedeu no caso dos autos. As autoridades francesas confirmaram assim, que a sentença arbitral é já passível de execução, não tendo a instauração da acção de anulação da sentença arbitral um efeito suspensivo sobre essa sentença, conforme se encontra expressamente previsto naquele ordenamento jurídico.


É, assim, manifesto que, quer interpretemos o requisito da obrigatoriedade da sentença previsto na al. e) do n.º 1 do artigo V da CNI de forma autónoma, nos termos acima expostos, quer o interpretemos à luz da lei do país onde foi proferida a sentença arbitral, no caso dos autos, a lei francesa, a sentença arbitral que é objecto destes autos já se tornou plenamente obrigatória para as partes, nos termos previstos na referida norma da CNI, não procedendo a argumentação das recorrentes no sentido de obstar a essa obrigatoriedade o facto de ainda se encontrar pendente nos tribunais franceses um recurso de anulação da sentença arbitral aqui em causa.


Acresce que no regime previsto na CNI, a pendência desse recurso nunca seria impeditiva da procedência da presente acção nos tribunais portugueses, o que resulta da conjugação dos fundamentos de recusa de reconhecimento e a execução da sentença previstos no art. V com o regime previsto no artigo VI da Convenção.

Com efeito a alínea e) do n.º 1 do art. V da CNI acima já transcrita prevê que: “O reconhecimento e a execução da sentença só serão recusados, a pedido da Parte contra a qual for invocada, se esta Parte fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução forem pedidos a prova: e) De que a sentença ainda não se tornou obrigatória para as Partes, foi anulada ou suspensa por uma autoridade competente do país em que, ou segundo a lei do qual, a sentença foi proferida. (destaque nosso).

Deste preceito decorre que, no caso concreto dos autos, o reconhecimento e a execução da sentença só seriam recusados se já tivesse sido proferida pelas autoridades francesas decisão definitiva que anulasse ou suspendesse a sentença arbitral, o que não sucedeu. Na verdade, os tribunais franceses de 1.ª instância rejeitaram o pedido de anulação de sentença, estando ainda pendente recurso dessa decisão.


Esta disposição legal deve ser conjugada com o artigo VI da CNI segundo o qual “Se a anulação ou a suspensão for requerida à autoridade competente prevista no artigo V, nº 1, alínea e), a autoridade perante a qual a sentença for invocada poderá, se o considerar adequado, diferir o momento da sua decisão relativa à execução da sentença; poderá igualmente, a requerimento da parte que solicitar a execução da sentença, exigir da outra parte a prestação das garantias adequadas” (destaque nosso).

Torna-se claro que enquanto se encontrar pendente o pedido de anulação da sentença às autoridades francesas, os tribunais portugueses poderão, se o considerarem adequado, o que envolve alguma discricionariedade como admitem as próprias recorrentes, diferir o momento da sua decisão relativa à execução da sentença ou, a requerimento da parte que solicitar a execução da sentença, exigir da outra parte a prestação das garantias adequadas.

No nosso direito interno, como é explanado no acórdão recorrido, este poder discricionário previsto no artigo VI da CNI encontra-se concretizado no n.º 2 do art. 56.º da LAV segundo o qual: “Se um pedido de anulação ou de suspensão de uma sentença tiver sido apresentado num tribunal do país referido na subalínea v) da alínea a) do n.º 1 do presente artigo, o tribunal estadual português ao qual foi pedido o seu reconhecimento e execução pode, se o julgar apropriado, suspender a instância, podendo ainda, a requerimento da parte que pediu esse reconhecimento e execução, ordenar à outra parte que preste caução adequada.”


A interpretação acima preconizada é defendida por MARIA CRISTINA PIMENTA COELHO[32], que, a propósito deste artigo VI da CNI refere que “o reconhecimento e execução só serão recusados se a sentença tiver sido efectivamente anulada ou suspensa no país de origem e isto porque a experiência revela que os pedidos de anulação da sentença são, na maior parte das vezes, expedientes dilatórios e, regra geral, não atendidos. Se apenas foi intentada uma acção de anulação ou suspensão então rege o art. VI que permite ao juiz, se achar conveniente, adiar ou suspender a decisão e, a pedido da parte que pretende a execução, exigir à outra parte que preste as garantias convenientes.”.

Como sustenta a mesma autora, “um problema que pode surgir ainda quanto à matéria da anulação é o facto de esta ocorrer no país de origem depois de decidida a execução da sentença num dos Estados Contratantes. Neste caso parece razoável impedir a execução mas esta questão terá que ser decidida pela lei do país onde a execução foi decretada (ex vi art. III).”.


Também, MANUEL PEREIRA BARROCAS[33], a propósito do disposto no art. 56, n.º 1, al. a), subalínea v), e n.º 2, da nossa LAV que segue o mesmo regime consagrado na CNI nos seus arts. V e VI, escreve que: “Constitui doutrina internacional dominante e, bem assim, face aos regulamentos das principais instituições arbitrais (CCI, LCIA e ao regime da Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Internacional, etc.) a que entende que uma sentença arbitral é obrigatória quando já não for suscetível de qualquer recurso ordinário e, por isso, se tenha tornado firme com efeitos de caso julgado, de modo idêntico ao que é próprio das decisões judiciais definitivas, ou seja, transitadas em julgado segundo a lei do país em que a sentença arbitral foi proferida. Deste modo, é admissível um pedido de reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira que já não seja suscetível de recurso ordinário, embora possa ainda estar em tempo a formulação de um recurso extraordinário ou de um pedido de anulação, dado que, designadamente, este último não constitui um recurso, mas uma ação constitutiva própria. Neste caso, a parte que solicitou a anulação poderá valer-se da faculdade estabelecida no número 2. do artigo 56.º da LAV (…)”.


Também MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA[34], refere que é necessário “para que o tribunal recuse o reconhecimento ou execução pedidos, que a decisão judicial estrangeira de suspensão ou de anulação da sentença seja já operativa, obrigatória - porque, se estiver sujeita a recurso com efeito devolutivo ou a correr prazo para a formação de caso julgado, o tribunal português não pode tomá-la (tal decisão) em consideração para obstar ao reconhecimento ou execução pedidos, podendo porém suspender o processo em curso para esse efeito, ao abrigo do subsequente n.º 2.”


No mesmo sentido de que a recusa de reconhecimento e execução da sentença arbitral estrangeira ao abrigo do artigo V, n.º 1, alínea e) da CNI exige que a anulação da sentença arbitral pelo tribunal do Estado onde se sediou o tribunal arbitral seja definitiva, veja-se ANTÓNIO PEDRO PINTO MONTEIRO, ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA e DANIELA MIRANTE[35].


Portanto, no caso dos autos, não se verifica, à luz da CNI, o fundamento invocado de recusa de reconhecimento da sentença arbitral que é objecto destes autos.


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Como refere o acórdão recorrido, a sentença arbitral estrangeira em apreço transitou em julgado, logo se tendo tornado “obrigatória” para as partes, a tanto não obstando a circunstância de ter sido intentada, no competente tribunal estadual francês, uma ação de anulação da mesma (que, apesar da designação “recurso de anulação”, não se trata de um recurso).

Muito embora ainda não tenha transitado em julgado a sentença do tribunal estadual francês que decidiu pela improcedência dessa ação de anulação, o certo é que não está comprovado que a sentença arbitral cujo reconhecimento vem peticionado tenha sido anulada ou suspensa por um tribunal de França - cf. artigo V, n.º 1, al. e), da CNI -, não colhendo, pois, a argumentação que a este respeito foi desenvolvida pelas Requeridas, orientada que foi no sentido da suspensão da instância, a qual cessou quando este Tribunal da Relação o considerou adequado.” (destaque nosso).


Ou seja, as Recorrentes parecem confundir duas realidades distintas: (i) o trânsito em julgado da decisão revidenda, proferida Árbitro único do Centro de Arbitragem e Mediação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual e (ii) o trânsito em julgado da decisão da acção de anulação.

Com efeito, a propositura da segunda acção (a de anulação), não obsta ao trânsito em julgado da primeira, desde logo, porque a ação de anulação não tem, nem produz, os efeitos de um recurso ordinário.

Como tal, a decisão revidenda é obrigatória para as partes, já que não foi, entretanto, anulada, em sede de ação de anulação de decisão arbitral.


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Quanto ao facto de a instância ter sido suspensa num primeiro momento pelo Tribunal recorrido que, posteriormente, determinou a cessação dessa suspensão, julgando procedente a acção, julgamos que não procede a alegação das recorrentes no sentido de que a súbita inversão de posição do Tribunal a quo se revelou atentatória dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos.


O princípio da segurança jurídica vem previsto no artº 2º da CRP.

Sustentam a recorrentes que tal princípio foi violado na medida em que (dizem) teve lugar uma “alteração súbita e infundada da orientação do Tribunal, ao fazer cessar a suspensão da instância e conceder a revista da sentença estrangeira”.


Ora, a possibilidade de suspensão da instância está prevista na Convenção de Nova Iorque, mais concretamente, no art. VI, que reza: “[s]e a anulação ou a suspensão da sentença for requerida à autoridade competente prevista no artigo V, n.º 1, alínea e), a autoridade perante a qual a sentença for invocada poderá, se o considerar adequado, diferir o momento da sua decisão relativa à execução da sentença; poderá igualmente, a requerimento da parte que solicitar a execução da sentença, exigir da outra Parte a prestação das garantias adequadas.”.

Assim se vê, desde logo, que – como admitem as próprias recorrentes – , em primeiro lugar, se trata de um poder discricionário concedido ao tribunal (o diferimento da decisão constitui uma faculdade do Tribunal perante o qual o reconhecimento é requerido); e, em segundo lugar, como consta da fundamentação do acórdão recorrido, num primeiro momento foi considerado adequado suspender a instância atenta a pendência do “recurso de anulação” da sentença arbitral junto dos tribunais franceses. Mas perante a informação de que o tribunal de 1.ª instância francês indeferiu o pedido de anulação da sentença arbitral, julgando improcedentes todos os fundamentos aduzidos pelas aqui recorrentes, apesar de ter sido interposto recurso dessa decisão, julgou adequado (justo e proporcional face aos interesses e direitos envolvidos) não manter a referida suspensão da instância por se ter tornado mais improvável que a sentença venha a ser anulada, julgando-se adequado prosseguir a presente acção, o que é plenamente justificado à luz do regime constante da CNI e da LAV, nos termos acima expostos.


Ou seja, nada obstava a que o Tribunal a quo, alteradas as circunstâncias iniciais, e após ponderação das mesmas, tenha decidido como decidiu, porquanto tal decisão se enquadra, na íntegra, na faculdade a que alude o disposto no art. VI da Convenção de Nova Iorque e no âmbito do poder discricionário que ali é reconhecido ao Tribunal a quo.

Ou seja, o Tribunal da Relação optou por aplicar a lei com base na prova produzida pela ora Recorrida relativa ao desfecho da ação de anulação pendente nos tribunais, no estrito cumprimento das disposições legais aplicáveis, nada resultando ou podendo ser qualificado como surpreendente ou inesperado, face à legislação aplicável.


Escreveu-se no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 17/1984 (relator Monteiro Diniz): “O cidadão deve poder prever as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas. Ele deve poder confiar em que a sua actuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes.”.

Ora, o Tribunal da Relação de Lisboa, ao levantar a suspensão e decidir pelo reconhecimento da decisão arbitral, não assumiu qualquer conduta que as Recorrentes não pudessem esperar ou prever, visto não ser legitimamente espectável para as Recorrentes que a suspensão se mantivesse ad aeternum, sobretudo perante a prolação de uma decisão pela Cour D’Appel de Paris que negou provimento à acção de anulação que propuseram.


Em suma, o Tribunal limitou-se a aplicar a lei – em concreto, o disposto no art. VI da Convenção de Nova Iorque – , fundamentando de forma clara, suficiente e justificada a razão pela qual determinou o fim da suspensão.


Uma observação final se impõe aqui deixar: se as Recorrentes entendem que se impunha que “a suspensão se tivesse mantido e que não fosse concedida a revisão de que ora se recorre”, naturalmente que sempre tinham à sua disposição um mecanismo legal que lhes permitiria obter a suspensão da instância, qual seja, a prestação de caução. No entanto, apesar de o poder fazer, o certo é que não lançaram mão de tal mecanismo – o que vai de encontro à tese da recorrida (que, aliás foi sufragada pelo tribunal francês) de que a interposição de recurso, naquela jurisdição, como em Portugal, não passará de uma manobra dilatória das Recorrentes que visa atrasar e obviar ao efeito último da sentença arbitral: proceder ao pagamento das quantias devidas à Recorrida.


A propósito, escreveu-se no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-06-2011 - relator Abrantes Geraldes - processo n.º 2004/08.06TVLSB-A-7[36]:

 [F]oi deste modo que a C.N.I. procurou compatibilizar os interesses contrapostos: ao admitir a possibilidade de ser diferida a formação do título executivo, tutelou o Réu contra os riscos de uma execução fundada em sentença arbitral cuja anulação ou suspensão foi requerida; ao prever a exigibilidade de caução, procurou tutelar os interesses do Autor que tem a seu favor a sentença arbitral transitada em julgado.”.


Assim, crê-se que razão assiste à Recorrida ao referir que “o que verdadeiramente resultava desproporcionado na situação gerada nos presentes autos com a suspensão inicialmente decretada, era o ónus, manifestamente excessivo, colocado sobre a Recorrida, titular de uma decisão transitada em julgado, de ver obstaculizada a possibilidade que a lei lhe concede de executar a decisão de que é titular, sem que, sequer, tivesse sido ordenado às Recorrentes a prestação de caução com vista à salvaguarda e tutela das expectativas e possibilidades de cobrança do crédito da Recorrida.”.


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III.2.3. Foram violados no processo arbitral os princípios do contraditório e igualdade das partes que constituem princípios integrantes da ordem pública internacional do Estado Português?


Por último, as recorrentes alegam que no processo arbitral foram violados os princípios do contraditório e igualdade das partes, no que respeita à sua ausência no dia da audiência em 3 de Junho de 2019, sendo certo que o Árbitro se baseou principalmente nas declarações da testemunha interrogada durante essa audiência e no depoimento escrito de outra testemunha, para concluir pela condenação das aqui recorrentes.

Sustentam as recorrentes que, dada a recusa do Árbitro de adiar a audiência, esta testemunha não pôde ser contra-interrogada nem lhes foi possível pedir esclarecimentos sobre o depoimento escrito da outra, quando o certo é que a afirmação em que o árbitro se louva resulta de um equívoco desta testemunha que poderia ter sido esclarecido em audiência, se a Requerida e o seu mandatário, tivessem podido estar presentes.

Invocam a seu favor os princípios consagrados nos arts. 3º, nº 1, e 4.º do nosso Código de Processo Civil, que se resumem, afinal, na exigência de um processo equitativo de que fala o artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, os quais, não foram observados na decisão revidenda, o que deveria ter, inevitavelmente, conduzido à recusa da sua confirmação pelo Tribunal a quo, nos termos do artigo 980.º do Código de Processo Civil.

Mais alegam que a confirmação da sentença arbitral proferida com violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, conduz a um resultado incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, pois tais princípios são a expressão de um adquirido civilizacional que vincula o Estado português, interna e internacionalmente, e a sua natureza é de tal modo imperativa e definidora do Estado de Direito que a sua inobservância contamina irremediavelmente qualquer decisão judicial.

           

Como já acima referimos, é aplicável ao caso dos autos a CNI, sem prejuízo de aplicação da nossa lei interna nos casos em que se mostrar mais favorável ao reconhecimento da sentença arbitral, como decorre do n.º 1 do artigo VII da referida Convenção.

De acordo com o disposto no artigo V, n.º 1, alínea b, da CNI: “O reconhecimento e a execução da sentença só serão recusados, a pedido da Parte contra a qual for invocada, se esta Parte fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução forem pedidos a prova: (…) b) De que a Parte contra a qual a sentença é invocada não foi devidamente informada quer da designação do árbitro quer do processo de arbitragem, ou de que lhe foi impossível, por outro motivo, deduzir a sua contestação”.

A doutrina tem integrado no âmbito deste preceito, a violação do princípio do contraditório e do princípio da igualdade[37].

A doutrina tem também realçado a necessidade de articular este preceito com a alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo V da CNI, no qual se prevê que: “Poderão igualmente ser recusados o reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral se a autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução foram pedidos constatar: (…) b) Que o reconhecimento ou a execução da sentença são contrários à ordem pública desse país.”

Sobre a articulação destes dois preceitos, sendo que o primeiro prevê fundamentos que não são de conhecimento oficioso, ao contrário do segundo preceito, ANTÓNIO PEDRO PINTO MONTEIRO, ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA e DANIELA MIRANTE[38] defendem o seguinte: “O fundamento assente na violação dos princípios fundamentais do processo equitativo coloca dois problemas essenciais. Em primeiro lugar, deve afastar-se uma concepção que entenda os pressupostos previstos no artigo V (1), alínea b) da CNI como taxativos, designadamente, podendo esta recusa relativa aos princípios fundamentais do processo equitativo ter lugar somente nas situações em que uma (i) parte "não foi devidamente informada quer da designação do árbitro quer do processo de arbitragem" ou que (ii) a uma parte "foi impossível, por outro motivo, deduzir a sua contestação".

Em segundo lugar, e sem prejuízo de poder discutir se, neste contexto, não se deve adoptar uma interpretação extensiva deste fundamento de reconhecimento e execução, julgamos que nos casos que não se encontram expressamente previstos, mas que ainda assim constituem um princípio fundamental do processo equitativo, a solução passará, numa lógica de especialidade em relação ao artigo V (1), alínea b) da CNI, pela aplicação do fundamento previsto no artigo V (2), alínea b), verificando sempre se existe uma violação da ordem pública processual.”.

Sobre a articulação destes dois fundamentos, também MARIA CRISTINA PIMENTA COELHO[39] refere que “O facto de a violação dos direitos da defesa poder ser invocada pela parte interessada não exclui a possibilidade de o juiz apreciar oficiosamente a questão e recusar o reconhecimento e execução da sentença com base em ofensa da ordem pública, tanto mais que a parte pode não ter invocado tal argumento.

Como acima referimos, as recorrentes também afirmam no seu recurso, sem mencionar a Convenção de Nova Iorque, que a confirmação da sentença arbitral proferida com violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, conduz a um resultado incompatível com a ordem pública internacional do Estado português.

Importa começar por referir que na alínea b) do n.º 2 do artigo V da CNI, se prevê a contrariedade com a ordem pública do país onde é pedido o reconhecimento e execução, ou seja, toda a ordem pública desse ordenamento, enquanto no nosso direito interno se prevê, no art. 56.º, n.º 1, b), ii), da LAV, a contrariedade com a ordem pública internacional do Estado português, o que de alguma forma é mais limitativo do que a disposição constante daquela Convenção. Dessa forma, no que respeita a este específico fundamento de recusa de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, prevendo-se na nossa lei interna um regime mais favorável a esse reconhecimento do que aquele que é previsto na CNI, de acordo com o art. 7.º, n.º 1, desta Convenção, é aplicável a nossa lei interna.


Sobre o conceito de ordem pública internacional do Estado português em sede de acções de reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras, este Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado em vários acórdãos, destacando-se os seguintes (cujos sumários, nas partes relevantes, transcrevemos):


Ac. de 10-11-2020- Revista n.º 2004/08.6TVLSB.L2.S1 (José Raínho) – in www. stji.pt:

I - Tendo a sentença revidenda discorrido de forma a qualificar a estipulação das partes como cláusula penal com natureza reparadora e coercitiva, e condenado no pagamento do montante nela estabelecido, correspondente a 15,6% do elevado valor do negócio em que se insere (USD 160.000.000,00), não se pode dizer que se está perante uma estipulação de natureza meramente punitiva nem perante uma condenação à margem de qualquer do dano.

II - Uma tal sentença não contém decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública do Estado Português, nem o reconhecimento contende com os princípios da justiça, proporcionalidade, equidade e igualdade.

III - Sem prejuízo da possibilidade da sua redução quando manifestamente excessiva, é da própria natureza da cláusula penal a pré-fixação de um determinado quantum indemnizatório, com a consequente exigibilidade do seu pagamento sem necessidade de alegar e provar a existência de danos.


Ac. de 14-03-2017  - Revista n.º 103/13.1YRLSB.S1 (Alexandre Reis) – in www.stj.pt:

I - Os termos do reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira são regulados, no nosso direito comum, pela LAV (capítulo X), ressalvando-se, porém, expressamente, no seu art. 55.º, n.º 1, o que é imperativamente preceituado, a esse propósito, pela Convenção de Nova Iorque de 1958 (de que tanto Espanha como Portugal são partes).

II - A circunstância de a referida Convenção visar facilitar o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras não significa um reconhecimento incondicionado ou sem limites de tais sentenças, estatuindo o seu art. V, n.º 2, al. b), que o reconhecimento poderá ser recusado se a autoridade competente do país em que o mesmo for pedido constatar que o mesmo é contrário à ordem pública desse país, sendo consensual que a ordem pública de que aqui se fala, por suscitar uma questão de direito internacional privado, é apenas a internacional – o que, aliás, foi expressamente consagrado pelo art. 56.º, n.º 1, al. b), ii), da LAV, a cuja luz deve ser interpretado, no nosso ordenamento, este fundamento de recusa de reconhecimento.

III - Por sua vez, a interpretação da Convenção de Nova Iorque deverá ser feita tendo em conta as recomendações da Associação de Direito Internacional (ILA) sobre a aplicação da ordem pública como motivo de recusa de reconhecimento ou de execução de decisões arbitrais internacionais (adoptadas pelo Internacional Council for Commercial Arbitration), reconhecendo-se aí a importância da finalidade da arbitragem, mas também o papel da ordem pública na defesa de princípios fundamentais.

IV - A ordem pública internacional tem como características: (i) a imprecisão; (ii) o cariz nacional das suas exigências (que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles); (iii) a excepcionalidade (por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada); (iv) a flutuação e a actualidade (intervém em função das concepções dominantes no tempo do julgamento, no país onde a questão se põe); e (v) a relatividade (intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado do reconhecimento).

V - Trata-se, assim, de um conceito indeterminado que, como os demais, em qualquer ordem jurídica, terá de ser concretizado pelo juiz no momento da sua aplicação, tomando em conta as circunstâncias particulares do caso concreto; porém, a sua actuação positiva sobre o resultado obtido pela decisão arbitral estrangeira – recusando o seu reconhecimento – não comporta qualquer juízo sobre a adequação da aplicação nela feita do direito tido por aplicável, nem, muito menos, de desvalor sobre o ordenamento jurídico estrangeiro: a acção preclusiva da ordem pública internacional incide unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si.

VI - O controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado do foro não se confunde com revisão: o juiz não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal arbitral para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro; ainda assim, quando o controlo se destina a verificar se o resultado da decisão é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado, poderá não bastar a análise do dispositivo da sentença por este ser, em geral, neutro, se desligado da vistoria ao raciocínio até ele percorrido pelo tribunal.

VII - Ainda que não seja possível determinar, a priori, o conteúdo da cláusula geral da ordem pública internacional, é latamente consensual a ideia de que o mesmo é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internacional do Estado, o mesmo sucedendo com os princípios fundamentais do Direito da União Europeia e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem os da boa fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária, quanto de fonte nacional.

VIII - Considerando, porém, que os aludidos princípios possuem um conteúdo normativo amplo ou indeterminado, a invocação da sua violação, como fundamento de recusa do reconhecimento de sentença arbitral, terá de ser sujeito a acentuadas restrições e daí que a contrariedade à ordem pública do país do reconhecimento a que alude o art. 56.º, n.º 1, al. b), ii), da LAV pressuponha que esse reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português e não meramente divergente daquele que resultaria da aplicação do direito português.

IX - Estando em causa uma sentença arbitral, proferida por um árbitro, ao abrigo da lei espanhola, que condenou o requerido (um advogado português), pelo seu declarado incumprimento de um pacto de não concorrência, no pagamento às requerentes (sociedades de advogados) de quantia superior a 4,5 milhões de euros ao abrigo de uma cláusula penal convencionada, este resultado – que adviria do respectivo reconhecimento – atingindo uma ordem de grandeza absolutamente desproporcionada (porquanto equivalente ao rendimento de mais de 25 anos de exercício profissional), colide estrondosamente com os nossos bons costumes, com o princípio da boa fé e com o princípio da proporcionalidade (ou da proibição do excesso), para além de restringir, em patente demasia, a liberdade pessoal e económica do requerido e, consequentemente, os fundamentalíssimos direitos, consagrados constitucionalmente, de liberdade de escolha da profissão e da livre iniciativa económica (arts. 18.º, 47.º e 61.º da CRP).

X - A dignidade do exercício da advocacia, compartilhada por todos os países que nos são culturalmente próximos, não é compatível com o tratamento dispensado a uma qualquer actividade mercantil, já que se trata de “uma actividade que, pela sua própria natureza, pelas regras a que está sujeita e pelo seu objecto, é estranha à esfera das trocas económicas”, assegurando a lei aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos actos próprios de forma isenta, independentemente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

XI - Em consequência, o advogado – quer exerça a sua profissão isoladamente, quer o faça integrado em estruturas organizativas e na relação de colaboração com colegas ou terceiros –, não pode ficar adstrito a obrigações susceptíveis de comprometerem a sua liberdade e independência, bem como a relação de confiança com o seu cliente ou a defesa do interesse deste.

XII - É também por isso que o Estado delegou na OA a sua função essencial de garantir aos cidadãos e demais sujeitos de direito um acesso adequado à justiça e ao direito, sendo razões imperiosas e de interesse geral que, relativamente ao exercício da profissão de advogado no território nacional, explicam o cometimento à referida pessoa colectiva de direito público da regulamentação de tal exercício e das respectivas condições.

XIII - Estando em causa um litígio que tem a ver com o facto de um advogado português, inscrito na OA de Portugal, ter deixado de exercer a sua actividade profissional (que nunca praticou em Espanha), no âmbito da estrutura organizativa de uma sociedade portuguesa, em Portugal, e de, sequentemente, ter passado a integrar a estrutura de uma outra sociedade de advogados, também em Portugal – e, portanto, sem qualquer conexão com o país (Espanha) no qual se localizou a arbitragem – as regras, incluindo as de organização do exercício da profissão de advogado, foram subtraídas à regulamentação e à fiscalização da pessoa colectiva de direito público delas incumbida, não obstante as razões imperiosas e de interesse geral que explicam o seu cometimento à mesma.

XIV - Por outro lado, a própria convenção de arbitragem, ao remeter para um enquadramento legal que – para além de nenhuma conexão ter com a relação jurídica a que respeita o litígio – supostamente, veda o recurso à moderação, segundo a equidade, no que toca ao montante declaradamente resultante do accionamento da referida cláusula penal, é intolerável por colidir com o princípio fundamental da nossa ordem jurídica destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes do exercício da liberdade contratual ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações, o qual, por ter subjacente o princípio da boa fé, é regulado em termos que o tornam imperativamente inarredável (art. 812.º do CC).

XV - Conduzindo a sentença arbitral estrangeira em questão a um resultado chocante, intolerável e inassimilável pela ordem pública internacional do Estado português, dado o atropelo grosseiro, clamorosa e flagrante do sentimento ético-jurídico dominante e de interesses de primeira grandeza da comunidade local, a decisão recorrida poderia ter recusado – como fez – o pedido de reconhecimento da referida sentença.


Ac. de 23-10-2014 - Revista n.º 1036/12.4YRLSB.S1 - Granja da Fonseca – in www.stj.pt:

I - À revisão de sentença arbitral proferida por tribunal arbitral sedeado em Estado que haja subscrito a Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de 1958 aplica-se primordialmente este tratado internacional, estando o tribunal estadual português, a quem é pedido o reconhecimento da mesma, adstrito a recusá-lo quando oficiosamente constate que o resultado a que se chegou naquela decisão contraria a ordem pública internacional do Estado Português.

II - O conceito de ordem pública internacional é vago, fluído e impreciso mas, numa aproximação com escopo meramente operativo, podemos, para o efeito assinalado em I, designá-la como uma amálgama de valores basilares e concepções dominantes de índole social, ética, política e económica expressos em princípios e regras que o aplicador deve, em cada momento histórico, interpretar e reconhecer a fim de apreciar se os mesmos se podem ter como afrontados pelo resultado a que se chegou na sentença arbitral revidenda.

III - A contrariedade à ordem pública internacional do Estado Português avalia-se em função do efeito jurídico a que a decisão arbitral conduz, irrelevando os fundamentos em que ela se ateve.

IV - O reconhecimento do direito à indemnização de clientela prevista no art. 33.º do DL n.º 178/86, de 03-07, a um concessionário assenta numa analogia que não prescinde da averiguação concreta das circunstâncias de cada caso, pelo que, sem mais, não se pode considerar que o direito português outorga àquele tal benefício, o que equivale por dizer que o facto de não se lhe conceder tal compensação não se revela manifestamente intolerável à luz da ordem pública internacional do Estado Português.

V - Sendo inviável, a partir dos factos apurados, considerar que a recorrente estava em condições de preencher os pressupostos que têm sido avançados para efectuar essa equiparação, não se pode concluir que afronta a ordem pública internacional do Estado Português uma decisão arbitral em que não se lhe reconheceu o direito a uma indemnização clientela. VI - Muito embora o art. 33.º do DL n.º 178/86, de 03-07, deva ser considerado como uma norma imperativa – e, como tal, integrante da ordem pública nacional - tal constatação não implica, em atenção ao seu fundamento ou à natureza da indemnização de clientela, que a sua desaplicação pela decisão arbitral – por invocação de outra norma escolhida pelas partes e por outras razões – conflitue com a ordem pública internacional do Estado Português.


Ac. de 14-03-2013 - Revista n.º 7328/10.0TBOER.L1.S1 (Sérgio Poças) - Não publicado na DGSI. Sumário disponível em www.stj.pt:

I - No quadro legislativo aplicável em sede de confirmação de sentença estrangeira – art. 1096.º, al. f), do CPC e art. V, n.º 2, als. a) e b), da Convenção sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras de Nova Iorque, de 10-10-1958 – o reconhecimento e a execução de sentença arbitral só podem ser recusados se forem manifestamente contrários aos princípios da ordem pública internacional portuguesa.

II - Existe incompatibilidade da decisão com a ordem pública se da sua aplicação resultar uma lesão insuportável ao mais profundo sentimento ético-jurídico do sistema português, enquanto conjunto de regras e princípios gerais imperativos.

III - Resultando dos autos que as partes livremente celebraram o contrato com as cláusulas que tiveram como adequadas – e não obstante se possa em tese equacionar o maior ou menor carácter oneroso da cláusula penal fixada – não se pode afirmar que dessa cláusula resulte uma lesão insuportável no sentimento ético a que se alude em II.

IV - A sentença cujo reconhecimento é pedido condenou a demandada segundo o direito francês, no termos de uma cláusula penal, aliás também permitida no direito português, não se revelando a mesma incompatível com qualquer princípio de ordem pública internacional do Estado português.


Ac. de 22-09-2011 - Revista n.º 1772/06.4TVLSB.L1.S1 (Silva Gonçalves) - Sumário disponível em www.stj.pt:

I - Os princípios que orientam o nosso sistema jurídico apontam no sentido de que os recursos visam o reestudo por tribunal superior de questões já vistas e resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia do Tribunal ad quem sobre questões novas, salvo nos casos em que se verifica matéria de conhecimento oficioso.

II - Ora, como da discussão da causa emerge, o cerne de tudo o que nela se analisa e debate prende-se especialmente com a problemática de saber se o nosso ordenamento jurídico concede à recorrente “S.H.A, S.A.” o direito que invoca de ser indemnizada pela clientela que fez acrescer à recorrida “S.” e, do mesmo modo, caso se afirme que à recorrente lhe assiste esta regalia, a de averiguar se, ao denegar à S.H.A. o pedido indemnização de clientela por si formulado o Tribunal Arbitral escolhido pelas partes violou a ordem pública portuguesa.

III - Estas duas contingências jurídico-positivas não são episódios despiciendos para a solução que se terá de conferir às partes e, por isso, sempre haverá de, inexorável e oficiosamente, conhecer-se delas, tudo porque nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro ou por árbitros no estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada (n.º 1 do art. 1094.º, do CPC), princípio este ao qual o disposto no art. III da Convenção Sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, atrás transcrito, dá expressamente o seu assentimento (cada Estado signatário reconhecerá as sentenças como obrigatórias e as executará em conformidade com as regras de procedimento do território no qual a sentença…).

IV - Ora, um dos requisitos necessários para que a sentença arbitral possa ser confirmada é que ela não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português – al. f) do art. 1096.º, do CPC.


Ac. de 02-02-2006 - Revista n.º 3766/05 (Oliveira Barros) – in www.stj.pt:

I - De harmonia com o art. V, n.º 1, al. b), da Convenção de Nova Iorque de 10-06-1958 sobre o reconhecimento de decisões arbitrais estrangeiras, é sobre a parte contra a qual for invocada a sentença arbitral que incide o ónus da prova de que não foi devidamente informada quer da designação do árbitro, quer do processo de arbitragem.

II - Para que a parte possa ser julgada - devidamente informada - da designação do árbitro e do processo de arbitragem nos termos e para os efeitos do art. V, n.º 1, al. b), da Convenção referida não é necessário que a citação para o processo arbitral tenha sido efectuada através de carta registada com aviso de recepção e com tradução em vernáculo.

III - A regularidade da citação do réu para a acção exigida na al. e) do art. 1096.º do CPC deve ser apreciada com referência à lei do tribunal de origem.

IV - Visto que o processo de arbitragem tem o seu formalismo próprio, é à luz da lei do procedimento arbitral, e não segundo a lei processual portuguesa, que deve ser aferida a questão de saber se a citação para esse processo foi feita na forma devida, sendo sem cabimento a exigência de carta registada com aviso de recepção fundada nos arts. 233.º, n.º 2, al. a), 236.º e 247.º do CPC.

V - Não estipulada na Convenção aludida qualquer forma específica de comunicação dos actos, o que na realidade importa averiguar para esse efeito é se a parte contra quem a sentença é invocada foi ou não efectivamente colocada em posição de, querendo, poder fazer valer os seus pontos de vista perante os árbitros.

VI - Quando no art. V, n.º 2, al. b), da Convenção referida se estabelece que o reconhecimento ou a execução da sentença poderão ser recusados se forem contrários à ordem pública é, ainda, a chamada - ordem pública internacional do Estado português - referida na al. f) do art. 1096.º do CPC que se tem em vista.

VII - Constituída por um conjunto de princípios fundamentais estruturantes da presença do País no concerto das nações, - como é, designadamente, o caso da regra pacta sunt servanda -, nenhum princípio dessa ordem pública exige a citação por carta registada com aviso de recepção e que nela se use a língua nacional do citando.


Ac. de 09-10-2003 - Revista n.º 1604/03 (Pires da Rosa) - in www.stj.pt:

I - Nos termos da Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958 (ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/94, de 8 de Julho) o reconhecimento e a execução de uma qualquer sentença arbitral proferida no território de um dos estados contratantes poderão ser recusados no território de outro estado contratante nos casos contados previstos no art.º V da Convenção, designadamente «se forem contrários à ordem pública desse mesmo país».

II - Do que se fala quando aqui se fala em «ordem pública» é da chamada «ordem pública internacional», ou seja, dos princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações.

III - De princípios, no que aqui nos importa, como o que siga a máxima latina pacta sunt servanda ou o que não negue a ninguém a possibilidade de defesa dos seus direitos e interesses legítimos pelo recurso aos tribunais, mas que reconheça a cada um, no domínio dos direitos de que possa dispor, a possibilidade de recorrer a outras formas de obtenção de justiça, fora dos tribunais estaduais, mas não já de um princípio que supra a insuficiência de meios de quem - como as sociedades comerciais - só existe, ontologicamente, enquanto puder assegurar os meios económicos necessários à sua própria existência. IV - As normas insertas na Convenção de Nova Iorque são normas de direito internacional, normas que de acordo com o art.º 8 da Constituição da República prevalecem tanto sobre o direito interno anterior como posterior, designadamente sobre os invocados art.º s 1100 e 1096, al. e ) do CPC.


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Como dito, invocam as Recorrentes a violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes.

Como se afirma no acórdão recorrido, “sendo o princípio do contraditório e do princípio da igualdade das partes, consagrados nos artigos 3.º e 4.º do CPC, uma decorrência do princípio mais abrangente da tutela jurisdicional efetiva contido no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa e do direito a um processo equitativo consagrado no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a sua ostensiva violação poderá certamente ser considerada uma ofensa de princípios integrantes da ordem pública internacional do Estado português.”.

Esta conclusão contida no acórdão recorrido não merece qualquer reparo.


Segundo as recorrentes, a violação dos referidos princípios assenta nos seguintes pontos:

“– a recusa de adiamento da audiência designada para o dia 03-06-2019, não obstante o impedimento das Requeridas e do seu mandatário;

– a realização da audiência na data designada na ausência das Requeridas e do seu mandatário;

– a própria inquirição da testemunha apresentada pela Requerida, apesar da respectiva comparência para contra-interrogatório não ter sido pedida pelas Requeridas;

– a permissão concedida à Requerente para interrogar extensamente a sua própria testemunha,

– a impossibilidade de as Requeridas procurarem esclarecer os depoimentos escritos das testemunhas por si apresentadas.”.

               

Ora, salvo melhor opinião, esta argumentação das recorrentes não encontra qualquer suporte nos factos provados pela Relação (que, note-se, as recorrentes nem sequer impugnam).

Com efeito, sobre a marcação e realização desta audiência e os actos processuais que a antecederam, ficaram provados os seguintes factos:

“- Em 23-11-2018, a Requerente apresentou por e-mail a sua Réplica e solicitou que a sentença assentasse apenas em documentos;

- Em 24-11-2018, o Árbitro único enviou às partes um e-mail solicitando às Requeridas que indicassem até 14-12-2018 se concordavam que a sentença assentasse apenas em documentos;

- Em 14-12-2018, as Requeridas apresentaram a sua Resposta à réplica e responderam, além do mais, que se reservavam o direito de decidir sobre uma audiência para momento posterior, tendo em 31-12-2018, respondido que consideravam a audiência necessária;

- Em 09-01-2019, o Árbitro único discutiu com as partes, por audioconferência, além do mais, um “Calendário e próximos passos”, tendo ficado acordado que se iria rever a necessidade de realizar uma audiência e informar o Árbitro sobre esse ponto o mais tardar em 17-02-2019;

- Em 19-03-2019, depois de o processo ter estado suspenso por acordo das partes, foi retomada a sua tramitação, no seguimento de solicitação da Requerente, vindo a ser, em 26-03-2019, após um “lembrete” enviado por e-mail pelo Árbitro único em 22-03-2019, confirmado pelas Requeridas que mantinham o seu pedido de uma audiência;

- Em 09-04-2019, realizou-se audioconferência, tendo sido acordado com o Árbitro único e as partes a data de 3 de junho de 2019 para realização da audiência, mais tendo sido, no mesmo dia, enviada pelo Árbitro único uma decisão incluindo um calendário provisório, no qual constava a data de 15-04-2019 para apresentação de testemunhas, a data de 09-05-2019 para apresentação dos depoimentos (escritos) das testemunhas, a data de 13-05-2019 para “apresentação do aviso de ausência de contrainterrogatário de qualquer testemunha”;

- Em 15-04-2019, a Requerente indicou uma testemunha para prestar depoimento em audiência, e as Requeridas arrolaram 4 testemunhas;

- A 16-04-2019, o Árbitro notificou, por e-mail, as partes do local da audiência, relembrando a data da mesma (03-06-2019);

- A 09-05-2019, as Requeridas solicitaram uma prorrogação do prazo para a apresentação dos depoimentos escritos das testemunhas, tendo a Requerente dito que não colocava qualquer objeção a um adiamento até 13-05-2019, que lhes foi concedida, no mesmo dia (09-05-2019);

- A 13-05-2019, as partes apresentaram no processo arbitral os depoimentos escritos das testemunhas acima mencionadas;

- Em 14-05-2017, o Árbitro único informou as partes por e-mail que os depoimentos das testemunhas não estavam em conformidade com as instruções que tinham sido expressas na sua anterior decisão, determinando às partes que as cumprissem, mais informando que estava inclinado para adiar até 17-05-2019 o “prazo para apresentação dos Avisos de Ausência de Contrainterrogatório”, solicitando comentários ou objeções a essa prorrogação, que não foram recebidas;

- Em 16-05-2019, o Árbitro Único prorrogou por e-mail o “prazo para apresentação dos Avisos de Ausência de Contrainterrogatório” até 17-05-2019, data até à qual nenhuma das partes apresentou qualquer “Aviso de Ausência de Contrainterrogatório”;

- Em 27-05-2019, a Requerente informou por e-mail que não pretendia contrainterrogar duas das 4 testemunhas das Requeridas, acrescentando que não necessitava de aguardar pela audiência agendada para 03-06-2019;

- Em 28-05-2019, as Requeridas enviaram e-mail, invocando que não tinha sido cumprido pela Requerente o “adiamento perentório para apresentar o aviso de contrainterrogatório”, razão pela qual tinham assumido que a audiência não se iria realizar, pelo que nem o Advogado signatário (do escritório de Portugal), nem as duas testemunhas estavam disponíveis para a realização da audiência no dia 03-06-2019; acrescentaram que, apesar da consequência excludente daquele incumprimento, estavam dispostas a aceitar a realização desse contrainterrogatório e audiência, desde que fosse fixada uma data adequada;

- Na mesma data, a Requerente opôs-se, alegando, além do mais, que as Requeridas deviam apresentar as duas testemunhas em relação às quais “não foi notificado qualquer aviso de ausência de contrainterrogatório”;

- O Árbitro único decidiu em 29-05-2019 manter o agendamento da audiência, clarificando que estavam obrigadas a comparecer para serem interrogadas na audiência agendada para 03-06-2019 “todas as pessoas que emitiram e assinaram depoimentos de testemunhas”, “exceto aquelas que foram nomeadas num aviso de ausência de contrainterrogatório”, sugerindo ainda que o Advogado das Requeridas se fizesse substituir pelo outro Advogado não impedido (com escritório em França);

- Após insistência das Requeridas, por e-mail, referindo terem assumido de boa-fé que a audiência não teria mais lugar e que, por essa razão, as testemunhas e o Advogado das Requeridas aceitaram novos compromissos, realizou-se conferência telefónica, no dia 31-05-2019, vindo a ser proferida decisão pelo Árbitro único, notificada por e-mail às partes, no mesmo dia, em que, depois de referir, além do mais, que o Advogado das Requeridas tinha explicado a razão do seu mal-entendido em relação às testemunhas, foi negado o pedido de adiamento da audiência;

- Na noite do mesmo dia, as Requeridas responderam por e-mail à Requerente e ao Árbitro único, referindo designadamente que “As Requeridas respeitam essa decisão e reservam todos os direitos em relação à mesma”;

- No dia 03-06-2019, às 00h08, as Requeridas, através de um dos seus Advogados (da sociedade portuguesa), enviaram um e-mail à Requerente e ao Árbitro único com o seguinte teor, no que ora releva: “Serve o presente para confirmar que o Advogado das Requeridas e as testemunhas das Requeridas não poderão comparecer na audiência no horário e local determinados pelo Árbitro, devido aos motivos explicados na troca de correspondência anterior.

As Requeridas aguardam com expectativa a decisão do Árbitro sobre a sequência do processo, confiando que tal decisão garantirá que os direitos de defesa das Requeridas possam ser plenamente exercidos”;

- A audiência realizou-se, sem a presença dos Advogados das Requeridas e das duas referidas testemunhas, tendo comparecido a testemunha apresentada pela Requerente (AA, que foi identificado como CEO da Requerente), a qual foi interrogada sob juramento pelo Árbitro único e também pelo Mandatário da Requerente, respondendo a questões concretas (sendo as colocadas por este último previamente autorizadas pelo Árbitro), depoimento que foi transcrito (conforme transcrição que consta de anexo à sentença);”


Desta factualidade resulta claramente que, como se concluiu no acórdão recorrido (e ao contrário do que é alegado pelas recorrentes), “não ficou estabelecido que cada parte, até ao dia 17-05-2019, informaria o Árbitro sobre a sua vontade de interrogar as testemunhas apresentadas pela parte contrária; ao invés, o que ficou estabelecido foi que as partes teriam, até essa data, que informar o Árbitro de que não pretendiam contrainterrogar tais testemunhas. Não se alcança que outro sentido possa ter a expressão “aviso de ausência de contrainterrogatório”. Não há, pois, justificação alguma para que as Requeridas, patrocinadas que estavam por Advogados (de Portugal e França), não o tenham entendido. Muito menos para a sua aparente falta de compreensão do requerimento de 27-05-2019, em que a Requerente informou por e-mail que não pretendia contrainterrogar duas das quatro testemunhas das Requeridas, sendo descabido interpretar este e-mail com o sentido indicado pelas Requeridas. Na verdade, à luz de todos os princípios de processo civil, em particular o do contraditório e da igualdade das partes, nada obstava a que a Requerente, porventura após análise mais atenta do conteúdo dos depoimentos escritos, viesse de antemão, de harmonia, aliás, com o princípio da cooperação, informar no processo que, afinal, apenas iria contrainterrogar duas das quatro testemunhas das Requeridas. Podia tê-lo dito apenas no dia da audiência, em 03-06-2019, mas é louvável que o tenha feito antes, poupando às duas testemunhas em causa o incómodo da deslocação para serem ouvidas.

Mostra-se, pois, incompreensível e até injustificada a posição processual que as Requeridas tomaram no seu e-mail de 28-05-2019, quando invocaram não ter sido cumprido pela Requerente o “adiamento perentório para apresentar o aviso de contrainterrogatório” (aliás, nem se percebe o sentido desta expressão), dizendo ser essa a razão pela qual tinham assumido que a audiência não se iria realizar, pelo que nem o seu Advogado (com escritório em Portugal), nem as duas testemunhas estavam disponíveis para a realização da audiência no dia 03-06-2019, acrescentando que, apesar da consequência excludente daquele incumprimento, estavam dispostas a aceitar a realização desse contrainterrogatório e audiência, desde que fosse fixada uma data adequada. Na verdade, não se descortina nenhum motivo válido e atendível para que as Requeridas tivessem em 28-05-2019 assumido que a audiência não se iria realizar, quando, na verdade, a única coisa que podiam assumir era que a audiência se iria realizar precisamente para contrainterrogatório das testemunhas, com a única particularidade de ter, entretanto, face ao aludido requerimento de 27-05-2019, ficado circunscrito à testemunha da Requerente e a duas testemunhas das Requeridas.

Ademais, mesmo admitindo que pudesse ter existido um equívoco da parte das Requeridas a respeito do significado do ato de “aviso de ausência de contrainterrogatório”, o certo é que foi desfeito face às decisões do Árbitro único, tomadas em 29-05-2019 e em 31-05-2019, com uma antecedência que até nos parece suficiente para possibilitar que o Sr. Advogado com escritório em Portugal (já que relativamente ao Sr. Advogado com escritório em França nem há notícia de qualquer dificuldade a este respeito) e as duas testemunhas tivessem comparecido, caso existisse vontade de sanar o eventual “mal-entendido” ou “equívoco”.

Com efeito, é facto notório a existência de ligações aéreas diárias entre Lisboa-Paris, além da existência de meios de transporte terrestre (em particular automóvel) que permitem em cerca de um dia efetuar uma tal viagem. Note-se que, nem no e-mail enviado pelas 00h08 do dia 03-06-2019, nem posteriormente no processo arbitral, muito menos nos presentes autos, foram alegados quaisquer factos que configurassem uma situação de justo impedimento que os impedisse de comparecer, apenas tendo sido apresentada como justificação o facto de terem, entretanto, aceitado “novos compromissos”, cuja inadiabilidade quedou por demonstrar (tão pouco tendo sido manifestada vontade de assistir através de meios de comunicação à distância).”[40].


Na verdade, como consta da decisão arbitral revidenda, e se extrai do relatório sobre a tramitação processual até à prolação da decisão arbitral[41], na pendência e desenvolvimento do processo arbitral em Paris as Recorrentes apresentaram um comportamento processual, pelo menos aparentemente, focado na dilação do processo, designadamente, não respondendo ao requerimento de arbitragem, não facilitando a escolha conjunta de árbitro, incumprindo as regras processuais da arbitragem, recusando-se a pagar as custas e despesas do processo, ou atrasando-se relevantemente a fazê-lo. Para além de que – o que, para o caso, é ainda mais gravevieram apresentar requerimento de realização de audiência, que veio a ser agendada em data expressamente acordada entre as partes, confirmada em diversas ocasiões pelo Tribunal Arbitral e pelas próprias Recorrentes, e deliberadamente decidiram não comparecer, sem qualquer justificação válida para o efeito, apenas para depois virem a suscitar incidente emergente da sua própria conduta!


Note-se que foram as Recorrentes a insistir pela marcação desta audiência, ao que o Tribunal Arbitral acedeu, apesar de, como demonstram os autos, tal audiência não ser vista como necessária, nem para o Tribunal, nem para a Recorrida

Mas, apesar de insistirem pela realização da audiência por a considerarem essencial para a busca da verdade, as Recorrentes e os seus mandatários faltaram à diligência, cuja data escolheram, e aceitaram, sem qualquer justificação plausível e credível para a sua falta. O que tudo foi considerado pelo Tribunal como manobras puramente dilatórias, entendimento que não nos merece qualquer censura.


Assim, também, a ter existido um “equívoco” das aqui recorrentes, o mesmo apenas a si próprias é imputável, sendo perfeitamente legítima a decisão do Árbitro em manter a data designada para a audiência, não havendo qualquer violação dos invocados princípios do contraditório e da igualdade das partes, sendo imputável apenas às próprias recorrentes a falta de comparência à referida audiência. Pelo que também não se vislumbra qualquer violação dos referidos princípios na forma como decorreu a audiência, nomeadamente quanto à inquirição da testemunha presente pelo Árbitro e pelo Advogado da Requerente, tendo o seu depoimento e os depoimentos escritos sido ponderados pelo Árbitro único na prolação da sentença, sendo certo, que, como se diz no acórdão recorrido, “estranho seria se a testemunha comparecesse, como se encontrava obrigada, e logo fosse dispensada, apenas por não se encontrarem presentes os Advogados das Requeridas, as quais haviam manifestado interesse no contrainterrogatório.”


No acórdão do STJ de 22-11-2016[42], proferido em acção de anulação da decisão arbitral, num caso em que as testemunhas arroladas por uma parte  não foram inquiridas no acto por não se encontrarem presentes, sendo que cabia à mesma parte fazer-se acompanhar delas na data designada para a audiência, conforme estava determinado pelas regras processuais fixadas, sendo por omissão da própria parte e não por não acto omissivo do tribunal que tal inquirição não foi efectuada, considerou-se, a propósito dos princípios da igualdade e o do contraditório, que: “ao tribunal cabe assegurar e afirmar os ditos princípios, mas não compete colmatar as omissões das partes.”. E considerou-se igualmente nesse aresto que “a circunstância de se ter dado mais relevância (na decisão arbitral) a uns depoimentos que a outros, insere-se no poder de apreciação e avaliação da prova apresentada, ou seja, no exercício do poder de julgar, pelo que não se vê que os princípios invocados tenham sido violados.”.


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Assim, portanto, razão assiste ao acórdão recorrido quando remata que “Tudo sopesado, não vemos como possa constituir uma afronta aos princípios do contraditório e da igualdade das partes a circunstância de, perante a injustificada falta de comparência dos Advogados e das testemunhas das Requeridas na audiência (cujo adiamento seria infundado), a testemunha da Requerente ter sido inquirida, tendo o seu depoimento e os depoimentos escritos sido ponderados pelo Árbitro único na prolação da sentença”.

E, outrossim, que “Parece-nos, pois, inevitável concluir que a conduta processual das Requeridas, defendida por estas como sendo correta e adequada, se mostra, na realidade, incorreta, assentando num (suposto) equívoco, não se descortinando que os seus direitos de defesa, em particular os atinentes aos invocados princípios processuais do contraditório e da igualdade das partes, tenham sido violados. Os factos evidenciam sim que existiu um continuado respeito por tais princípios e também, naturalmente, por outros que se impõem, como o princípio da autorresponsabilidade das partes, conexo com o princípio basilar do dispositivo, por força do qual as partes suportam, em regra, as consequências das suas ações ou omissões processuais ainda que se possam vir a revelar erradas. O que também significa que, a ser concedido o reconhecimento da sentença em apreço, não quedam violados os princípios da ordem pública internacional do Estado português, mormente o do processo equitativo, cuja ofensa as requeridas atribuem precisamente à violação daqueles outros dois princípios” (destaque nosso).


Não existe, portanto, in casu: 1. qualquer violação do princípio do contraditório, pois se as Recorrentes e os seus mandatários tivessem estado presentes, na data por si proposta e acordada, teriam tido oportunidade de se pronunciar sobre a matéria em apreço; 2. qualquer violação do princípio da igualdade, na medida em que foram concedidas às partes as mesmas oportunidades no âmbito da gestão processual (ambas puderam estar presentes e inquirir testemunhas, defender-se por meio de peças processuais).


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· E o resultado a que o Tribunal chegou não é incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português


É evidente que a confirmação da sentença arbitral não conduz a um resultado incompatível com a ordem publica internacional do estado português. Até porque, como vimos, não foi proferida com violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes.

É certo que as normas do Código de Processo Civil e da Constituição citadas e o conceito de processo equitativo são a expressão de um adquirido civilizacional que vincula o Estado português, interna e internacionalmente. Isto é, fazem parte dos “princípios ou das normas jurídicas de direito positivo que integram e protegem os valores fundamentais de ordem ética, económica ou social própria da comunidade do estado recipiente que este não abdica de ver respeitados. Isto é, a sua ordem pública internacional.”[43].

Sendo que os limites da ordem pública internacional apenas são aferidos a posteriori, quando a solução fixada na decisão arbitral estrangeira, no momento da sua aplicação em Portugal, se afigure intolerável à luz dos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa ou, noutras palavras, gere uma situação incompatível com as concepções ético-jurídicas ou os princípios jurídicos fundamentais[44].

Uma vez que a contrariedade à ordem pública internacional se avalia caso a caso e à luz dos efeitos jurídicos que uma certa situação pode gerar, não existe um conceito apriorístico, fechado e concreto de ordem pública internacional, o que também sucede na generalidade das jurisdições.


Conforme ensina FERRER CORREIA, uma ofensa à ordem pública internacional “(…)

produziria um resultado absolutamente intolerável para o sentimento ético-jurídico dominante, ou lesaria gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local[45].

Ou seja, a ordem pública internacional é um termo rigoroso, que deve ser utilizado para salvaguardar casos extremamente graves, visando “impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indireta da execução de sentença estrangeira, conduza, no caso concreto, a um resultado intolerável, claramente inaceitável, não comportando um qualquer juízo de desvalor sobre a norma ou  o regime jurídico cuja apresentação se rejeita[46].

Ora, face a todo o explanado, cremos que facilmente se chega à conclusão de que a decisão arbitral não conduz, de todo, a um resultado claramente inaceitável para a ordem jurídica portuguesa, nem foi colocado em causa qualquer princípio basilar de ordem pública.


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Em conclusão, também não se verifica este fundamento de recusa de reconhecimento da decisão arbitral que é objecto desta acção.


Como tal, impõe-se a improcedência total da revista.


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IV. DECISÃO 

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo das Recorrentes.


Lisboa, 22 de junho de 2023


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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[1] Publicado em www.dgsi.pt.
[2] Destaque nosso.
[3] Vide, por todos, ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, Coimbra Editora, p. 140 e JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 736.
Na jurisprudência, v.g., acs STJ de 02-03-2011 (processo n.º 161/05.2TBPRD.P1.S1) e de 26-02-2019 (proferido no processo n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, obra citada, p. 736.
[5] A título exemplificativo, vejam-se os acórdãos do STJ de 27-04-2023 (Revista n.º 4696/15.0T8BRG.G1.S1 - João Cura Mariano), de 12-04-2023 (Revista n.º 1088/09.4TBCTX-A.E1.S1 - 1.ª Secção, Relator Isaías Pádua), de 30-03-2023 (Revista n.º 351/16.2T8CTB.C1.S1 - Maria Olinda Garcia), de 15-12-2022 (Revista n.º 2526/17.8T8LRA.C1.S1 - Ferreira Lopes) e de 18-01-2022 (Revista n.º 243/18.0T8PFR.P1.S1 - Maria Clara Sottomayor), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Concluída em Nova Iorque em 10 de Junho de 1958, no âmbito das Nações Unidas, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 37/94, de 08-07-1994, e cuja data de entrada em vigor para Portugal é 16-01-1995 (cfr. Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros n.º 142/95, de 21-06, o qual “Torna público ter Portugal depositado, em 18 de Outubro de 1994, o seu instrumento de adesão à Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras”). O art. 2.º desta Resolução estatui que “(N)os termos do n.º 3 do artigo 1.º da Convenção, Portugal formula a seguinte reserva: no âmbito do princípio da reciprocidade, Portugal só aplicará a Convenção no caso de as sentenças arbitrais terem sido proferidas no território de Estados a ela vinculados.”.
[7] Cfr. informação disponibilizada no site https://newyorkconvention1958.org/ - Data da assinatura 25-11-1958; Data da ratificação 26-06-1959; Data da entrada em vigor 24-09-1959.
[8] Processo n.º 1036/12.4YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Caso dos acordos de cooperação concluídos com países de língua oficial portuguesa.
[10] Neste sentido, “Lei da Arbitragem Voluntária Anotada”, 2019, 4.ª edição, Coord. Dário Moura Vicente, Almedina, pág. 190 e nota de rodapé 222.
[11] “v) A sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes ou foi anulada ou suspensa por um tribunal do país no qual, ou ao abrigo da lei do qual, a sentença foi proferida”.
[12] Destaque nosso.
[13] Lei de Arbitragem Comentada, 2018, 2.ª edição, Almedina, pág. 711.
[14] Lei de Arbitragem Voluntária Anotada, coord, 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 172.
[15] Ob. cit., pág. 172 – destaque nosso.
[16]O Reconhecimento de Decisões Arbitrais "Estrangeiras" ao abrigo da Convenção de Nova Iorque - Perspetiva Atual”, in Estudos de direito da arbitragem, Lisboa, AAFDL, 2022, págs. 383 a 385.
[17]A Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958 relativa ao Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras”, in Revista Jurídica, n.º 20 Outubro de 1996, pág. 60.
[18] The New York Arbitration Convention of 1958, Haia, 1981, p. 342.
[19] Destaque nosso.
[20] Ob. cit., págs. 59 e 60.
[21] Destaque nosso.
[22] Ob. cit., pág. 383.
[23] Tratado da arbitragem: em comentário à Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, Almedina, 2016, págs. 545 e 546.
[24] Lei da Arbitragem Voluntária, Coordenação, Almedina, 2014, págs. 663 e 664.
[25] Tradução: A arbitragem é internacional se envolver os interesses do comércio internacional.
[26] Revista n.º 23/11.4YREVR.E1.S1 - João Camilo, sumário disponível em www.stj.pt.
[27] Tradução: A sentença arbitral tem, assim que é proferida, força de caso julgado em relação à controvérsia que resolve.
Pode ser acompanhada de execução provisória.
[28] Tradução:
A sentença arbitral só está sujeita à execução forçada em virtude de uma ordem de exequatur emitida pelo tribunal de grande instance em cuja jurisdição foi proferida ou pelo tribunal de grande instance de Paris quando foi proferida no estrangeiro.
O procedimento relativo ao pedido de exequatur não é contraditório.
O requerimento é apresentado pela parte mais diligente na secretaria do tribunal acompanhado do original da sentença e cópia da convenção de arbitragem ou das suas cópias que reúnam as condições exigidas para a sua autenticidade.
[29] Tradução:
O exequatur é aposto no original ou, se não for apresentado, na cópia da sentença arbitral que obedeça às condições previstas no último parágrafo do artigo 1516.º.
Quando a sentença arbitral não for redigida em francês, o exequatur é também aposto à tradução feita nas condições previstas no artigo 1515.º.
O despacho que recusar o exequatur à sentença arbitral será fundamentado.[30] Tradução:

A sentença proferida em França em matéria de arbitragem internacional só pode ser objeto de recurso de anulação.

[31] Tradução:

O recurso de anulação interposto da sentença e o recurso interposto do despacho que concedeu o exequatur não têm efeitos suspensivos.

No entanto, o primeiro presidente que decida em processo sumário ou, logo que seja apreendido, o conselheiro de instrução pode suspender ou ajustar a execução da sentença, se esta execução for susceptível de ferir gravemente os direitos de uma das partes.

[32] Ob. cit, pág. 61.

[33] In Lei de Arbitragem Comentada, Almedina, 2013, págs. 204 e 205.

[34] Ob. cit., págs. 663 e 664.

[35] In “Manual de Arbitragem”, Almedina, 2019, pág. 428.

[36] Disponível em www.dgsi.pt.

[37] Cfr. MARIA CRISTINA PIMENTA COELHO, ob. cit., pág. 57; e MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., págs. 668 e 669.

[38] Manual de Arbitragem, Almedina, 2019, pág. 426, citados no acórdão recorrido.

[39] Ob. cit., pág. 57.
[40] Destaque nosso.
[41] Cfr. Doc. 3 junto com a Petição Inicial.
[42] Revista n.º 871/15.6YRLSB.S1, cujo sumário foi citado no acórdão recorrido e que se encontra disponível em www.stj.pt.
[43] MANUEL PEREIRA BARROCAS, A Ordem Pública na Arbitragem, Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 74, n.º 1, p. 35-139.
[44] LIMA PINHEIRO, in Direito Internacional Privado, Volume I, 2.ª edição, página 589; FERRER CORREIA, in Lições de Direito Internacional Privado, Volume I, Coimbra, 2000, páginas 405 e 406; DÁRIO MOURA VICENTE, ob. cit., página 145; ANTÓNIO SAMPAIO CARAMELO, A anulação da sentença arbitral contrária à ordem pública, in Revista a do Ministério Público, 2011, página 166, nota 29.
[45] In Direito Internacional Privado - Alguns Problemas, 1991, pág. 126.
[46] In Ac. Relação de Lisboa, de 11-12-2018 - processo n.º 2004/08.06.TVLSB.L2-7, disponível em www.dgsi.pt.