Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
810/13.9TBLSD.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: OPOSIÇÃO DE JULGADOS
VALOR DA CAUSA
SUCUMBÊNCIA
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
REVISTA AMPLIADA
RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ASSENTO
CONVERSÃO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
TRIBUNAL PLENO
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSOS DE REVISTA / INTERPOSIÇÃO E EXPEDIÇÃO DO RECURSO.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA – TRIBUNAIS JUDICIAIS / SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA / COMPETÊNCIA.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4.ª Edição, p. 51, 54, 56 e 66;
-Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, p. 121 a 124;
-Lebre de Freitas, Código de Processo Civil;
-Lebre de Freitas, O Processo Civil na Constituição, p. 167 e ss.;
-Lopes do Rego, Acesso ao Direito e aos Tribunais, Estudos sobre a Jurisprudência Constitucional;
-Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra editora, p. 64, 65 e 99 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS C) E D) E 671.º, N.ºS 1 E 3.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ), LEI N.º 62/13, DE 26 DE AGOSTO: - ARTIGO 53.º, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-11-2015, PROCESSO N.º 344/09.6TCGMR.G1.S1, IN WWW.STJ.PT;
- DE 23-06-2016, PROCESSO N.º 2023/13.0TJLSB.L1.S1;
- DE 24-11-2016, PROCESSO N.º 1655/13.1TJPRT.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Os conceitos de “jurisprudência uniformizada” do STJ e “uniformização de jurisprudência” do STJ são empregues pelo legislador para se referir aos acórdãos proferidos pelo pleno das secções cíveis deste Tribunal, sendo o conceito de jurisprudência uniforme, reiterada ou constante empregue apenas em sede de repartição de custas ou de admissibilidade de decisão singular pelo relator.

II - O conceito de jurisprudência uniformizada do STJ que consta da al. c) do n.º 2 do art. 629.º do CPC abrange apenas os acórdãos proferidos em recurso de revista ampliada ou em recurso para uniformização de jurisprudência e ainda os resultantes da conversão de anteriores assentos do STJ.

III - A admissibilidade da revista ao abrigo da al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC não prescinde da verificação dos pressupostos atinentes ao valor da causa e da sucumbência, requerendo-se, por outro lado, que a revista apenas não seja admissível por imperativo legal estranho à alçada da Relação, o que se percebe já que o propósito da norma é evitar a cristalização de correntes jurisprudenciais contraditórias ao nível das Relações.

IV - Na medida em que da previsão das als. c) e d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC não resulta qualquer tratamento arbitrário e que a garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva não é incompatível com a existência de normas adjectivas que disciplinem o exercício do direito ao recurso, é de concluir pela conformidade das mesmas à CRP.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. A AA instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra BB, pedindo:

- O reconhecimento de que a autora é proprietária de dois veículos automóveis identificados na p.i.;

- A condenação da ré a restituir à autora os ditos veículos, bem como a pagar-lhe a quantia de EUR 2.500,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a citação e até integral pagamento.

2. A ré contestou e deduziu reconvenção, pedindo:

- Se declare que é exclusiva proprietária dos referidos veículos automóveis;

- A condenação da autora a pagar à ré, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, a quantia de EUR 15.000,00, acrescida do que vier a liquidar-se posteriormente, bem como dos juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, até efetivo pagamento.

3. Por decisão transitada em julgado (cf. fls. 182 e 217), o valor da causa foi fixado em EUR 20.000,01.

4. Foi proferido despacho que julgou a autora isenta de custas, nos termos previstos no art.º. 4º, nº 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais.

5. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que:

I) - Julgando procedente a ação, condenou a ré:

- A reconhecer a autora como proprietária dos veículos automóveis identificados na p.i.;

- A restituir os ditos veículos à autora;

- A pagar à autora, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, a quantia que, até ao valor máximo de EUR 1.500,00, se vier a liquidar posteriormente, bem como os juros de mora vencidos desde a citação até efetivo pagamento;

- A pagar à autora, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de EUR 1.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a sentença até integral pagamento.

II) – Julgando improcedente a reconvenção, absolveu a autora do pedido reconvencional.

6. Inconformada, a ré interpôs recurso da sentença e ainda do despacho saneador, na parte em que isentou a autora do pagamento de custas, tendo a Relação do Porto proferido acórdão, decidindo:

- Que a autora não beneficia da isenção de custas prevista na al. f), do nº1, do art.º. 4º, do Regulamento das Custas Processuais, nessa parte revogando o despacho saneador;

- Negar provimento ao recurso interposto da sentença (sem fundamentação essencialmente diferente, nem voto de vencido).

7. Inconformada com o acórdão da Relação, na parte em que confirmou a sentença da 1ª instância, a ré veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a sua admissão "com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito devolutivo, nos termos dos arts. 671º (629, nº 2), 675º e 676º todos do CPC”.

No final das suas conclusões, e tendo em vista justificar a admissibilidade da revista, alegou o seguinte:

“71ª – A decisão recorrida, ao decidir como decidiu, decide contra a jurisprudência que se junta (uniformizada/unânime), da qual se extrai:

-    Que padece de nulidade a decisão que não se pronuncie sobre a matéria factual deduzida pelas partes, donde se inclui a matéria deduzida por exceção e dado que tal matéria é questão sobre a qual tem que ser tomado conhecimento desde logo porque a decisão sobre a mesma influencia na procedência ou improcedência da causa;

-   Terem força probatória plena os documentos que não forem impugnados pela parte contra quem os mesmos sejam apostos e dos quais resultem ações e/ou declarações suas;

-   Considerarem-se por confessados os factos pela parte contra quem os mesmos forem apostos e por ela não impugnados”.

Com as alegações, juntou aos autos cópia de dez acórdãos do STJ (extraídos da base de dados da dgsi) destinados a ilustrar a alegada contradição - Acórdão de 26/03/2005 (Tomé Gomes); Acórdão de 21/04/2005 (Ferreira Girão); Acórdão de12/07/2011 (Tavares de Paiva); Acórdão de 07/05/2009 (Garcia Calejo-proc. 09A6664); Acórdão de 07/05/2009 (Garcia Calejo-proc. 86/05.1TVPRT.S1); Acórdão de 17/02/2000 (Oliveira Guimarães); Acórdão de 14/03/2006 (Salvador da Costa); Acórdão de 18/04/2002 (Ferreira de Almeida); Acórdão de 08/09/2016 (Orlando Afonso); e Acórdão de 02/05/2012 (Alves Velho).

8. Não foram apresentadas contra-alegações.

9. Neste Supremo Tribunal foi proferida decisão pela relatora a não admitir a revista, tendo em conta o valor da causa e a existência de "dupla conforme", bem como a inverificação dos pressupostos das als. c) e d) do nº 2 do art. 629º, do CPC.

10. A ré, porém, veio reclamar para a Conferência, e, apelando designadamente ao direito de acesso à justiça e ao princípio da igualdade, consagrados nos arts. 13º e 20º, da Constituição da República Portuguesa, pugnou pela admissão do recurso.

Em síntese, alegou que “a decisão recorrida é … proferida, no domínio da mesma legislação e sobre as mesmas questões fundamentais de direito, contra toda e qualquer jurisprudência proferida, logo e por maioria de razão, contra toda jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, bem como contra jurisprudência proferida pelos Tribunais da Relação”.

Está, pois, a invocar o disposto no art. 629º, nº 2, als. c) e d), do CPC, em articulação com o estatuído no art. 671º, nº 3, do mesmo Código.

11. A parte contrária nada disse.

12. Cumpre, pois, apreciar e decidir se, não obstante a coincidência decisória das instâncias e o valor da causa, é de admitir a revista, caso em que deverá conhecer-se do seu objeto.


* * *


II – Fundamentação

a) Da admissibilidade da revista ao abrigo do art. 629.º, n.º 2, al. c), do CPC:

13. No caso dos autos, o valor da causa foi fixado em EUR 20.000,01, sendo que o valor da alçada da Relação está fixado em EUR 30.000,00 (cf. DL 303/2007, de 24 de Agosto, e art.º 44º, da Lei nº 61/13, de 26 de Agosto), daí que, atento o disposto no art.º 629º, nº 1, do CPC, o recurso não seja, em princípio, de admitir.

Por outro lado, estando o recurso circunscrito ao segmento decisório que confirmou a sentença recorrida, e tratando-se de um processo ao qual se aplica o atual Código de Processo Civil, verifica-se uma situação de dupla conforme, condicionalismo que, em regra, obsta à admissibilidade da revista, como resulta do art. 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC.

14. Todavia, a reclamante/recorrente sustenta que se verifica o pressuposto de recorribilidade previsto na alínea c), do nº 2, do art.º 629.º, do CPC, cuja aplicação ao recurso de revista é ressalvada pela primeira parte do art. 671.º, n.º 3, do CPC, para, por essa via, justificar a admissibilidade da revista.

Concretamente, argumenta que a norma do art. 629º, nº 2, al. c), do CPC deve ser interpretada no sentido da admissibilidade do recurso interposto de acórdão da Relação proferido contra jurisprudência uniforme/unânime do Supremo Tribunal de Justiça, e não apenas contra a jurisprudência uniformizada (isto é, a fixada em julgamento de revista ampliada ou em sede de recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos previstos nos arts. 686º e 688º, do CPC).

Não tem, contudo, razão, como se verá.

15. Estabelece-se no art.º 629º, nº 2, c), do CPC:

“2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso (…):

c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.”

Trata-se de um dos casos em que o recurso é sempre admissível, independentemente da verificação dos requisitos de recorribilidade de ordem formal relativos à alçada e à sucumbência, consagrados no nº1, do art.º. 629º, do CPC.

Como refere Ribeiro Mendes:[1]

“A alínea c) deste nº 2 (…) visa salvaguardar o acatamento da jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, constante dos assentos proferidos até 1995 e da jurisprudência uniformizada proveniente das secções reunidas na chamada revista alargada ou ampliada. A partir da reforma de 2007, a jurisprudência uniformizada poderá também ser emitida no âmbito do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.”

Esclarecendo, por seu turno, Abrantes Geraldes[2]:

“Com esta previsão visa-se potenciar, de forma indireta, a obediência aos acórdãos de uniformização de jurisprudência. Não beneficiando estes da força vinculativa que outrora era atribuída aos Assentos pelo art. 2.º do Código Civil, a recorribilidade das decisões que os contrariem, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, constitui um factor fortemente inibidor da adoção de entendimentos desrespeitadores de jurisprudência uniformizada”.

16. Ao contrário do sustentado pela reclamante, não deve, assim, confundir-se “jurisprudência uniformizada” do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto pressuposto necessário da admissibilidade do recurso [ao abrigo da al. c), do nº2, do art.º. 629º, do CPC], com jurisprudência “uniforme” ou “unânime”, sendo elucidativo o cuidado do legislador em acentuar a distinção entre estes conceitos.

Na verdade, a lei apenas lança mão do conceito de “uniformização de jurisprudência”/“jurisprudência uniformizada” quando se refere ao “recurso ampliado de revista” ou ao “recurso para uniformização de jurisprudência”, proferidos com a intervenção do pleno das secções cíveis do STJ (cf. art.º. 53.º, al. c), da Lei de Organização do Sistema Judiciário), atribuindo, por sua vez, relevo formal à jurisprudência "uniforme/reiterada/constante" em sede de repartição de custas (cf. art. 536º, nº 2, al. b), do CPC) ou de admissibilidade de decisão singular do recurso pelo relator (cf. art. 656º do CPC).


Dir-se-á, por último, como oportunamente recorda Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 66, que “não obstante a Lei de autorização legislativa que antecedeu a reforma de recursos do processo civil de 2007 habilitar o legislador a alargar a admissibilidade excecional de recursos às decisões proferidas contra “jurisprudência consolidada” do Supremo (…) “essa solução não passou para o texto legal”.

Temos, assim, por indiscutível que a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, a que se alude na al. c), do nº2, do art.º. 629º, do CPC, é unicamente a resultante de acórdãos proferidos em recurso ampliado de revista (cf. arts. 686.º e 687.º do CPC), de recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (cf. arts. 688.º e segs. do CPC) ou da conversão de anteriores Assentos do STJ por força da aplicação do art. 17.º n.º 2 do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.[3]

Numa situação idêntica, foi este o entendimento do Acórdão do STJ de 05/11/2015, proc. 344/09.6TCGMR.G1.S1, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/cível/Cível2015.pdf, de que foi elaborado o seguinte sumário:

«I - Não é de admitir recurso de revista quando (i) o valor do processo não excede a alçada da Relação, (ii) não se verifica alguma das situações previstas no n.º 2 do art. 629.º do NCPC (2013), e (iiii) já houve decisão definitiva a afastar a possibilidade de revista excecional. 

II - Para efeitos do disposto no art. 629.º, n.º 2, al. c), do NCPC, "jurisprudência uniformizada" não significa jurisprudência maioritária ou predominante do STJ, mas jurisprudência cristalizada em acórdão uniformizador do STJ.».

Por conseguinte, não tendo sido invocada qualquer contradição com um acórdão uniformizador de jurisprudência, é de concluir não ser admissível a revista ao abrigo da norma constante do art. 629.º, n.º 2, al. c), do CPC.

b) Da admissibilidade da revista ao abrigo do art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC:

17. Na decisão reclamada, considerou-se ainda que não se mostravam verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso contidos na al. d), do nº 2, do art. 629º, do CPC, cuja aplicação ao recurso de revista é também ressalvada pela primeira parte do art. 671.º, n.º 3, do mesmo Código.

Com efeito, escreveu-se na decisão ora impugnada, em termos que sem reservas se subscrevem:

“Estabelece-se no art.º. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, que:

 “2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso (…):

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”

Relativamente a este fundamento da revista, e muito embora o proémio do n.º 2 do art. 629.º do CPC inculque o contrário, a jurisprudência tem repetidamente afirmado a necessidade da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade atinentes ao valor da causa e da sucumbência.[4]

Conforme se escreveu no acórdão do STJ de 23/06/2016, proc. n.º 2023/13.0TJLSB.L1.S1:

“E esta questão coloca-se, face à ressalva que, no proémio do n.º 2 do artigo 629.º, se faz à indiferença do valor da causa e da sucumbência, parecendo cobrir todas as alíneas ali integradas.

Não obstante essa aparência formal, não se afigura que a mesma seja decisiva para interpretar o alcance da admissibilidade recurso em termos de compreender a generalidade dos casos ali contemplados sem a condicionante da alçada ou da sucumbência, pelos seguintes motivos:

i) – Em primeiro lugar, atendendo ao fator histórico, genético-evolutivo, do instituto em causa, como um dos mecanismos tendentes à uniformização jurisprudencial, no tipo de casos em referência, que sempre se tem confinado às situações em que se verificassem os requisitos gerais de cabimento de revista, como sucedia, outrora, no âmbito do artigo 764.º, introduzido pelo Dec. Lei n.º 44.129, de 28-09-1961, e do n.º 3 do artigo 728.º - julgamento com intervenção de todos os juízes da secção ou em reunião conjunta de secções, com vista à prolação dos chamados quase-assentos - introduzido Dec. Lei n.º 47.690, de 11-05-1967; e, mais recentemente, no âmbito do n.º 4 do artigo 678.º, na redação precedente ao Dec. Lei n.º 303/2007, e da alínea c) do n.º 1 do artigo 721.º-A, na redação deste diploma;

ii) – Em segundo lugar, uma razão de ordem teleológica que se prende com a finalidade do referido mecanismo, no sentido de visar uma uniformização não prioritariamente colimada à justiça de cada caso concreto, mas destinada a evitar a propagação, em escala, do erro de direito judiciário pela ordem jurídica, como garantia do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei na sua conjugação com o princípio da independência e liberdade interpretativa do julgador, na linha da diretriz do n.º 3 do art.º 8.º do CC;

iii) – Ainda nesta linha, o facto de se ter vindo a progredir no sentido de limitar o âmbito de intervenção do tribunal de revista aos casos de maior relevo;

iv) – Por fim, uma razão de ordem sistemática, segundo a qual se mostra incoerente admitir o recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, para todos os casos em que o recurso não seja admissível por motivo estranho àquele, quando o não seria, com o mesmo fundamento, nos casos sujeitos à regra geral da admissibilidade em função do valor da alçada ou da sucumbência, prescrita no n.º 1 do art.º 629.º do CPC.

Perante estas razões ponderosas e substanciais, o valor interpretativo a dar à ressalva inicial do proémio do n.º 2 do art.º 629.º sai esbatido, tanto mais que tal ressalva assim configurada parece radicar numa técnica legislativa pouco apurada, como acima ficou dito, e que, por isso, não deverá prevalecer de modo a descaracterizar o essencial da condicionante estabelecida no indicado normativo quando se refere a motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre, pelo menos com o alcance com que tem vindo a ser perfilhado. (…)».

Por outro lado, este fundamento da revista circunscreve-se a recursos de decisões proferidas pela Relação em situações em que o acesso ao Supremo esteja vedado por motivos de ordem legal estranhos à alçada da Relação.

A intenção do legislador terá sido a de permitir que eventuais divergências das Relações, no âmbito de processos em que o recurso ordinário para o Supremo não é admissível[5], possam, por esta via, ser dirimidas por este Tribunal superior, evitando a cristalização de correntes jurisprudenciais contraditórias ao nível da segunda instância.[6]

Como se escreveu no acórdão do STJ de 24/11/2016, proc. n.º 1655/13.1TJPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, num caso em que se discutia a admissibilidade do recurso instaurado no âmbito de uma  ação declarativa de condenação:

«No caso vertente, nem tão pouco se verifica o fator condicionante da admissibilidade prevista na citada alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º, consistente no não cabimento de recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre, no caso o Tribunal da Relação. 

Com efeito, estamos no âmbito de uma ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, fundada em enriquecimento sem causa, em relação à qual não existe norma que estabeleça a inadmissibilidade do recurso por motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre. Significa isto que o cabimento de recurso das decisões ali proferidas se rege pelos requisitos gerais estabelecidos no n.º 1 do artigo 629.º do CPC, ou seja, em função do valor da causa e da sucumbência. 

Nessa medida, o caso vertente não se encontra contemplado pela previsão normativa do artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, mais precisamente no que diz respeito ao não cabimento de recurso por motivo estranho à alçada do tribunal recorrido, ainda que se considerasse para tais efeitos a ressalva inicial do respetivo proémio, sendo quanto basta para ter como não admissível o recurso com base no fundamento invocado pela Recorrente.

Mas mesmo a verificar-se aquela condicionante - que claramente se não verifica -, estando o valor da causa, na cifra de € 10.947,00, contido dentro do valor da alçada da Relação (€ 30.000,00), na interpretação acima adotada, também nem sequer caberia recurso de revista do acórdão recorrido.»

Por conseguinte, na medida em que, in casu, o valor da causa não é superior ao da alçada da Relação, nem se encontra verificada uma exclusão do recurso ordinário por outro motivo de ordem legal, é de concluir que não se mostram verificados os requisitos previstos no art. 629º, nº2, al. d), do CPC.”.

18. Por fim, quanto à alegada violação de preceitos constitucionais (arts. 13º e 20º, da CRP), é manifesta a falta de razão da recorrente.

O princípio da igualdade, consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República, enquanto norma de controlo judicial do poder legislativo, exige que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for fundamentalmente diferente.

Como se sabe, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções arbitrárias ou discriminatórias, materialmente não fundadas, isto é, desigualdades de tratamento destituídas de fundamentação razoável, objetiva e racional.

Nada há, evidentemente, de arbitrário na solução legal em causa (plasmada no art. 629º, nº2, als. c) e d), do CPC), pelo que as normas sindicadas, na interpretação contida na decisão reclamada, de modo algum violam o princípio geral da igualdade, consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.

Por outro lado:

As garantias de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva contempladas no art.º 20º, n.º 1, da CRP, não são naturalmente incompatíveis com a existência de regras processuais, dispondo o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação nesta matéria.

A garantia do acesso aos tribunais inclui o direito ao recurso, pelo que o legislador ordinário não poderia, por exemplo, e no limite, abolir o sistema de recursos na globalidade, ou estabelecer constrangimentos que na prática o inviabilizassem.

Podem, todavia, ser definidos requisitos razoáveis de admissibilidade dos recursos, como é o caso da imposição de prazos processuais perentórios ou, noutro plano, da limitação do recurso em função do valor da causa, da fase processual ou da dupla conformidade, entre outros fatores.[7]

É isso que sucede relativamente à norma constante do art. 629º, nº 2, do CPC, no plano da admissibilidade do recurso, a qual inequivocamente traduz uma adequada e proporcionada ponderação de todos interesses em presença por parte do legislador ordinário.

Não se vislumbra, pois, a violação de qualquer princípio constitucional, mormente dos invocados pela recorrente.

19. Em suma: inverificados os requisitos previstos no art. 629º, nºs 1 e 2, do CPC, e encontrando-se, por outro lado, preenchido o condicionalismo previsto no art. 671.º, n.º 3, do CPC (“dupla conforme”), é imperioso concluir pela inadmissibilidade da revista.


* * *


20. Nestes termos, acorda-se em indeferir a presente reclamação para a conferência, confirmando-se o despacho proferido pela relatora.

Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s.


Lisboa, 08 de Fevereiro de 2018


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

_________


[1] In Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra editora, págs. 64-65, a propósito do anterior art. 678º, nº2, al. c), do CPC, a que corresponde, sem alterações, a alínea c), do nº2, do atual art. 629º, do mesmo Código.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4.ª Edição, pág. 51.
[3] Tem sido esta, aliás, a orientação da doutrina: a título exemplificativo, podem consultar-se Lebre de Freitas, CPC anotado, anotação ao anterior art. 678º, nº 2, al. c), do CPC, que, como já se disse, reproduz sem alterações a atual alínea c), do art. 629º, nº2 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 121-124.
[4] Neste sentido, Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 56.
[5] Como sucede, em regra, nos procedimentos cautelares, nos processos de jurisdição voluntária, nos processos de insolvência, nos processos de expropriação, em processos  previstos no Código do Notariado, no Código de Registo Civil, no Código de Registo Comercial, no Código da Propriedade Industrial e no Código de Registo Predial.

[6] Cf., a este respeito, Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 54.

[7] Cfr., Lopes do Rego, Acesso ao Direito e aos Tribunais in Estudos sobre a Jurisprudência Constitucional; Ribeiro Mendes, Recurso em Processo Civil, págs. 99 e ss. e Lebre de Freitas, O Processo Civil na Constituição, págs. 167 e ss.