Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3158/19.1T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
CESSÃO DE CRÉDITOS
CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
VONTADE REAL DOS DECLARANTES
MATÉRIA DE FACTO
EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
PAGAMENTO
RENDA
VENCIMENTO ANTECIPADO
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
PROPRIEDADE
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
CARÁTER SINALAGMÁTICO
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Sumário :
I. Por existir plena homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido formulado pela autora e o objecto da decisão de decretar a execução específica não merece censura a convolação do pedido realizada pelas instâncias.

II. O contrato celebrado entre o banco réu e a cessionária interveniente não corresponde a uma cessão da posição contratual por aquele ocupada na locação financeira (arts. 424.º e segs. do CC), mas antes a uma simples cessão do crédito respeitante às prestações devidas pela locatária a título de rendas (arts. 577.º e segs. do CC), pelo que o referido contrato não desrespeita o regime imperativo que regula a actividade de locação financeira.

III. No caso dos autos, verifica-se que, por iniciativa do banco réu, com a cessão do crédito a favor da interveniente, e sem que o contrato de locação tivesse sido resolvido, operou-se uma dissociação entre os direitos e obrigações emergentes do contrato de locação financeira, dando origem a uma situação qualificável como de coligação contratual entre tal contrato e o contrato de cessão de créditos, na parte respeitante às rendas em causa.

IV. As instâncias deram como provado – o que não é sindicável pelo STJ – que a vontade real das partes (cfr. art. 236.º, n.º 2, do CC) ao celebrar o contrato de cessão de créditos foi de que a cessão abrangesse a totalidade do crédito das prestações devidas pela locatária a título de rendas; e deram também como provado que a obrigação de pagamento das mesmas prestações se extinguiu integralmente mediante o pagamento acordado entre a cessionária e a locatária.

V. A extinção da obrigação de pagamento das rendas devidas pelo contrato de locação tem como efeito antecipar o vencimento da obrigação de transmissão da propriedade do bem imóvel a que o banco réu, na qualidade de locador, se encontra adstrito.

VI. Ao invocar que, com a exigência de aquisição da propriedade sobre o imóvel locado, pretende a autora obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado, situa-se o recorrente no plano da atribuição de relevância àquilo que vem sendo designado pela doutrina como princípio do equilíbrio contratual ou negocial.

VII. Apreciando-se da verificação do parâmetro quantitativo de tal princípio, afigura-se que, no caso dos autos, e em relação às obrigações originariamente assumidas pelo contrato de locação, tanto a situação patrimonial da autora como a do réu saíram beneficiadas com a cessão de créditos; forçoso é assim concluir pela não ocorrência do invocado desequilíbrio contratual a favor da autora.

VIII. Dado o carácter sinalagmático existente entre a promessa unilateral de venda e a obrigação de pagamento do valor residual a título de contrapartida pela aquisição da propriedade do imóvel, considera-se preenchida a previsão do art. 830.º, n.º 5, do CC, pelo que a decisão da decretar a execução específica se encontra dependente da consignação em depósito do preço de venda/valor residual contratualmente previsto.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. Jacinto Correia Ferreira e Filhos, Lda. instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Banco Santander Totta, S.A., formulando os seguintes pedidos:

«1. Declarar-se que a AUTORA procedeu ao pagamento integral do valor relativo ao contrato de locação financeira imobiliária celebrado com o "BANIF -LEASING, S.A.", incluindo o valor residual;

2. Declarar-se que, por força do cumprimento da AUTORA, esta é dona e legítima possuidora do imóvel correspondente ao prédio sito na Avenida de ..., n.° 25, ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.° 1637, e inscrito na matriz predial com o artigo 2419;

3. Condenar-se o RÉU a reconhecer o declarado em 1., e 2., supra;

Assim se não entendendo,

Condenar o REU a cumprir o contrato de locação financeira imobiliária, reconhecendo a propriedade da ora AUTORA sobre o imóvel em causa e outorgando a escritura pública de compra e venda sobre o imóvel, transmitindo o respetivo direito de propriedade para a AUTORA;

Condenar o REU a atualizar, no que aos credores hipotecários respeita, o registo predial relativo ao prédio rústico, sito na Estrada Regional, composto por cultura arvense e construção rural, com a área total de 680m2, descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ..., sob o número 727, e inscrito na matriz predial rústica da referida Freguesia sob o artigo 23, procedendo ao averbamento da inscrição hipotecária a seu favor, e, simultaneamente, a emitir o distrate da hipoteca que incide sobre tal imóvel.».

Alegou, em síntese, que:

- Celebrou, em 12 de Outubro de 2004, com o Banif - Leasing, S.A., um contrato de locação financeira imobiliária, tendo, em Julho de 2015, por dificuldades de tesouraria, deixado de proceder ao pagamento das rendas convencionadas;

- Por força de deliberação do Banco de Portugal de 20 de Dezembro de 2015 foi aplicada ao Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A., do qual fazia parte integrante a sociedade Banif, Leasing, S.A., uma medida de resolução, mediante a qual se determinou a sua alienação, ao Banco Santander Totta, S.A.;

- Na sequência do que foram transferidos para o aqui réu, os créditos concedidos à ora autora pelo Banif e bem assim o contrato de locação financeira imobiliária referido;

- Por decisão unilateral, o ora réu, em 12 de Dezembro de 2016, cedeu os créditos que detinha sobre si a Sandalgreen Assets, S.A.;

- Esta, mediante acção executiva instaurada contra a ora autora, reclamou o pagamento integral do crédito relativo ao referido contrato de locação financeira imobiliária, tendo as partes aí acabado por transigir, tendo sido declarada extinta a execução por declaração de recebimento, pela exequente, do crédito reclamado;

- O contrato nunca chegou a ser resolvido, tendo a ora autora, em 19 de Setembro de 2018, comunicado ao ora réu o pagamento integral do valor do contrato de locação financeira imobiliária e solicitado a transmissão da propriedade sobre o imóvel a seu favor, nunca tendo, porém, recebido qualquer resposta;

- A autora constituiu, a favor do Banco Comercial dos Açores, S.A., uma hipoteca voluntária sobre determinado imóvel, garantindo todas e quaisquer letras ou livranças, já descontadas ou a descontar, ou ainda as que, por efeito de reforma, vierem a substituí-las, e, bem assim, toda e qualquer operação permitida em direito e na qual a dita sociedade seja interveniente; nada mais sendo devido pela autora, no que respeita a quaisquer obrigações contraídas junto do Banco Comercial dos Açores, S.A., o qual veio a ser incorporado, por fusão, no Banif - Banco Internacional do Funchal, S.A.;

- As obrigações que a autora contraíra com o Banif foram transferidas para o ora banco réu, o qual deverá distratar a dita hipoteca (constituída agora a seu favor) já que não é seu credor.

2. O réu contestou, alegando, em síntese, que:

- A cessão do contrato de locação foi realizada por “erro” do Banco, devido ao específico e muito complexo contexto em que se verificou e concretizou a medida de resolução do Banco de Portugal, pelo que a mesma cessão é anulável;

- Sempre a dita cessão seria nula por violar disposições legais de cariz imperativo, já que a transmissão, para a Sandalgreen, S.A., de todos os créditos, vencidos e vincendos, referentes ao contrato de locação corresponde, em termos efectivos, à cessão da posição contratual do Banco no dito contrato de locação e a Sandalgreen não pode, legalmente, ocupar a posição de locadora por não ser nem instituição bancária nem sociedade de locação financeira;

- A autora, na prática, procura retirar benefício do incumprimento contratual em que incorreu, procurando, “ardilosamente”, tentar obter a propriedade do imóvel locado por um valor muito inferior ao previsto no contrato de locação financeira;

- Nos termos do art. 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

3. A ré requereu a Intervenção Principal da Sandalgreen, Assets, S.A., a qual foi admitida, por decisão de 21/04/2020.

A Interveniente apresentou contestação, alegando que:

- O réu Banco Santander Totta nunca poderia estar em erro sobre os créditos a ceder, tendo a obrigação de conhecer as condições dos créditos, bem como as garantias associadas, sendo que não se afigura possível que o mesmo tenha cedido um crédito que não queria ceder nem que se tenha enganado no valor do crédito e na fixação do preço atribuído ao mesmo, embora não o querendo ceder;

- Com a cessão de créditos, o crédito saiu definitivamente da titularidade do banco réu, tendo-se transferido para a esfera jurídica da ora Interveniente;

- Não é de crer que só passado mais de um ano o réu tivesse conhecimento do que fez e, nos termos do art. 287.º, n.º 1, do Código Civil, o prazo para arguir a anulabilidade é de um ano, pelo que se procede a excepção de caducidade do direito de acção.

4. A autora respondeu, invocando que:

- Logo após ter tido conhecimento do contrato de cessão, contactou com a cessionária, ora Interveniente, de forma a melhor resolver a situação, tendo sido por esta informada de que a propriedade do imóvel objecto do leasing não havia sido transmitido para a Interveniente; tendo contactado o réu no início de 2017, pedindo esclarecimentos, estes nunca lhe foram prestados;

- O banco réu não podia desconhecer a situação relativa ao contrato de leasing e menos ainda os termos em cedeu os créditos, sendo a sua pretensão um venire contra factum proprium.

5. Foi proferido despacho saneador, no qual se admitiu o pedido reconvencional de declaração de nulidade do contrato de cessão e se relegou para final o conhecimento da excepção de caducidade do direito a arguir a anulabilidade do negócio.

6. Por sentença de 11/01/2022 (complementada, após recurso de apelação, julgado procedente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2022, por sentença de 09/01/2023, pela qual se realizou a fundamentação especificada da matéria de facto), foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, julgo procedente a ação e improcedente a reconvenção e, consequentemente, decido:

a) Decretar a execução específica da promessa de venda feita pelo Réu nos termos do contrato de locação financeira imobiliária n° 901..96 de 12/04/2004;

b) Declarar transmitida para a Autora, por efeito daquela, a propriedade sobre o prédio urbano sito na Avenida de ..., n° 25, em ..., descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o número 1637 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o artigo 2419, pelo preço de € 1.860.657,54 (um milhão oitocentos e sessenta mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos);

c) Ordenar o cancelamento da inscrição da aquisição a favor do Réu;

d) Ordenar a inscrição da aquisição a favor da Autora do direito de propriedade sobre o referido imóvel;

e) Condicionar os efeitos referidos supra ao pagamento pela Autora, ao Estado, do respetivo IMT e Imposto de Selo, no prazo de 15 dias, a contar do trânsito em julgado da presente decisão;

f) Ordenar o cancelamento da inscrição de hipoteca voluntária a favor do "Banco Comercial dos Açores, S.A." (Ap. 9 de 1995/08/01) sobre o imóvel rústico descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o n° 727 da freguesia de ....».

7. Inconformado, interpôs o réu recurso de apelação, pedindo a alteração da decisão da matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 11/05/2023, decidido, com voto de vencido, «julgar parcialmente procedente o recurso, e, consequentemente, (...) anular os capítulos c), d) e f) do dispositivo da sentença recorrida, no mais se confirmando a decisão impugnada».

8. Novamente inconformado, veio o réu interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«A) Em causa neste processo está um contrato de locação financeira imobiliária, celebrado entre o BANIF – Leasing, S.A. (Banif), enquanto locador, e a ora A., enquanto locatária – vd. pontos 1 e 2 dos Factos Provados, o contrato em causa, e o seu aditamento de 10.07.2014, juntos como docs. 1 e 3 à p.i.

B) O referido contrato teve o seu início em 08.09.2005, e foi celebrado pelo prazo de 20 anos, portanto com termo na futura data de 08.09.2025 – idem e ponto 33 dos Factos Provados.

C) Nos termos do referido contrato, a locatária, ora A., obrigou-se a pagar 240 rendas mensais ao locador, as quais foram fixadas no contrato de locação no valor de € 10.750,33, mais IVA, cada uma – idem.

D) Sendo que, se a A. optasse por exercer a opção de compra estipulada no contrato, teria ainda que pagar ao locador um valor residual de € 30.000,00 – idem.

E) Por outro lado, está provado nos autos que, em julho de 2015, a A. deixou de pagar as rendas devidas no âmbito do dito contrato – vd. ponto 3 dos Factos Provados.

F) Está igualmente provado que a totalidade do valor (capital, juros, encargos e valor residual) ainda a receber pelo locador até final do contrato seria de cerca de € 1.100.000,00 – vd. ponto 33 dos Factos Provados.

G) E que, o imóvel locado tem um valor patrimonial de € 1.581.613,23 – vd. ponto 34 dos Factos Provados.

Posto isto,

H) Por força da medida de resolução de 20.12.2015. aplicada pelo Banco de Portugal ao Banif, a posição de locador no dito contrato de locação financeira imobiliária transmitiu-se para o BST – vd. pontos 4, 5 e 6 dos Factos Provados.

I) Sendo que, quando transitou para o BST, o contrato já estava em incumprimento desde julho de 2015, último mês em que, como se referiu, a A. pagou rendas – vd. ponto 3 dos Factos Provados.

J) Por outro lado, em 12.12.2016 o BST e a Sandalgreen celebraram um contrato designado como “Contrato de compra e venda de uma carteira de empréstimos” – vd. Pontos 28, 29 e 30 dos Factos Provados, e doc. junto à p.i. sob o nº 4.

K) Nos termos da clª 1.1., denominada “Objeto” do dito contrato, o BST vendeu à Sandalgreen o que no contrato é designado por “CARTEIRA”

L) A definição do que é a “CARTEIRA” consta do ponto II do Considerando do Contrato, a saber: “uma carteira de direitos de crédito vencidos e não pagos pelos Devedores, os quais se encontram em situação de incumprimento, … garantidos por hipoteca”.

M) Sendo que - obviamente por manifesto erro do BST - o contrato de locação financeira em causa (de natureza e em situação totalmente diversa da definição da referida “carteira”) foi incluído na dita venda à Sandalgreen.

N) Nota-se que a situação da locação à data do contrato com a Sandalgreen (12.12.2016) era a seguinte: estavam vencidas e não pagas as rendas referentes aos meses de Julho de 2015 a Dezembro de 2016, no valor total de cerca de € 83.000,00 – vd. ponto 30 dos Factos Provados.

O) Por outro lado, o contrato de locação não tinha sido (nem alguma vez foi) resolvido pelo BST, mantendo-se em vigor – vd. ponto 12 dos Factos Provados.

P) Sendo que, como se referiu, e está provado nos autos, o valor a receber pelo BST no âmbito do contrato, até final do mesmo (08.09.2025), era de cerca de € 1.100.000,00 – vd. ponto 33 dos Factos Provados.

Q) Sucede que, o valor relativo ao contrato de locação que surge indicado no dito contrato de 12.12.2016 (vd. Anexo I à escritura de cessão) como tendo sido cedido pelo BST à Sandalgreen foi de “apenas” € 694.903,42 – vd. ponto 31 dos Factos Provados.

R) Sendo, a propósito, imperioso frisar - perante o decidido pela sentença da 1ª Instância, agora confirmado pelo acórdão recorrido - que, consoante ficou provado, o BST não cedeu à Sandalgreen a totalidade dos seus créditos referentes ao contrato de locação.

S) Por outro lado, nota-se que está provado nos autos que, em fevereiro de 2018, a Sandalgreen deduziu execução contra a ora A. para cobrança dos valores que lhe foram cedidos pelo BST – vd. pontos 36 a 38 dos Factos Provados.

T) O valor total que a Sandalgreen reclamava da A. em tal execução era de € 2.518.036,88 - idem.

U) Consoante resulta do respetivo requerimento executivo (vd. doc. não numerado, junto a págs. 59 e segs. da p.i.), esse valor de € 2.518.036,88, para além de € 704.208,50 relativos à locação financeira, incluía ainda os seguintes valores e operações: uma conta corrente no valor de € 75.000,00, 7 contratos de empréstimo no valor total de € 1.391.971,6, 312 letras no valor total de € 114.694,63, e um saldo devedor no valor de € 112,24.

V) Nota-se que, com o requerimento executivo, a Sandalgreen juntou o contrato de locação e o seu aditamento, e afirmou que o contrato estava em incumprimento desde 08.07.2015 – vd. citado requerimento executivo.

W) Ou seja, a Sandalgreen estava na posse da documentação contratual relativa ao contrato de locação e à sua situação.

X) A Sandalgreen conhecia, pois, o contrato de locação.

Y) Sabia, designadamente, que o mesmo contrato não tinha sido resolvido pelo BST.

Z) Só assim se explicando, aliás, que nunca tenha solicitado ao BST a transmissão da propriedade do imóvel locado – vd. ponto 39 dos Factos Provados.

AA) Pois que, se a Sandalgreen estivesse convencida de que o BST lhe havia vendido a totalidade dos valores a receber no âmbito do contrato, obviamente que teria solicitado ao BST que lhe transmitisse a propriedade do imóvel locado.

BB) O que, como ficou provado, nunca ocorreu.

Posto isto,

CC) Mediante a presente ação, a A., no que respeita ao aludido contrato de locação financeira, peticionou o seguinte:

“1- Declarar-se que a AUTORA procedeu ao pagamento integral do valor relativo ao contrato de locação financeira imobiliária celebrado com o “BANIF – LEASING, S.A.”, incluindo o valor residual;

2- Declarar-se que, por força do cumprimento da AUTORA, esta é dona e legítima possuidora do imóvel correspondente ao prédio sito na Avenida de ..., n.º 25, ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º 1637, e inscrito na matriz predial com o artigo 2419;

3- Condenar-se o RÉU a reconhecer o declarado em 1., e 2., supra;

Assim se não entendendo,

4- Condenar o RÉU a cumprir o contrato de locação financeira imobiliária, reconhecendo a propriedade da ora AUTORA sobre o imóvel em causa e outorgando a escritura pública de compra e venda sobre o imóvel, transmitindo o respetivo direito de propriedade para a AUTORA”.

DD) Ora, singularmente, a sentença da 1ª Instância (confirmada, na parte em causa, pelo acórdão recorrido) julgou procedente a ação, mas decidiu de forma diferente do peticionado (e para além do peticionado – o que traduz nulidade da sentença, nos termos do artº 615º, nº 1, alínea e), do CPC).

EE) Com efeito, a decisão da sentença da 1ª Instância, no que concerne ao tema do contrato de locação financeira, foi a seguinte:

“Pelo exposto, julgo procedente a ação e improcedente a reconvenção e, consequentemente, decido:

a) Decretar a execução específica da promessa de venda feita pelo Réu nos termos do contrato de locação financeira imobiliária nº 901..96 de 12/04/2004;

b) Declarar transmitida para a Autora, por efeito daquela, a propriedade sobre o prédio urbano sito na Avenida de ..., nº 25, em ..., descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o número 1637 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o artigo 2419, pelo preço de € 1.860.657,54 (um milhão oitocentos e sessenta mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos);

c) Ordenar o cancelamento da inscrição da aquisição a favor do Réu;

d) Ordenar a inscrição da aquisição a favor da Autora do direito de propriedade sobre o referido imóvel;

e) Condicionar os efeitos referidos supra ao pagamento pela Autora, ao Estado, do respetivo IMT e Imposto de Selo, no prazo de 15 dias, a contar do trânsito em julgado da presente decisão”;

FF) O acórdão recorrido entendeu, a este propósito, que “… os pedidos anteriores (1, 2 e 3) procederam, razão pela qual os capítulos c), d) e f) do dispositivo na sentença extravasa os limites do peticionado, sendo nessa parte a sentença nula” – vd. pág. 29 do acórdão.

GG) Por outro lado, relativamente à circunstância de, no descrito enquadramento, a sentença da 1ª Instância ter decretado a execução específica da “promessa de venda” constante do contrato de locação financeira, o acórdão recorrido entendeu que “…o primeiro grau limitou-se a requalificar a situação subjacente aos pedidos declaratórios e condenatório enquadrando-os no correcto regime da execução específica” – vd. pág. 31 do acórdão.

HH) Tendo, desta forma, confirmado (no que tange à execução específica) a sentença da 1ª Instância.

II) Ora, salvo o devido respeito, que é muito, não pode o BST estar mais em desacordo com tal posição do acórdão recorrido.

JJ) Com efeito, e em primeiro lugar, julga-se cristalino que, ao ser decretada, no quadro exposto, a execução específica, foi proferida decisão com objeto diverso do pedido – o que traduz nulidade da sentença e do acórdão recorridos, nos termos do artº 615º, nº 1, alínea e), do CPC).

Assim:

KK) Relembra-se que a A., no que respeita aos pedidos que o acórdão recorrido considerou procedentes (1, 2 e 3), peticionou (em síntese) o seguinte:

“1- Declarar-se que a AUTORA procedeu ao pagamento integral do valor relativo ao contrato de locação financeira imobiliária … incluindo o valor residual;

2- Declarar-se que, por força do cumprimento da AUTORA, esta é dona e legítima possuidora…” do imóvel locado, e

3- Condenar-se o RÉU a reconhecer o declarado em 1., e 2., supra”;

LL) Ou seja, a A. peticionou que: a) fosse declarado que pagou integralmente as quantias que lhe cabiam no âmbito do contrato de locação, e que b) por força de tal pagamento integral, é dona do imóvel locado.

MM) Ora, muito diversamente, como vimos, a sentença e o acórdão recorridos, decidiram:

“a) Decretar a execução específica da promessa de venda feita pelo Réu nos termos do contrato de locação financeira imobiliária nº 901.596 de 12/04/2004;

b) Declarar transmitida para a Autora, por efeito daquela, a propriedade sobre o prédio urbano…”

NN) Ou seja, foi in casu proferida decisão que ultrapassou os limites dos pedidos formulados pela A., nomeadamente, no que respeita ao seu próprio objeto.

OO) É, com efeito, inequívoco que a A. não peticionou a execução específica do contrato de locação.

PP) Tendo, antes formulado, pedidos bem diversos (pagamento integral das quantias devidas pela locação, e consequente declaração de que é dona do imóvel locado), cuja matéria (maxime o propalado pagamento integral), aliás, e como melhor se verá infra, não ficou sequer provada nos autos.

QQ) Aliás, as divergências entre os pedidos formulados pela A., e a decisão relativa à execução específica, são de tal monta que implicam mesmo uma diferença na espécie de ação judicial.

RR) Com efeito, a presente ação é uma ação de condenação, ou seja, visa exigir a prestação de um facto, pressupondo a violação de um direito, e está prevista no artº 10º, nº 3, alínea b), do CPC.

SS) Ao invés - e bem diversamente - a ação de execução específica é uma ação constitutiva, que visa autorizar uma mudança na ordem jurídica existente, e está prevista em um normativo diferente (o artº 10º, nº 3, alínea c), do CPC).

TT) Ora, frisa-se, a A. intentou uma ação de condenação, e não uma acção constitutiva

UU) Pelo que, também por isso, jamais poderia in casu ser decretada a execução específica.

VV) Face ao exposto, reitera-se que, ao ser decretada a execução específica, foi proferida decisão com objeto diverso do pedido – o que traduz nulidade da sentença e do acórdão recorrido, nos termos do artº 615º, nº 1, alínea e), do CPC, nulidade essa que se invoca e se requer seja declarada.

WW) Por outro lado, ao decretar a execução específica numa ação de condenação, o acórdão recorrido incorreu ainda em violação do citado artº 10º, nº 3, alínea c), do CPC.

XX) Acresce que - o que se alega sem conceder - é manifesto que não se verificam, na situação dos autos, os pressupostos legais da execução específica.

YY) Pelo que, também por isso, a mesma não podia ter sido decretada.

ZZ) Ora, como se notou supra, o contrato em apreço teve o seu início em 08.09.2005, e foi celebrado pelo prazo de 20 anos, portanto com termo em 08.09.2025 – vd. 33 dos Factos Provados.

AAA) Ou seja, ainda não se atingiu o final do contrato, pelo que inexiste qualquer mora do BST.

BBB) Desta forma, agora por falta da verificação de um pressuposto legal obrigatório, não poderia ser aqui determinada a execução específica do contrato.

CCC) Aliás, como bem foi escrito no voto de vencido ao acórdão recorrido da Exma. Senhora Desembargadora Maria do Céu Silva: “Execução específica antes do final do contrato não parece que tenha cobertura legal” – vd. pag. 3 do dito voto de vencido.

DDD) Face ao exposto, importa, sem conceder, concluir que, ao determinar a execução específica sem a verificação de um pressuposto legal obrigatório, o acórdão recorrido incorreu em mais uma ilegalidade, por nova violação do artº 830º do CC, o que impõe a respetiva revogação.

EEE) Por outro lado, nota-se que, como ressalta claro dos autos, o BST apenas transmitiu à Sandalgreen créditos referentes ao contrato de locação, e não qualquer direito ao imóvel locado.

FFF) E que, a transmissão da propriedade do imóvel locado do BST para a locatária apenas poderia ocorrer no âmbito do contrato de locação, e uma vez cumpridos os seus termos e condições.

GGG) Não podendo, como a sentença recorrida pretende, tal transmissão ser imposta ao BST pelo facto de a locatária ter acertado o pagamento de uma qualquer verba com a cessionária de parte dos créditos da locação.

HHH) Com efeito, nos termos do contrato de cessão, não foi transmitida para a Sandalgreen qualquer direito ao imóvel locado.

III) Face ao exposto, importa concluir que a transmissão da propriedade do imóvel locado para a A. não pode assentar na circunstância de a mesma ter celebrado um acordo de pagamento de dívidas (que abrangem apenas uma parte das rendas dividas pela locação) com um terceiro (a Sandalgreen).

JJJ) Está, aliás, reitera-se, provado nos autos que a Sandalgreen (ao contrário do que a A. alegou -vd. al. g) dos Factos Não Provados) nunca solicitou ao BST a transmissão da propriedade do imóvel locado – vd. ponto 39 dos Factos Provados.

KKK) Resultando claro da prova produzida, maxime do facto de o BST, após a cessão, ter continuado (nos termos do contrato de locação - vd. respetivo artº 15º, nºs 1, alínea a), e 2) - a exigir da locatária o IMI referente ao imóvel locado, que o Banco sempre considerou que tal contrato continua em vigor – vd. ponto 13 dos Factos Provados.

LLL) O BST só poderia, assim, ser obrigado a proceder à transmissão da propriedade do imóvel a favor da A. nos termos definidos para o efeito no contrato de locação.

MMM) Os quais (é indubitável) não estão in casu cumpridos.

NNN) Com efeito, é patente que, na situação dos autos, não se verificam os citados pressupostos contratuais de realização da venda, estipulados nas citadas cláusulas 17ª e 18ª da locação, maxime os constantes dos pontos 3 e 4 da cláusula 17ª, e 1 e 3 da cláusula 18ª.

OOO) Até porque, repete-se, o contrato de locação apenas terminará em setembro de 2025!

PPP) Pelo que, também face ao agora exposto, o BST (ao contrário do que pretende a sentença e o acórdão recorridos) não pode ser compelido a transmitir a propriedade do imóvel locado para a A.

QQQ) Ao decidir diversamente, pretendo impor uma execução específica sem base contratual ou legal, o acórdão recorrido incorreu em nova ilegalidade, mais uma vez por violação do citado artº 830º do CC.

Por outro lado,

RRR) A tese da sentença da 1ª Instância (confirmada, no que à execução específica respeita, pelo acórdão recorrido) para julgar procedente a ação foi, em síntese, a seguinte:

- A A., locadora, viu serem “dadas como vencidas (antecipadamente) todas as prestações em falta”;

- E, a A., locadora, chegou a “um entendimento com a cessionária (detentora do crédito subjacente ao … contrato) no sentido do pagamento de uma (qualquer que fosse) quantia, com a qual aquela se deu por integralmente paga”;

- Logo, a A., locadora, “cumpriu todas as suas obrigações decorrentes do invocado contrato…”;

- Pelo que, “perante o cumprimento por parte do locatário”, entende a sentença que estão verificados os pressupostos da execução específica do contrato de locação, que entendeu decretar – vd. págs. 24 e 25 da sentença, e pág. 32 do acórdão recorrido.

SSS) Ora, no entender do BST - e sem prejuízo do já acima exposto - julga-se patente que, ao decidir da forma como o fez, o acórdão recorrido incorreu em outras erradas interpretações e aplicações da lei, que, também por si, impõem a sua revogação.

Assim:

TTT) Em primeiro lugar nota-se que, ao contrário do que refere a sentença da 1ª Instância (e o acórdão recorrido), não ficou provado nos autos que foram “dadas como vencidas (antecipadamente) todas as prestações em falta”.

UUU) Assim, e muito diversamente, o que ficou provado nos autos foi que a situação do contrato de locação à data do contrato de cessão com a Sandalgreen (12.12.2016) era a seguinte: estavam vencidas e não pagas as rendas, relativas ao dito contrato, referentes aos meses de Julho de 2015 a Dezembro de 2016, no valor total de cerca de € 83.000,00 – vd. ponto 30 dos Factos Provados.

VVV) Sucede que, como se referiu, o valor relativo ao contrato de locação que surge indicado no contrato de cessão como tendo sido cedido à Sandalgreen foi de € 694.903,42 – vd. ponto 31 dos Factos Provados.

WWW) Isto é, o BST cedeu à Sandalgreen € 611.903,42 de valores referentes a rendas futuras, ainda não vencidas, de uma locação financeira.

XXX) Face ao exposto, julga-se ser límpido concluir que o primeiro pressuposto em que assentou a sentença e o acórdão recorridos (ou seja, o vencimento antecipado de todas as rendas) não se verificou.

YYY) Tal circunstância traduz oposição entre os fundamentos e a decisão, o que, nos termos do artº 615º, nº 1, al. c), do CPC, implica a nulidade da sentença, o que se invoca.

ZZZ) Notando-se que, a esse propósito, o acórdão recorrido, de forma, aliás, assaz singela, afirma que o que o BST invoca é um erro de julgamento, que não se reconduz à nulidade do artº 615º, nº 1, al. c), do CPC – vd. págs. 25 e 26 do acórdão.

AAAA) Ora, a esse título, e sem conceder, cumpre referir que o acórdão recorrido acaba por não apreciar o erro de julgamento que entendeu ter sido invocado pelo BST – idem.

BBBB) Tal circunstância traduz a nulidade prevista no artº 615º, nº 1, al. d), do CPC, que expressamente aqui se invoca.

CCCC) Por outro lado, e igualmente sem conceder, também se aduz que o erro de julgamento é fundamento de recurso de revista, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 674º do CPC.

DDDD) Pelo que, dada a evidência do erro de julgamento cometido, acima descrito, deverá o mesmo ser adequadamente valorado pelo Supremo, revogando-se, também com esse fundamento, o acórdão recorrido.

EEEE) Por outro lado, e continuando na análise à tese da sentença da 1ª Instância (sufragada pelo acórdão recorrido), importa referir que também não ficou provado o segundo pressuposto em que assentou tal tese, a saber: que a A. “cumpriu todas as suas obrigações decorrentes do invocado contrato…”.

FFFF) Assim, e como se viu, e está provado nos autos, o que ocorreu foi uma mera cessão parcial dos créditos do BST no que concerne ao contrato de locação.

GGGG) Com efeito, reitera-se, o valor relativo ao contrato de locação cedido pelo BST à Sandalgreen foi de € 694.903,42 – vd. ponto 31 dos Factos Provados.

HHHH) Ora, como se notou, está igualmente provado que a totalidade do valor (capital, juros, encargos e valor residual) ainda a receber pelo locador até final do contrato seria de cerca de €1.100.000,00 vd. ponto 33 dos Factos Provados.

IIII) O exposto implica a óbvia impossibilidade de a locadora ter cumprido todas as suas obrigações advenientes do contrato de locação.

JJJJ) Uma vez que, reitera-se, o montante cedido à Sandalgreen não correspondeu à totalidade do valor em dívida no âmbito da locação.

KKKK) Notando-se, a propósito, o escrito no voto de vencido da Exma. Senhora Desembargadora Maria do Céu Silva: “Considerar que estão pagas todas as rendas relativas ao período acordado causa estranheza. Considerar que está pago o valor residual maior estranheza causa” – vd. pág. 3 do dito voto de vencido.

LLLL) Ou seja, não está demonstrado (muito antes pelo contrário) outro dos pressupostos fundamentais da decisão recorrida, a saber, que a A., locadora, “cumpriu todas as suas obrigações decorrentes do invocado contrato…”.

MMMM) O que, também por si só, implica a impossibilidade de ser determinada a execução específica do contrato.

NNNN) Ao decidir diversamente, a sentença e o acórdão recorridos incorreram em nova ilegalidade, tendo (mais uma vez) violado o artº 830º do CC.

OOOO) Acresce que - ao decidir, por um lado, que a locadora cumpriu todas as obrigações contratuais, e, por outro, ao dar como provado que o valor relativo ao contrato de locação cedido pelo BST à Sandalgreen foi de € 694.903,42, e que a totalidade do valor ainda a receber pelo locador até final do contrato seria de cerca de € 1.100.000,00 - a sentença recorrida incorreu em nova oposição entre os fundamentos e a decisão, o que, nos termos do artº 615º, nº 1, al. c), implica a nulidade da sentença, como se requer.

PPPP) A este propósito, o acórdão recorrido volta a afirmar, apenas, que o que o BST invoca é um erro de julgamento, que não se reconduz à nulidade do do artº 615º, nº 1, al. c), do CPC – vd. pág. 26 do acórdão.

QQQQ) Ora, a esse título, e sem conceder, volta-se a referir que o acórdão recorrido acaba por não apreciar o erro de julgamento que entendeu ter sido invocado – idem.

RRRR) Tal circunstância traduz a nulidade prevista no artº 615º, nº 1, al. d), do CPC, que expressamente aqui se invoca.

SSSS) Por outro lado, e igualmente sem conceder, também aqui se aduz que o erro de julgamento é fundamento de recurso de revista, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 674º do CPC.

TTTT) Pelo que, dada a evidência do erro de julgamento cometido, deverá o mesmo ser adequadamente valorado pelo Supremo, revogando-se, também com esse fundamento, o acórdão recorrido.

UUUU) Por outro lado, não tendo o contrato sido resolvido pelo locador, BST, e mantendo-se, por conseguinte, em vigor, julga-se que não era legalmente admissível a cessão de rendas vincendas da locação financeira.

VVVV) Isto porque a Sandalgreen não pode, legalmente, ocupar a posição de locadora em um contrato de locação financeira.

WWWW) Com efeito, a atividade de locação financeira apenas pode ser exercida por Bancos ou por sociedades de locação financeira – vd. artºs 1º e 4º do DL 72/95, de 15/4.

XXXX) Ao entender diversamente, a sentença recorrida incorreu em ilegalidade, por violação dos artºs 1º e 4º do DL 72/95, de 15/4.

YYYY) Por fim, cumpre ainda notar que tudo o supra exposto demonstra limpidamente que a presente ação não passa de uma mera tentativa de aproveitamento, por parte da A., de uma situação anómala.

ZZZZ) Procurando a A., por tal via, obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado.

AAAAA) No descrito factualismo, julga-se patente que a A., ao pretender que lhe seja atribuída a propriedade do imóvel locado, procura obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado.

BBBBB) Fazendo-o, para mais, em claro prejuízo do BST.

CCCCC) No contexto relatado, julga-se que obrigar o BST a transmitir à A. a propriedade do imóvel locado significaria o exercício de um direito “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

DDDDD) Ou seja, tal exercício, face ao disposto no artº 334º do Cód. Civil, seria ilegítimo.

EEEEE) Pelo que, também no cenário académico em apreço, a tese da A. estaria votada ao naufrágio.».

9. A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«A. O presente recurso é inadmissível porque não é a mera divergência verificada num determinado segmento decisório que pode espoletar a revista normal relativamente a todo o acórdão da Relação, devendo esta circunscrever-se ao segmento ou segmentos que revelem uma dissensão entre o resultado declarado pela 1.ª instância e pela Relação ou relativamente aos quais exista algum voto de vencido de um dos três juízes do coletivo.

B. Sendo que o presente recurso incide, notoriamente, sobre matéria relativamente à qual não houve qualquer dissenso, minimamente fundamentado, entre o Acórdão e o voto de vencido.

C. O ora RECORRENTE, cedeu, em 12 de dezembro de 2016, à SANDALGREEN ASSETS, S.A., todos os créditos decorrentes do contrato de locação financeira imobiliária, celebrado entre o BANIF e a AUTORA, ora RECORRIDA, e que tinha por objeto o prédio (a construir) na Avenida de ..., n.º 25, ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o n.º 1637 da freguesia de ..., e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 2419;

D. À data da cessão de créditos, a AUTORA, ora RECORRIDA, face a dificuldades extremas de tesouraria, encontrava-se em situação de incumprimento do contrato supra identificado;

E. Tal contrato de locação financeira imobiliária encontrava-se garantido por hipoteca unilateral, com cláusula de efeito abrangente (a denominada hipoteca genérica), constituída pela AUTORA, ora RECORRIDA, sobre outro seu imóvel;

F. A AUTORA, ora RECORRIDA, já tinha pago, na data da cessão de créditos, e em cumprimento do contrato de locação financeira imobiliária, a quantia de € 1.165.754,12;

G. O ora RECORRENTE, não obstante ter cedido todos os créditos emergentes do contrato de locação financeira imobiliária, manteve na sua propriedade o imóvel locado;

H. Não obstante as várias interpelações que a AUTORA, ora RECORRIDA, lhe fez, em 2016 e 2017, para tentar resolver a situação extrajudicialmente, não perdendo o imóvel, o ora RECORRENTE, nunca lhe respondeu, tendo cedido os créditos decorrentes do contrato de locação financeira imobiliária, como e nos termos que entendeu, continuando, após a cessão de créditos, a não responder a quaisquer contactos encetados pela AUTORA, ora RECORRIDA, ainda que através do seu gestor de conta do ora RECORRENTE;

I. No âmbito do contrato de compra e venda de uma carteira de créditos (cessão de créditos) celebrado entre o ora RECORRENTE, e a SANDALGREEN ASSETS, S.A., procedeu à venda global de todos os créditos emergentes e remanescentes relativos ao contrato de locação financeira imobiliária supra identificado;

J. A SANDALGREEN ASSETS, S.A., na sequência da cessão de créditos, moveu uma ação executiva contra a AUTORA, ora RECORRIDA, para pagamento de todos os créditos cedidos, incluindo para pagamento de todos os créditos emergentes do contrato de locação financeira imobiliária;

L. No decurso de tal ação executiva, a AUTORA, ora RECORRIDA, logrou chegar a acordo extrajudicial com a SANDALGREEN ASSETS, S.A., procedendo ao pagamento integral de todos os créditos cedidos pelo ora RECORRENTE, incluindo todos os créditos decorrentes do contrato de locação financeira imobiliária;

M. Pagos todos os créditos emergentes e remanescentes do contrato de locação financeira imobiliária, a AUTORA, ora RECORRIDA, solicitou ao ora RECORRENTE, a transmissão do imóvel locado para a sua propriedade;

N. O que, até hoje, o ora RECORRENTE, ainda não fez;

O. Bem como, não obstante ter assumido, por escrito, que a AUTORA, ora RECORRIDA, nada lhe deve, ainda não procedeu ao cancelamento da hipoteca unilateral com efeito de cláusula abrangente que recai sobre o seguinte imóvel da AUTORA, ora RECORRIDA:

P. Ao contrário do que alega o ora RECORRENTE, não existiu nenhum erro, nem nenhum engano no que respeita à cessão de todos os créditos emergentes e remanescentes do contrato de locação financeira imobiliária;

Q. Sendo que, a ter-se verificado tal erro, o ora RECORRENTE, tinha violado e incumprido, de forma, pelo menos grosseira, as declarações e garantias essenciais que prestou no âmbito do contrato de compra e venda;

R. Pelo que nunca podia o ora RECORRENTE, arguir a respetiva nulidade, o que sempre faria em venire contra factum proprium;

S. Também não podendo, pela mesma razão, pedir a anulabilidade de tal contrato, sendo que no que respeita a anulabilidade, o respetivo direito de ação há muito que se encontra caducado, uma vez que, pelo menos desde 2017, tem conhecimento do alegado erro relativo à cessão de créditos no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária e relativo à não cessão do imóvel locado e de todos os outros enganos que, inenarravelmente, invoca.

T. Não existe qualquer nulidade de julgamento assacável ao Acórdão recorrido, uma vez que não se verificou a violação de qualquer dispositivo legal, nem qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão proferida.

U. O ora RECORRENTE tenta, litigando de má-fé e em claro abuso de direito, obter, com o presente recurso, uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça relativa aos factos já assentes nos autos, sob a capa de interpretação de normas que só podem ser interpretadas como pretende o RECORRENTE se os factos dados como provados e como não provados correspondessem à visão do ora RECORRENTE, o que não acontece.

V. Pelo que a interpretação das normas efetuada, quer pelo Tribunal de 1.ª Instância, quer pelo Tribunal da Relação, constituem a interpretação jurídica correta e inequívoca, face ao quadro fático dado como provado e não provado.

X. Razão pela qual não subsistem quaisquer nulidades no Acórdão ora recorrido.

Z. Também não existindo qualquer nulidade decorrente de qualquer alegada omissão de pronúncia, uma vez que o Tribunal da Relação se pronunciou, fundamentadamente, relativamente a todas as questões submetidas a decisão.».

Termina invocando a inadmissibilidade do recurso «por o mesmo estar circunscrito ao segmento decisório, que pressuporia a alteração da matéria de facto por divergência de convicção, integrado no voto de vencido». Subsidiariamente, pugna pela improcedência da revista.

II – Admissibilidade do recurso

Vem o réu interpor recurso do acórdão da Relação que, no que ora importa, julgou o recurso de apelação improcedente, confirmando a decisão da 1ª instância que decidira: «a) Decretar a execução específica da promessa de venda feita pelo Réu nos termos do contrato de locação financeira imobiliária n° 901.596 de 12/04/2004; b) Declarar transmitida para a Autora, por efeito daquela, a propriedade sobre o prédio urbano sito na Avenida de ..., n° 25, em ..., descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o número 1637 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o artigo 2419, pelo preço de € 1.860.657,54 (um milhão oitocentos e sessenta mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos)».

O obstáculo da dupla conforme à admissibilidade do recurso de revista encontra-se, em princípio, afastado pela existência de voto de vencido (cfr. art. 671.º, n.º 3, do CPC). Porém, invoca a recorrida a irrelevância desse mesmo voto, alegando que «o presente recurso incide, notoriamente, sobre matéria relativamente à qual não houve qualquer dissenso, minimamente fundamentado, entre o Acórdão e o voto de vencido».

Vejamos.

Ao determinar que «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância», o n.º 3 do art. 671.º do CPC não distingue entre votos de vencido relevantes e não relevantes em função do respectivo conteúdo. Ainda assim, certas decisões deste Supremo Tribunal vêm admitindo tal distinção. Ver, designadamente, os acórdãos de 15/03/2018 (proc. n.º 473/09.6TCGMR.G2.S1), não publicado em www.dgsi.pt, de 21/10/2020 (proc. n.º 239/09.3TJLSB.L1.S1) e de 14/01/2021 (proc. n.º 22701/16.1T8LSB.L1.S1), estes últimos disponíveis em www.dgsi.pt.

No caso concreto, porém, afigura-se que, independentemente da posição assumida em relação a tal questão, deve ser atribuída relevância ao voto de vencido exarado no acórdão recorrido para efeitos de afastamento da dupla conforme. Na verdade, analisado o teor desse voto, constata-se que, para além do mais, nele se incluem considerações («Nos termos do art. 1º do DL 149/95, de 24 de junho, "locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados". // Conforme resulta do art. 10° n° 2 al. f) do DL 149/95, o locatário tem o direito de "adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço estipulado". // Resulta do ponto 33 da matéria de facto provada que o "final do contrato... ocorreria em 08.08.2025". // Considerar que estão pagas todas as rendas relativas ao período acordado causa estranheza. Considerar que está pago o valor residual maior estranheza causa. Execução específica antes do final do contrato não parece que tenha cobertura legal.») que, diversamente do alegado pela recorrida, mostram divergências na resolução de questões de direito que vêm suscitadas no presente recurso pelo que, de acordo com a tese defendida pelo recorrido, o dissenso manifestado sempre seria relevante.

Conclui-se, assim, pela admissibilidade do recurso.

III – Objecto do recurso

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Deste modo, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

1. Ao decretarem a execução específica da promessa de transmissão do imóvel locado, tanto a sentença como o acórdão recorrido incorrem em nulidade por ter sido proferida decisão com objecto diferente do pedido (art. 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC), bem como por violação do regime do art. 10.º, n.º 3, do CPC.

Subsidiariamente:

2. Não se verificam os pressupostos da execução específica:

2.1. Não há mora/incumprimento da parte do banco réu.

2.2. A obrigação de transmitir a propriedade sobre o imóvel só existiria nos termos das cláusulas do contrato de locação.

2.3. As prestações a que a locatária se encontrava obrigada não venceram todas antecipadamente, verificando-se assim:

- Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão;

- Tendo o acórdão recorrido requalificado a questão como sendo erro de julgamento, incorreu em nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, d), do CPC);

- Erro de julgamento.

2.4. A autora não cumpriu todas as suas obrigações contratuais, atendendo a que a cessão de créditos não abrangeu a totalidade do crédito, verificando-se assim:

- Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC);

- Tendo o acórdão recorrido requalificado a questão como sendo erro de julgamento, incorreu em nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, d), do CPC);

- Erro de julgamento.

3. A cessão de créditos a favor da interveniente é contrária à lei.

4. A execução específica permite à autora obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado, o que configura exercício abusivo do direito.

IV – Fundamentação de facto

Vem provado o seguinte:

1. A ora Autora celebrou, em 12 de outubro de 2004, com o "BANIF - Leasing, S.A.", o "contrato de locação financeira imobiliária n° 901.596" tendo por objeto o prédio (a construir) na Avenida de ..., n.° 25, ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o n.° 1637 da freguesia de ..., e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 2419.

2. O referido contrato foi objeto de aditamento, em 10 de julho de 2014, tendo sido alterada a sua duração, o valor e o número das rendas e a taxa de juro aplicável.

3. No início de julho de 2015, por dificuldades de tesouraria, a Autora deixou de proceder ao pagamento das rendas convencionadas no âmbito do referido contrato.

4. Por força da deliberação extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 20 de dezembro de 2015, foi aplicada ao "BANIF - BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A.", do qual fazia parte integrante a sociedade "BANIF, LEASING, S.A.", uma medida de resolução, mediante a qual se determinou a alienação, ao "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", dos direitos e obrigações que constituíam ativos, passivos e elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do "BANIF - BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A.".

5. No âmbito da dita medida de resolução, foram transferidos para o aqui Réu, "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", um conjunto de créditos, concedidos a vários mutuários, individualmente, designadamente os créditos concedidos à ora Autora pelo "BANIF - BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A.".

6. O contrato de locação financeira imobiliária supra referido foi também transferido para o "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.".

7. Por decisão unilateral do ora Réu, "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", em 12 de dezembro de 2016, através de escritura de cessão de créditos, foi integralmente cedido à "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", além do mais, o crédito decorrente do contrato de locação financeira imobiliária supra referido.

8. Após a referida cessão de créditos, a "SANDALGREEN ASSETS, S.A.", através de processo de execução que moveu contra a ora Autora e que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Central Cível e Criminal de ..., Juiz 2, sob o n.° 607/18.0..., reclamou o pagamento integral do crédito referente ao supra referido contrato de locação financeira imobiliária.

9. A Autora, no âmbito do referido processo judicial, e através de transação, procedeu ao pagamento integral do valor exigido pela "SANDALGREEN ASSETS, S.A.", tendo sido declarada extinta a execução por declaração de recebimento, pela exequente, do crédito reclamado.

10. Nos termos da cláusula 27ª do contrato, sob a epígrafe "Incumprimento Pontual do Locatário":

"1. Se o Locatário não cumprir pontualmente qualquer das suas obrigações pecuniárias, por um prazo superior a sessenta dias, poderá o Locador resolver o contrato, judicial ou extrajudicialmente, após ter notificado aquele para, no prazo de trinta dias satisfazer as obrigações contratuais em falta.

2. Se o contrato for resolvido nos termos deste artigo, continuará o Locatário subordinado às suas obrigações, devendo abandonar imediatamente as instalações, restituindo-as e pagando ao Locador a importância determinada no artigo 28.° das condições gerais deste contrato, a título de indemnização.

3. A notificação referida no número 1. do presente artigo, pode ser efetuada por comunicação pessoal e direta ou por meio de carta registada dirigida à morada do Locatário constante deste contrato ou para outra que este venha a indicar expressamente (...)".

11. Em caso de resolução por causa não imputável ao locador, nos termos previstos na cláusula 28ª do contrato, apenas pode ser exigido ao locatário o pagamento das rendas vencidas e não pagas, juros e outros encargos e correspondentes juros de mora e uma "importância num quantitativo máximo até 20 por cento do montante das rendas vincendas".

12. A Autora nunca recebeu qualquer comunicação por parte do "BANIF - LEASING, S.A.", do "BANIF - BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A." ou do "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A." e nunca lhe foi exigido que procedesse à entrega do imóvel locado ou, sequer, que abandonasse o mesmo, nem lhe foi exigido o pagamento de qualquer indemnização no montante correspondente a 20 por cento das rendas vincendas.

13. Não obstante a mora, quer o "BANIF - LEASING, S.A.", quer o "BANIF - BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A.", quer o ora Réu, sempre lhe exigiram o pagamento do IMI relativo ao imóvel locado, imposto que a ora Autora sempre pagou.

14. A Autora, após ter sabido que todos os créditos que detinha junto do Réu tinham sido cedidos à "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", iniciou contactos com esta entidade para negociar o pagamento dos mesmos, por forma a poder manter a respetiva atividade.

15. Logo no início de tais negociações, os colaboradores/funcionários da "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", informaram a Autora que, no âmbito da escritura de compra e venda da carteira de créditos o ora Réu não tinha transmitido a propriedade do imóvel para a "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.".

16. Munida desta informação, a Autora, no ano de 2017, contactou o seu gestor, no sentido de saber por que razão o Banco não tinha transmitido a propriedade do imóvel objeto da locação financeira imobiliária à "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", sendo que nunca obteve qualquer resposta a tal pedido de esclarecimento.

17. Em 19 de setembro de 2018, a advogada da Autora enviou ao Conselho de Administração do Réu uma carta, que foi recebida em 24/09/2018, no âmbito da qual comunicou ter procedido ao pagamento integral do valor do contrato de locação financeira imobiliária exigido pela Sandalgreen e solicitou a alteração da propriedade do imóvel a seu favor, nunca tendo recebido qualquer resposta.

18. Nos termos previstos na cláusula 17ª das Condições Gerais do Contrato de Locação Financeira Imobiliária referido, sob a epígrafe "Promessa Unilateral de Venda":

"1. O Locador promete vender ao Locatário o imóvel objeto do presente contrato no termo deste.

2. Esta promessa de venda está sujeita a resolução nos mesmos termos que o presente contrato, pelo não cumprimento das obrigações do Locatário.

(...)

5. Após o termo do presente contrato e do pagamento integral do preço convencionado e não se verificando qualquer situação de mora por parte do Locatário, o Locador providenciará a realização da escritura pública de compra e venda do imóvel, cujos custos notariais, de registo e outros relacionados com o imóvel, serão suportados pelo Locatário."

[o teor completo da cláusula 17.ª das Condições Gerais é o seguinte:

"1. O Locador promete vender ao Locatário o imóvel objeto do presente contrato no termo deste.

2. Esta promessa de venda está sujeita a resolução nos mesmos termos que o presente contrato, pelo não cumprimento das obrigações do Locatário.

3. Na data final deste contrato, deverá ser pago o preço de venda que é fixado no número 10. das condições particulares do presente contrato.

4. O Locatário deve notificar o Locador da sua intenção de exerecer a opção de compra com uma antecedência mínima de 90 dias relativamente à data final do contrato, por carta registada com aviso de recepção, sob pena de caducidade da opção.

5. Após o termo do presente contrato e do pagamento integral do preço convencionado e não se verificando qualquer situação de mora por parte do Locatário, o Locador providenciará a realização da escritura pública de compra e venda do imóvel, cujos custos notariais, de registo e outros relacionados com o imóvel, serão suportados pelo Locatário."]

19. Em 1 de agosto de 1995, a ora Autora constituiu, a favor do "BANCO COMERCIAL DOS AÇORES. S.A.", hipoteca voluntária sobre o seguinte imóvel: prédio rústico, sito na Estrada Regional, composto por cultura arvense e construção rural, com a área total de 680m2, descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ..., sob o número 727, e inscrito na matriz predial rústica da referida Freguesia sob o artigo 23.

20. Tal hipoteca foi constituída, até ao montante máximo de $109.062.500,00 (cento e nove, sessenta e dois mil e quinhentos escudos), para "garantia de todas e quaisquer letras ou livranças, já descontadas ou a descontar, ou ainda as que por efeito de reforma, vierem a substituir, e bem assim de toda e qualquer operação permitida em Direito e nas quais a dita sociedade seja interveniente, quer como aceitante, subscritora, sacadora, endossante, avalista ou pelas quais de qualquer forma seja responsável até ao montante, juro anual de 17,5%, acrescida da sobretaxa de 4% em caso de mora".

21. Em 31 de dezembro de 2008, o "BANCO COMERCIAL DOS AÇORES, S.A.", veio a ser incorporado, por fusão, no "BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A.", tendo tal fusão por incorporação sido autorizada pelo Banco de Portugal em 29 de julho de 2008.

22. Em consequência, as obrigações que a Autora contraíra com o "BANCO COMERCIAL DOS AÇORES, S.A.", foram transferidas para o "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.".

23. Por decisão unilateral do ora Réu, "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", tais obrigações foram, em 12 de dezembro de 2016, e através de escritura de cessão de créditos, integralmente cedidas à "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", tendo o Réu procedido à venda de tais obrigações e de todas as garantias acessórias inerentes às mesmas.

24. Após a referida cessão de créditos, a "SANDALGREEN ASSETS, S.A." veio reclamar judicialmente o pagamento integral das obrigações em causa, tendo a Autora procedido ao pagamento integral do valor exigido pela "SANDALGREEN ASSETS, S.A.".

25. Nada mais sendo devido pela Autora, no que respeita a quaisquer obrigações contraídas junto do "BANCO COMERCIAL DOS AÇORES, S.A.".

26. A Autora não mantém, na presente data, qualquer relação creditícia com o Réu, não tendo quaisquer dívidas junto deste. [excluído nos termos do ponto V, 4.2. do presente acórdão]

27. No decorrer de 2016, o ora Réu acertou com a Sandalgreen a cessão de um conjunto de créditos que haviam sido transmitidos para si em resultado da medida de resolução aplicada ao Banif.

28. A cessão em causa respeitou a "uma carteira de direitos de crédito vencidos e não pagos pelos Devedores, os quais se encontram em situação de incumprimento, (...) garantidos por hipoteca", sendo que "(...) os empréstimos incluem direitos de crédito sobre devedores de diversa natureza, origem, duração, valor e, em geral, com condições diferentes (...)".

29. Tendo abrangido inúmeras operações, no valor total de cerca de oitenta e oito milhões de euros.

30. À data da cessão, estavam vencidas e não pagas as rendas, relativas ao dito contrato, referentes aos meses de Julho de 2015 a Dezembro de 2016, no valor total de cerca de € 83.000,00.

31. O valor relativo ao contrato de locação que surge indicado no Anexo I à escritura de cessão como tendo sido cedido à Sandalgreen foi de € 694.903,42.

32. Ou seja, foram incluídos valores de capital referentes a rendas ainda não vencidas.

33. A totalidade do valor a receber pelo locador (incluindo capital, juros, encargos e valor residual) da locatária, até final do contrato - que apenas ocorreria em 08.08.2025 - seria de cerca de €1.100.000,00.

34. O imóvel locado tem um valor patrimonial de € 1.581.613,23.

35. A Autora já havia pago, em cumprimento do contrato, € 1.165.754,12.

36. O valor total pago pela Autora à Sandalgreen, no processo executivo por esta deduzido contra aquela para cobrança dos créditos que o Réu lhe cedeu foi de € 600.000,00.

37. Sendo que a Sandalgreen reclamava da Autora o valor global de € 2.518.036,88.

38. Esse valor de € 2.518.036,88, para além de € 704.208,50 relativos à locação financeira, incluía ainda: conta corrente no valor de € 75.000,00; 7 contratos de empréstimo no valor total de € 1.391.971,6; 312 letras no valor total de € 114.694,63; saldo devedor no valor de € 112,24.

39. O Banco Réu nunca transmitiu a propriedade do imóvel locado à Sandalgreen, nem esta lho solicitou.

40. Com a cessão de créditos operada o Réu recebeu o preço acordado, fechou o crédito nos seus sistemas informáticos e retirou-o do seu balanço, tendo transferido para a ora Chamada toda a documentação referente ao crédito e tendo deixado de efetuar a gestão do mesmo.

41. O Réu, nos termos do acordado na Cláusula 3.1 do documento complementar da referida escritura de cessão de créditos, denominado de "Contrato de compra e venda de uma carteira de empréstimos", à data da cessão, deixou de tentar cobrar o crédito, efetuar cálculos de prestações, comunicações aos devedores, reportar o saldo do crédito à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, abstendo-se de cobrar e gerir os créditos cedidos, conforme definido na cláusula 3.7, que, sob a epígrafe "Gestão da Carteira", prevê que:

"Sem prejuízo das disposições da Cláusula 3.1, a partir da Data de Entrada em Vigor, o Vendedor abster-se-á de tomar quaisquer medidas para obter a cobrança dos Empréstimos e de gerir os Empréstimos, exceptuando a gestão dos processos judiciais conforme cláusula 9. abaixo (enquanto não forem entregues substabelecimentos sem reserva ao Comprador).

(-)".

42. O Réu é uma instituição bancária que inclui na sua estrutura interna departamentos vários, incluindo financeiros e jurídicos especializados.

43. Foram cedidos pelo Réu à ora Chamada 2022 créditos, pelo preço de vinte e três milhões doze mil setecentos e oitenta euros e trinta e dois cêntimos, onde se encontra o crédito em incumprimento decorrente do contrato de locação financeira n.° 000000006901....6J)0K43000045....6.

44. Como consta do considerando II, do Contrato, o ora o Réu, (..) "colocou à venda num processo concorrencial, para o qual convidou outros proponentes, uma carteira de direitos de crédito vencidos e não pagos pelos Devedores, os quais se encontram em situação de incumprimento (...) com um Saldo em Dívida conjunto de EUR 81.413.227,48.

45. A cláusula 1.2, al. b), do referido Contrato, sob a epígrafe "Identificação dos Ativos", refere:

"Na presente data, o Vendedor entrega ao Comprador o CD de Dados, no qual os Ativos são identificados e que inclui os seguintes dados relativos aos Ativos (os "Dados dos Ativos" ou os "Dados dos Empréstimos "):

(...)

b) identificação do (i) Saldo em Dívida referente a cada um dos Empréstimos que cada Devedor deve na Data Limite, (ii) grau hierárquico da hipoteca associada, quando exista, e (iii) quando tal hipoteca não seja de primeiro grau, o valor existente garantido e graduado acima daquela".

46. A listagem de créditos e documentação a enviar para os interessados na aquisição da carteira são preparadas pelo Réu, com base em informação de que dispõe internamente.

47. A ora Chamada analisou a carteira, tendo formado a sua vontade de contratar e definido o preço a oferecer para compra a carteira e apresentou a sua proposta de aquisição, tendo a mesma sido aceite pelo Réu.

48. O crédito referente ao contrato de locação financeira n° 000000006901...6_00K43000045...6, sempre constou do perímetro do portfólio, integrando as listagens que lhe foram remetidos pelo Réu para análise.

49. Neste tipo de negócio, é usual o perímetro de créditos que integram o portfólio ser alterado pelo cedente, que retira créditos do mesmo, designadamente os incluídos por lapso ou os que são pagos no decorrer da due diligence, o que se encontra previsto nos termos da cláusula 3.5, sob a epígrafe "Alterações à configuração da Carteira desde a Data Limite".

50. Foram ainda transferidos para a ora Chamada todos os "Direitos acessórios" aos créditos, conforme consta da Cláusula 3.3. do Contrato, sendo que o conceito de "Direitos Acessórios" inclui todas as cobranças, rendimentos e pagamentos, sejam presentes ou futuros, feitos em dinheiro e devidos pelos Devedores relativamente aos Empréstimos, incluindo os de capital, juros remuneratórios, juros de mora, comissões.

51. Nos termos do disposto na cláusula 2.1 do Contrato, "O Preço é um preço fixo global e não está sujeito a qualquer alteração devido à insolvência, atual ou futura, dos Devedores, à inexatidão ou falta de dados ou outra informação prestada, ou por qualquer outra razão, sem prejuízo da responsabilidade do Vendedor ao abrigo do presente Contrato.

O Preço é um valor global fixo, que não está sujeito a qualquer alteração devido às características e natureza da Carteira, tudo sem prejuízo da responsabilidade do Vendedor pelo incumprimento das respetivas declarações e garantias decorrentes do presente Contrato".

52. Na aquisição de portfólios de créditos em incumprimento, os mesmos não são vendidos pelo seu valor em dívida, nem pelo suposto valor das garantias.

53. O conjunto de créditos com um Saldo em Dívida conjunto de EUR 81.413.227,48 foi vendido pelo preço de vinte e três milhões doze mil setecentos e oitenta euros e trinta e dois cêntimos.

54. O Réu confirmou à ora Chamada, em 02 de Agosto de 2018, não ter qualquer crédito sobre a Autora, a não ser (à data) o valor de um IMI não pago.

55. A ora Chamada efetuou a gestão do crédito, nos termos e condições que decidiu por convenientes, tendo chegado a acordo e tendo alertado a Autora de que não lhe havia sido transmitido o imóvel objeto do leasing imobiliário.

Ao abrigo do disposto no art. 607.º, n.º 4, aplicável por via da sucessiva remissão dos arts. 663.º, n.º 2 e 679.º, todos do CPC, importa considerar o seguinte facto:

- De acordo com a cláusula 10ª das Condições Particulares, o «preço de venda» previsto na cláusula 17ª, n.º 3 das Condições Gerais corresponde ao «valor residual» fixado em € 30.000,00 (cláusula 8ª, n.º 7, das Condições Particulares), mais IVA.

Não foi dado como provado:

a) o ora Réu acertou com a Sandalgreen a cessão de um conjunto de créditos decorrentes (apenas) de mútuos hipotecários;

b) por "manifesto erro", o ora Réu incluiu na lista de créditos a ceder os montantes registados em Balanço correspondentes ao aludido contrato de locação financeira em vigor;

c) o ora Réu nunca deixaria de tentar cobrar a totalidade dos valores devidos pela Autora no âmbito do contrato;

d) o Réu nunca teve a intenção de ceder os créditos referentes ao contrato de locação financeira em causa;

e) a Sandalgreen conhecia perfeitamente a essencialidade, para o Réu, "do elemento sobre o qual incidiu o erro";

f) sabia, assim, que o Banco apenas teve como intenção ceder-lhe créditos com determinadas características e não "contratos de locação financeira";

g) o Banco apenas se apercebeu do erro após o recebimento da carta da Autora, datada de 18/09/2018;

h) a Autora é devedora ao Réu, no âmbito da locação financeira, de quantia não inferior a €1.100.000,00;

i) no âmbito das negociações que a Autora encetou com a "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", esta solicitou, por diversas vezes, ao "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", que lhe transmitisse o imóvel para que esta, após concluídas as negociações com a Autora, pudesse transmitir-lhe o imóvel em causa;

j) a "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", tendo em conta a recusa do "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A." em transferir a propriedade do imóvel, solicitou, por diversas vezes, ao ora Réu, que procedesse à recompra do crédito decorrente da locação financeira imobiliária.

V – Fundamentação de direito

1. Delimitação do objecto do recurso. Nulidade por omissão de pronúncia

Recordemos as questões objecto do presente recurso:

1. Ao decretarem a execução específica da promessa de transmissão do imóvel locado, tanto a sentença como o acórdão recorrido incorrem em nulidade por ter sido proferida decisão com objecto diferente do pedido (art. 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC), bem como por violação do regime do art. 10.º, n.º 3, do CPC.

Subsidiariamente:

2. Não se verificam os pressupostos da execução específica:

2.1. Não há mora/incumprimento da parte do banco réu.

2.2. A obrigação de transmitir a propriedade sobre o imóvel só existiria nos termos das cláusulas do contrato de locação.

2.3. As prestações a que a locatária se encontrava obrigada não venceram todas antecipadamente, verificando-se assim:

- Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão;

- Tendo o acórdão recorrido requalificado a questão como sendo erro de julgamento, incorreu em nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, d), do CPC);

- Erro de julgamento.

2.4. A autora não cumpriu todas as suas obrigações contratuais, atendendo a que a cessão de créditos não abrangeu a totalidade do crédito, verificando-se assim:

- Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC);

- Tendo o acórdão recorrido requalificado a questão como sendo erro de julgamento, incorreu em nulidade por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, d), do CPC);

- Erro de julgamento.

3. A cessão de créditos a favor da interveniente é contrária à lei.

4. A execução específica permite à autora obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado, o que configura exercício abusivo do direito.

1.1. Antes de iniciar a apreciação de cada uma das questões recursórias, importa clarificar aquilo que se passa em relação àquelas questões que vêm duplamente qualificadas como erro de julgamento e como nulidade da decisão (tanto da sentença como do acórdão recorrido).

A primeira dessas questões corresponde à alegação de que, «ao contrário do que refere a sentença da 1ª Instância (e o acórdão recorrido), não ficou provado nos autos que foram “dadas como vencidas (antecipadamente) todas as prestações em falta”».

Afirma o recorrente que: «Tal circunstância traduz oposição entre os fundamentos e a decisão, o que, nos termos do artº 615º, nº 1, al. c), do CPC, implica a nulidade da sentença»; «(...) que, a esse propósito, o acórdão recorrido (...) afirma que o que o BST invoca é um erro de julgamento, que não se reconduz à nulidade do artº 615º, nº 1, al. c), do CPC»; «(...) que o acórdão recorrido acaba por não apreciar o erro de julgamento que entendeu ter sido invocado pelo BST»; e que «tal circunstância traduz a nulidade prevista no artº 615º, nº 1, al. d), do CPC, que expressamente aqui se invoca.».

Trata-se de uma forma desnecessariamente complexa de enunciar a questão.

Tal como entendeu o acórdão recorrido, a alegada contradição entre os fundamentos de facto e a decisão da sentença não configura nulidade da decisão, mas sim erro de julgamento.

Ora, nas págs. 36 a 41 do acórdão, sob a epígrafe «5.1. Da cedência da totalidade dos créditos emergentes da locação financeira imobiliária», o tribunal a quo apreciou a questão da existência ou não de prestações/rendas vencidas e/ou vincendas a pagar pela autora, considerando que, com a cessão do crédito relativo a tais prestações/rendas à interveniente e com o acordo celebrado com esta última, cessara a responsabilidade da autora. Deste modo, ainda que sem qualificar juridicamente a situação em causa como de vencimento antecipado das prestações/rendas, o acórdão recorrido pronunciou-se acerca do cumprimento das obrigações da locatária, não padecendo assim da arguida nulidade por omissão de pronúncia.

A segunda questão duplamente qualificada pelo recorrente como erro de julgamento e como nulidade da decisão (tanto da sentença como do acórdão recorrido) consiste em invocar: que «ao decidir, por um lado, que a locadora cumpriu todas as obrigações contratuais, e, por outro, ao dar como provado que o valor relativo ao contrato de locação cedido pelo BST à Sandalgreen foi de € 694.903,42, e que a totalidade do valor ainda a receber pelo locador até final do contrato seria de cerca de € 1.100.000,00 - a sentença recorrida incorreu em nova oposição entre os fundamentos e a decisão, o que, nos termos do artº 615º, nº 1, al. c), implica a nulidade da sentença»; que «A este propósito, o acórdão recorrido volta a afirmar, apenas, que o que o BST invoca é um erro de julgamento, que não se reconduz à nulidade do artº 615º, nº 1, al. c), do CPC; que «(...) a esse título, e sem conceder, volta-se a referir que o acórdão recorrido acaba por não apreciar o erro de julgamento que entendeu ter sido invocado; e que tal «circunstância traduz a nulidade prevista no artº 615º, nº 1, al. d), do CPC, que expressamente aqui se invoca.».

Estamos novamente perante uma forma desnecessariamente complexa de enunciar a questão.

Também aqui, e tal como entendeu o acórdão recorrido, a alegada contradição entre os fundamentos de facto e a decisão da sentença não configura nulidade da decisão, mas sim erro de julgamento.

O erro de julgamento invocado – ter a sentença entendido que foram cumpridas as obrigações contratuais da autora locatária – foi, repete-se, apreciado nas págs. 36 a 41 do acórdão recorrido. Reitere-se que, sob a epígrafe «5.1. Da cedência da totalidade dos créditos emergentes da locação financeira imobiliária», o tribunal a quo apreciou a questão da existência ou não de prestações/rendas vencidas e/ou vincendas a pagar pela autora, considerando que, com a cessão do crédito relativo a tais prestações/rendas à interveniente e com o acordo celebrado com esta última, cessara a responsabilidade da autora.

Não se verifica, assim, a arguida nulidade por omissão de pronúncia.

1.2. Afastadas as invocadas nulidades por omissão de pronúncia do acórdão recorrido, temos, pois, que as questões a apreciar são as seguintes (indicadas por ordem de precedência):

• Ao decretarem a execução específica da promessa de transmissão do imóvel locado, tanto a sentença como o acórdão recorrido incorrem em nulidade por ter sido proferida decisão com objecto diferente do pedido (art. 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC), bem como por violação do regime do art. 10.º, n.º 3, do CPC;

• Ilegalidade da cessão do crédito dos autos à interveniente Sandalgreen;

• Não preenchimento dos pressupostos da execução específica;

• A execução específica permite à autora obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado, o que configura exercício abusivo do direito.

2. Nulidade do acórdão recorrido por ter sido proferida decisão com objecto diferente do pedido (art. 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC), bem como por violação do regime do art. 10.º, n.º 3, do CPC, por ter o acórdão recorrido, confirmando a sentença, decretado a execução específica da promessa de transmissão do imóvel locado

Em sede de petição inicial, qualifica a autora a acção como sendo uma «ação declarativa de condenação», formulando, no que ora importa, os seguintes pedidos:

«1. Declarar-se que a AUTORA procedeu ao pagamento integral do valor relativo ao contrato de locação financeira imobiliária celebrado com o "BANIF -LEASING, S.A.", incluindo o valor residual;

2. Declarar-se que, por força do cumprimento da AUTORA, esta é dona e legítima possuidora do imóvel correspondente ao prédio sito na Avenida de ..., n.° 25, ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.° 1637, e inscrito na matriz predial com o artigo 2419;

3. Condenar-se o RÉU a reconhecer o declarado em 1., e 2., supra».

A sentença da 1.ª instância, confirmada, nesta parte, pelo acórdão da Relação, decidiu:

«a) Decretar a execução específica da promessa de venda feita pelo Réu nos termos do contrato de locação financeira imobiliária n° 901.596 de 12/04/2004;

b) Declarar transmitida para a Autora, por efeito daquela, a propriedade sobre o prédio urbano sito na Avenida de..., n° 25, em ..., descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o número 1637 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana da respetiva freguesia sob o artigo 2419, pelo preço de € 1.860.657,54 (um milhão oitocentos e sessenta mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos)».

Alega o recorrente essencialmente o seguinte:

- Foi in casu proferida decisão que ultrapassou os limites dos pedidos formulados pela A., nomeadamente, no que respeita ao seu próprio objeto;

- É, com efeito, inequívoco que a A. não peticionou a execução específica do contrato de locação;

- Tendo, antes formulado, pedidos bem diversos (pagamento integral das quantias devidas pela locação, e consequente declaração de que é dona do imóvel locado);

- Aliás, as divergências entre os pedidos formulados pela A., e a decisão relativa à execução específica, são de tal monta que implicam mesmo uma diferença na espécie de ação judicial;

- Com efeito, a presente ação é uma ação de condenação, ou seja, visa exigir a prestação de um facto, pressupondo a violação de um direito, e está prevista no artº 10º, nº 3, alínea b), do CPC.

Vejamos.

Tal como resulta da detalhada fundamentação do acórdão recorrido, encontra-se consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a orientação segundo a qual, nas palavras do acórdão de 07/04/2016 (proc. n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1)1, disponível em www.dgsi.pt:

«[O] que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.

Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.» [negrito nosso]

Aplicando esta orientação ao caso dos autos, temos que, da conjugação entre o peticionado em 1. («Declarar-se que a AUTORA procedeu ao pagamento integral do valor relativo ao contrato de locação financeira imobiliária celebrado com o "BANIF -LEASING, S.A.", incluindo o valor residual») e em 2. («Declarar-se que, por força do cumprimento da AUTORA, esta é dona e legítima possuidora do imóvel correspondente ao prédio sito na (...)»), resulta que o primeiro pedido respeita apenas ao reconhecimento de um pressuposto do segundo pedido, como sucede noutras acções como, por exemplo, nas acções de responsabilidade civil quando se peticiona que seja reconhecida a propriedade do bem danificado.

Quanto ao segundo pedido («Declarar-se que, por força do cumprimento da AUTORA, esta é dona e legítima possuidora do imóvel correspondente ao prédio sito na (...)»), aquele que verdadeiramente importa para o que aqui está em causa, não merece censura o entendimento da 1.ª instância, sufragado pelo Tribunal da Relação, de acordo com o qual «o pedido feito pela Autora é compatível com a execução específica, não se justificando a condenação do Réu na celebração de um contrato quando a sentença a proferir pode/deve operar o efeito jurídico pretendido, fazendo obter o cumprimento funcional da promessa, conforme supra exposto». Na verdade, entre o objecto do pedido formulado e o objecto da decisão de decretar a execução específica existe plena homogeneidade e equiparação prática: a autora pretende que o tribunal declare que a mesma autora é proprietária do imóvel.

Se alguma dúvida existisse a este respeito, ficaria solucionada mediante o confronto entre o ponto 2 do pedido principal («Declarar-se que, por força do cumprimento da AUTORA, esta é dona e legítima possuidora do imóvel correspondente ao prédio sito na (...)») e o pedido subsidiário («Assim se não entendendo, [c]ondenar o RÉU a cumprir o contrato de locação financeira imobiliária, reconhecendo a propriedade da ora AUTORA sobre o imóvel em causa e outorgando a escritura pública de compra e venda sobre o imóvel, transmitindo o respetivo direito de propriedade para a AUTORA»), do qual se extrai que, enquanto no ponto 2 do pedido principal a autora pretende obter uma declaração constitutiva da aquisição da propriedade do bem imóvel, no pedido subsidiário pretende obter a condenação do réu à realização do contrato de compra e venda do dito imóvel.

Deste modo, conclui-se pela não verificação da arguida nulidade por não ter sido proferida decisão com objecto diferente do pedido (art. 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC).

Não estando o tribunal sujeito à interpretação do direito feita pelas partes (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC), tampouco a qualificação da acção como condenatória, em sede de petição inicial, limita o tribunal a decidir em conformidade com o efeito prático-jurídico pretendido pela autora.

3. Ilegalidade da cessão do crédito relativo às rendas do contrato de locação financeira

Nas instâncias, a defesa do banco réu assentou, em grande medida, na invocação da anulabilidade da cessão do crédito relativo às rendas da locação financeira, celebrada entre o réu banco e a interveniente Sandalgreen, com fundamento em erro-vício, assim como na arguição da nulidade da dita cessão em virtude de a cessionária não estar legalmente admitida a ocupar a posição de locadora financeira.

Não tendo logrado fazer prova dos factos integrantes da regime do erro-vício (cfr. factos não provados b) a g)), no presente recurso o banco réu abandonou a invocação da anulabilidade da cessão – não sem continuar a afirmar que a inclusão do crédito dos autos no objecto do contrato de cessão de créditos, se deveu a erro seu – mantendo, porém, a arguição da nulidade da cessão do crédito pelo facto de, de acordo com o regime legal que regula a actividade de locação financeira (Decreto-Lei n.º 72/95, de 15 de Abril), a cessionária Sandalgreen não estar autorizada a exercer tal actividade.

Sem necessidade de mais considerações, reitera-se o entendimento das instâncias segundo o qual o contrato celebrado entre o banco réu e a cessionária interveniente não corresponde a uma cessão da posição contratual por aquele ocupada na locação financeira (cfr. arts. 424.º e segs, do Código Civil), mas antes a uma simples cessão do crédito respeitante às prestações (rendas) devidas pela locatária (arts. 577.º e segs. do mesmo Código), pelo que o referido contrato não desrespeita o regime imperativo que regula a actividade de locação financeira.

Improcede, assim, a arguida nulidade do contrato de cessão de crédito celebrado entre o réu banco e a interveniente.

4. Preenchimento dos pressupostos da execução específica

Alega o recorrente que não se encontram preenchidos os pressupostos da execução específica, designadamente por:

• Não haver mora/incumprimento da parte do banco réu;

• A obrigação de transmitir a propriedade sobre o imóvel só existir nos termos das cláusulas do contrato de locação;

• As prestações a que a locatária se encontrava obrigada não terem todas vencido antecipadamente;

• A autora não ter cumprido todas as obrigações contratuais, atendendo a que a cessão de créditos não abrangeu a totalidade do crédito relativo às rendas.

Prescreve o n.º 1 do art. 830.º do Código Civil:

«Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.».

No caso dos autos, dúvidas não subsistem de que: (i) resulta do contrato de locação financeira (cfr. o facto 18 e o facto aditado) celebrado entre a autora e o réu a promessa de este transmitir para aquela a propriedade sobre o bem imóvel locado mediante o pagamento de um “valor residual”; (ii) a execução específica não contraria a natureza da obrigação assim assumida; (iii) não foi convencionado o afastamento da execução específica.

Deste modo, apenas se encontra em discussão a verificação do pressuposto do incumprimento da promessa por parte do réu, considerando as instâncias que tal incumprimento ocorre, o que é posto em causa pelo réu, ora recorrente, ao alegar, com ampla argumentação, por um lado, que não incumpriu a obrigação de transmitir a propriedade do imóvel porque, de acordo com o contrato, tal apenas será/seria devido após termo do mesmo contrato, ou seja, em Setembro de 2025; por outro lado, que a autora não pagou a totalidade das prestações a que se encontrava adstrita.

As diversas sub-questões suscitadas pelo recorrente reconduzem-se à questão mais ampla do preenchimento ou não do pressuposto do incumprimento da promessa por parte do réu pelo que serão conjuntamente equacionadas.

4.1. Importa, antes de mais, ter presente a sucessão de factos que conduziu à passagem de uma relação jurídica bilateral existente entre a autora, enquanto locatária financeira, e o banco réu, enquanto locador financeiro, para uma relação jurídica triangular existente entre aqueles e a sociedade interveniente, na qualidade de cessionária.

Relevam os seguintes factos provados:

1. A ora Autora celebrou, em 12 de outubro de 2004, com o "BANIF - Leasing, S.A.", o "contrato de locação financeira imobiliária n° 901.596" tendo por objeto o prédio (...)

2. O referido contrato foi objeto de aditamento, em 10 de julho de 2014, tendo sido alterada a sua duração, o valor e o número das rendas e a taxa de juro aplicável.

4. Por força da deliberação extraordinária do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 20 de dezembro de 2015, foi aplicada ao "BANIF - BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A.", do qual fazia parte integrante a sociedade "BANIF, LEASING, S.A.", uma medida de resolução, mediante a qual se determinou a alienação, ao "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", dos direitos e obrigações que constituíam ativos, passivos e elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do "BANIF - BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A.".

5. No âmbito da dita medida de resolução, foram transferidos para o aqui Réu, "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", um conjunto de créditos, concedidos a vários mutuários, individualmente, designadamente os créditos concedidos à ora Autora pelo "BANIF - BANCO INTERNACIONAL DO FUNCHAL, S.A.".

6. O contrato de locação financeira imobiliária supra referido foi também transferido para o "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.".

7. Por decisão unilateral do ora Réu, "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", em 12 de dezembro de 2016, através de escritura de cessão de créditos, foi integralmente cedido à "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", além do mais, o crédito decorrente do contrato de locação financeira imobiliária supra referido.

14. A Autora, após ter sabido que todos os créditos que detinha junto do Réu tinham sido cedidos à "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", iniciou contactos com esta entidade para negociar o pagamento dos mesmos, por forma a poder manter a respetiva atividade.

15. Logo no início de tais negociações, os colaboradores/funcionários da "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", informaram a Autora que, no âmbito da escritura de compra e venda da carteira de créditos o ora Réu não tinha transmitido a propriedade do imóvel para a "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.".

27. No decorrer de 2016, o ora Réu acertou com a Sandalgreen a cessão de um conjunto de créditos que haviam sido transmitidos para si em resultado da medida de resolução aplicada ao Banif.

28. A cessão em causa respeitou a "uma carteira de direitos de crédito vencidos e não pagos pelos Devedores, os quais se encontram em situação de incumprimento, (...) garantidos por hipoteca", sendo que "(...) os empréstimos incluem direitos de crédito sobre devedores de diversa natureza, origem, duração, valor e, em geral, com condições diferentes (...)".

Temos, pois, que, após ter sucedido ao banco Banif na posição de locador no contrato de locação financeira celebrado com a aqui autora, o banco réu cedeu à sociedade interveniente o crédito relativo às prestações (rendas) de que era titular no dito contrato. Está assente, e não vem posto em causa, que a cessão dos autos corresponde a uma simples cessão de créditos, prevista nos arts. 577.º e segs. do Código Civil, e não a uma cessão da posição contratual, prevista nos arts. 424.º e segs. do mesmo Código.

Deste modo, por iniciativa do banco réu, com a cessão de crédito a favor da sociedade Sandalgreem, ora interveniente – e sem que o contrato de locação tivesse sido resolvido, como ficou provado por confissão do réu (cfr. facto 12) –, operou-se uma dissociação entre os direitos e obrigações emergentes do contrato de locação financeira, dando origem a uma situação qualificável como de coligação contratual entre tal contrato e o contrato de cessão de créditos, na parte respeitante às rendas em causa.

Significa isto que, diferentemente da posição assumida pelo banco réu, ao sistematicamente alegar que as relações entre a autora e o banco réu se pautam pelo contrato de locação financeira entre ambos celebrado, o programa contratual originário foi alterado com a cessão a terceiro do crédito do locador sobre a locatária, fazendo com que a vinculação de cada um dos participantes na dita relação triangular ficasse dependente da vinculação dos demais. E fazendo com que, em última análise, a conduta de cada um deles no cumprimento das respectivas obrigações pudesse assumir relevância para a situação jurídica dos demais.

Esta conclusão é essencial para a compreensão daquilo que está em causa na presente acção. A partir do momento em que o banco réu cedeu unilateralmente a terceiro o crédito relativo às prestações periódicas devidas pela locatária autora a título de rendas, sem que o contrato tivesse sido previamente resolvido por incumprimento desta última, o destino da relação jurídica existente entre autora e réu – e, em particular, o destino da obrigação de transmissão da propriedade sobre o bem imóvel – passou a estar dependente do que viesse a respeito da satisfação do crédito cedido.

Posto por outras palavras, não pode o banco réu, que, com a sua conduta (porventura por falha organizativa interna, que só ao próprio é imputável) deu origem à referida situação de coligação de contratos, pretender que a relação jurídica existente entre si e a autora se mantenha intocável como se o crédito relativo às rendas não tivesse sido cedido a terceiro. O que ocorrer/tenha ocorrido na relação entre a autora cedida e a interveniente cessionária repercutir-se-á necessariamente na relação entre a autora e o réu, na parte em que a vinculação do contrato de locação financeira subsistir entre eles.

No que ora importa, tal implicará, efectivamente, que, se a obrigação de pagamento das rendas devidas pelo contrato de locação se tiver extinguido totalmente, se produza a antecipação do vencimento da obrigação de transmissão da propriedade do bem imóvel a que o banco réu, na qualidade de locador, se encontra adstrito.

Posto é que, tal como concluíram as instâncias, se entenda que o crédito relativo às prestações foi integralmente cedido e que o mesmo foi integralmente extinto.

4.2. O réu, ora recorrente, veio pôr em causa estas últimas asserções das instâncias, invocando que a cessão do crédito relativo às prestações devidas a título de rendas foi parcial e não total; e que, consequentemente, o acordo celebrado entre a cedida e a cessionária – que pôs termo à execução intentada por esta última – não permite dar como extintas todas obrigações contratuais da locatária.

Vejamos.

Relevam os seguintes factos provados:

7. Por decisão unilateral do ora Réu, "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", em 12 de dezembro de 2016, através de escritura de cessão de créditos, foi integralmente cedido à "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", além do mais, o crédito decorrente do contrato de locação financeira imobiliária supra referido.

8. Após a referida cessão de créditos, a "SANDALGREEN ASSETS, S.A.", através de processo de execução que moveu contra a ora Autora e que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Central Cível e Criminal de ..., Juiz 2, sob o n.° 607/18.0..., reclamou o pagamento integral do crédito referente ao supra referido contrato de locação financeira imobiliária.

9. A Autora, no âmbito do referido processo judicial, e através de transação, procedeu ao pagamento integral do valor exigido pela "SANDALGREEN ASSETS, S.A.", tendo sido declarada extinta a execução por declaração de recebimento, pela exequente, do crédito reclamado.

23. Por decisão unilateral do ora Réu, "BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.", tais obrigações foram, em 12 de dezembro de 2016, e através de escritura de cessão de créditos, integralmente cedidas à "SANDALGREEN, ASSETS, S.A.", tendo o Réu procedido à venda de tais obrigações e de todas as garantias acessórias inerentes às mesmas.

24. Após a referida cessão de créditos, a "SANDALGREEN ASSETS, S.A." veio reclamar judicialmente o pagamento integral das obrigações em causa, tendo a Autora procedido ao pagamento integral do valor exigido pela "SANDALGREEN ASSETS, S.A.".

26. A Autora não mantém, na presente data, qualquer relação creditícia com o Réu, não tendo quaisquer dívidas junto deste.

27. No decorrer de 2016, o ora Réu acertou com a Sandalgreen a cessão de um conjunto de créditos que haviam sido transmitidos para si em resultado da medida de resolução aplicada ao Banif.

28. A cessão em causa respeitou a "uma carteira de direitos de crédito vencidos e não pagos pelos Devedores, os quais se encontram em situação de incumprimento, (...) garantidos por hipoteca", sendo que "(...) os empréstimos incluem direitos de crédito sobre devedores de diversa natureza, origem, duração, valor e, em geral, com condições diferentes (...)".

29. Tendo abrangido inúmeras operações, no valor total de cerca de oitenta e oito milhões de euros.

30. À data da cessão, estavam vencidas e não pagas as rendas, relativas ao dito contrato, referentes aos meses de Julho de 2015 a Dezembro de 2016, no valor total de cerca de € 83.000,00.

31. O valor relativo ao contrato de locação que surge indicado no Anexo I à escritura de cessão como tendo sido cedido à Sandalgreen foi de € 694.903,42.

32. Ou seja, foram incluídos valores de capital referentes a rendas ainda não vencidas.

33. A totalidade do valor a receber pelo locador (incluindo capital, juros, encargos e valor residual) da locatária, até final do contrato - que apenas ocorreria em 08.08.2025 - seria de cerca de €1.100.000,00.

34. O imóvel locado tem um valor patrimonial de € 1.581.613,23.

35. A Autora já havia pago, em cumprimento do contrato, € 1.165.754,12.

36. O valor total pago pela Autora à Sandalgreen, no processo executivo por esta deduzido contra aquela para cobrança dos créditos que o Réu lhe cedeu foi de € 600.000,00.

Refira-se, antes de mais, que, no que se refere ao ponto 26 da matéria de facto («A Autora não mantém, na presente data, qualquer relação creditícia com o Réu, não tendo quaisquer dívidas junto deste»), ponderado o mesmo no contexto do objecto da presente acção e acompanhando-se o entendimento do voto de vencido, se entende que o mesmo reveste índole de juízo de direito, pelo que não será tido em conta.

Passemos a apreciar a questão em causa.

Com base no valor pelo qual o crédito sobre a autora foi cedido à interveniente (€694.903,42 – cfr. facto 31) e no valor que foi pago por aquela a esta última (€600.000,00 – cfr. facto 36), pretende o banco réu que se considere que a cessão do crédito relativo às rendas, bem como a sua extinção por acordo, foram apenas parciais.

Assim não entenderam as instâncias ao darem como provado que, quer a cessão do crédito (cfr. factos 7 e 23), quer a extinção do mesmo (cfr. factos 8, 9 e 24), foram realizadas pelo valor integral do crédito.

A respeito da motivação da decisão de facto, pode ler-se no acórdão recorrido:

«Basta ler as cláusulas do referido contrato de cessão para perceber que foram vendidos à Sandalgreen todos os créditos emergentes da locação financeira e que todos eles foram também reclamados pela cessionária à autora, no referido processo de execução.

Note-se que na altura da cessão as rendas vencidas e não pagas pela autora ascendiam a €83.000,00 e que o valor da cessão desses créditos foi cerca de €7000,00. [rectius: € 700.000]

(...)

«(...) na altura da cessão, estavam em dívida €83.000,00 de rendas vencidas e o Banco cedeu todos os créditos sobre a autora por €694.903,42, quando em caso de resolução o Banco só poderia pedir o valor previsto no contrato (rendas vencidas +20% do valor das rendas vincendas - cfr. artigo 28.º do contrato).

(...)

(...) dir-se-á que o Santander não estava seguro da solvabilidade da autora e que cedeu os créditos, sem mais delongas e custos de cobrança, por um valor considerável (€700.000) quando estavam em dívida na altura €83.000,00 de rendas vencidas, e já tinha recebido da locatária €1.165.754. Isto, sem mencionar, a questão da titularidade do imóvel que se mantinha (e mantém, na propriedade do Banco).».

Temos, pois, que as instâncias deram como provado que a vontade real das partes (cfr. art. 236.º, n.º 2, do Código Civil) ao celebrar o contrato de cessão de créditos foi de que a cessão abrangesse a totalidade do crédito das prestações devidas pela locatária a título de rendas. E deram também como provado que a obrigação de pagamento das mesmas prestações se extinguiu integralmente mediante o pagamento acordado entre a cessionária e a locatária.

De acordo com a jurisprudência constante deste Supremo Tribunal o apuramento da vontade real dos declarantes, em matéria de interpretação de negócio jurídico, constitui matéria de facto que, como tal, está subtraída ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista. Cfr. os acórdãos de 08/11/2012 (proc. n.º 37/05.3TBBRR.L1.S1), de 05/05/2016 (proc. n.º 690/13.4TVPRT.P1.S1), de 18/10/2018 (proc. n.º 2687/13.5TBLLE.E1.S1), de 28/03/2019 (proc. n.º 281648/11.7YIPRT.L1.S1), de 24/10/2019 (proc. n.º 56/14.9T8VNF.G1.S1), de 08/04/2021 (proc. n.º 453/14.0TBVRS.L1.S1), de 07/07/2021 (proc. n.º 1391/18.2T8CSC.L1.S1), de 17/11/2021 (proc. n.º 4113/18.4T8ALM.L1.S1) e de 02/02/2022 (proc. n.º 527/19.0T8FND.C1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

De qualquer forma, sempre se dirá que o juízo de facto realizado pelas instâncias é inteiramente compatível com a conduta do banco réu após ter cedido à sociedade interveniente o crédito relativo às rendas do contrato de locação financeira.

Com efeito, ficou provado o seguinte:

41. O Réu, nos termos do acordado na Cláusula 3.1 do documento complementar da referida escritura de cessão de créditos, denominado de "Contrato de compra e venda de uma carteira de empréstimos", à data da cessão, deixou de tentar cobrar o crédito, efetuar cálculos de prestações, comunicações aos devedores, reportar o saldo do crédito à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, abstendo-se de cobrar e gerir os créditos cedidos (...).

54. O Réu confirmou à ora Chamada, em 02 de Agosto de 2018, não ter qualquer crédito sobre a Autora, a não ser (à data) o valor de um IMI não pago.

Temos, pois, que, após ter cedido à interveniente o crédito relativo às rendas do contrato de locação financeira, o banco réu não apenas não informou a locatária, aqui autora, dos termos da cessão como não mais tentou cobrar-lhe qualquer prestação das rendas devidas por esse contrato. Em resultado de eventual falha interna que só a si é imputável, o banco réu deu como assente que o contrato de locação financeira estaria resolvido, desinteressando-se do destino da cobrança do crédito cedido. Pretender que a cessão do crédito respeitante às rendas foi parcial e não total entra em contradição com a conduta do banco réu no período posterior à cessão.

Deste modo, dúvidas não subsistem de que o crédito relativo às rendas foi integralmente cedido à interveniente e integralmente extinto mediante acordo entre esta e a cedida, ora autora.

Encontram-se assim preenchidas as condições para que – no plano da relação contratual entre a mesma autora e o banco réu – possa aquela exigir a aquisição da propriedade sobre o imóvel locado, exigência que deve ser julgada procedente desde que, por um lado, esteja/seja respeitada a obrigação do pagamento do “preço de venda” correspondente ao “valor residual” contratualmente previsto; e desde que, por outro lado, e diversamente do alegado pela recorrente, a execução específica não leve a autora a obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado.

Apreciemos separadamente cada uma destes eventuais obstáculos à execução específica.

5. Nos termos do n.º 5 do art. 830.º do Código Civil:

«No caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal.».

A questão da falta de pagamento do “valor residual” a título de contrapartida pela aquisição da propriedade por parte da autora foi suscitada, pela primeira vez, nas alegações do recurso de apelação do banco réu, o que não merece reparo atendendo ao facto de a sentença da 1ª instância ter decidido convolar o pedido principal da autora e decretar a execução específica da promessa de transmissão da propriedade do imóvel.

Tal questão, reiterada nas alegações do presente recurso, ainda que sem invocação do regime do n.º 5 do art. 830.º do CC, é questão de direito sobre a qual cabe pronunciar-nos.

Antes de mais, importa ter presente que, tal como se afirmou supra (no ponto V, 4.1. do presente acórdão), com a cessão unilateral do crédito relativo às rendas à sociedade interveniente, sem que o contrato de locação tivesse sido resolvido, operou-se uma dissociação entre os direitos e obrigações emergentes do contrato de locação financeira: a propriedade do imóvel manteve-se na esfera jurídica do banco réu, o qual consequentemente, se manteve adstrito para com a locatária, ora autora, à promessa de venda contratualmente prevista; o crédito relativo às rendas passou para a titularidade da cessionária, ora interveniente, tendo a locatária como sujeito passivo.

Consideremos o teor da cláusula 17ª das Condições Gerais do contrato de locação financeira com a epígrafe Promessa Unilateral de Venda (cfr. facto 18.):

«1. O Locador promete vender ao Locatário o imóvel objeto do presente contrato no termo deste.

(...)

3. Na data final deste contrato, deverá ser pago o preço de venda que é fixado no número 10. das condições particulares do presente contrato.

4. O Locatário deve notificar o Locador da sua intenção de exercer a opção de compra com uma antecedência mínima de 90 dias relativamente à data final do contrato, por carta registada com aviso de recepção, sob pena de caducidade da opção.

5. Após o termo do presente contrato e do pagamento integral do preço convencionado e não se verificando qualquer situação de mora por parte do Locatário, o Locador providenciará a realização da escritura pública de compra e venda do imóvel, cujos custos notariais, de registo e outros relacionados com o imóvel, serão suportados pelo Locatário.».

Conforme aditado à matéria de facto, de acordo com a cláusula 10ª das Condições Particulares, o “preço de venda” previsto na cláusula 17ª, n.º 3 das Condições Gerais corresponde ao “valor residual” fixado em € 30.000,00 (cláusula 8ª, n.º 7, das Condições Particulares), mais IVA.

Assim, e dado o carácter sinalagmático existente entre a promessa unilateral de venda e a obrigação de pagamento do valor residual a título de contrapartida pela aquisição da propriedade do imóvel, considera-se preenchida a previsão do art. 830.º, n.º 5, do Código Civil («contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento») pelo que a decisão da decretar a execução específica se encontra dependente da consignação em depósito do referido valor residual.

5.1. Notificadas as partes para, ao abrigo do princípio ínsito no n.º 3 do art. 3.º do CPC, se pronunciarem sobre a possibilidade de a decisão de decretar a execução específica ficar dependente da consignação em depósito do valor residual de aquisição do imóvel previsto no contrato de locação financeira celebrado entre as partes, vieram recorrente e recorrida fazê-lo em sentidos divergentes.

Analisemos as posições assumidas.

5.2. O banco réu pronunciou-se:

• Reiterando a sua oposição à execução especifica com os fundamentos já aduzidos nas alegações de recurso;

• Subsidiariamente, alegando o seguinte:

«31. Na hipótese de vir a ser entendido que, na situação dos autos, deve ser determinada a execução específica, julga-se que a mesma não poderá ocorrer sem o pagamento, pela A., de uma adequada contraprestação ao BST.

32. Pensa-se, no entanto, que essa contraprestação não deverá corresponder apenas ao valor residual (€ 30.000,00).

33. Mas, antes, que deverá ser calculada nos termos da clª 18ª, do contrato, acima citada.

34. Notando-se, a esse propósito, que está provado que a totalidade do valor (incluindo o valor residual) ainda a receber pelo locador até final do contrato é de €1.100.000,00 – vd. ponto 33 dos Factos Provados.

35. Devendo, pois, no cenário em apreço, a contraprestação a pagar pela A. ao BST ser de € 1.100.000,00.

36. Em alternativa, a contraprestação deveria corresponder à diferença entre o referido valor de € 1.100.000,00, e o valor relativo ao contrato de locação que surge indicado no contrato de cessão como tendo sido cedido à Sandalgreen (€ 694.903,42) – vd. ponto 31 dos Factos Provados.

37. Ou seja, € 405.096,58.

(...)».

Vejamos.

No que se refere à oposição à execução específica – objecto nuclear do presente recurso – foram já exaustivamente apreciados (cfr., parte V, pontos 2 a 4 do presente acórdão) todos os fundamentos invocados pelo banco réu, ora recorrente, sendo os mesmos considerados improcedentes.

No que se refere à possibilidade de a decisão de decretar a execução específica ficar dependente da consignação em depósito do valor residual de aquisição do imóvel previsto no contrato de locação financeira – única questão que se encontra ainda em aberto – falece também a pretensão do banco réu de, a título de preço de venda do imóvel locado, em vez do valor residual previsto no contrato, se adoptar seja o valor de €1.100.000,00 seja o valor de €405.096,58.

O valor de € 1.100.000,00 foi invocado pelo banco réu em razão do teor do facto provado 33, segundo o qual à data da cessão, «[a] totalidade do valor a receber pelo locador (incluindo capital, juros, encargos e valor residual) da locatária, até final do contrato - que apenas ocorreria em 08.08.2025 - seria de cerca de €1.100.000,00».

Vir invocar este valor como preço da venda não faz sentido algum porque o mesmo se refere aos valores contratuais que, antes da cessão do crédito à interveniente, o banco réu tinha a expectativa de cobrar à locatária. Como se afirmou já, não pode o banco réu pretender que a relação jurídica existente entre si e a autora se mantenha intocável como se o crédito relativo às rendas não tivesse sido cedido a terceiro e como se não tivesse recebido uma contrapartida por essa cessão.

Quanto ao valor de € 405.096,58, nas palavras do recorrente, corresponde o mesmo «à diferença entre o referido valor de € 1.100.000,00, e o valor relativo ao contrato de locação que surge indicado no contrato de cessão como tendo sido cedido à Sandalgreen (€ 694.903,42)».

Trata-se de valor que apenas faria sentido caso se aceitasse a posição defendida pelo banco réu segundo a qual a cessão do crédito relativo às rendas teria sido parcial e não total. Afastada que está tal posição, não faz sentido considerar o invocado valor.

Por fim, esclareça-se que a previsão da cláusula 18ª das Condições Gerais do contrato de locação dos autos se reporta à compra antecipada do imóvel, previsão cuja aplicação apenas poderia ser convocada se, com a cessão unilateral do crédito, não se tivesse operado uma dissociação entre os direitos e obrigações emergentes do contrato de locação financeira, dando origem a uma situação de coligação contratual.

Como se afirmou já, a partir do momento em que o banco réu cedeu unilateralmente a terceiro o crédito relativo às prestações periódicas devidas pela locatária autora a título de rendas, sem que o contrato tivesse sido previamente resolvido por incumprimento desta última, o destino da relação jurídica existente entre autora e réu – e, em particular, o destino da obrigação de transmissão da propriedade sobre o bem imóvel – passou a estar dependente do que viesse a suceder a respeito da satisfação do crédito cedido. Dando-se como provado que o crédito cedido foi extinto na totalidade, encontram-se preenchidas as condições para que – no plano da relação contratual entre a mesma autora e o banco réu – possa ser exigida a aquisição da propriedade sobre o imóvel locado.

5.3. Por sua vez, a autora veio, no que ora importa, pronunciar-se nos seguintes termos:

«1.º No que respeita à matéria relativa ao valor residual, dá-se aqui por integralmente reproduzido tudo quanto já alegado no âmbito do presente processo judicial.

2.º Reforçando-se que, tal como consta do item 8., do elenco dos factos dados como provados na decisão de primeira instância:

“8. Após a referida cessão de créditos, a “SANDALGREEN ASSETS, S.A.”, através de processo de execução que moveu contra a ora Autora e que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Central Cível e Criminal de ..., Juiz 2, sob o n.º 607/18.0..., reclamou o pagamento integral do crédito referente ao supra referido contrato de locação financeira imobiliária.” (negrito e sublinhados nossos)

3.º Ou seja, a “SANDALGREEN ASSETS, S.A., só teve legitimidade para reclamar todos os créditos relativos ao contrato de locação financeira imobiliária porque o ora RÉU/RECORRENTE lhe cedeu todos esses créditos, instruindo tal cessão com todos os documentos necessários à cobrança judicial dos créditos.

4.º Assim, o ora RÉU/RECORRENTE cedeu todos os créditos decorrentes do contrato de locação financeira imobiliária, no valor total de € 694.903,42 (seiscentos e noventa e quatro mil, novecentos e três euros e quarenta e dois cêntimos), valor que correspondia, inequivocamente, a créditos vencidos, rendas vincendas vencidas antecipadamente, juros e valor residual.

5.º Aliás, interpretação diferente não pode agora ser feita, uma vez que o RÉU/RECORRENTE, ao longo de todo o processo, e respondendo às solicitações, quer da AUTORA/RECORRIDA, quer da própria “SANDALGREEN ASSETS, S.A.” sempre confirmou que, após a cessão de créditos, nada mais lhe era devido pela AUTORA/RECORRIDA, no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária em causa.

6.º Vide, neste sentido o item 26., do elenco dos factos dados como provados na decisão proferida em primeira instância:

“26. A Autora não mantém, na presente data, qualquer relação creditícia com o Réu, não tendo quaisquer dívidas junto deste.” (negrito e sublinhados nossos)

7.º E, ainda, o item 54., do elenco dos factos dados como provados na decisão proferida em primeira instância:

“O Réu confirmou à ora Chamada, em 2 de agosto de 2018, não ter qualquer crédito sobre a Autora, a não ser (à data) o valor de um IMI não pago.” (negrito e sublinhados nossos)

8.º Ainda com relevância para a decisão a tomar por esse Venerando Tribunal, vide, ainda, o item 40., do elenco dos factos dados como provados na decisão proferida em primeira instância:

“Com a cessão de créditos operada o Réu recebeu o preço acordado, fechou o crédito nos seus sistemas informáticos e retirou-o do seu balanço, tendo transferido para a ora Chamada toda a documentação referente ao crédito e tendo deixado de efetuar a gestão do mesmo.” (negrito e sublinhados nossos)

9.º Pelo que dúvidas não subsistem que o valor relativo ao valor residual já se encontra pago pela AUTORA/RECORRIDA, não podendo tal pagamento ser feito, uma vez mais, ao RÉU/RECORRENTE, que já recebeu tal valor no âmbito da cessão de créditos que fez à SANDALGREEN ASSETS, S.A., tendo feito tal cessão pelo valor que entendeu como conveniente, não sendo tal decisão unilateral oponível à ora AUTORA/RECORRIDA.

(...)

Pelo que deve ser mantida a decisão no sentido de que foram pagos, pela AUTORA/RECORRIDA, todos os créditos, vencidos e vincendos, incluindo o valor residual, relativos ao contrato de locação financeira imobiliária, nada mais sendo devido pela AUTORA/RECORRIDA ao RÉU/RECORRENTE, tal como este expressamente assumiu, tendo tal facto sido dado como plenamente provado.».

Com o devido respeito, afigura-se que, em última análise, a posição assumida pela autora se apresenta como incoerente com a sua pretensão de que seja mantida a decisão de decretar a execução específica.

Com efeito, importa recordar que, no presente recurso de revista, veio o banco réu reiterar a arguição da nulidade da cessão do crédito pelo facto de, de acordo com o regime legal que regula a actividade de locação financeira (Decreto-Lei n.º 72/95, de 15 de Abril), a cessionária Sandalgreen não estar autorizada a exercer tal actividade.

Ora, tal como acima apreciado (na parte V, ponto 3 do presente acórdão), considerou-se não merecer censura o entendimento das instâncias segundo o qual o contrato celebrado entre o banco réu e a cessionária interveniente não corresponde a uma cessão da posição contratual por aquele ocupada na locação financeira (cfr. arts. 424.º e segs, do Código Civil), mas antes a uma simples cessão do crédito respeitante às prestações (rendas) devidas pela locatária (arts. 577.º e segs. do mesmo Código), pelo que o referido contrato não desrespeita o regime imperativo que regula a actividade de locação financeira.

Precisamente por se ter operado uma simples cessão a terceiro do crédito relativo às rendas, produziu-se a assinalada dissociação entre os direitos e obrigações emergentes do contrato de locação financeira: a propriedade do imóvel manteve-se na esfera jurídica do banco réu, o qual, consequentemente, se manteve adstrito para com a locatária, ora autora, à promessa de venda contratualmente prevista; o crédito relativo às rendas passou para a titularidade da cessionária, ora interveniente, tendo a locatária como sujeito passivo.

De acordo com a cláusula 17ª, n.º 4, das Condições Gerais do contrato de locação financeira, cabe à locatária invocar o direito a adquirir a propriedade sobre o bem imóvel; sendo que, nos termos dos n.ºs 3 e 5 da mesma cláusula, o exercício desse direito se encontra dependente do pagamento do “preço de venda”, correspondente ao “valor residual” contratualmente previsto.

Por outras palavras, a obrigação de pagamento do “valor residual”, a título de contrapartida pela transmissão da propriedade sobre o imóvel, só nasce com a manifestação da vontade de aquisição da dita propriedade por parte da locatária.

É neste contexto que a factualidade dada como provada – tanto os factos 40 e 54 invocados pela autora no seu requerimento (o facto 26 foi excluído acima pelo presente acórdão por revestir a natureza de juízo de direito) como os factos 7, 8, 9, 23 e 24, respeitantes à cessão e extinção integral do mesmo crédito – deve ser perspectivada. Tendo ocorrido a referida dissociação entre os direitos e obrigações nascidos do contrato de locação financeira, tais factos reportam-se apenas ao crédito relativo às rendas que passou para a titularidade da cessionária, ora interveniente, tendo a locatária como sujeito passivo.

Confirma-se assim que, dado o carácter sinalagmático existente entre a promessa unilateral de venda e a obrigação de pagamento do “valor residual” a título de contrapartida pela aquisição da propriedade do imóvel, se considera preenchida a previsão do art. 830.º, n.º 5, do Código Civil, pelo que a decisão da decretar a execução específica se encontra dependente da consignação em depósito do valor residual contratualmente previsto.

6. Obtenção pela autora de benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado

Por último, importa considerar a questão suscitada pelo recorrente ao invocar que, nas circunstâncias dos autos, a pretensão da autora de adquirir a propriedade sobre o imóvel locado configura exercício abusivo do direito, «[p]rocurando a A., por tal via, obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado».

No essencial, alega o recorrente que, na situação dos autos, isto é, tendo ficado provado que «[o] imóvel locado tem um valor patrimonial de € 1.581.613,23», que a «[a] totalidade do valor a receber pelo locador (incluindo capital, juros, encargos e valor residual) da locatária, até final do contrato - que apenas ocorreria em 08.08.2025 - seria de cerca de €1.100.000,00» e que «[o] valor total pago pela Autora à Sandalgreen, no processo executivo por esta deduzido contra aquela para cobrança dos créditos que o Réu lhe cedeu foi de € 600.000,00», «sendo que a Sandalgreen reclamava da Autora o valor global de € 2.518.036,88», se deve entender que:

- «[A] presente ação não passa de uma mera tentativa de aproveitamento, por parte da A., de uma situação anómala.

- Procurando a A., por tal via, obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado.

- Fazendo-o, para mais, em claro prejuízo do BST.

- No contexto relatado, julga-se que obrigar o BST a transmitir à A. a propriedade do imóvel locado significaria o exercício de um direito “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.

- Ou seja, tal exercício, face ao disposto no artº 334º do Cód. Civil, seria ilegítimo.»

Quid iuris?

6.1. Antes de mais, assinale-se que, ao invocar que, com a exigência de aquisição da propriedade sobre o imóvel locado, pretende a autora obter um benefício patrimonial indevido e totalmente desproporcionado, situa-se o réu, ora recorrente, no plano da atribuição de relevância àquilo que vem sendo designado pela doutrina como princípio ou directriz do equilíbrio contratual ou negocial. Neste sentido, ver Rui Pinto Duarte, «O equilíbrio contratual como princípio jurídico», in Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, págs. 1331 e segs., idem, «Editorial - A ideia de equilíbrio contratual», in Revista Electrónica de Direito, Janeiro de 2023, págs. 2 e segs., Marta Martins da Costa, «Sobre o princípio do equilíbrio negocial no Direito privado português», in Cadernos de Direito Privado, Abril-Junho 2023, págs. 32 e segs., Ana Filipa Morais Antunes, «A força maior e o (des)equilíbrio contratual», in Catolica Talks: Direito e Pandemia, coord.: Elsa Vaz de Sequeira, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2022, págs. 9 e segs., e idem, Equilíbrio negocial, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2024.

Na síntese apresentada nesta última obra:

«[O] ordenamento jurídico português não é indiferente à ideia de equilíbrio negocial, seja no contexto de relações estabelecidas entre particulares seja com contraentes públicos.

A exigência de equilíbrio negocial corresponde a um afloramento do princípio da proporcionalidade no Direito dos contratos, e dirige-se a apreciar a congruidade das prestações, isto é, o nexo estabelecido ao abrigo do regulamento contratual, e que se expressa, designadamente, na equação económica considerada pelas partes, no momento da sua celebração. Reclama-se, por esta via, a razoabilidade do vínculo obrigacional e a necessidade de uma certa correspondência entre as vantagens a as desvantagens fundadas no contrato.

Justifica-se, assim, considerar a juridicidade deste parâmetro que pode ser fundamentado no art. 280.º, n.º 2, do CC, ao abrigo da cláusula geral de ordem pública. Significa isto que o princípio do equilíbrio negocial constitui um plus relativamente a outras dimensões de controlo do exercício da autonomia privada (como a lei imperativa, a boa fé e os bons costumes).» (Equilíbrio negocial, cit., págs. 93-94).

Como afirmam Rui Pinto Duarte («O equilíbrio contratual como princípio jurídico», cit., págs. 1337 e segs.; idem, «Editorial - A ideia de equilíbrio contratual», cit., págs. 2 e segs.) e Ana Filipa Morais Antunes (Equilíbrio negocial, cit., págs. 120 e segs.), a exigência de equilíbrio negocial é identificável em diversos regimes jurídicos, de entre os quais se podem, designadamente, referir os seguintes: interpretação da declaração negocial (cfr. art. 237.º do CC), erro-vício sobre a base negocial (cfr. art. 252.º, n.º 2, do CC), usura (cfr. arts. 282.º e 283.º do CC), abuso do direito (cfr. art. 334.º do CC), desvio do efeito retroactivo da resolução contratual nos contratos de execução continuada (cfr. art. 434.º, n.º 2, do CC), resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias (cfr. arts. 437.º a 439.º do CC).

Nas palavras de Rui Pinto Duarte («Editorial - A ideia de equilíbrio contratual», cit., pág. 2) a afirmação de um princípio de equilíbrio contratual «não significa a vigência de uma regra segundo a qual as prestações emergentes dos contratos devem ter valor igual ou aproximado. Longe disso. “Princípio”, para o efeito em causa, significa uma diretriz do sistema jurídico, manifestada em diversas normas, não uma norma entendida como um comando que liga uma certa estatuição à previsão de uma certa situação da vida».

Convoca-se a síntese conclusiva que, na linha das considerações tecidas por Rui Pinto Duarte («O equilíbrio contratual como princípio jurídico», cit., págs. 1336 e seg.), é apresentada por Ana Filipa Morais Antunes (Equilíbrio negocial, cit., págs. 130-131):

«Por último, a diretriz do equilíbrio negocial eleva-se como um limite ao exercício da autonomia privada, tendo, como tal, natureza excecional. Esta singularidade da diretriz do equilíbrio negocial impõe um esforço de concretização dos parâmetros relevantes, que o intérprete e o aplicador do Direito deve privilegiar e integrar no juízo decisório. Assim:

- Em primeiro lugar, só pode ser revelada uma hipótese de assimetria significativa ou manifesta (parâmetro quantitativo);

- Em segundo lugar, a assimetria prestacional ou do programa contratual tem de ser destituída de um fundamento material, à luz do contrato ou operação negocial e do Direito (parâmetro qualitativo);

- Em terceiro lugar, uma sindicância sobre a eventual injustiça do conteúdo negocial pode justificar-se, em geral, relativamente a negócios patrimoniais, onerosos, comutativos, e que titulam, em regra, uma relação continuada no tempo. (...);

- Em quarto lugar, a legitimidade ativa no plano da invocação do equilíbrio negocial deve ser reservada ao contraente afetado pelo desequilíbrio (genético ou funcional) do contrato, isto é, à parte que merece ser tutelada pelo direito.».

No caso dos autos, em que o recorrente invoca existir um desequilíbrio contratual funcional (isto é, não genético), procuremos averiguar da aplicação destes parâmetros.

6.2. Não oferece dúvidas que a relação contratual originária existente entre a autora e o réu, para além de ser uma relação contratual duradoura, reveste carácter patrimonial, oneroso e comutativo. Porém, com a alteração ao programa contratual introduzida, por iniciativa do banco réu, pela cessão do crédito relativo às rendas realizada a favor da cessionária interveniente, afigura-se que a caracterização da situação de coligação de contratos já não será assim tão simples.

Admitindo-se, ainda assim, que o vínculo da locatária (para com o conjunto formado pelo locador cedente e pela cessionária) mantenha natureza essencialmente comutativa, a aferição dos parâmetros do equilíbrio contratual terá de ser realizada de forma global.

Nesta linha de pensamento, passemos a apreciar da verificação do parâmetro quantitativo de aferição do equilíbrio negocial, isto é, da existência ou não da invocada assimetria manifesta.

Relevam os seguintes factos provados:

30. À data da cessão, estavam vencidas e não pagas as rendas, relativas ao dito contrato, referentes aos meses de Julho de 2015 a Dezembro de 2016, no valor total de cerca de € 83.000,00.

31. O valor relativo ao contrato de locação que surge indicado no Anexo I à escritura de cessão como tendo sido cedido à Sandalgreen foi de € 694.903,42.

32. Ou seja, foram incluídos valores de capital referentes a rendas ainda não vencidas.

33. A totalidade do valor a receber pelo locador (incluindo capital, juros, encargos e valor residual) da locatária, até final do contrato - que apenas ocorreria em 08.08.2025 - seria de cerca de €1.100.000,00.

34. O imóvel locado tem um valor patrimonial de € 1.581.613,23.

35. A Autora já havia pago, em cumprimento do contrato, € 1.165.754,12.

36. O valor total pago pela Autora à Sandalgreen, no processo executivo por esta deduzido contra aquela para cobrança dos créditos que o Réu lhe cedeu foi de € 600.000,00.

37. Sendo que a Sandalgreen reclamava da Autora o valor global de € 2.518.036,88.

38. Esse valor de € 2.518.036,88, para além de € 704.208,50 relativos à locação financeira, incluía ainda: conta corrente no valor de € 75.000,00; 7 contratos de empréstimo no valor total de € 1.391.971,6; 312 letras no valor total de € 114.694,63; saldo devedor no valor de € 112,24.

Perante a factualidade provada, consideremos a situação em que se encontram as partes da presente acção, tendo presente que, de acordo com o contrato de locação financeira, a satisfação da obrigação de pagamento das rendas pela locatária permitiria (e permite) a invocação do direito à aquisição da propriedade sobre o imóvel:

Situação da autora

• O valor patrimonial do imóvel é de € 1.581.613,23;

• Desde o início do contrato e até à data da cessão do crédito relativo às rendas, a autora pagou €1.165.754,12;

• À data da cessão (Dezembro de 2016), não estavam pagos cerca de € 1.100.000,00 (valor que incluía rendas vencidas no montante de € 83.000,00 e ao qual há ainda que deduzir o valor residual de € 30.000,00), sendo que as rendas vincendas venceriam periodicamente até Agosto de 2025;

• A fim de pôr termo ao processo executivo contra si instaurado pela cessionária, ora interveniente, a autora pagou a esta última o valor global de € 600.000,00 (isto é, por todos os créditos sobre a autora cedidos pelo banco réu, no valor total de € 2.518.036,88), sendo que uma parcela não determinada daquele valor respeita ao pagamento de rendas vencidas e vincendas resultantes do contrato de locação dos autos.

Situação do banco réu

• O valor patrimonial do imóvel é de € 1.581.613,23;

• Desde o início do contrato e até à data da cessão de crédito, o banco recebeu da autora o pagamento de € 1.165.754,12;

• À data da cessão (Dezembro de 2016), não estavam pagos cerca de € 1.100.000,00 (valor que incluía rendas vencidas no montante de € 83.000,00 e ao qual há ainda que deduzir o valor residual de € 30.000,00), sendo que as rendas vincendas venceriam periodicamente até Agosto de 2025;

• O banco cedeu os créditos relativos às ditas rendas do contrato de locação por € 694.903,42.

Não pode, pois, ignorar-se que, antes da cessão de créditos à interveniente, a autora pagara já ao banco réu rendas no valor de € 1.165.754,12. A que acresce o pagamento à interveniente de parcela não determinada do valor global de € 600.000,00 por conta das rendas (cerca de € 1.100.000,002) resultantes do contrato de locação dos autos.

Por sua vez, antes da cessão de créditos à interveniente, o banco réu recebera da autora o referido valor de rendas de € 1.165.754,12. A que acresce o recebimento do valor de €694.903,42 pago pela interveniente pelo crédito relativo às rendas (cerca de € 1.100.000,003) resultantes do contrato de locação dos autos. Sendo que o valor de € 694.903,42 foi pago em Dezembro de 2016, enquanto o plano de pagamento das rendas se prolongaria até Agosto de 2025.

Ponderados estes dados, afigura-se que, na prática, tanto a autora como o banco réu beneficiaram com a cessão à interveniente do crédito relativo às rendas da locação financeira dos autos.

A autora porque, ainda que realizando um pagamento parcelar antecipado das rendas vincendas, terá, na globalidade, em resultado do acordo com a interveniente, obtido uma significativa diminuição do dispêndio monetário total que originariamente o contrato de locação importava para si.

O banco réu porque obteve, em Dezembro de 2016, o pagamento de € 694.903,42 pelo valor das rendas (cerca de € 1.100.000,004) resultantes do contrato de locação dos autos, quando, de acordo com o programa contratual inicial, tal pagamento seria faseado no tempo, terminando apenas em Agosto de 2025.

Por outras palavras, afigura-se que, em relação às obrigações originariamente assumidas pelo contrato de locação, tanto a situação patrimonial da autora como a do réu saíram beneficiadas com a cessão de créditos, sendo que esses benefícios foram obtidos, em última análise, “à custa” da cessionária interveniente, uma vez que esta adquiriu o crédito por € 694.903,42 e aceitou receber da locatária, ora autora, o pagamento de apenas uma parcela desse crédito (parcela não determinada, inserida no valor global de € 600.000,00, isto é, inserida no valor global recebido por todos os créditos sobre a autora cedidos pelo banco réu, no valor total de € 2.518.036,88).

Ao alegar que a atribuição da propriedade à autora constitui um benefício desproporcionado e injustificado pelo facto de a autora ter pagado globalmente um valor mais baixo do que aquele a que estaria obrigada se o acordo com a cessionária não tivesse tido lugar, está o banco réu a ignorar que o banco recebeu já, directamente da autora ou indirectamente da cessionária, tudo aquilo a que tinha direito.

Pretender manter a propriedade do imóvel na sua esfera jurídica, quando, salvo no que se refere ao “valor residual”, já recebeu todas as prestações a que (em virtude do contrato de locação conjugado com o contrato de cessão de créditos à interveniente) tinha direito, é que configuraria um benefício injustificado a favor do banco réu.

Afigura-se que a posição assumida pelo banco assenta no facto de, por eventual falha interna que só ao mesmo é imputável, ter incluído o crédito relativo às rendas da locação dos autos no contrato de cessão de créditos celebrado com a interveniente, presumindo equivocadamente (como ficou provado por confissão - cfr. facto 12) que procedera à resolução de tal contrato por incumprimento da locatária e que, concomitantemente, tinha direito a reter a propriedade sobre o imóvel locado.

Perante esta errónea convicção, admitir o bem fundado da pretensão da autora em adquirir a propriedade sobre o imóvel surge como um sério prejuízo patrimonial para o banco réu. Importa, porém, sublinhar que esta percepção não assenta na realidade factual, antes é resultado do referido equívoco que levou o banco a proceder conforme provado no facto 40 («Com a cessão de créditos operada o Réu recebeu o preço acordado, fechou o crédito nos seus sistemas informáticos e retirou-o do seu balanço, tendo transferido para a ora Chamada toda a documentação referente ao crédito e tendo deixado de efetuar a gestão do mesmo.»).

No que ora importa, não se verificando o parâmetro quantitativo da directriz do equilíbrio contratual, forçoso é concluir, sem necessidade de mais considerações, pela não ocorrência do invocado desequilíbrio contratual a favor da autora.

7. Considerando que se confirmou que, dado o carácter sinalagmático existente entre a promessa unilateral de venda e a obrigação de pagamento do “valor residual” a título de contrapartida pela aquisição da propriedade do imóvel, se considera preenchida a previsão do art. 830.º, n.º 5, do Código Civil, pelo que a decisão de decretar a execução específica se encontra dependente da consignação em depósito do valor residual contratualmente previsto; e tendo como referência, a respeito do cumprimento no art. 830.º, n.º 5, do Código Civil, o determinado nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 10/07/2008 (proc. n.º 07B1994) e de 30/04/2019 (proc. n.º 261/14.8TBVCD.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt, fixa-se o prazo de trinta dias para esse efeito.

VI – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, decidindo-se:

a. Manter a decisão de decretar a execução específica da promessa de transmissão da propriedade sobre o imóvel locado dos autos;

b. Condicionar os efeitos referidos em a) ao depósito nos autos, pela autora Jacinto Correia Ferreira e Filhos, Lda., a favor do réu Banco Santander Totta, S.A., do “valor residual” contratualmente previsto (€ 30.000,00, mais IVA), no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão.

Custas pelas partes, na proporção de 95% para o recorrente e de 5% para a recorrida.

Lisboa, 29 de Fevereiro de 2024

Maria da Graça Trigo (relatora)

Fernando Baptista

Ana Paula Lobo

Voto de vencida

Processo n.º 3158/19.1T8LSB.L1.S1

Não acompanho a decisão que logrou vencimento apenas na parte em que, sem se mostrar depositado o valor residual estabelecido contratualmente como condição para adquirir o direito de propriedade, reconhece a execução específica da promessa de transmissão da propriedade sobre o imóvel locado dos autos que condiciona ao depósito em 30 dias daquele valor residual.

O art.º 830.º, n.º 5 do Código Civil não condiciona a execução da sentença declarativa ao depósito desse valor residual, mas condiciona a procedência da acção declarativa, que naturalmente a precede, e onde é definido o direito que, depois, eventualmente se irá executar, neste caso, ao depósito do valor residual. A falta de tal depósito permite à contraparte invocar a excepção de não cumprimento, em fase de declaração do direito, impedindo a sua declaração enquanto o incumprimento persistir.

Não se aplicam nesta situação as considerações do muito tempo que pode o interessado ver depositado o montante que lhe compete no cumprimento do contrato promessa até que o tribunal decida verificarem-se os demais pressupostos da execução específica do contrato, e os inerentes desmesurados custos da indisponibilidade desse montante.

Eventualmente tal levaria a que fosse publicado um acórdão intercalar em que se demonstrasse a verificação dos demais pressupostos da execução específica com a fixação de prazo para proceder ao depósito, seguido de um acórdão final que definitiva e coerentemente decidisse se confirmava/não confirmava o acórdão recorrido consoante o depósito tivesse/não tivesse sido efectuado, assim dirimindo, de forma definitiva o conflito que lhe foi presente, como é seu dever constitucional.

Não só a correcção jurídica deste procedimento me parece evidente como os ganhos de eficiência e economia processual poderão ser substanciais se vierem a evitar a discussão em sede de execução de sentença, na 1.ª instância e nas instâncias superiores desta questão em contrapartida do dispêndio de, talvez, dois meses, duas notificações electrónicas e um acórdão apenas verificativo da regularidade e suficiência desse depósito para a declaração do direito.

Lisboa 29 de Fevereiro de 2024

Ana Paula Lobo

________

Notas de rodapé referentes ao acórdão:


1. Relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego.

2. Aos quais há que deduzir o valor residual de € 30.000,00.

3. Aos quais há que deduzir o valor residual de € 30.000,00.

4. Aos quais há que deduzir o valor residual de € 30.000,00.