Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3176/11.8TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
REJEIÇÃO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 10/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCPECIONAL ( REVISTA EXCECIONAL ) / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil, Anotado, 3.ª ed., 2015, 820.
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed., 134.
- António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2.ª ed., 89.
- Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, 462.
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa” Anotada, I, 200, 190 e 191.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, 615.º, N.º1, ALS. B) E D), 639.º, 640.º, N.º1, AL. C), 654.º, N.º2, 655.º, 671.º, N.º1, AL. B), N.º2, AL. B), N.º 3, 672.º, N.º 1, AL. A), E Nº. 3, 674.º, ALS. B) E C).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 18.06.2013, PROCESSO N.º 483/08.0TBLNH.L1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 19.03.2015, 14.05.2015, 02.06.2015, 02.07.2015, 08.10.2015 E 22.10.2015, TODOS SUMARIADOS EM WWW.STJ/JURISPRUDÊNCIA/REVISTAEXCECIONAL , E O ACÓRDÃO DE 14.07.2016, PROCESSO N.º 111/12.0TBAVV.G1.S1, ESTE DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 03.03.2016, PROCESSO N.º 1190/10.0TBFLG.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 14.07.2016, PROCESSO N.º 111/12.0TBAVV.G1.S1, OU O DE 07.07.2016, PROCESSO N.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, AMBOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. Tendo a Relação rejeitado a impugnação da matéria de facto, o recurso de revista contra o assim decidido não aprecia uma decisão interlocutória nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 1 do art. 671º do CPCivil.

II. Neste caso estamos perante uma decisão criada ex novo no próprio tribunal recorrido, sem qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1ª instância, que admite revista normalmente.

III. Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

IV. A rejeição da impugnação da matéria de facto não está dependente da observância prévia do contraditório no quadro dos art.s 655º e 3º do CPCivil.

V. A interpretação dos art.s 639º e 640º do CPCivil no sentido de a rejeição da impugnação da matéria de facto não dever ser precedida de um despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões não viola o art. 20º da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Guimarães

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

SEGUROS AA, S.p.A. Sucursal em Portugal (que passou, entretanto, a denominar-se, por efeito de negócio de cessão e sucessão, SEGUROS AA, S.A.) demandou, pelo Tribunal Judicial de Barcelos e em autos de ação declarativa com processo na forma ordinária, SEGUROS BB, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 66.603,32, acrescendo juros de mora.

Alegou para o efeito, em síntese, que na sequência de uma explosão na fração autónoma que identifica, cuja causa se radicou numa fuga de gás, e que provocou os danos que também descreve, teve a Autora que indemnizar a sua segurada, a Administração do Condomínio, pela quantia de €66.603,32. Sucede que à data do sinistro a dita fração estava segura na Ré, tendo a explosão ocorrido única e exclusivamente por culpa da respetiva segurada (CC), e daqui que compete à Ré reembolsar à Autora a quantia que foi por esta liquidada.

Contestou a Ré, concluindo pela improcedência da ação.

Alegou, entre o mais, que a sua segurada não teve responsabilidades na produção do sinistro.

Foi requerida e admitida a intervenção principal da segurada da Ré, CC, proprietária da fração onde ocorreu a explosão.

A Chamada contestou, concluindo pela improcedência do pedido.

Alegou não ter tido qualquer responsabilidade na produção do sinistro.

Seguindo o processo seus devidos termos, veio, a final, a ser proferida sentença que absolveu do pedido Ré e Interveniente.

Inconformada com o assim decidido, apelou a Autora, pugnando pela alteração da matéria de facto e por decisão que condenasse as Demandadas o que foi pedido.

Fê-lo sem sucesso, pois que a Relação de Guimarães rejeitou o recurso em matéria de facto e confirmou o decidido pela 1ª instância em sede de direito.

De novo inconformada, pede a Autora revista.

Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões:

1ª. O presente recurso vem interposto do douto Acórdão que:

i) Rejeitou o recurso quanto à decisão relativa à matéria de facto, por entender que a Autora/Recorrente não cumpriu o ónus a que alude o artigo 640º nº 1 al. c) do CPC;

ii) que julgou improcedente o recurso de apelação movido pela Autora/Recorrente contra os Réus/Recorrido, confirmando a decisão proferida em La instância, ou seja, a absolvição destes do pedido formulado pela Autora.

2ª. Começa a Recorrente por requerer a admissibilidade do presente recurso de revista nos termos do artigo 671.°, nº 2 al. b) do CPC, porquanto o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu que a Recorrente não respeitou os ónus de impugnação da matéria de facto, previstos nos artigos 639.° nº 1 e alínea c) do nº 1 do artigo 640.° do CPC, referindo que a Recorrente "mas não especifica a decisão que deveria ter sido proferida quanto à matéria de facto'.

3ª. Crê a Recorrente que o Venerando Tribunal deveria ter convidado a um aperfeiçoamento, por esse ser o entendimento mais recente deste Supremo Tribunal de Justiça.

4ª. A admissibilidade do recurso de revista, ao abrigo do disposto na norma transcrita, depende da verificação, em concreto, de três requisitos positivos e de um requisito negativo. Assim, constituem requisitos positivos, a) A contradição do Acórdão da Relação com outro, já transitado em julgado, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça; b) Ambos os Acórdãos (isto é, o acórdão recorrido da Relação e o Acórdão fundamento do Supremo Tribunal de Justiça) devem versar sobre a mesma legislação; e c) Sobre a mesma questão fundamental de Direito. Por sua vez, o requisito negativo diz respeito à inexistência de um Acórdão de uniformizador de jurisprudência conforme ao Acórdão fundamento.

5ª. O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido nos presentes autos, está em aberta contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/05/2015 (Proc. 1426/08.7TCSNT.L1.S1) (cuja cópia ora se junta), tendo o mesmo já transitado em julgado.

6ª. Com feito, no seu Acórdão de 16/05/2015, o Supremo Tribunal de Justiça foi peremptório em afirmar que:

“No âmbito da impugnação sobre a matéria de facto, a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b) e c) do nº 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria da alínea b) do n.º 2 do art 640º do CPC a propósito da “exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso”; não funciona, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação”

E continua o douto Tribunal que:

“Deve ser defendido, indistintamente, idêntico entendimento, em relação à previsão legal do convite ao aperfeiçoamento, quanto à matéria de facto e à matéria de direito, na decorrência do preceito geral comum, contido no n. o 1 do art. 639º, do CPC não obstante inexistir uma disposição legal específica sobre a impugnação da decisão quanto à matéria de facto, onde, textualmente, se consagre a possibilidade da prolação do despacho de aperfeiçoamento, porquanto, faltando aquelas especificações quanto aos factos e aos meios probatórios, as conclusões revelam-se deficientes, o que confere cobertura legal ao sobredito convite de aperfeiçoamento, ainda com base no preceituado pelo art. 639º nº 3, 1.ª parte, uma vez que, então, as conclusões são deficientes, considerando o princípio da promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, a que se reportam os arts. 6º, nºs 1 e 2 e 411º, do CPC”

Nesta senda, o Supremo Tribunal de Justiça conclui da seguinte forma:

“Se o recorrente não alegar, ou alegando, não concluir, o requerimento de interposição do recurso é indeferido, nos termos do estipulado pelo art 641º nº 2, b), do CPC, mas se alegar e concluir, faltando as especificações quanto à exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, o mesmo ~ imediatamente, rejeitado, mas se, apenas, faltar a indicação dos concretos pontos de facto que considera, incorrectamente, julgados, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida, ou sobre o sentido da decisão que defende ou a indicação das normas jurídicas violadas, o sentido em que as mesmas deveriam ser interpretadas e aplicadas ou, em caso de erro, a norma jurídica que deveria ser aplicável a rejeição do recurso só pode ser determinada, atento o estipulado pelos arts. 640º nºs 1 e 2 e 639.°, nºs 1, 2 e 3, do CPC, após prévio convite inconclusivo quanto ao aperfeiçoamento das alegações, exceto se o Tribunal «ad quem» e a parte contrária conseguem apreender as questões suscitadas pelo recorrente.”

7ª. O Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão recorrido, rejeitou o recurso quanto à matéria de facto, com fundamento na não observância, por parte do aqui Recorrente, do ónus da alínea c) do nº 1 do artigo 640º do CPC - o que apenas se concebe por mero dever de patrocínio. Perante tal constatação, o Tribunal recorrido absteve-se de convidar o Recorrente a aperfeiçoar as suas alegações de recurso, contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão que serve de fundamento à presente revista, firmou um entendimento totalmente diverso daquele.

8ª. Resulta, assim, do exposto a verificação do requisito da contradição de julgados, entre um Acórdão da Relação - no caso o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido nos presentes autos - e outro, já transitado em julgado, do Supremo Tribunal de Justiça - no caso, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/05/2015 (Proc. nº 1426/0S.7TCSNT.L1.S1) - cfr. Doc. nº 1, dado que, ambos os acórdãos se pronunciaram expressamente sobre a mesma questão fundamental de direito (cfr. infra), mas decidiram-na de modo inverso.

9ª. De acordo com o preceituado na al. b) do nº 2 do artigo 671.° do CPC, o Acórdão recorrido e o acórdão fundamento têm que versar sobre a mesma legislação. Com efeito, também este requisito se acha cumprido, na medida em que ambos os Acórdãos tomam por base a aplicação do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.

10ª. Em concreto, ambos se referem à aplicação dos seus artigos 639.° e 640.°, os quais dispõem sobre o ónus da Recorrente quanto à alegação, à formulação de conclusões e à impugnação da matéria de facto e da matéria de direito.

11ª. O último requisito positivo de admissibilidade do recurso de revista, previsto no artigo 671.°, nº 2 al. b) do CPC, impõe que os Acórdãos recorrido e fundamento incidiam sobre a mesma questão fundamental de direito,

12ª. Com efeito, a questão fundamental de direito subjacente a um e outro Acórdãos consiste em saber se há lugar a convite do Tribunal ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso (nos termos do artigo 639º nº 3 do CPC) em caso de incumprimento, pela Recorrente, dos ónus de impugnação da matéria de facto, previsto no artigo 640.°, nº 1 do CPC. O Acórdão recorrido nem sequer equacionou o possível convite da Recorrente para aperfeiçoamento, ao passo que o Acórdão fundamento optou por uma resposta afirmativa.

13ª. Ou seja, o Tribunal recorrido não só não conheceu do objecto do recurso no que confere à impugnação da matéria de facto, como não procedeu ao convite para o aperfeiçoamento. Por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão fundamento pugnou pelo entendimento de que há sempre lugar a convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso, com base no artigo 639.° nº 3 do CPC, quando aquelas de mostrem deficientes em virtude da inobservância dos ónus de impugnação da matéria de facto, previstos no artigo 640º nº 1 do CPC.

14ª. A necessidade de convite ao aperfeiçoamento em caso de deficiência das conclusões da Recorrente, sempre que tal deficiência seja derivada do incumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto, assume-se como uma questão fundamental de direito, na medida em que belisca um conjunto relevante de princípios processuais, alguns dos quais de alcance constitucional. Nomeadamente o princípio do acesso ao direito aos tribunais, previsto no artigo 20º nº 1 da CRP.

15ª. Assim é, desde logo, colocado em causa um dos seus corolários: o direito ao recurso.

16ª. Na verdade, “a garantia de acesso aos tribunais implica a possibilidade de reacção contra determinados vícios da decisão jurisdicional”; pelo que “num Estado de Direito, a plenitude de acesso à jurisdição e os princípios de juridicidade e da igualdade postulam um sistema que assegure a protecção dos interessados contra os próprios actos jurisdicionais”.

17ª. Com efeito, a omissão daquele convite redunda sempre no não conhecimento do objecto do recurso no que tange à matéria de facto e, nessa medida, ficam muito limitadas as possibilidades de alteração da decisão quanto à matéria de direito. Por este motivo, se a Recorrente não for convidada a suprir as deficiências das suas conclusões, esclarecendo-as e/ou complementando-as, preclude-se, desta forma, a possibilidade de a decisão recorrida ser alterada pelas instâncias superiores.

18ª. Acresce que o artigo 20.° nº 4 da CRP consagra o direito a um processo equitativo, isto é, a um processo justo “no qual se incluirá, naturalmente, o direito de cada um a não ser privado da possibilidade de defesa perante os órgãos judiciais na discussão de questões que lhe digam respeito. Integrando. Assim, a “proibição da indefesa” o núcleo essencial do “processo devido em Direito”; constitucionalmente imposto” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 1193/96, de 20/11/1996).

19ª. Neste sentido, se se entender que não deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento das conclusões do recurso quando está em causa matéria de facto, a Recorrente é privada da possibilidade de defesa perante os órgãos jurisdicionais superiores, o que redunda numa clara violação do princípio da proibição da indefesa, bem como do direito a um processo equitativo (artigo 20º nº 4 da CRP).

20ª. O direito a um processo equitativo compreende ainda o princípio da igualdade armas, que “postula [um] equilíbrio entre as partes na perspectiva dos meios processuais de que para o efeito dispõem”.

21ª. Com efeito, é unanimemente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, que há lugar ao convite ao aperfeiçoamento das conclusões, sempre que esteja em causa recurso sobre a matéria de direito (cfr. artigo 639.° nº 2 e 3 do CPC).

22ª. Mas, se adoptar um entendimento diverso quanto ao recurso sobre a matéria de facto, tal como decidido pelo Acórdão da Relação de Guimarães aqui recorrido - não se vê como pode ser assegurado o direito à igualdade de armas,

23ª. Por outro lado, deriva também do artigo 20º nº 1 da CRP, o princípio da prevalência do fundo sobre a forma ou princípio pro actione, que pressupõe uma certa elasticidade do regime processual em benefício da justa composição do litígio.

24ª. Deste modo, o princípio a prevalência do fundo sobre a forma impõe que “o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.04.2015, Processo nº 4933/13.6TCLR5.L1-S).

25ª. Com efeito, ainda que se admita que o CPC não prevê expressamente a possibilidade de prolação do despacho de convite ao aperfeiçoamento quando está em causa o recurso quanto à matéria de facto, tal não pode consistir num obstáculo ao posterior conhecimento do mérito da acção, sob pena de denegação de justiça.

26ª. Neste contexto, refere o acórdão fundamento que “não obstante inexistir uma disposição legal específica sobre a impugnação da decisão quanto à matéria de facto, onde, textualmente, se consagre a possibilidade da prolação do despacho de aperfeiçoamento, porquanto, faltando aquelas especificações quanto aos factos e aos meios probatórios, as conclusões revelam-se deficientes, o que confere cobertura legal ao sobredito convite de aperfeiçoamento, ainda com base no preceituado pelo artigo 639º, nº 3, 1ª parte, uma vez que, então, as conclusões são deficientes, considerando o princípio da promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, a que se reportam os artigos 6º, nºs 1 e 2 e 411º, do CPC” (sublinhado nosso)

27ª. Deste modo, o entendimento de que a inobservância dos ónus de impugnação da matéria de facto, previstos no artigo 640.°, nº 1 do CPC, e consequente insuficiência ou deficiência na formulação das conclusões do recurso não é possível de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 639º, nº 3 do CPC,

28ª. Pode e deve ser contornando a partir dos mais elementares princípios do processo civil, como sejam os princípios da promoção oficiosa das diligências necessárias ao prosseguimento da acção, da cooperação, do inquisitório e da adequação formal (cfr., respectivamente, artigos 6º nº 1, 7º nº 1, 411.° e 547.°, todos do CPC).

29ª. À luz dos princípios agora invocados, o juiz goza de amplos poderes de conformação do processo, tendo em vista o apuramento da verdade e a justa composição do litígio. No caso subjacente aos presentes autos, o Tribunal ao não convidar a Recorrente a aperfeiçoar as suas alegações de recurso violou os seus deveres de indagação oficiosa.

30ª. Assim, também por estes motivos se percebe que está aqui em causa uma questão fundamental de direito, que tem sido objecto de decisões contraditórias por parte dos tribunais superiores. Situação que deve ser evitada, sob pena de violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança.

31ª. O último requisito de admissibilidade da presente revista, exigido pelo artigo 671º nº 2 al. b) do CPC, diz respeito à inexistência de uma Acórdão de uniformização de jurisprudência que seja conforme o Acórdão fundamento. Tanto quanto a Recorrente tem conhecimento, até ao momento, ainda não foi proferido Acórdão de uniformização de jurisprudência que verse sobre a questão fundamental de direito subjacente aos presentes autos. Como tal, dá-se por verificado o último requisito de admissibilidade do presente recurso de revista, nos termos e para os efeitos do artigo 671º nº 2 al. b) do CPC.

32ª. O presente recurso de revista incide sobre o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, sendo certo que o Tribunal recorrido escudou-se no suposto incumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto, por parte da aqui Recorrente, para não conhecer do objecto do recurso quanto a essa parte.

33ª. A rejeição do conhecimento do objecto do recurso, nesta parte, levou a que o Tribunal da Relação mantivesse inalterada a decisão de facto e consequentemente, também, a decisão de Direito.

34ª. Ora, a Recorrente cumpriu, no seu recurso, os ónus de apresentar alegações e conclusões. Discriminou os respectivos fundamentos das alegações, quer quanto à impugnação da matéria de facto, com os pontos de facto incorrectamente julgados, os excertos da prova testemunhal produzida e as considerações sobre o sentido que a decisão deveria tomar,

35ª. Bem, como discriminou os seus fundamentos quanto à matéria de Direito. Acresce que, na suas conclusões, a Recorrente enunciou de forma sintética, quer os pontos da matérias de facto que deviam ser reapreciados, que remetendo expressamente para as suas alegações, não tendo deixado de referir qual a prova produzida e qual o sentido dos factos, para que a decisão da matéria de facto fosse diversa,

36ª. Assim, tendo a Recorrente cumprindo com o ónus previstos nos artigos 639.° e 640.° do CPC, não podia o Tribunal da Relação ter deixado de conhecer o objecto do recurso, quanto à reapreciação da matéria de facto.

37ª. O que consubstancia a nulidade do acórdão, partindo da rejeição de conhecimento do recurso, quanto à reapreciação da matéria de facto, conforme se requer, ao abrigo do artigo 615.° nº 1 als. b) e d) do CPC.

38ª. O artigo 655º nº 1 do CPC, dispõe que se o Tribunal da Relação entender que não pode conhecer do objecto do recurso, o Relator, antes de proferir decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.

39ª. Sucede, porém, que tal não foi cumprido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, impedindo, assim, as partes - e em especial a recorrente - de exercer o direito ao contraditório. Neste sentido, o Acórdão recorrido padece de nulidade por violação do princípio do contraditório, nos termos e para os efeitos dos artigos 3º, nº 2, 195º e 655.°, todos do CPC.

40ª. O Tribunal recorrido não só não conheceu do objecto do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, como não notificou as partes para se pronunciarem quanto ao não conhecimento do objecto do recurso, como ainda não proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso.

41ª. À luz do nº 3 do artigo 639º do CPC, mesmo que o Tribunal da Relação considerasse as conclusões da Recorrente como deficientes, obscuras, complexas ou que nelas se não tenha procedido às especificações a que alude - o que não de concebe -, sempre, o Relator deveria ter convidado a Recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de 5 dias, sob pena de se não conhecer o recurso, na parte afectada.

42ª. Todavia, o Tribunal recorrido não proferiu despacho de aperfeiçoamento naqueles termos, não concordando a Recorrente com a omissão desse mesmo convite.

43ª. Como ficou demonstrado à saciedade, deve entender-se que, de acordo com o artigo 639º nº 3 do CPC, o Tribunal deve proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso, sempre que estas se revelem insuficientes ou deficientes pelo não cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto, previstos no artigo 640º, nº 1 do CPC.

44ª. Aliás, interpretação contrária está ferida de inconstitucionalidade por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais, da tutela jurisdicional efectiva, do direito ao recurso, do princípio da igualdade de armas, do direito a um processo equitativo e do princípio pro actione, todos firmados no artigo 20º da CRP.

45ª. Por conseguinte, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 280.° da CRP, invoca-se inconstitucionalidade do artigo 639º nº 3 do CPC, quando interpretado no sentido de que não cabe convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso quando estas se revelem insuficientes ou deficientes pelo incumprimento dos ónus de impugnação, previstos no artigo 640º nº 1 do CPC.

46ª. Revogando-se, assim, o acórdão recorrido, o qual deve ser substituído por outro que convide a Recorrente a reformular/completar as suas conclusões do recurso no que tange à impugnação da matéria de facto.

47ª. Ainda que assim não se entenda, o referido convite ao aperfeiçoamento impõe-se a partir dos mais elementares princípios do processo civil, como sejam os princípios da promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, da cooperação, do inquisitório e da adequação formal (cfr. respectivamente artigos 6º nº 1, 7º nº 1, 411.° e 547.° do CPC),

48ª. Por conseguinte, o Acórdão recorrido padece ainda de nulidade por preterição do convite ao aperfeiçoamento, nos termos e para os efeitos dos artigos 3.°, nº 3, 6º nº 1 , 7.° nº 1, 195.°, 411.°, 547º e 639º nº 3 do CPC.

49ª. O Acórdão recorrido deve ser revogado e, em consequência, ser a aqui Recorrente convidada a reformular/completar as suas alegações de recurso, seguindo-se os demais termos do processo. Só assim o Tribunal da Relação de Guimarães poderá conhecer da impugnação da matéria de facto e, uma vez apreciada a mesma, poderá a Recorrente obter a alteração da decisão da 1ª instância, que lhe foi desfavorável.

50ª. Sem conceder, e admitindo-se apenas por mera hipótese, que este Colendo Tribunal entende não assistir razão à Recorrente na exposição supra exposta, impõe-se neste momento a interposição de recurso de revista excepcional, sob pena da decisão jurisdicional em crise transitar em julgado.

51ª. Ora considerando que o douto Acórdão de que ora se recorre, confirmou a douta Sentença proferida em 1ª instância, vem a ora Recorrente rogar a V. Ex.as que o presente recurso seja admitido nos termos e para os efeitos da alínea a) do nº 1 do artigo 672º do CPC, porquanto crê a Recorrente estar em causa uma questão de apreciação, que pela sua relevância jurídica, será necessária para uma melhor aplicação do direito.

52ª. Em boa verdade, crê a Recorrente terem ficado provados os factos subsumíveis nos pressupostos da responsabilidade civil (como em seguida se verá), importando para o efeito a discussão jurídica sobre culpa ainda que inconsciente, e ainda, se a utilização em simultâneo de um fogão "Tremp" com um fogão de uma cozinha num apartamento, poderá ser considerada uma actividade perigosa atenta a natureza dos meios utilizados, estando em causa o preenchimento de um conceito indeterminado, e para o qual o labor jurisprudencial é essencial.

53ª. Considera a Recorrente, que a discussão das questões supra, revestem um “carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação às partes envolvidas”

54ª. Não sendo o presente recurso resultado de um mero inconformismo perante a decisão recorrida, mas apenas interesse em contribuir para uma melhor aplicação do direito, pois do presente recurso há-de resultar da possibilidade de “melhor aplicação do direito” num número indeterminado de casos futuros, em termos de garantia de uniformização do direito.

55ª. É certo que o preenchimento desta cláusula geral – “Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”' -, integrada por conceitos indeterminados carece de um apurado labor jurisprudencial.

56ª. Ora, no entendimento da Recorrente, o presente recurso visa precisamente o referido efeito preventivo, procurando-se através da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, uma maior e melhor contribuição para discussão da responsabilidade civil e da sua complexidade, definindo-se assim uma linha jurisprudencial de orientação para casos futuros.

57ª. Considerando a obrigatoriedade da alínea a) do nº 2 do artigo 672º do CPC, socorre-se aqui a Recorrente das sábias palavras do Prof. Antunes Varela, para justificar as razões pelas quais considera que a presente “apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, efectivamente a evolução do instituto da responsabilidade civil deve-se determinantemente à doutrina e à jurisprudência, pelo que procura a Recorrente através do presente recurso mais um contributo para o desenvolvimento jurídico desta questão tão discutida jurisprudencialmente.

58ª. Ora, refere o Prof. Antunes Varela, “Trata-se da figura que, depois dos contratos, maior importância prática e teórica assume na criação dos vínculos obrigacionais, seja pela extraordinária frequência com que nos tribunais (sobretudo em países de educação cívica mais apurada ou de prática judiciária mais avançada) são postas acções de responsabilidade, seja pela dificuldade especial de muitos dos problemas que o instituto tem suscitado na doutrina e na jurisprudência. Dificuldades que se localizam, quer na fixação das soluções, quer na sua fundamentação à face do direito constituído, quer na sua coordenação exigida pela coerência e unidade do sistema, quer principalmente na sua planificação doutrinária e científica.”

59ª. Efectivamente, crê a Recorrente que assume relevância jurídica a discussão sobre o pressuposto da responsabilidade civil, a culpa quando emerge de um comportamento negligente inconsciente, questão que reveste manifesta dificuldade e complexidade, cujo aprofundamento conceituai não está suficientemente sedimentado em direito civil, por isso mesmo, torna-se imperativa a intervenção do STJ para garantir uma uniformidade de interpretação ou critério orientativo.

60ª. Ora, para que a Recorrente possa ser ressarcida dos prejuízos que sofreu têm que se mostrar reunidos os pressupostos da responsabilidade civil, genericamente enunciados no nº 1 do artigo 483.° do Código Civil.

61ª. Utilizando a sistematização de Antunes Varela, pode dizer-se que a responsabilidade civil assenta nos seguintes pressupostos:

a) a existência de um facto (um comportamento humano dominável pela vontade);

b) a ilicitude desse facto (decorrente da violação do direito de outrem ou da violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios);

c) a imputação desse facto ao lesante a título de culpa;

d) a existência de danos (patrimoniais ou morais);

e) a existência de um nexo de causalidade entre o facto e os danos (só os danos causados pelo facto são objeto de indemnização).

62ª. Sucede que, as Instâncias negaram a atribuição da indemnização com fundamento “Face aos factos provados, não poderemos imputar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 483º n.º 1 do Código Civil a explosão verificada à omissão de um dever de cuidado por parte da Interveniente CC”.

63ª. Porém, não concorda a Recorrente com o entendimento preconizado no douto acórdão recorrido, porquanto sempre haveria de ser questionado o preenchimento do pressuposto da responsabilidade aquiliana da culpa, mormente se terá havido um comportamento negligente, ainda que inconsciente por parte da Interveniente CC.

64ª. A desconexão apontada vista na perspectiva da chamada teoria do escopo da norma jurídica - que procura determinar os danos resultantes de determinado comportamento em função do objectivo ínsito na norma jurídica violada - bastaria para se concluir pela existência de nexo de causalidade adequada entre a negligência inconsciente e o dano.

65ª. Assim delineado o thema decidendum, importa, portanto, apreciar e tomar posição sobre se entre a conduta da Interveniente CC, na medida em que integre acto ilícito, e a verificação do sinistro (explosão) concorre, como requisito da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar, o necessário nexo causal.

66ª. Ora, o elemento básico da responsabilidade consiste estarmos na presença de um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia de ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe.

67ª. Quando se alude a facto voluntário do agente, não se pretende restringir os factos humanos relevantes em matéria de responsabilidade dos actos queridos, ou seja, àqueles casos em que o agente tenha prefigurado mentalmente os efeitos do acto e tenha agido em vista deles, “Há pelo contrário, inúmeros casos (a começar pela negligência inconsciente) em que não existe semelhante representação mental e, todavia, ninguém contesta a obrigação de indemnizar. Os actos danosos praticados por distracção ou por falta de auto-domínio normal não deixam de constituir o agente em responsabilidade”

68ª. Ora, crê a Recorrente ser inquestionável que a Interveniente CC, no dia do sinistro, por sua livre vontade e porque assim o queria, utilizava em simultâneo na cozinha de sua casa, num apartamento, um fogão de cozinha e uma “tremp”, que é um fogão industrial, que no caso concreto tinha duas bocas de gás, ligados a uma botija de gás, que se usa em campismo, ou seja que se utiliza em situações no exterior, informação que consta do próprio equipamento quanto à sua utilização (fotografias 103 a 108 que constam do Documento nº 4 junto com a petição inicial), indicando-se que os mesmos devem ser utilizados em locais arejados. Sendo ainda pacífico, que a Interveniente CC costumava utilização tal equipamento, (o que foi confirmado pela sua filha (DD), quando havia festas, quando tinha muitas pessoas em casa, porque era maior a rapidez com que conseguia fazer a comida, o que facilitava a preparação da refeição (o sinistro ocorre na véspera de uma passagem de ano, ou seja numa época festiva e de natural convívio familiar).

69ª. Quanto à ilicitude, procurou o Código Civil fixar em termos mais precisos o conceito de ilicitude, importando para o caso concreto a violação do direito outrem (art. 483º CC): os direitos subjectivos aqui abrangidos, são, principalmente, os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas ou direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual.

70ª. “Entre os direitos reais avulta o direito de propriedade, cuja violação pode revestir os mais variados aspectos (a privação do uso ou fruição da coisa, imposta ao titular; a apropriação, deterioração ou destruição da coisa; a disposição indevida dela, a subtracção dela; a perturbação do exercício do direito do proprietário, mediante a emissão de fumos, cheiros, vapores, ou ruídos dora dos termos permitidos pelo artigo 1346º, o seu uso, fruição e ou consumo, não facultados pelo respectivo titular, etc.)

71ª. Ora, retornando ao caso concreto, considerando os danos causados nas fracções que constituem o prédio, onde reside a Interveniente CC, e que aqui ficaram provados no ponto N) dos factos provados, é possível, concluir que os proprietários das fracções acima identificadas, viram o “gozo de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem” (cfr. artigo 1305º do C. Civil) seriamente afectados, pelo facto de a Interveniente ter decidido numa noite de véspera de ano novo, utilizar dois tipos de fogões diferentes, utilizando dois tipos de gás (butano e propano), sendo que um deles ("tremp") nem sequer devia ser utilizado dentro de espaços pouco arejados, como supra exposto. Por conseguinte, considerando que houve uma efectiva violação do direito de outrem, também o pressuposto da ilicitude da responsabilidade civil extracontratual se encontra preenchido.

72ª. Acresce ainda que, para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa. Não basta reconhecer que este procedeu objectivamente mal. Nos termos do art. 483º CC, impõe-se que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou mera culpa.

73ª. Ora, agir com culpa, significa actuar em termos de conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia agir de outro modo.

74ª. A análise do pressuposto da culpa, assume particular relevância, pois é através da sua verificação que é possível proferir um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta lesante, ou seja, se o lesante, em face das circunstâncias concretas, devia e podia ter agido de outro modo. Sendo que no caso concreto, crê a Recorrente que a Interveniente deveria ter agido de outro modo, de forma a evitar a ocorrência do sinistro sub judice.

75ª. Para efeitos do presente recurso, importa cingir a presente exposição à discussão da mera culpa ou negligência, a qual consiste na omissão da diligência exigível do agente.

76ª. Não podendo a Recorrente deixar de citar nesta sede o Prof. Antunes Varela, “No âmbito da mera culpa cabem, em primeiro lugar, os casos (excluídos do conceito do dolo) em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte psicológico dos casos que integram a culpa consciente. Ao lado destes, há numerosíssimas situações da vida corrente, em que o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia, ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificacão, se usasse da diligência devida.

(….)

Fala-se nestes casos em culpa inconsciente.”

77ª. A mera culpa (consciente ou inconsciente) exprime, uma ligação da pessoa com o facto menos incisiva do que o dolo, mas ainda assim reprovável ou censurável. O grau de reprovação ou de censura será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo, e mais forte ou intenso o dever de o ter feito.

78ª. Consequentemente, importa saber quais as fronteiras que definem e balizam este dever de diligência, para podermos concluir que a Interveniente CC violou esse dever de diligência, ainda que de uma maneira inconsciente.

79ª. Com efeito, o paradigma para aferir o grau de diligência será sem dúvida a de um homem “normal”, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso.

80ª. O Código Civil Português consagrou expressamente a tese da culpa em abstracto (cfr. nº 2 do artigo 487.° do C. Civil), quanto à responsabilidade civil extracontratual. Sempre se dizendo que a referência clara ao bom pai de família tem ínsita uma preocupação ética ou deontológica do bom cidadão (do bonus civis) do que o critério puramente estatístico do homem médio. Isto é, o julgador não estará vinculado às práticas de desleixo, de desmazelo ou de incúria, que por alguma razão se tenham vulgarizado socialmente, se outra for a conduta exigível dos homens de boa formação e de são procedimento.

81ª. Ora subsumindo o caso sub judice, às normas civilísticas acima citadas, não encontra a Recorrente nenhum obstáculo ao juízo de que um bonus pater famílias teria sido muito mais diligente do que foi a Interveniente CC.

82ª. Esta Interveniente, potenciou o risco pela utilização em simultâneo do gás de contador com o recurso a um equipamento “tremp”, a que acresce o facto de as próprias instruções de utilização destes equipamentos (tremp) determinarem a sua utilização em lugares arejados, o que foi igualmente confirmado no depoimento da testemunha EE, Inspector do Instituto Tecnológico do Gás, que referiu com clareza que os mesmos deveriam ser utilizados no exterior. Pelo que, acredita a Recorrente que a eclosão ocorreu por facto culposo imputável à Interveniente CC, conforme prova produzida em sede de audiência e da documentação junta.

83ª. Sendo certo que, o facto de estar nem sequer ter ponderado as consequências nefastas que poderiam advir da utilização destes dois utensílios em simultâneo, numa cozinha de um apartamento de um prédio, não afastam a culpa que sobre si recai, ainda que a mesma se manifeste de uma forma inconsciente. Em boa verdade um bom pai de família ao ler as instruções do fogão “tremp” nunca utilizaria o mesmo num espaço pouco arejado.

84ª. Pelo que, considera a Recorrente que ficou provada a culpa da Interveniente na explosão na sua fracção, pelo que terá de ser imputada à mesma a responsabilidade pela ocorrência do acidente.

Sem conceder, sempre dirá a Recorrente o seguinte,

85ª. A culpa do lesante um elemento constitutivo do direito à indemnização, incumbe ao lesado, como credor, fazer a prova dela, nos termos gerais da repartição legal do ónus probatório (cfr. artigo 342.° nº 1 do C. Civil). Regra oposta vigora para o caso da responsabilidade contratual (cfr. artigo 799° nº 1 do C. Civil), onde o facto constitutivo do direito de indemnização é o não cumprimento da obrigação, funcionando a falta de culpa como uma excepção, em certos termos oponível pelo devedor.

86ª. Ao afirmar o princípio segundo o qual, na responsabilidade delitual, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão (cfr. artigo 487º nº l do C. Civil). Mas há casos em que a lei presume a culpa do responsável. O que poderá igualmente ser sindicado por este Venerando Tribunal, considerando o caso sub judice.

87ª. O nº 2 do artigo 493º do Código Civil estipula que “quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”. Trata-se de um conceito relativamente indeterminado, que carece de preenchimento caso a caso, em função das circunstâncias concretamente provadas, quer quanto à actividade em si mesma considerada, quer quanto aos meios de que o agente se serviu para a pôr em prática.

88ª. Ora, a utilização em simultâneo do gás de contador com o recurso a um equipamento “tremp” alimentado por uma garrafa de gás butano/ou propano, a que acresce o facto de as próprias instruções de utilização destes equipamentos (tremp) determinarem a sua utilização em lugares arejados, deve qualificar-se como perigosa, pois tem ínsita uma probabilidade de causar danos maior (o que aliás ficou evidente pelos danos causados não só nas partes comuns como também nas diversas fracções dos condomínios e que se encontram provados na alínea N).

89ª. Esta presunção de culpa por parte de quem exerce uma actividade perigosa ou pela natureza dos bens utilizados (sendo de conhecimento geral o perigo potencial do gás), não altera o princípio de que a responsabilidade depende da culpa, apenas transfere o ónus probatório do autor para o réu.

90ª. Assim sendo, e na eventualidade deste Venerando Tribunal, considerar que pela natureza dos meios utilizados, existe efectivamente uma presunção de culpa sobre a Interveniente CC, é inevitável concluir que a mesma não logrou provar que adoptou as diligências necessárias, que as circunstâncias especialmente exigiam, “o juízo a fazer incide sobre a observância ou inobservância dos deveres gerais de diligência que a situação concreta impõe, quer resultem de fonte normativa quer das regras da experiência comum, de acordo com a diligência de um bom pai de família (note-se que o Código Civil fala de "todas as providências exigidas pelas circunstâncias")

91ª. Ora, nem a Ré nem a Interveniente lograram demonstrar que, por qualquer modo, afastaram o perigo pela utilização de dois tipos de gás diferentes num mesmo espaço, numa cozinha, quando as próprias regras de utilização da tremp determinam a sua utilização num local arejado. O facto de a Interveniente não ter respeitado as regras de utilização do fogão tremp potenciou a ocorrência do sinistro, o que constitui uma violação do dever geral de diligência adequado, segunda as regras da experiência comum.

92ª. Note-se que o legislador exige que o lesante, para excluir a presunção da sua culpa, prove que não teve nenhuma culpa ou que tomou todas as providências; as expressões “nenhuma” e “todas” significam que o legislador entendeu que podem ser eticamente imputados à culpa do lesante danos que dela não dependeram inteiramente.

93ª. Relativamente aos danos, não se alongará a Recorrente na sua apreciação, uma vez que os factos dados como provados na alínea N), não deixam qualquer margem para dúvidas quanto à ocorrência dos mesmos. Pelo que, se para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém, no caso sub judice, os mesmos ocorreram e foram indemnizados pela Recorrente, ao abrigo do contrato de seguro de responsabilidade civil titulado pela apólice nº 000000000003000.

94ª. Por fim, e no que respeita à verificação do último pressuposto da responsabilidade civil, nexo de causalidade entre o facto e o dano, impõe-se que o dano apenas é indemnizável quando ele seja consequência do facto, ilícito e culposo no domínio da responsabilidade subjectiva extra- obrigacional.

95ª. Ora, no caso sub judice, os danos ocorridos nas diversas fracções, melhor descritos no ponto N) dos factos provados, e que por razões de economia processual se dá aqui por integralmente reproduzido, resultam da explosão ocorrida na fracção da Interveniente CC, pelo facto da mesma não ter acautelado o dever de diligência, que seria sempre respeitado pelo bonus pater famílias em circunstâncias idênticas, pois ao utilizar em simultâneo um fogão alimentado por gás de contador e um equipamento “tremp” alimentado por uma garrafa de gás butano/ou propano, a que acresce o facto de as próprias instruções de utilização destes equipamentos (tremp) determinarem a sua utilização em lugares arejados, proporcionou e potenciou a ocorrência do presente sinistro.

96ª. Em suma, logrou a Recorrente provar todos os pressupostos da responsabilidade civil, pelo que deveria o seu pedido de reembolso ter sido julgado procedente, e por consequência serem as Recorridas condenadas no mesmo.

97ª. Pelo que deverá este Venerando Tribunal apreciar o presente recurso de revista extraordinário, de forma a que haja uma correcta interpretação e aplicação dos artigos 483.°, 487.° e nº 2 do artigo 493º do C. Civil, que no entendimento da Recorrente foram incorrectamente julgados pelas instâncias recorridas.

Termina dizendo:

a) Que seja admitido o presente recurso de revista, por se encontrarem reunidos todos os requisitos previstos no artigo 671.°, nº 2, al. b) do CPC;

b) Que seja julgadas procedentes as nulidades assacadas ao Acórdão recorrido, nos termos supra descritos;

c) Que seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 639º nº 3 do CPC, quando interpretado no sentido de que não cabe convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso quando estas se revelem insuficientes pelo incumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto, previstos no artigo 640º, nº 1 do CPC, nos termos supra explanados;

d) Que seja revogado o Acórdão recorrido e, em consequência, que seja a aqui Recorrente convidada a reformular/completar as suas alegações de recurso, seguindo-se os demais termos do processo. Sem conceder,

e) Que seja admitido o presente recurso de revista extraordinária, por se encontrarem reunidos todos os requisitos previstos no artigo 671º, nº 3 e al. a) do nº 1 do artigo 672º do CPC;

f) Consequentemente, deve revogar-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, e, alterada de igual modo, de Direito, dando-se provimento à presente revista nos estritos termos supra requeridos.

                                                           +

A Ré contra alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- As isoladas nos itens que se seguem.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

Quanto à matéria das conclusões 2ª a 49ª:

Questão prévia:

Importa observar em breve nota que, contra o suposto pela Recorrente ao longo das conclusões ora em destaque (recorde-se que a Recorrente interpôs o recurso sob a invocação da alínea b) do nº 2 do art. 671º, e nisso gastou grande labor, mas inutilmente), a admissibilidade da presente revista estava à partida assegurada, não sendo essa admissibilidade condicionada pela existência de qualquer acórdão deste Supremo que tivesse decidido em sentido contrário àquele que foi adotado no acórdão recorrido. Isto é assim porque o acórdão recorrido não incidiu sobre qualquer decisão interlocutória nos termos e para os efeitos daquela norma. O que na realidade está em causa é uma decisão (rejeição da impugnação da matéria de facto) criada ex novo no próprio tribunal recorrido. Ou seja, a decisão ora recorrida é uma decisão sem qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1ª instância. Nesta hipótese, não rege a alínea b) do nº 2 do art. 671º (que é uma exceção à regra geral de que em matéria processual só é consentido o duplo grau de jurisdição, não se justificando a intervenção de mais uma instância, o Supremo). E por isso o acórdão recorrido é normalmente recorrível (revista normal) no segmento em causa (rejeição da impugnação da matéria de facto), estando aqui em causa a violação ou errada aplicação da lei de processo e o cometimento de nulidades (v. alíneas b) e c) do art. 674º do CPCivil).

Dentro desta linha, este Supremo Tribunal tem reiteradamente afirmado, designadamente no contexto da revista excecional (valendo para o caso vertente mutatis mutandis a mesma ordem de argumentação), que quando se trata de recurso contra a decisão da Relação proferida quanto ao cumprimento dos requisitos do art. 640º do CPCivil se está perante uma decisão nova que, verificados os requisitos gerais da admissibilidade dos recursos, admite por si só recurso normal de revista, não havendo assim que falar em qualquer dupla conformidade decisória das instâncias quanto à mesma questão fundamental de direito (v., por exemplo, os acórdãos de 19.3.2015, 14.5.2015, 2.6.2015, 2.7.2015, 8.10.2015 e 22.10.2015, todos sumariados em www.stj/jurisprudência/revista excecional, e o acórdão de 14.7.2016 (processo nº 111/12.0TBAVV.G1.S1), este disponível em www.dgsi.pt).

Consequentemente, e como já apontado em despacho anterior do relator, a presente revista é admissível na parte ora em análise, sendo por isso desinteressante aferir da alegada contradição de julgados relativamente à questão fundamental de direito em presença: a de saber se a rejeição da impugnação da matéria de facto está ou não dependente de um prévio despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

Esclarecido este ponto, que nos leva (como já definido pelo relator) à admissibilidade inelutável da presente revista na parte aqui em causa, passemos ao conhecimento das questões colocadas nas conclusões em destaque.

Entendeu o tribunal recorrido que a Apelante, ora Recorrente, não havia cumprido o ónus estabelecido na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil (especificação da decisão que deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), e por isso rejeitou a impugnação da matéria de facto.

Diz a Recorrente, entre o mais, que sempre havia de ter sido convidada a aperfeiçoar as suas conclusões de modo a indicar a decisão que, em seu entender, devia ser proferida sobre a matéria de facto impugnada.

Argui concomitantemente a nulidade do acórdão recorrido, e suscita a questão da inconstitucionalidade da lei quando interpretada no sentido de que não tinha que ser convidada a aperfeiçoar as suas conclusões.

Mas carece de razão.

Interessa começar por dizer que embora a Recorrente signifique (por exemplo, nas conclusões 34ª, 35ª e 36ª) que na sua apelação produziu considerações sobre o sentido que a decisão da matéria de facto impugnada deveria tomar, esta é uma afirmação com a qual não podemos concordar. Pois que, percorrendo a alegação produzida na apelação e suas conclusões não vemos que a Apelante tenha especificado qual a concreta decisão que haveria de ser tomada sobre cada uma das questões de facto que impugnou. Sabe-se que pretendeu impugnar o julgamento de certos factos (que especificou convenientemente), à luz de certas provas (que indicou também convenientemente), mas não resulta expresso nem claro em que concreto sentido (note-se, entretanto, que entre o provado e o não provado pode sempre haver toda uma variedade de pronunciamentos intermédios). Nas conclusões da sua apelação (lugar onde, a par da indicação dos factos que entendia estarem mal julgados, havia de especificar a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre esses factos, por isso que estamos aqui perante matéria interligada[1]) nada exarou a Apelante que indique claramente a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Consideramos, assim, que a Apelante omitiu o cumprimento do ónus fixado na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil.

Porém, sustenta a Recorrente que sempre havia de ter sido convidada a aperfeiçoar as suas conclusões, de forma a indicar a decisão que em seu entender devia ser proferida.

Discordamos.

Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPCivil, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto. O que denega, de todo em todo, a ideia da possibilidade de prolação de um despacho de aperfeiçoamento. Manifestamente que a lei não quis impasses e tergiversações em matéria de impugnação do julgamento dos factos, impondo neste domínio rigor e autorresponsabilidade à parte recorrente. Aliás, só pode ser aperfeiçoado o ato processual da parte que, tendo sido praticado, se apresente como deficiente, obscuro ou complexo. Não o ato processual que pura e simplesmente não foi praticado, e seria o caso.

No sentido de que não cabe legalmente convite ao aperfeiçoamento das conclusões em sede de recurso da matéria de facto se tem pronunciado a doutrina (v.g. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., p. 134; Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, p. 462; Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil, Anotado, 3ª ed., 2015, p. 820) e a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça (v.g., e para citar a mais recente, o acórdão de 14 de julho de 2016, processo nº 111/12.0TBAVV.G1.S1, ou o acórdão de 7 de julho de 2016, processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).

E sendo assim, de nada serve argumentar, como faz a Recorrente, com os princípios da cooperação, inquisitório e adequação formal. Pois que estes princípios só poderiam ser atuados se acaso a lei admitisse a sua atuação num caso como o vertente. Acontece que, como acaba de ser dito, é manifesto que a lei abduziu do recurso da matéria de facto a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento ou intervenção tutelar do tribunal, e daqui que não há que fazer intervir tais princípios. De resto, e talvez por lapso, a Recorrente omitiu um outro princípio, esse sim inteiramente aplicável à hipótese vertente, e que é o da autorresponsabilidade das partes (estreitamente ligado ao princípio da preclusão; e, precludida a possibilidade da prática do ato, não se concebe a prática do ato precludido a convite do tribunal). Como nos diz António Júlio Cunha (Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., p. 89) “Atento o princípio da autorresponsabilização das partes, aos sujeitos processuais são imputadas as consequências negativas da sua conduta. O direito processual civil impõe às partes mais do que um conjunto de deveres uma série de ónus. Ou seja, coloca com muita frequência as partes numa situação jurídica que implica a necessidade de as mesmas adotarem uma conduta para que assim possam alcançar um certo resultado, que se pode traduzir no afastar de uma desvantagem ou no alcançar uma utilidade. As partes, em regra, não se encontram obrigadas a adotar certos comportamentos, mas se o não fizerem não obterão determinadas vantagens ou daí poderá decorrer um prejuízo. Mas se assim é (…) são as mesmas que respondem pelos resultados negativos (para os seus próprios interesses) da sua conduta”. É o caso.

A inércia processual das partes (seja por inépcia ou impreparação sua em termos técnico-processuais, seja por negligência, seja intencionalmente em função de uma certa interpretação do direito aplicável) produz consequências negativas (desvantagens ou perda de vantagens) para elas, só havendo lugar à desvalorização do princípio da sua autorresponsabilização mediante a intervenção tutelar, assistencial ou corretiva do tribunal quando a lei o preveja. Não é o que se passa no caso vertente.

E do que fica dito retira-se imediatamente que o acórdão recorrido, ao ter rejeitado a impugnação da matéria de facto e ao não ter convidado ao aperfeiçoamento das conclusões, não enferma das nulidades que a Recorrente lhe assaca sob a invocação das alíneas b) e d) do nº 1 do art. 615º do CPCivil.

Mais diz a Recorrente que o acórdão recorrido padece de nulidade decorrente da circunstância de não se ter feito cumprir o contraditório quanto à rejeição da impugnação da matéria de facto. Invoca a propósito os art.s 655º e 3º nº 2 do CPCivil.

Mas é por demais óbvio que carece de razão.

Desde logo porque nas contra alegações apresentadas na apelação pela Ré e Interveniente foi suscitada a questão prévia da rejeição da impugnação por não ter sido dado cumprimento pela Apelante (ora Recorrente) ao ónus indicado na alínea c) do nº 1 do art. 640º. Destas contra alegações foi a Apelante notificada, podendo exercer o seu contraditório sobre o assunto, e não o fez. Visto o disposto no nº 2 do art. 654º do CPCivil, nenhuma outra audição adicional da Apelante teria o tribunal recorrido que ter assegurado.

Depois, porque os art.s 655º e 3º do CPCivil até nem têm aplicação ao caso. Tais normas regem para o não conhecimento do objeto do recurso (que por isso não é levado a julgamento), e não para a rejeição da impugnação da matéria de facto. Neste último caso o recurso não deixa de ser conhecido (é levado a julgamento), apenas acontece que a impugnação (e não o recurso) é indeferida (rejeitada, nas palavras da lei).

Por último, sustenta a Recorrente que a circunstância de não ter sido convidada a aperfeiçoar a sua alegação a privou da possibilidade da defesa (acesso ao recurso), de acesso aos tribunais e à realização do direito, tendo-se assim caído numa situação de denegação de justiça. Invoca a propósito o art. 20º da CRPortuguesa.

Mas não podemos concordar com tal ponto de vista.

Para além de a CRPortuguesa não garantir o direito ao recurso senão em matéria penal e (segundo alguns) relativamente a decisões que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias, e não é o que se passa no caso vertente, a verdade é que o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo. Daqui que não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes. Só assim não será se o legislador impuser exigências desprovidas de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessivas, não sendo em particular admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual (v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, pp. 200, 190 e 191). Sucede que a imposição do ónus processual em causa - o contido na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil - e a cominação de rejeição da impugnação da matéria de facto em caso da sua inobservância cabem naturalmente no poder de modelação do processo que assiste ao legislador, da mesma forma que a interpretação desta norma no sentido de possibilidade de tal rejeição ter lugar sem a admissão de convite ao aperfeiçoamento das conclusões não representa uma opção legal desprovida de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessiva. Na realidade, e parafraseando Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 134), “pretendendo o recorrente a modificação da decisão da decisão da 1ª instância em matéria de facto e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas.”

A este propósito, pode ler-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de junho de 2013 (processo nº 483/08.0TBLNH.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), e passamos a citar, «(…) fora do Direito Penal não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais. Por outro lado, o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no citado artigo 20º da Constituição (que “assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”) não consagra o direito ao recurso para um outro tribunal, sendo também certo que não existe disposição expressa na Constituição que imponha o direito de recurso em processo civil, apesar de em processo e em matéria penal, o artigo 32º estabelecer o duplo grau de jurisdição. Alguns autores têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal. Em relação aos restantes casos (…) tem-se entendido que o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer. Isto porque a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso. Mas considera-se que o legislador ordinário tem ampla margem de conformação do âmbito dos recursos. Neste sentido, refere-se no acórdão deste STJ de 6-12-2012 (…) que “são várias as decisões deste Tribunal que não julgaram violadoras da Constituição diversas normas contendo ónus processuais, cujo incumprimento conduz à rejeição de recursos, como, por exemplo, o Acórdão n.º 403/2000 (também disponível na página Internet do Tribunal, em www.tribunalconstitucional.pt e publicado no Diário da República, II Série, n.º 286, de 13 de Dezembro de 2000) - em que se apreciou a conformidade constitucional da exigência, constante do artigo 72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981, de arguição de nulidades da sentença no próprio requerimento de interposição do recurso, sob pena de extemporaneidade – ou o Acórdão n.º 122/2002 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – no qual o Tribunal não julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 690.°-A do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de o recorrente, sob pena de rejeição do recurso tocante à matéria de facto, dever apresentar, em separado da alegação, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas.»

E no acórdão de 7 de julho de 2016 (processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, disponível igualmente em www.dgsi.pt) observa-se o seguinte: «(…) para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c).

No caso presente, ainda que se conceda que a apelante haja cumprido o ónus da alínea a) do preceito supra referido, fazendo menção aos concretos pontos de facto incorrectamente julgados (…), não satisfez, no entanto, a imposição da supracitada alínea c), pois não indicou a concreta decisão a proferir sobre os mesmos. Na verdade, a lei não se contenta em que o recorrente diga qual a matéria de facto que considera incorrectamente julgada, impondo-lhe além disso que indique a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, devendo estas menções integrar o conteúdo das conclusões da sua alegação (…)».

No entanto, a recorrente apenas diz quais os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, não mencionando em parte alguma das conclusões da sua alegação qual a decisão que deveria ser tomada na sequência da sua impugnação.

Ora, o incumprimento deste ónus tem a cominação prevista no nº 1 do mencionado preceito – rejeição do recurso nesta parte.

Por isso, bem decidiu a Relação ao considerar que a recorrente omitiu a menção à concreta decisão pretendida sobre os pontos da matéria de facto impugnados, pelo que só tinha que rejeitar o recurso nesta parte.

Sustenta a recorrente que ainda que assim fosse, deveria ter-se optado pelo convite à reformulação das conclusões, e não pela rejeição.

Mas não tem razão.

Efectivamente, e conforme prescreve o nº 3 do artigo 639º do CPC, quando as conclusões sejam deficientes o relator deve convidar o recorrente a completá-las.

Mas este normativo não é aplicável face à cominação específica que a lei prevê para quem não cumpre os ónus impostos pelo artigo 640º, pois o nº 1 é inequívoco no sentido da rejeição, sem mais, do recurso quanto à impugnação da matéria de facto.

 Alega ainda a recorrente que ao não apreciar as questões apresentadas na apelação no que respeita à impugnação da matéria de facto, o acórdão revidendo limitou o seu direito ao recurso, coarctando-lhe o direito de sindicar decisão desfavorável e o direito a tutela jurisdicional efectiva e direito de acesso aos tribunais, o que consubstancia inconstitucionalidade, por violação do artigo 20° da CRP.

Mas também não tem razão.

Efectivamente, é corolário do Estado de Direito a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito.

Por isso que, no artigo 20º/5 da Constituição da República se determina que «Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos»

No entanto, temos de distinguir as situações: de uma parte o direito de acesso aos meios judiciários com vista à salvaguarda e definição do direito para o caso concreto; e de outra, o procedimento definido pelo legislador ordinário quanto ao modo do exercício daquele direito.

Nesta questão da conformação constitucional, suscita a recorrente a questão de saber se as normas ínsitas no artigo 640º, nº 1, coarctam inadequada e irrazoavelmente o direito ao recurso.

Mas não tem razão.

Na verdade, o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta aos interessados o acesso ao recurso de forma ilimitada, sendo por isso, conforme à Constituição da República Portuguesa a imposição de ónus para quem impugna a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância.

Nesta conformidade, sem necessidade de mais considerações, imperioso se torna concluir que a posição da Relação de não tomar conhecimento da impugnação da matéria de facto por incumprimento dos ónus legais não viola o princípio do acesso ao direito invocado pela recorrente.»

Improcedem assim as conclusões em destaque (2ª a 49º).

Quanto à matéria das conclusões 50ª a 97ª:

Nestas conclusões pugna a Recorrente, a título subsidiário, pela revogação do acórdão recorrido.

Entende que face aos factos provados sempre a ação deveria proceder.

Dado que se verifica uma situação de dupla conformidade decisória das instâncias quanto à decisão de direito que foi tomada, o recurso vem aqui interposto, face ao disposto no nº 3 do art. 671º do CPCivil, sob a invocação da excecionalidade recursória prevista na alínea a) do nº 1 do art. 672º do mesmo Código.

Sucede, porém, que a formação de juízes a que se refere o nº 3 do art. 672º decidiu nos autos que a revista excecional assim interposta não era admissível.

Donde, não pode conhecer-se da questão colocada nas conclusões em destaque, isto é, não pode reapreciar-se o mérito da causa, valendo definitivamente o decidido nas instâncias.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido na parte que é objeto de apreciação.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas da revista.

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Sumário:

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Lisboa, 27 de outubro de 2016

José Rainho - Relator

Nuno Cameira

Salreta Pereira

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[1] Pode aceitar-se que, em casos concludentes, seja suficiente o que consta do corpo da alegação, não sendo mandatório que o cumprimento do ónus de especificar a decisão que devia ser proferida conste das conclusões. Assim, diz-se no sumário de um acórdão deste STJ (acórdão de 3 de março de 2016, proferido no Processo nº 1190/10.0TBFLG.P1.S1, www.dgsi.pt) que “Não se tendo o recorrente limitado, nas alegações apresentadas, a afirmar que o acidente ocorreu de forma diferente ou a dar uma nova versão genérica da matéria de facto, antes tendo feito afirmações concretas sobre como se desenrolaram os factos, em contradição com o conteúdo das respostas aos quesitos, mostra-se suficientemente cumprido o ónus previsto no art. 640.º, n.º 1, al. c), do NCPC que sobre si recaía. Em consequência, resultando das alegações qual a decisão que devia ter sido tomada relativamente aos diversos factos da causa, o recurso relativo à impugnação da decisão da matéria de facto não devia ter sido rejeitado.”
No caso ora vertente, porém, este entendimento não poderá ser adotado, visto que a Apelante, ora Recorrente, se limitou a transcrever e a comentar certos depoimentos testemunhais, nada tendo aduzido que signifique com um mínimo de clareza e consistência o sentido da decisão que, em seu entender, devia ser proferida.