Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13509/20.0T8SNT-D.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACÓRDÃO RECORRIDO
ACORDÃO FUNDAMENTO
REVISTA EXCECIONAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- O art.14º do CIRE estabelece um regime específico de admissibilidade do recurso de revista em matéria de insolvência, baseado na oposição de acórdãos, que afasta o regime geral da revista excecional (previsto no art.672º do CPC).

II- Tendo o acórdão recorrido decretado a insolvência do recorrente, e não tratando o acórdão fundamento dos pressupostos da insolvência (mas sim da sua qualificação como fortuita ou culposa), não existe oposição de acórdãos para os efeitos do art.14º do CIRE.

Decisão Texto Integral:


Processo n. 13509/20.0T8SNT-D.L1.S1

Recorrente: “M..., SGPS, S.A.”

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. A Caixa Geral de Depósitos S.A. propôs a presente ação declarativa com processo especial, na qual requereu a declaração de insolvência de M..., SGPS, S.A., com base no artigo 501° do Código das Sociedades Comerciais, alegando que sendo esta parte de um grupo, enquanto sociedade dominante, por detentora a 100% das participações da sociedade dominada, a “I... Sgps, Limited”, e sendo esta devedora à requerente de quantia que está impossibilitada de pagar por falta de meios, será a requerida responsável por tal pagamento, pelo que, não tendo esta última meios nem património que o permitam fazer, deverá ser declarada a sua insolvência.

2. A requerida deduziu oposição, alegando como questão prévia a existência de Causa Prejudicial, face ao processo de insolvência da sociedade “I... Sgps, Limited”, a correr termos sob o 13508/20...., do ... Juízo do Tribunal de Comércio ....

Requereu a intervenção principal da “I... Sgps Limited”.

Arguiu, ainda, as exceções da inaplicabilidade do Código das Sociedades; da falta de prova quanto ao início e vigência da relação de grupo ou de domínio, bem como da forma de exercício desse controlo; da inaplicabilidade do art. 501° do CSC; da violação do n.º 2 do art. 501° do CSC e prescrição de qualquer obrigação imputável à Requerida por força do art. 501° do CSC. Deduziu, ainda, defesa por impugnação, impugnando a relação de grupo invocada.

3. A requerente pronunciou-se sobre as questões suscitadas e exceções invocadas, pugnando pela sua improcedência.

Foi proferido despacho saneador que concluiu não haver fundamento para suspender a instância por causa prejudicial.

Julgou, ainda improcedente o pedido de intervenção provocada da “I... Sgps, Limited” e relegou para final o conhecimento das exceções invocadas.

4. Foi proferida sentença que decidiu julgar procedente a ação e, além do mais:

«declarar a insolvência de M..., SGPS, S.A., sociedade anónima com o NIPC ..., com sede na Rua ..., ... ...;

a) Fixar a residência da legal representante da insolvente, nessa morada (artigo 36.°, n.1, a. c) do CIRE):

b) Nomear como administrador judicial, o Sr. Dr. AA, como indicado pela requerente, pelas razões pela mesma indicadas e ao abrigo do disposto no artigo 32° ex vi artigo o 52° do CIRE;

c) Determinar que a Insolvente entregue à Srª. Administradora da Insolvência os elementos constantes do art.° 24°, n.1, do CIRE, que ainda não estejam nos autos, ficando ainda a Insolvente advertida nos termos do disposto nos arts. 81°, 82° e 83° do CIRE, para cuja leitura a análise se remete;

d) Decretar a apreensão imediata, para entrega à Srª. Administradora, dos elementos de contabilidade da Insolvente e de todos os bens (ainda que arrestados, penhorados ou apreendidos);

e) Fixar em 30 dias o prazo para reclamação de créditos;

f) Ao abrigo do disposto no artigo 36.°, n.°1, al. n), do CIRE, na actual redacção, porque se afigura que os autos deverão seguir os termos da liquidação, sem que questões de fundo se levantem, que justifiquem a realização de assembleia de credores, dispensa-se a realização daquela Assembleia; (…)»

5. A requerida interpôs recurso de apelação, tendo restringido as conclusões das suas alegações, essencialmente, à matéria de facto, que considerou incorretamente julgada.

6. A autora-recorrida apresentou contra-alegações, invocando, em síntese, e para além do mais, que a recorrente não tinha posto em causa a factualidade subjacente à sua efetiva situação de insolvência, pelo que essa matéria não integraria o objeto da apelação, nos termos do art.635º, n.5 do CPC.

7. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou integralmente a sentença, sem voto de vencido e sem fundamentação diversa.

8. Inconformado com esse acórdão, a apelante – “M..., SGPS, S.A.” – interpôs o presente recurso, que qualificou como “revista excecional”, com base nas alíneas a), b) e c) do art.672º do CPC.

Nas extensas conclusões das suas alegações a recorrente começa por afirmar que:

«É nulo, nos termos da alínea b) do n. 1 do art. 615º do CPC, o douto acórdão que não logrou conhecer a questão colocada, nem especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, no que diz respeito à questão em torno da qualificação de BB, CC e DD como “administradores de facto”.»

 Este tema ocupa os pontos A) a H) das conclusões da recorrente.

A partir do ponto I) e até ao ponto HH) das conclusões dedica-se a demonstrar a admissibilidade da revista excecional com base no art.672º, n.1, alínea a) do CPC.

Do ponto II) ao ponto KKKK) o recorrente dedica-se a tentar demonstrar a admissibilidade da revista excecional com base na alínea b) do art.672º, n.1 do CPC.

A partir do ponto LLLL) até ao ponto XXXX) o recorrente procura justificar a admissibilidade da revista com base no art.672º, n.1, alínea c) do CPC, invocando a existência de oposição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19.11.2020, proferido no proc. nº 65/12.2TYVNG-H.PI).

Termina requerendo a anulação do acórdão recorrido.

9. A recorrida – Caixa Geral de Depósitos – apresentou contra-alegações, sustentando, em síntese, a inadmissibilidade do recurso de revista excecional e a respetiva improcedência.

10. Distribuídos os autos no STJ e sendo configurável a não admissibilidade do recurso de revista, foram as partes notificadas para se pronunciarem, nos termos do art.655º do CPC.

11. O recorrente respondeu a esse despacho pugnando pela admissibilidade do recurso.

Cabe apreciar.

*

II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A questão prévia da admissibilidade da revista.

1.1. A primeira instância decretou a insolvência da agora recorrente, com as inerentes consequências legais, e a segunda instância confirmou essa decisão, sem fundamentação divergente e sem voto de vencido.

A recorrente, afirmando expressamente existir “dupla conforme” (impeditiva da revista normal, nos termos do art.671º, n.3 do CPC), requer que o recurso seja admitido enquanto revista excecional porque, a seu ver, se encontrariam preenchidas as hipóteses previstas nas alíneas a), b) e c) do n.1 do art.672º do CPC. Invoca, para efeitos desta última alínea, a oposição com o acórdão da Relação do Porto, de 19.11.2020, proferido no processo n.65/12.2TYVNG-H.PI)[1].

Tendo o recorrente invocou também a nulidade do acórdão, com base no art. 615º, n.1, alínea b) e alínea d) do CPC, o tribunal recorrido pronunciou-se, em Conferência, proferindo acórdão que concluiu pela não verificação dessas nulidades. Aliás, como decorre do art.615º, n.4 do CPC, as nulidades são apreciadas pelo tribunal recorrido quando a decisão não é suscetível de recurso.

1.2. O recurso de revista em processo de insolvência tem um regime específico, previsto no art.14º do CIRE, que o afasta das regras comuns da revista previstas no CPC (incluindo da revista excecional prevista no art.672º).

Dispõe o art.14º do CIRE:
No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme”.

Como decorre do art.14º do CIRE, os tribunais da Relação são, em regra, a última instância em processos de insolvência, dada a natureza urgente do processo em causa (art.9º do CIRE). Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma frontal oposição de entendimentos (expressos em dois acórdãos) sobre a aplicação de determinada solução legal, e que tal divergência se projeta decisivamente no modo como os casos foram decididos.

A intervenção do STJ nestas matérias está, portanto, reservada para as hipóteses em que se demonstre a clara oposição de decisões dos tribunais da Relação prevista no art.14º do CIRE, cabendo ao recorrente o ónus de demonstrar tal oposição.

1.3. Está em causa um processo de insolvência, no qual foi requerida e decretada a insolvência da agora recorrente, com as inerentes consequências legais. Assim, a questão central que constituiu o objeto das decisões das instâncias foi a de saber se se verificavam os pressupostos para ser decretada a insolvência da requerida. É esta a questão jurídica que, em primeiro plano, releva para a aplicação do critério de admissibilidade do recurso de revista previsto no art.14º do CIRE e, portanto, aquela que deve ter sido decidida de forma oposta entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.

Caso se entenda que a recorrente aceita a sua declaração de insolvência (porque não se dedicou a rebater os pressupostos legais da insolvência, nem nas alegações da revista nem nas alegações da apelação), e que pretende reduzir o objeto da revista à questão de saber quem são os gerentes de facto da sociedade requerida (o que não resulta absolutamente claro das suas alegações), sempre se terá de vir a concluir que essa questão foi decidida de forma oposta pelos dois acórdãos em confronto.

1.4. A primeira instância decretou a insolvência da recorrente e a segunda instância confirmou essa decisão. A declaração de insolvência é, assim, o efeito normativo central que o aresto recorrido produziu na ordem jurídica, correspondendo à questão do mérito apreciada.

 O acórdão recorrido manteve a factualidade dada como provada pela primeira instância, e confirmou a decisão de declaração de insolvência da recorrente, reproduzindo os mesmos fundamentos com que tal decisão havia sido sustentada na sentença, que se extratam nos seguintes termos:

«(…) entre a M... SGPS e a I... existe uma relação de domínio total em que a primeira é a sociedade directora/dominante e a segunda a sociedade dependente / dominada.

Nos termos do disposto no artigo 501° do CSC, a sociedade directora, isto é, a sociedade dominante é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada (dependente); pelas obrigações constituídas antes ou depois da celebração do contrato de subordinação (a sociedade dominante é responsável pelas obrigações constituídas antes ou depois da constituição da relação de domínio) e a responsabilidade da sociedade dominante só pode ser exigida após a constituição em mora da sociedade subordinada.

Tal responsabilidade da sociedade dominante é directa, ilimitada, objectiva (a sociedade dominante responde pelas dívidas da sociedade subordinada independentemente da culpa que tenha ou não cumprimento) e solidária (pelo cumprimento unitário e integral das obrigações contraídas pela sociedade filha responde esta e a sociedade mãe, 30 dias após a constituição em mora da primeira), cfr. Acórdão do Supremo Tribuna de Justiça de 31.05.2005.

Nessa medida, a sociedade dominante responde independentemente de culpa na constituição da obrigação, o credor não terá de fazer prova do envolvimento da sociedade dominante para obter a sua responsabilidade e a sociedade dominante não poderá esgrimir contra o credor meios de defesa próprios, argumentando, por exemplo, que a sociedade dominada actuou para além ou apesar das suas instruções.

As disposições dos artigos 502º a 504° do CSC, aplicam-se aos grupos constituídos por domínio total, por força do disposto no art. 491° do CSC.

Estando em causa, sociedades gestoras de participações sociais, importa atentar no disposto no Regime Jurídico das Sociedades Gestoras de Participações Sociais, Decreto-Lei n° 495/88, de 30 de Dezembro, cujo artigo 11° dispõe que “o disposto neste diploma não prejudica a aplicação das normas respeitantes a sociedades coligadas, as quais constam do título VI do Código das Sociedades Comerciais”, no qual se insere o disposto no art. 501° do CSC.

(…) Ora, entende-se que, para efeitos de aplicação do instituto da responsabilidade da sociedade dominante, a sede a considerar é a sede real e efectiva das sociedades em relação de grupo, não relevando o local da sede estatutária.

[…]

No caso, como ficou demonstrado, a sede real e efectiva da I... foi sempre em Portugal, mesmo após a mudança da sede estatutária para ..., uma vez que aqui continuou a operar, com os mesmos intervenientes e métodos, sendo os seus Administradores portugueses, com residência em Portugal e sem que tenha qualquer actividade, projecto ou mesmo bem, em .... Veja-se, aliás, que a sociedade continuou a receber e enviar correspondência utilizando a morada portuguesa que correspondia à sua sede estatutária antes da redomiciliação para ..., de que são exemplo as cartas de interpelação que foram enviadas pela CGD em 19.02.2017 e 01.06.2020 e a resposta da I... de 26.06.2020. Ora, tal como sucede com os critérios utilizados para aferir da localização do Centro de Interesses Principais de uma sociedade, para efeitos do art. 3.°, n.° 1 do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015, pode-se aferir do local da sede real e efectiva da mesma, através da definição da localização da Administração dessa sociedade.

Assim, embora exista a presunção de que a sede efectiva, tal como a localização do CIP de uma determinada sociedade, coincide com o local da sua sede estatutária, tal presunção pode ser ilidida, mediante demonstração, por exemplo, de que a generalidade dos credores sabia ou devia saber que a administração da pessoa colectiva funciona noutro local, quando a sociedade não desenvolve qualquer actividade económica no local da sede estatutária, ou, ainda, não tem na mesma quaisquer trabalhadores ou bens.

Também a inexistência de contas bancárias principais no local da sede estatutária pode ser indício de que a mesma não corresponde à sede efectiva e real da sociedade.

Demonstrados todos estes indícios, reforçada sairá a conclusão de que a sede efectiva da sociedade não será aquela a que corresponde a sua sede estatutária, mas sim aquela onde exerce efectivamente e de facto a sua actividade, como é o caso dos autos, dada a prova da continuação do exercício da sua actividade, por parte da I..., em Portugal, no local onde sempre foi a sua sede.

Tendo a I... a sede real e efectiva da sua Administração em Portugal, na morada da sua antiga sede estatutária e que corresponde também à actual morada da sede real e estatutária da sua sociedade-mãe, a requerida M..., SGPS, S.A., sita na Rua ..., em ..., é-lhe aplicável lei portuguesa, sendo aplicável o regime das sociedades em regime de domínio, por força do disposto no artigo 481°, n.° 2, do CSC.

Como refere a requerente, nenhuma diferença de regime ocorrerá neste caso em virtude de a sociedade dominante, ora Requerente, ser uma sociedade gestora de participações sociais, sendo absolutamente claro que uma SGPS totalmente dominante está abrangida pelo art. 501° do CSC e será garante naqueles termos pelas obrigações da dominada.

Face a todo o acima exposto, conclui-se que se encontram verificados todos os requisitos legalmente exigidos para responsabilização da Requerida perante a Requerente, enquanto sociedade dominante, pela dívida da I..., enquanto sociedade dominada, pelo que, à luz do referido artigo 20.°, do CIRE, nomeadamente da alínea a), b) e h), que a requerente tem legitimidade para deduzir este pedido.

(…) à data da interpelação da Requerida para o pagamento da quantia em dívida, ocorrida em 01.06.2020, já a sociedade dominada (I...) estava em mora há muito mais do que 30 dias, não se vendo, por isso, como se mostraria incumprido o disposto no art. 501°, n.° 2 do CSC.

(…) No caso, o prazo de prescrição aplicável ao direito de crédito da Requerente, relativamente à sociedade dominada é o prazo ordinário de vinte anos, previsto no artigo 309° do Código Civil, pelo que o prazo de prescrição do direito de crédito da requerente, relativamente ao crédito sobre a requerida, enquanto sociedade totalmente dominante, terá de ser o mesmo que é aplicável no primeiro caso e nunca o prazo de três anos, previsto nos termos dos arts. 498. ° e 499.° do CC, previsto para as situações de responsabilidade pelo risco e aqui não aplicáveis.

Não se tendo verificado a invocada prescrição, improcede a mesma.

Verificado o crédito da requerente, a constituição em mora da devedora (a I...) e a incapacidade desta de solver a dívida, por total inexistência de meios e património e, por fim a responsabilidade da requerente, ao abrigo do disposto no artigo 501° do CSC, por tal dívida, importa, então, analisar se a presunção de insolvência da requerida, pela prova de uma das circunstâncias que preenchem esse normativo, foi ou não, de alguma forma afastada pela prova da sua solvabilidade, prova que, à requerida competia fazer, nos termos do disposto no artigo 30°, n.° 4, do CIRE.

(…) ficou demonstrado que o activo da requerida é inferior ao seu passivo, situação que sucedeu desde o início da sua constituição, nem lhe é conhecida qualquer actividade susceptível de, a curto prazo, a dotar dos meios necessários ao pagamento do valor em causa.

Ou seja, a mesma não revela actividade económica que permita concluir que tal situação é temporária e pode ser modificada, não auferindo rendimentos da sua actividade económica que permitam pagar os valores devidos.

Não lhe são conhecidos bens ou activos que permitam satisfazer os valores devidos à requerente.

Assim, apesar de não ter ficado demonstrado que a requerida tenha outras obrigações vencidas e em situação de incumprimento, o montante da obrigação que tem para com a requerente e que não tem possibilidades de satisfazer, de todo, revela a impossibilidade de esta satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, tal como previsto na al. a) e b) do n.° 1 do art.° 20

1.5. No caso concreto, o invocado acórdão fundamento (aproveitável para efeitos do art.14º do CIRE) não se pronuncia sobre a mesma questão que foi centralmente apreciada pelo acórdão recorrido, ou seja, a de saber se existiam, ou não, os pressupostos para que a insolvência fosse decretada. Efetivamente, esse acórdão fundamento (referido a partir do ponto 320 das alegações de recurso) respeita à problemática da atuação e responsabilização dos administradores de facto na qualificação da insolvência[2]. Nada tem a ver com os pressupostos da insolvência como são discutidos no caso dos presentes autos.

Aliás, como supra referido, nas conclusões das suas alegações, que, nos termos do art.635º, n.4 do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE), delimitam o objeto do recurso, a recorrente não se ocupa minimamente em tentar demonstrar a existência de qualquer oposição de acórdãos sobre a questão de saber se a insolvência devia, ou não, ter sido decretada. Ocupa-se apenas de questões respeitantes à temática dos administradores de facto.

1.6. A temática à qual a recorrente dedica a quase totalidade das conclusões das suas alegações [saber se determinadas pessoas podiam ser consideradas administradores de facto da sociedade requerida] não constituiu, em rigor, a questão jurídica central do objeto do acórdão recorrido.

E o que no acórdão recorrido se diz sobre essa matéria não está em oposição com a questão jurídica decidida no acórdão fundamento.

Entende o recorrente que o acórdão recorrido estabeleceu uma presunção de administração de facto com base na mera relação de parentesco ou filiação entre as pessoas envolvidas, o que não aconteceu no acórdão fundamento.

Ora compulsando o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, o que se conclui quanto a este ponto é que a questão de saber se determinadas pessoas eram, ou não, administradores (ou gerentes) de facto não se configura como uma questão normativa cuja decisão dependa do modo de interpretar e aplicar determinada norma do CIRE. Efetivamente, não se pode concluir que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento tenham decidido quem era, ou não, gerente ou administrador de facto por terem interpretado de modo oposto determinada norma. As conclusões a que se chegou nos acórdãos em confronto assentaram na concreta e específica factualidade provada em cada caso concreto.

E, como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente afirmado, a intervenção deste tribunal, segundo o critério estabelecido no art.14º do CIRE, só se justifica quando exista oposição de acórdãos sobre a mesma questão jurídica, o que não acontece no caso concreto.

Conclui-se, portanto, que não se encontram preenchidos os pressupostos de recorribilidade exigidos pelo art.14º do CIRE para que a revista pudesse ser admitida.

*

DECISÃO: Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso.

Custas: Isento nos termos do art.4º, n.1, alínea u) do Regulamento das Custas Processuais (pelo facto de a sociedade recorrente se encontrar insolvente).

Lisboa, 09.11.2022

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Publicado em:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/77571958c9797f488025864d0060ba0b?OpenDocument

[2] Sumariou-se no acórdão fundamento: «O administrador de facto que exerce diretamente poderes que competem aos administradores de direito, deve considerar-se abrangido pela referência contida na alínea a) do nº 1 do artº 6º do CIRE, podendo como tal ser responsabilizado por apresentação tardia da Devedora à insolvência