Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3777/08.1TBMTS.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
ESTABELECIMENTO DE ENSINO
ESCOLAS DO ENSINO PARTICULAR
PROCESSO DISCIPLINAR
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 05/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P.69
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1 – A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. É na ponderação do modo como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se deve guiar a tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer.

2 – A actividade desenvolvida pelos estabelecimentos privados de ensino não superior situa-se no âmbito do direito privado: o ensino nas escolas privadas não se traduz no exercício de uma actividade pública delegada, mas antes numa actividade privada concorrente com o ensino público, actuando as escolas privadas no sector privado e no exercício de actividades privadas.

3 – A acção disciplinar exercida pelas escolas do ensino particular relativamente aos seus alunos corresponde a uma prerrogativa contratual da escola, destinada a assegurar a realização da prestação (sinalagmática) a que está vinculada nos termos do negócio celebrado com o aluno ou o seu representante legal, tendo, por isso, natureza privada e não se sujeitando a qualquer regime de direito público.

4 – A competência dos tribunais comuns é residual, estendendo-se a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais; aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo estes os que se referem a uma controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal e nas quais intervém a Administração.

5 – São os tribunais comuns os competentes para conhecer de um litígio em que a autora, invocando a ilicitude de processo disciplinar instaurado ao seu filho, menor, pela direcção do estabelecimento particular pertencente à ré, uma sociedade comercial, pede a condenação desta a eliminar do processo individual do aluno a sanção aplicada e a ressarci-la dos danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido em consequência de tal conduta ilícita e culposa da ré.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA intentou em 21.05.2008, no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos, contra B... – S... DE E..., L.da, a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário.
Pediu a declaração de ilicitude do processo disciplinar instaurado ao seu filho e a condenação da ré:
- na eliminação do registo da sanção disciplinar do processo individual do aluno, adoptando, para esse efeito, todas as diligências necessárias e adequadas;
- no pagamento da quantia de € 1194,43, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela autora, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- no pagamento da quantia a liquidar no decurso desta acção ou posteriormente, a título de indemnização pelo custo do Centro de Estudos que a autora terá de suportar até final do ano lectivo;
- no pagamento da quantia de € 5000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- na restituição à autora da importância de € 467,50, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou para o efeito, e em síntese, que a ré, enquanto sociedade comercial que tem por objecto o ensino básico em estabelecimento de ensino particular e que explora o estabelecimento de ensino básico dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos designado por Externato S. João Bosco, instaurou contra o filho da autora, BB, ao tempo seu aluno, um processo disciplinar eivado de nulidades várias, o qual culminou na aplicação ao educando da medida sancionatória de suspensão por 10 dias, embora sem base factual bastante para o efeito, sendo, por isso, ilícita a aplicação de tal sanção. Em consequência do sucedido, a autora viu-se obrigada a transferir o seu filho para outra escola, facto que lhe acarretou custos acrescidos e perda de quantias várias que pagou adiantadamente à ré.
A ré, regularmente citada, contestou a acção, excepcionando a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para conhecerem do presente litígio e impugnando parcialmente a versão dos factos alegados pela autora.
No que concerne especificamente à excepção dilatória por si aduzida, a ré argumentou, por um lado, que a relação material controvertida estabelecida com a autora é uma relação de direito público – dado que opõe uma pessoa colectiva de utilidade pública e um particular –, e, por outro, que o exercício da acção disciplinar sobre os alunos do ensino particular ou cooperativo redunda na prática de actos materialmente administrativos, insindicáveis pelos tribunais comuns.
Concluiu pela improcedência da acção.
Replicou a autora, contrapondo, a propósito da arguida incompetência material, que o objecto do litígio se refere a uma relação de direito privado e que a aplicação da sanção disciplinar em causa não é um acto administrativo nem traduz o exercício de um poder público.

No despacho saneador, o Ex.mo Juiz, para além de ter alterado o valor da causa para € 36.661,94 e a forma de processo para a de ordinário, julgou procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta dos tribunais comuns para conhecer dos pedidos formulados pela autora e absolveu a ré da instância, entendendo achar-se a competência atribuída a outra ordem jurisdicional, a dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Inconformada, a autora apelou para a Relação do Porto, a qual, por acórdão de 29.06.2009 (fls. 353-368) julgou o recurso procedente, revogou a decisão da 1.ª instância e, consequentemente, declarou “o tribunal recorrido competente, em razão da matéria, para conhecer desta acção” e fixou “o valor processual da acção em € 6661,93”.

Do acórdão que assim decidiu recorre agora, de revista, a ré, que finaliza a sua minuta de recurso com a enunciação das seguintes conclusões:
1ª - O presente recurso restringe-se à decisão proferida quanto à competência do tribunal recorrido em razão da matéria e é admissível independentemente do valor da causa e da sucumbência, por se tratar de decisão que viola regras de competência em razão da matéria, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 678º do CPC, e é igualmente admissível por a decisão recorrida estar em contradição com a decisão proferida em 1.ª instância (art. 721º, n.º 3 a contrario, do CPC).
2ª - A competência material dos tribunais judiciais deve ser aferida por critérios de atribuição positiva (pedido formulado na acção, isto é, o quid decidendum) e de competência residual (cabem na competência dos tribunais civis as causas que não estejam legalmente atribuídas a outro tribunal).
3ª - Resulta da petição inicial e do pedido deduzido que a recorrida funda a sua pretensão numa alegada ilicitude do processo disciplinar, instaurado pela Direcção de um estabelecimento de ensino de que a ora alegante é proprietária, ao respectivo filho – em nenhum momento põe em causa a relação contratual estabelecida com a recorrente nem alega a existência de qualquer incumprimento de tal contrato por parte do estabelecimento de ensino.
4ª - O que a recorrida invoca é a ilicitude do processo disciplinar instaurado ao filho, para reclamar a eliminação da sanção disciplinar aplicada do processo individual do aluno, fundando a sua pretensão em normas do Código do Procedimento Administrativo.
5ª - O processo individual do aluno acompanha o mesmo ao longo de todo o seu percurso escolar, e isto, independentemente de tal percurso ser efectuado em escolas públicas ou privadas; logo, a natureza do processo disciplinar instaurado, quer por um estabelecimento de ensino público, quer por um estabelecimento privado, a um aluno, é só uma e a mesma, sendo decorrente do próprio Direito ao Ensino, que tem de ser assegurado pelo Estado e logo fiscalizado pelos seus órgãos, e não de uma relação jurídica regulada pelo direito privado.
6ª - A recorrente é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada que tem por objecto o ensino básico em estabelecimento de ensino particular, mas, de acordo com o disposto no art. 8º, n.º 1, do DL n.º 553/80, de 21-11 (Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo), goza das prerrogativas das pessoas colectivas de utilidade pública.
7ª - O exercício do poder disciplinar que assiste à recorrente sobre os seus alunos é, salvo mais douto entendimento, uma relação de direito público, estabelecida entre uma pessoa colectiva de utilidade pública e um particular.
8ª - A recorrente tem por missão realizar interesses públicos, recebendo, por isso, prerrogativas de autoridade conferidas pelo Estado e pela Lei e, no uso delas, pratica actos materialmente administrativos, nomeadamente, no seu relacionamento com alunos e com encarregados de educação, ficando as respectivas decisões sujeitas às regras de recurso estabelecidas pelo ETAF e na LEPTA, por se tratar de matéria não excluída de jurisdição administrativa.
9ª - De acordo com o art. 50º do Estatuto do Aluno (o qual se aplica quer à escola pública quer ao ensino particular), da decisão final do procedimento disciplinar cabe recurso hierárquico nos termos gerais de direito.
10ª - Uma vez que, no caso das escolas particulares, tal recurso hierárquico não é possível, resta o recurso jurisdicional para o tribunal que, no caso em apreço, sempre deverá ser o Tribunal Administrativo e Fiscal.
11ª - O procedimento disciplinar a alunos das escolas particulares, ainda que em regime de autonomia pedagógica, pode ser sindicado no contencioso administrativo.
12ª - Na determinação da competência dos tribunais administrativos e fiscais assiste-se, actualmente, ao abandono do critério delimitador da natureza pública ou privada do acto fundamentador da pretensão para a determinação da competência daqueles, antes se apelando a um critério geral assente no conceito de relação jurídica administrativa ou de relação pública, em que um dos sujeitos seja uma entidade pública ou então uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido, como sucede em relação à recorrente.
13ª - O direito ao ensino é dos direitos fundamentais reconhecidos ao cidadão na nossa lei fundamental, sendo que cabe ao Estado, em primeira instância, promover tal direito através da sua política de ensino, criando, nomeadamente, uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população e delegando parte dessa competência a estabelecimentos de ensino particular e cooperativo, os quais o Estado reconhece e fiscaliza (art. 75º da CRP).
14ª - É, pois, de interesse público que estamos a tratar no caso em apreço, já que a recorrente tem uma parcela (ainda que subdelegada, mas que é fiscalizada pelo Estado) da prerrogativa pública que ao Estado cabe, em primeira instância: o exercício efectivo do direito à educação dos cidadãos.
15ª - Tal só pode ser sindicável pelos tribunais administrativos e fiscais.
16ª - O procedimento disciplinar do aluno tem, por natureza e por força de lei, uma grande proximidade com o procedimento administrativo (não fazendo sentido a analogia que o acórdão recorrido faz entre a presente situação e o regime dos contratos de trabalho), o que determinou que o legislador, no art. 56º do Estatuto do Aluno, tenha remetido para a aplicação do Código de Procedimento Administrativo.
17ª - A invocada analogia entre o procedimento disciplinar laboral e o procedimento disciplinar do aluno não tem razão de ser, já que não são os tribunais cíveis que julgam a correcção e legalidade de um dado procedimento disciplinar laboral, mas os tribunais de trabalho, ou seja, tribunais de competência especializada, para um ramo de direito específico e que tem um ordenamento específico.
18ª - Não está em causa nos presentes autos a titularidade da competência para o exercício da acção disciplinar relativa aos alunos (e que pertence aos professores e à direcção pedagógica do estabelecimento de ensino), mas sim o modo como o exercício de tal poder foi efectuado.
19ª - O exercício de tais poderes faz-se no uso de prerrogativas de autoridade típica dos entes públicos e segundo um modelo de acção em que imperam as normas de direito e interesse público.
20ª - O art. 2º, n.º 4, do Código de Procedimento Administrativo refere que os preceitos do respectivo Código podem ser aplicados, por lei, à actuação dos órgãos das instituições particulares de interesse público, pelo que não faz sentido que a sindicância sobre a correcta aplicação de tais normas, por parte das instituições particulares de interesse público não seja efectuada pelos tribunais administrativos.
21ª - Assim, mal andou o acórdão recorrido ao revogar a sentença do Tribunal Judicial de Matosinhos, violando o disposto, entre outros, nos arts. 74º, 75º, 211º e 212º da CRP, 66º do CPC, 18º da LOFTJ, 8º, n.º 1, do DL n.º 553/80, e 2º, n.º 4, do CPA.
22ª – O acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, confirmando a sentença da 1.ª instância, julgue verificada a excepção da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, com a consequente absolvição da ré, ora recorrente, da instância.
Em contra-alegações, a recorrida formulou as seguintes conclusões:
1ª - O presente recurso deve ser liminarmente indeferido, porquanto a recorrente:
a. infringiu as regras da competência em razão da hierarquia (ao apresentar o presente requerimento de recurso de revista indevidamente no tribunal de 1.ª instância), o que determina a incompetência absoluta do tribunal (arts. 101º e 105º do CPC);
b. praticou um acto que a lei não permite ao remeter este recurso via aplicação informática CITIUS (o que configura uma nulidade);
c. e incumpriu os requisitos formais mínimos quanto ao modo de interposição, violando o disposto no art. 684º-B do CPC.
2ª - Quanto à questão suscitada pela recorrente, o acórdão recorrido fez correcta aplicação das normas de Direito, sendo mesmo exemplar, em termos de síntese, clareza e rigor conceptual.
3ª - Sendo a ré uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto o ensino básico em estabelecimento particular, é-lhe aplicável o disposto no DL n.º 533/80, de 21-11, que aprova o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, do qual resulta que “a acção disciplinar relativa aos alunos é da competência dos professores e da direcção pedagógica do respectivo estabelecimento de ensino” (art. 92º).
4ª - A relação jurídica estabelecida entre a autora e a ré – dois sujeitos de direito privado – é uma relação de direito privado e a aplicação da sanção disciplinar ao aluno por parte de um estabelecimento de ensino privado não é um acto administrativo nem traduz o exercício de um poder público de autoridade.
5ª - Só excepcionalmente podem entidades privadas ser investidas de prerrogativas de autoridade, por delegação ou concessão de competências, através de diploma legal (directamente) ou com base em lei (de habilitação), mediante expresso acto administrativo delegatório ou concessório, mas esse não é manifestamente o caso do poder disciplinar dos órgãos das escolas privadas sobre os seus alunos.
6ª - Este poder é uma faculdade de natureza privada que assiste a uma das partes contratuais, mas que assenta exclusivamente no contrato de prestação de serviços celebrado entre a escola e o aluno (ou o seu representante legal); a sua fonte imediata é o contrato (diferentemente do que sucede com o poder disciplinar das entidades públicas – que resulta da lei).
7ª - Tal como defende Pedro Gonçalves, “as escolas privadas integradas no sistema educativo – escolas oficializadas”, que conferem títulos e habilitações com valor oficial – não exercem funções administrativas, nem se encontram investidas de poderes públicos.
8ª - Toda a actividade exercida pelas escolas privadas pertence à esfera do direito privado; as relações das escolas privadas com os seus professores e alunos, as avaliações e provas que realizam, os diplomas e certificados que emitem assumem-se, todos e sem excepção, com actos de direito privado.
9ª - O facto de a ré gozar de prerrogativas das pessoas colectivas de utilidade pública só reforça o entendimento de que os actos por si praticados não são actos administrativos nem regulados pelo direito administrativo, pois as pessoas colectivas de utilidade pública são entidades privadas.
10ª - Como pessoa colectiva privada que é, a ré não pode praticar actos com poder de autoridade.
11ª - Os actos praticados por um estabelecimento de ensino privado não revestem natureza administrativa, sendo incontroverso que em matéria disciplinar a ré não está submetida a qualquer controlo ou fiscalização por parte do Estado.
12ª - Não é aplicável aos estabelecimentos de ensino das redes privada e cooperativa o Estatuto do Aluno (que se aplica unicamente aos Estabelecimentos de Ensino da Rede Pública – art. 3º, n.º 3, da Lei n.º 30/2002, de 20-12), mas tão-somente os princípios que enformam esse diploma, devendo esses estabelecimentos de ensino adaptar os respectivos regulamentos internos a esses princípios.
13ª - O processo disciplinar rege-se, neste caso, pelos regulamentos internos do estabelecimento de ensino privado.
14ª - O entendimento de que o exercício do poder disciplinar se faz “segundo um modelo de acção em que imperam as normas de direito e interesse público”, implica considerar que no processo disciplinar instaurado ao trabalhador vinculado por contrato de trabalho subordinado imperam também as normas de direito público e o modelo de acção que protege igualmente o interesse público, sendo que esta matéria não é discutida nos tribunais administrativos, mas sim nos tribunais do trabalho.
15ª - Ao aplicar uma sanção disciplinar ao aluno, a ré não está a fazê-lo no uso de uma prerrogativa de autoridade típica dos entes públicos, pois o poder disciplinar não é exclusivo das entidades públicas.
A recorrida termina pugnando pela manutenção da decisão recorrida e consequente improcedência do recurso.
Recebido o recurso neste Supremo Tribunal, foi proferido despacho, pelo relator, nos termos do art. 700º do CPC, em que se decidiu que nada obstava ao conhecimento do recurso, julgando-se improcedente a questão prévia da não admissibilidade da revista, suscitada pela recorrida AA (cfr. conclusão 1ª das suas contra-alegações).
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2.

São as conclusões das alegações do recorrente que delimitam o objecto do recurso, pelo que o tribunal ad quem, para além das questões de conhecimento oficioso, só pode conhecer das suscitadas nessas mesmas conclusões (arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC).
A única questão a aqui decidir consiste em saber se os tribunais comuns são competentes em razão da matéria para conhecerem da acção na qual se pede a declaração de ilicitude do processo disciplinar instaurado contra um aluno de um estabelecimento particular do ensino básico.
Para a decisão importa ter em conta os factos que constam do relatório que antecede.

3.

Repetindo ideia já expressa, reafirma-se que o recurso encerra uma única questão, centrada na incompetência dos tribunais comuns para conhecerem do mérito da acção na qual se pede a declaração de ilicitude do processo disciplinar instaurado contra um aluno de um estabelecimento particular do ensino básico.
Considerando o conteúdo do acórdão recorrido e o teor das conclusões de alegação da recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a:
· caracterização do pedido e da causa de pedir formulados na acção;
· determinação da natureza jurídica da actividade exercida pelos estabelecimentos privados de ensino não superior, em especial a da sua acção disciplinar;
· concretização da competência em razão da matéria dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa;
· fixação da competência jurisdicional para conhecimento do objecto do litígio em relação à recorrente.

Vejamos, pois, cada um destes aspectos.

3.1. A caracterização do pedido e da causa de pedir formulados na acção.
A competência de um tribunal é a medida da sua jurisdição; é a parte da jurisdição que a lei lhe assinala.
A determinação da competência do tribunal faz-se com recurso a certos critérios legais que demarcam, no contexto global da função jurisdicional, o tribunal competente para apreciar certa causa. Entre os vários critérios aferidores contam-se os materiais, os quais determinam se a acção deve ser julgada num tribunal comum ou num tribunal especial (art. 62º, n.º 2, do Código de Processo Civil, doravante designado abreviadamente por CPC).
Por redundar num pressuposto processual, a competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor no seu articulado inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. Ou seja, é tendo em conta a forma como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em atenção as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que nos devemos guiar na tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer.
No caso em apreço, a análise da causa de pedir e do pedido vertidos na petição inicial revela que a autora, baseando-se na pretensa ilicitude do processo disciplinar instaurado ao seu filho pela direcção do estabelecimento de ensino particular do ensino básico pertencente à ré, pediu a condenação desta a eliminar, do processo individual daquele, o registo da sanção disciplinar aplicada, e ainda no ressarcimento dos danos decorrentes de tal conduta ilícita e culposa.
O litígio centra-se, pois, no âmbito da responsabilidade contratual, já que deriva do modo como a ré executou o contrato celebrado com a autora ao ter sancionado disciplinarmente o filho desta de forma ilegal.
3.2. A determinação da natureza jurídica da actividade desenvolvida pelos estabelecimentos privados de ensino não superior.
Caracterizados o pedido e a causa de pedir, cumpre agora determinar a natureza jurídica da actividade desenvolvida pela recorrente B... – S... de E..., L.da, não sem antes analisar previamente o quadro normativo regulador da actuação dos estabelecimentos particulares e cooperativos de ensino não superior.
3.2.1. O quadro normativo regulador da actuação dos estabelecimentos particulares e cooperativos de ensino não superior.
a) A Constituição da República Portuguesa.
No plano constitucional, o ensino particular e cooperativo é expressamente regulado nos arts. 43º (n.º 4) e 75º (n.º 2) da Constituição da República Portuguesa (doravante designada abreviadamente por CRP).
O primeiro (art. 43º) consagra a liberdade de educação ou de ensino, estabelecendo, sob a epígrafe de “liberdade de aprender e ensinar”, que:
1. É garantida a liberdade de aprender e ensinar.
2. O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.
3. O ensino público não será confessional.
4. É garantido o direito de criação de escolas particulares e cooperativas.
Uma apreciação retrospectiva revela que a inserção sistemática do preceito e os seus três primeiros números provêm da redacção originária da Constituição. A revisão constitucional de 1997 apenas aprimorou a redacção do n.º 2, substituindo o seu trecho inicial: onde, na versão aprovada em 1976, se dizia que “O Estado não pode atribuir-se o direito de programar (…)”, passou a dizer-se simplesmente que “O Estado não pode programar (…)”. Em contrapartida, o n.º 4, que garante expressamente “(…) o direito de criação de escolas particulares e cooperativas”, foi aditado pela revisão de 1982. A história demonstra, pois, que o direito à criação de escolas privadas não era um direito fundamental (nem sequer implícito (1) ) face à versão originária da Constituição; somente com a revisão de 1982 é que ele adquiriu essa condição – mais propriamente, de direito, liberdade e garantia pessoal (2) (3). Ou seja, só após 1982 é que a opção constitucional se firmou claramente no acolhimento de um modelo pluralista de ensino, integrado por escolas públicas, particulares e cooperativas.
O segundo (art. 75º), sob a epígrafe de “Ensino público, particular e cooperativo”, estabelece que:
1. O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população.
2. O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei.
O recurso ao elemento interpretativo histórico revela que a inserção sistemática do preceito permanece imutável desde a redacção originária da Constituição. Contudo, a revisão constitucional de 1982 melhorou a composição do n.º 1: onde, na versão aprovada em 1976, se dizia “(…) rede de estabelecimentos oficiais de ensino (…)”, passou a mencionar-se “(…) rede de estabelecimentos públicos de ensino (…)”. Por seu turno, o n.º 2 teve duas redacções antes da actual, esta resultante da revisão de 1997: na versão de 1976 prescrevia que “O Estado fiscaliza o ensino particular supletivo do ensino público” e na revisão de 1982 estabelecia que “O Estado fiscaliza o ensino particular e cooperativo”.
Esta evolução da letra do art. 75º da CRP espelha uma outra, ligada à relevância crescente dos estabelecimentos privados num sistema plural de ensino, os quais deixaram de ser considerados como uma realidade supletiva (4) do ensino ministrado em estabelecimentos públicos para se transformarem em algo que se impõe ao próprio Estado em condições de paridade com aqueles e que corresponde ao exercício de um direito fundamental, na dupla dimensão substancial (liberdade de ensino) e organizativa (direito de criação de escolas).
Muito embora tenham âmbitos de aplicação diversos, os arts. 43º e 75º da CRP formam entre si uma unidade normativa constitucional.
O art. 43º da CRP reconhece e garante dois direitos distintos, embora correlacionados: a liberdade de aprender e de ensinar (n.º 1) e o direito de fundação de escolas particulares e cooperativas (n.º 4). A ligação entre ambos reside no facto de, por um lado, o direito de criar escolas particulares ou cooperativas consistir num elemento da liberdade de ensino e de, por outro, a liberdade de aprender e de ensinar valer para qualquer estabelecimento de ensino, seja ele público, particular ou cooperativo, o qual não pode deixar de se submeter aos princípios da liberdade de ensino, independentemente da natureza do respectivo acto constitutivo (5) .
A liberdade de aprender e ensinar pressupõe o direito de não ser impedido ou discriminado no acesso à escola (liberdade de escolha da escola) e o direito de conformar pessoalmente o discurso docente (liberdade na escola, de ministrar o ensino sem sujeição a uma determinada orientação doutrinária) (6).
O direito de criação de escolas particulares e cooperativas consiste essencialmente na liberdade de as entidades privadas e cooperativas constituírem estabelecimentos de ensino, sem impedimento ou necessidade de autorização discricionária estadual, muito embora devam observar vários requisitos materiais e procedimentais previstos na lei (art. 76º, n.º 2, da CRP). Trata-se, afinal, da consagração da liberdade de escola, entendida como liberdade de criação e de oferta de um certo projecto educativo, decorrente, sobretudo, do direito dos pais na escolha do género de educação a dar aos filhos (art. 26º da Declaração Universal dos Direitos do Homem) (7).
Por seu turno, o art. 75º da CRP desenvolve no plano organizativo ou institucional as liberdades consagradas no art. 43º da mesma Lei Fundamental, prevendo a possibilidade de a respectiva promoção ser levada a cabo em estabelecimentos de ensino pertencentes ao Estado, Regiões Autónomas ou autarquias (públicos), pessoas jurídicas de direito privado (particulares) ou cooperativas (cooperativos).
Com efeito, e por um lado, o n.º 1 do art. 75º da CRP comete ao Estado a obrigação constitucional de criar um sistema público de ensino – uma rede de estabelecimentos – capaz de satisfazer todas as necessidades educativas do país. Tal sistema deve ser universal – acessível a todos e apto a responder às necessidades de toda a gente – e geral – agregador de todos os tipos, áreas e graus do ensino (8). A Constituição não deixa, assim, margem para uma abdicação das responsabilidades do Estado em matéria de ensino e de criação de escolas. A prestação do serviço de ensino é, constitucionalmente, uma tarefa pública necessária, não podendo o Estado limitar-se à assumpção de meras funções reguladoras no sector (9) .
Por outro lado, o n.º 2 do mesmo art. 75º proclama o princípio de que o Estado reconhece o valor do ensino particular e cooperativo enquanto realidade que se lhe impõe e que participa num sistema plural de ensino (10). Ou seja, o Estado vê na acção levada a cabo por tais estabelecimentos o exercício de um poder próprio que tem o mesmo valor que aquele que atribui às escolas públicas (11) .

b) A legislação ordinária.
No plano infraconstitucional, o ensino particular e cooperativo é basicamente regulado pelas Leis 46/86, de 04/10, e 9/79, de 19/03, e ainda pelo Dec-lei 553/80, de 21/11, a primeira com um âmbito de aplicação genérico, abrangendo todos os sistemas de ensino, e os últimos com uma dimensão reduzida ao espectro dos estabelecimentos privados.

A Lei de Bases do Sistema Educativo.
A primeira, a Lei 46/86, instituiu as Bases do Sistema Educativo. Na parte que agora releva, consagrou o reconhecimento pelo Estado do valor do ensino dos estabelecimentos particulares e cooperativos como uma expressão concreta da liberdade de aprender e ensinar e do direito da família a orientar a educação dos filhos (arts. 2º, n.º 3, e 54º, n.º 1). Considerou ainda como parte integrante da rede escolar aqueles estabelecimentos que se enquadrem nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objectivos do sistema educativo (art. 55º, n.º 1). Finalmente, previu a fiscalização e o apoio técnico do Estado ao ensino privado sempre que este desempenhe uma função de interesse público e se integre no plano de desenvolvimento da educação (art. 58º).
A Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo.
A segunda, a Lei 9/79, criou as Bases do Ensino Particular e Cooperativo e colocou no mesmo patamar os estabelecimentos públicos, particulares e cooperativos: estes são um instrumento ao serviço do direito à educação de todos os cidadãos (art. 1º, n.º 1, e 6º). Para tanto, definiu um regime de contratos e subsídios (art. 8º), introduziu a faculdade de opção dos pais entre as várias vias de ensino (art. 1º, n.º 3), concedeu às escolas privadas – cujos objectivos se inserissem nos do Sistema Nacional de Educação – isenções fiscais próprias das pessoas colectivas de utilidade pública (art. 3º, n.º 2) (12), fixou a possibilidade de os docentes estagiarem nas escolas não estatais e se transferirem para as estatais com todas as garantias de contagem de tempo de serviço (art. 13º) e concedeu possibilidade de os alunos se transferirem para o ensino dito oficial e vice-versa (art. 15º, n.º 2), sendo abrangidos pelos benefícios das regalias gerais da acção social escolar (art. 16º).

O Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo.
O terceiro, o Dec-lei 553/80, surgiu na sequência das Leis 7/79 e 65/79 (13) e aprovou o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo nas modalidades de ensino não superior (doravante designado abreviadamente por EEPC). Reafirmou, por um lado, os princípios e direitos por elas proclamados (art. 2º) e promoveu, por outro, o acesso ao ensino particular e cooperativo em condições de igualdade ao do ensino público (art. 4º, al. g)).
Mas fez mais: atribuiu automaticamente as isenções fiscais próprias das pessoas colectivas de utilidade pública a todas as escolas existentes à data da sua entrada em vigor (art. 9º) (14) Vale aqui também a consideração efectuada na nota 12., criou linhas de crédito bonificado para aquisição, construção e equipamento de estabelecimentos privados de ensino (art. 10º), abandonou o sistema de concessão de alvarás (arts. 23º a 33º), homogeneizou a carreira do pessoal docente (art. 46º), permitindo a profissionalização e apoiando a formação contínua nas escolas particulares (arts. 4º, al. h), 55º a 66º), possibilitou o livre-trânsito de professores entre os vários sectores de ensino (arts. 70º a 71º) e apontou para a uniformização do regime da contagem do tempo de serviço (arts. 72º a 73º).
3.2.2. Caracterização da natureza jurídica da actividade desenvolvida pelos estabelecimentos privados de ensino.
Assentes os traços gerais do quadro normativo regulador da actividade desenvolvida pelos estabelecimentos privados de ensino, importa agora caracterizá-la juridicamente, ou seja, determinar se a mesma se reveste de natureza pública ou privada.
Conforme já foi frisado, o contexto constitucional acima referido e a respectiva evolução demonstram de um modo indiscutível que o Estado não tem o monopólio da prestação do serviço de ensino. De facto, a criação de escolas constitui um direito fundamental (art. 43º, n.º 4, da CRP), que tem subjacente a consagração de um princípio de pluralismo institucional próprio de um Estado que não impõe aos cidadãos a sua concepção do mundo: a natureza democrática e tolerante do Estado implica a exclusão de qualquer sistema exclusivamente público do ensino e a afirmação clara de um princípio de ensino plural e livre (15) .
Pode afirmar-se, pois, que o ensino nas escolas privadas não se traduz no exercício de uma actividade pública delegada, mas antes numa actividade privada concorrente com o ensino público. Ou seja, a Constituição portuguesa consagra um modelo de escola privada autorizada (16) e não um modelo de escola pública delegada: o ensino privado é uma actividade livre, embora sujeita a autorização estadual para verificação da sua qualidade e dos interesses públicos inerentes, e não uma actividade própria do Estado concessionada aos privados (17).
Daqui deriva que as escolas privadas actuam no sector privado, no exercício de actividades privadas. O campo de acção delas é a sociedade e são os direitos fundamentais: quer no ensino, quer na concessão de títulos e graus oficiais, as escolas privadas prestam um serviço privado, não actuando em colaboração com o Estado nem constituindo uma espécie de administração indirecta do Estado (18). As referências legais ao facto de as escolas privadas integrarem a “rede escolar” (19) . significam apenas que se trata de escolas integradas no sistema de ensino, que não sobrevivem à margem dele (20) .
E se é assim, segue-se que toda a actividade desenvolvida pelas escolas particulares pertence à esfera do direito privado. As suas relações com os alunos e professores, as avaliações e provas que realizam, os diplomas e os certificados que emitem, assumem-se como actos de direito privado, objecto de uma regulação de direito privado, embora possam ter efeitos públicos (21) .
a) Em especial, a determinação da natureza jurídica da acção disciplinar exercida pelos estabelecimentos privados de ensino.
Pode, porém, colocar-se a questão de saber se o exercício da acção disciplinar relativamente aos alunos do ensino particular e cooperativo se traduz numa excepção à regra acima fixada e não redundará antes no uso de um poder de autoridade típico dos entes públicos e, como tal sujeito, a um regime de direito público.
Julga-se que não.
A acção disciplinar respeitante aos alunos do ensino privado encontra-se prevista no art. 92º do EEPC, o qual dispõe que a mesma “(…) é da competência dos professores e da direcção pedagógica do respectivo estabelecimento de ensino”. Este preceito deve ser cotejado com os princípios gerais que enformam os arts. 23º e seguintes do Estatuto do Aluno (doravante designado abreviadamente por EA), aprovado pela Lei 30/2002, de 20/12, e alterado pela Lei 3/2008, de 18/01 (art. 3º, n.º 4, do EA) (22).
Genericamente, a finalidade última da acção disciplinar escolar assume um carácter multifacetado, de natureza simultaneamente pedagógica, preventiva, dissuasora e de integração: o poder tutelar da escola visa, no fundo, e “(…) de forma sustentada, o cumprimento dos deveres do aluno, a preservação do reconhecimento da autoridade e segurança dos professores no exercício da sua actividade profissional e, de acordo com as suas funções, dos demais funcionários, visando ainda o normal prosseguimento das actividades da escola, a correcção do comportamento perturbador e o reforço da formação cívica do aluno, com vista ao desenvolvimento equilibrado da sua personalidade, da sua capacidade de se relacionar com os outros, da sua plena integração na comunidade educativa, do seu sentido de responsabilidade e das suas aprendizagens” (art. 24º, n.º 1, do EA).
Nota-se, pois, que para além do interesse do aluno, a acção disciplinar tem por fim proteger ainda os objectivos perseguidos pelo estabelecimento de ensino, já que lhe concede os meios necessários para a conservação da sua actividade regular.
No contexto específico do ensino privado, e para além da apontada finalidade múltipla, a acção disciplinar caracteriza-se por corresponder a uma prerrogativa contratual da escola destinada a assegurar a realização da prestação (sinalagmática) a que está vinculada nos termos do negócio celebrado com o aluno ou o seu representante legal. Sendo este a sua fonte imediata – maxime um contrato de direito privado integrado, designadamente, por um regulamento interno pautado pelos princípios que “informam” o EA –, torna-se indiscutível que o exercício disciplinar por parte dos estabelecimentos privados de ensino não se pauta por qualquer regime de direito público. Logo, é indiscutível a natureza privada da acção disciplinar de tais estabelecimentos.
3.3. A competência jurisdicional em razão da matéria dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa.
Já se viu que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial e a sua apreciação é alheia ao mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes.
Conforme também já foi salientado, está-se perante um litígio formal relativo à competência do tribunal em razão da matéria para conhecer de uma acção na qual a autora, baseando-se na alegada ilicitude do processo disciplinar instaurado ao seu filho pela direcção do estabelecimento particular do ensino básico pertencente à ré, pediu a condenação desta na eliminação do registo da sanção aplicada do processo individual daquele e ainda no ressarcimento dos danos decorrentes de tal conduta ilícita e culposa. O litígio centra-se, assim, no âmbito da responsabilidade contratual, já que decorre do modo como a ré executou o contrato celebrado com a autora ao ter sancionado disciplinarmente o filho desta de forma ilegal.
A competência dos tribunais comuns tem natureza residual, no sentido em que, nos termos constitucionais e legais, a mesma se estende a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais (arts. 211º, n.º 1, da CRP, 66º do CPC e 18º, n.º 1, da Lei Orgânica de Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13/01).
Por seu turno, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (arts. 212º, n.º 3, da CRP e 1º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02).
Na ausência de uma definição legal, este Supremo Tribunal tem vindo a considerar que tais litígios se referem a uma controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal e nas quais intervém a Administração (23) .
O mesmo esforço interpretativo vem sendo empreendido pela doutrina.
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (24), a propósito do art. 212º, n.º 3, da CRP, anotam que “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1 - as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); 2 - as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
Também JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (24) sustentam que “são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direito Administrativo e de Direito Fiscal, que se regem por normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal. Este é, aliás, o critério que melhor corresponde à tradição do nosso contencioso administrativo, que não adopta um critério estatutário, tendendo a submeter os litígios que envolvam entidades públicas aos tribunais judiciais, quando a resolução de tais litígios não envolva a aplicação de normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal”.
Por seu turno, FERNANDES CADILHA (25) refere que “por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intra-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (…)”.
Em suma, pode afirmar-se que a jurisdição administrativa tem competência para a apreciação dos litígios com origem na Administração pública lato sensu(26) e que envolvam a aplicação de normas de direito administrativo ou fiscal ou a prática de actos a coberto do direito administrativo.
3.4. A fixação da competência jurisdicional para conhecimento do objecto do litígio em relação à recorrente.
O litígio diz respeito a uma situação de responsabilidade civil contratual, relativa à execução de um contrato de prestação de serviços.
Objectivamente, o regime substantivo aplicável à questão que o diferendo encerra é o direito privado, não sendo possível surpreender da banda do recorrente uma actuação regida por normas de direito administrativo ou fiscal.
Subjectivamente, as partes são pessoas de direito privado, não tendo actuado nenhuma delas no âmbito de qualquer prerrogativa de autoridade própria dos entes públicos.
Não estando em causa uma relação jurídica administrativa, são os tribunais comuns os materialmente competentes para conhecerem do mérito da presente acção.
Consequentemente, o acórdão recorrido, ao decidir como o fez, não infringiu qualquer das normas indicadas pela recorrente, tendo-se limitado a acatar a lei aplicável ao caso.

4.

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente B... – S... de E..., L.da.

Lisboa, 6 de Maio de 2010

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
____________________________________________
1- A propósito do conceito de direito fundamental implícito, cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 6/84 (in DR, II Série, n.º 101, de 02.05.1984, págs. 3947 a 3948) e 103/88 (in DR, II Série, n.º 205, de 05.09.1998, págs. 8107 a 8108).
2- Cfr., a este propósito, o Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 103, de 16.06.1982, págs. 4248 a 4257.
3- Neste sentido, cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 398/2008, de 29.07.2008, disponível para consulta pública em http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos08/301-400/39808.htm.
4- Por mais ambíguo que fosse o conceito de supletividade (cfr. Parecer nº 4/79 da Comissão Constitucional: Pareceres da Comissão Constitucional, vol. VII, págs. 235 a 278) o que é certo é que através dele se entendia que o ensino particular deveria ser algo destinado a desaparecer, que subsistiria aí onde não chegasse (ou enquanto não chegasse) o ensino público. Este mesmo entendimento é aliás corroborado pela leitura das Actas das sessões da Assembleia Constituinte em que foi discutida a questão (Diários da Assembleia Constituinte, n.os 41, de 03.09.1975, 60, de 10.10.1975, 62, de 11.11.1975, 63, de 15.10.1975, 64, de 16.10.1975): para a orientação maioritária, que então vingou, não havia qualquer ligação, nem ‘filosófica’ nem ‘prática’, entre liberdade de aprender, liberdade de ensinar, e escolas privadas.
5- Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, pág. 625.
6- Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, obra citada, pág. 625
7- Cfr., a este respeito e ainda, o mencionado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 398/2008, de 29.07.2008.
8- Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, obra citada, pág. 904.
9- Cfr. PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos - O exercício de poderes públicos por entidades privadas com funções administrativas, Almedina, 2005, pág. 495.
10- A mera aceitação do ensino particular e cooperativo resulta já do disposto no art. 43º, n.º 4, da CRP. De modo que o sentido útil do art. 75º, n.º 2, da mesma Lei Fundamental, só pode ser, sob pena de tautologismo, o de que os estabelecimentos de ensino particular e cooperativo exercem poderes próprios reconhecidos pelo Estado, e não poderes delegados por este.
11- Cfr. PEDRO GONÇALVES, obra citada, págs. 514 a 515
12- Conforme bem salienta o acórdão recorrido (fls. 365, § 3.º e 4.º), pessoas colectivas de utilidade pública e pessoas colectivas de direito público são realidades distintas: as primeiras são pessoas colectivas de direito privado que, segundo a sua finalidade estatutária, são de utilidade pública; apenas as segundas estão dotadas de ius imperii. A atribuição de algumas prerrogativas das pessoas colectivas de utilidade pública aos estabelecimentos particulares e cooperativos reforça assim a sua natureza de pessoas colectivas privadas, não dotadas de poderes de autoridade.
13- Dando, assim, cumprimento ao disposto no art. 17º da Lei n.º 7/79, segundo o qual “no prazo de cento e oitenta dias a contar da data da publicação desta lei, deve o Governo publicar, por decreto-lei, o Estatuto dos Ensinos Particular e Cooperativo, de acordo com os princípios estabelecidos nesta lei e integrando, na medida do possível, a regulamentação prevista no âmbito dos diversos artigos, ouvidos os órgãos dos representantes dos estabelecimentos particulares e cooperativos e os sindicatos dos professores”.
14- Vale aqui também a consideração efectuada na nota 12.
15- Cfr. PEDRO GONÇALVES, obra citada, págs. 492 a 493
16- Cfr., neste sentido, VIEIRA DE ANDRADE, O papel do ensino privado na actual Constituição portuguesa, em Temas de Direito da Educação (coordenação de António Pedro Barbas Homem), Almedina, 2003, pág. 19.
17- Cfr. PEDRO GONÇALVES, obra citada, pág. 514.
18- Cfr. PEDRO GONÇALVES, obra citada, pág. 497, e VIEIRA DE ALMEIDA, obra citada, págs. 20 a 21.
19- Cfr. o art. 55º, n.º 1, da Lei n.º 46/86, de 14/10, referido supra, e segundo o qual “os estabelecimentos do ensino particular e cooperativo que se enquadrem nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objectivos do sistema educativo são considerados parte integrante da rede escolar”.
20- Cfr. PEDRO GONÇALVES, obra citada, pág. 497.
21- Cfr. PEDRO GONÇALVES, obra citada, pág. 516.
22- Conforme resulta do disposto no art. 3º da Lei n.º 30/2002, o âmbito de aplicação do EA é diferente consoante se esteja perante o “ensino público” ou o “ensino privado”. Com efeito, o EA aplica-se directa e plenamente aos estabelecimentos de ensino da rede pública (art. 3º, n.ºs 1 e 3, do EA). Porém, e no que concerne aos estabelecimentos privados da rede de ensino, estes apenas se encontram sujeitos aos princípios informadores do EA (art. 3º, n.º 4, do EA). Ou seja, os estabelecimentos privados de ensino apenas estão obrigados a observar os objectivos teleológicos fixados no EA e na estrita medida em que tal não represente uma compressão intolerável da liberdade fundamental de aprender e de ensinar.
23- Cfr., a este propósito, os acórdãos de 08.05.2007 e de 13.03.2008, tirados nos processos n.º 1004/07 e 391/08, respectivamente, ambos da 1.ª Secção, e cujo texto integral se encontra disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf
24- Em Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 815.
25- Em Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, págs. 117 a 118.
26- Ou seja, aquela que também é integrada pelas entidades privadas investidas de funções administrativas