Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1211/20.8YRLSB-B
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: HABEAS CORPUS
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRISÃO ILEGAL
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
PRINCÍPIO DA ACTUALIDADE
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 12/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: EXTINTA A INSTÃNCIA POR INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário : I. – No processo de execução de Mandado de Detenção Europeu intervêm as autoridades judiciárias do país emissor e do país de execução [características que se indicam para o MDE são: “a) a judicialização, por ser um mecanismo exclusivamente judicial, o que suprime toda a intervenção governativa e o princípio da oportunidade, permitindo a cooperação directa entre AAJJ; b) a homogeneização, “a DM assenta em bases de um procedimento comum que todos os EEMM implementaram com uma margem de discricionariedade”; c) harmonização, facilitada por um formulário comum; d) simplificação, desaparece como fase independente a detenção prévia da extradição; e) celeridade, consequência do desaparecimento da tramitação governativa, da comunicação directa entre as AAJJ e do estabelecimento de prazos muitos breves; f) flexibilidade procedimental, contempla a possibilidade de que o reclamado consinta a entrega, com uma redução drástica dos prazos; g) favorecimento da entrega, suprime-se o controle da dupla tipificação para 32 categorias de delitos e reduzem-se os motivos de denegação; e i) garantismo, fortalecendo o respeito pelos direitos fundamentais do reclamado desse o momento da detenção e ao largo de toda a tramitação, aplicando à condenação o tempo de privação da liberdade sofrido pelo motivo de entrega.” [Clara Penín Alegre, “La Orden de Detención Europea”, in “Cooperación Judicial Penal en Europa”, Dirigida por Miguel Carmona Ruano; Ignacio U. Gonzalez Veja; Victor Moreno Catena, Editorial Dykinson, Madrid, 2013, págs. 502-504.];

II.- Tratando-se de um processo judicializado os prazos de prisão preventiva que haja sido irrogada à pessoa procurada deve ser encontrado na conjugação da fase de decisão de execução do mandado (artigo 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto) e a fase de entrega (artigo 29º, nº 2 do mesmo instrumento cooperação judiciária entre Estados Membros da União Europeia);

III. – Ao prazo de 150 dias da fase (estrita) de decisão de execução acrescem 10 dias – a seguir ao trânsito em julgado da decisão que define e estabelece a execução (para entrega á autoridade emissora);

IV. – O prazo de 10 dias (artigo 29º, nº 2 da Lei 65/2003, de 23 de Agosto) só pode superada se for invocado “facto de força maior que ocorra num dos Estados membros – nº 3 do artigo 29º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto;

V. – A suscitação do “incidente”, impeditivo de entrega no prazo de 10 dias, deve indicar as razões de “força maior” que inviabilizam a obrigação de cumprimento do prazo inicial;

VI. – O prazo não pode ser “prorrogado” sem que sejam expostos e concretamente fundamentos da razão de “força maior”;

VII. – Atendidos os motivos, inicia-se um novo prazo de 10 dias para concretização da entrega, nos termos da parte final do nº 3 do artigo 29º da lei aplicável (“Se for impossível a entrega da pessoa procurada no prazo previsto no número anterior, em virtude de facto de força maior que ocorra num dos Estados membros, o tribunal e a autoridade judiciária de emissão estabelecem de imediato s contactos necessários para ser acordada uma nova data, a qual deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada” .   

Decisão Texto Integral:

§1. – RELATÓRIO.

§1.(a). – PEDIDO.

AA, “detida/presa, ao abrigo de um mandado de detenção europeu, vem, nos termos do disposto no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal”, requer providência de habeas corpus, com os fundamentos quer a seguir se deixam extractados (sic):

1.º - A arguida encontra-se detida desde o dia 17.06.2020, ou seja, há 166 dias.

2.º - O artigo 29.º [Prazo para entrega da pessoa procurada] da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, dispõe o seguinte:

1 - A pessoa procurada deve ser entregue no mais curto prazo possível, numa data acordada entre o tribunal e a autoridade judiciária de emissão.

2 - A entrega deve ter lugar no prazo máximo de 10 dias, a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu.

3 - Se for impossível a entrega da pessoa procurada no prazo previsto no número anterior, em virtude de facto de força maior que ocorra num dos Estados membros, o tribunal e a autoridade judiciária de emissão estabelecem de imediato os contactos necessários para ser acordada uma nova data de entrega, a qual deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada.

4 - A entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada.

5 - O tribunal informa de imediato a autoridade judiciária de emissão da cessação dos motivos que determinaram a suspensão temporária da entrega da pessoa procurada e é acordada uma nova data de entrega, a qual deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada. (destaques nossos)

3.º - Por sua vez, o artigo 30.º [Prazos de duração máxima da detenção] da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, estabelece o seguinte:

1 - A detenção da pessoa procurada cessa quando, desde o seu início, tiverem decorrido 60 dias sem que seja proferida pelo tribunal da relação decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu, podendo ser substituída por medida de coação prevista no Código de Processo Penal.

2 - O prazo previsto no número anterior é elevado para 90 dias se for interposto recurso da decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu proferida pelo tribunal da relação.

3 - Os prazos previstos nos números anteriores são elevados para 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional. (destaques nossos)

4.º - A arguida recorreu da decisão, proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, sobre a execução do mandado de detenção europeu.

5.º - Posteriormente, do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, arguida recorreu para o Tribunal Constitucional.

6.º - O Tribunal Constitucional proferiu decisão sumária no dia 18.09.2020, tendo decidido não conhecer do objeto do recurso.

7.º - A arguida reclamou daquela decisão para a conferência, tendo a reclamação sido julgada improcedente por acórdão proferido no dia 21.10.2020. 

8.º - O acórdão do Tribunal Constitucional foi notificado ao mandatário da arguida através de notificação expedida no dia 22.10.2020. [Pelo que se presume efetuada no dia 26.10.2020.]

9.º - O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente a oposição à execução do MDE, transitou em julgado no dia 05.11.2020.

10.º - No caso de se entender que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa só se torna definitiva a partir do terceiro dia útil após a referida data - 05.11.2020 – prazo dentro do qual poderia a arguida praticar qualquer ato mediante o pagamento de multa, então a decisão tornar-se-ia definitiva no dia 11.11.2020.

11.º - A arguida deveria ter sido entregue às autoridades judiciárias requerentes da detenção [Tribunal Judicial de Westminster] no prazo máximo de 10 dias seguintes à decisão definitiva, isto é, até ao dia 15.11.2020 (dia 5+10 dias), ou, na pior das referidas hipóteses, até ao dia 21.11.2020 (dia 11+10 dias), nos termos do artigo 29.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.

12.º - A partir de qualquer uma daquelas datas deixou de haver fundamento para a manutenção da detenção da arguida, sendo a mesma ilegal – Acórdão do STJ, de 18.04.2013, Relator Manuel Braz, proc. 301/13.8YLSB-A.S1.

13.º - A arguida não foi entregue até uma das referidas datas.

14.º - Nos termos do citado n.º 3 do artigo 30 da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, tendo havido Recurso para o Tribunal Constitucional, como sucedeu in casu, a detenção tem o limite máximo de duração de 150 dias, contados desde o seu início.

15.º - Ora, decorridos, que se mostram, 166 dias desde o início da detenção, a privação da liberdade da arguida é, tão só, clamorosamente ilegal.

Em face do exposto,

16.º - Todo o envolvimento atual da situação da arguida obriga a que a mesma seja, imediatamente, libertada.

17.º- A reclusão da arguida é não só ilegal, na medida em que se encontra transcorrido o prazo de 10 dias contados desde a decisão definitiva de execução do MDE (artigo 29.º da Lei n.º 65/2003), como o prazo máximo (150 dias) estabelecido para a sua detenção (artigo 30.º da Lei n.º 65/2003), como coloca em perigo a sua saúde e a sua vida em face do surto de COVID-19 que se regista no Estabelecimento Prisional de …, com mais de uma centena e meia de casos [1] , numa desproporção, inconcebível, e por isso violadora da nossa Lei Fundamental [Vide artigos 18, 27 e 28 da CRP ], em face dos interesses visados pela sua reclusão: a administração da Justiça de outro país, que nenhuma preocupação demonstrou, dentro do prazo máximo que tinha para o efeito, em dar seguimento ao seu pedido de detenção.

18.º - Cumpre dizer-se que não se ignora que o Tribunal da Relação de Lisboa se pronunciou, já, sobre a matéria que serve de fundamento a esta petição de Habeas Corpus, tendo indeferido o pedido de libertação imediata da arguida.

19.º - O Tribunal da Relação de Lisboa apesar de ter reconhecido (i) que o trânsito em julgado da decisão sobre a execução do MDE ocorreu em 05.11.2020 e (ii) que a mesma só se tornaria definitiva após o decurso de 3 dias úteis contados desde aquele dia (no dia 11.11.2020, portanto), concluiu, contudo, por despacho datado de 26.11.2020, com ao arrepio do mais elementar cálculo matemático (11+10), que, nessa data, ainda não havia decorrido o prazo máximo de 10 dias para entrega da arguida ao …!.

20.º - O conteúdo daquele despacho é errado, falacioso e violador da Lei e dos mais elementares princípios por que se rege o nosso Estado de Direito e por que se que deveria reger o Exmo. Senhor Magistrado dele subscritor quando em causa está a privação do primordial direito fundamental do Homem que é a liberdade.

Termos em que se requer a Vossa Excelência que, dando provimento à presente petição de Habeas Corpus, ordene a libertação imediata da arguida.”


§1.(b). – INFORMAÇÃO A QUE ALUDE O ARTIGO 223º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

A requerente foi detida a 16 de Fevereiro de 2020 com base em inserção no Sistema de Informação Schengen correspondente a Mandado de Detenção Europeu emitido pelo Tribunal Judicial de Westminster com a finalidade de ser sujeita a procedimento criminal pela prática de 2 crimes de furto em violação da Lei do Furto de 1968 a que corresponde por cada um dos ilícitos 7 anos de prisão.

Procedeu-se, em 17 de Junho de 2020, à respectiva audição nos termos do art.° 18° da Lei 65/2003 de 23 de Agosto sendo que no final da mesma foi, depois de validada a respectiva detenção, determinada a manutenção da requerida em detenção para aguardar os ulteriores termos do processo.

Depois de ter manifestado oposição à requerida entrega, foi proferido a 21 de Julho de 2020, acórdão por esta Relação/5.ª Secção Criminal que, julgou improcedente a oposição apresentada e deferiu a entrega determinando a execução do MDE emitido.

Deste acórdão foi interposto pela requerida a 3 de Agosto de 2020 recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Tal recurso veio a ser apreciado por acórdão do STJ de 21 de Agosto de 2020 considerando-o improcedente.

Deste acórdão do STJ foi interposto a 3 de Setembro de 2020 recurso para o Tribunal Constitucional, o qual foi admitido com efeito suspensivo, a 8 de Setembro de 2020.

No Tribunal Constitucional, a 18 de Setembro de 2020 foi proferida, a 18 de Setembro de 2020, Decisão Sumária que decidiu não conhecer do recurso.

Desta Decisão Sumária foi apresentada, a 6 de Outubro de 2020, Reclamação para a Conferência.

O Tribunal Constitucional apreciou tal Reclamação em acórdão de 21 de Outubro de 2020, julgando-a improcedente.

Este último acórdão transitou em julgado a 5 de Novembro de 2020.

Os autos foram remetidos pelo tribunal constitucional para o Supremo Tribunal de Justiça a 13 de Novembro de 2020.

Apenas em 23 de Novembro de 2020 os autos deram novamente entrada nesta Relação, remetidos pelo STJ a 17 de Novembro de 2020.

Em 24 de Novembro de 2020 forma emitidos mandados de desligamento da requerida para efeitos de execução da entrega da requerida às autoridades judiciárias inglesas.

Na sequência de requerimento apresentado a 24 de Novembro de 2020 pela requerida em que requeria a sua imediata libertação, ouvido o M.° P.°, foi proferido despacho a 26 de Novembro de 2020 que indeferiu aquele, mantendo-se a situação de detenção da requerida.

Na sequência de mensagem do Gabinete SIRENE em que era solicitada a prorrogação de prazo de entrega da requerida e indicação de plano de viagem para 8 de Dezembro de 2020, foi proferido, a 27 de Novembro de 202, despacho que prorrogou o prazo de entrega para aquela data.

Mantem-se assim e actualmente a situação de detenção da requerida.”


§1.(c). – QUESTÃO APTA A SOLVER A PRETENSÃO SOLICITADA.

A pretensão formulada atina com uma solipsa questão, com cuja resolução quedará satisfeita a pretensão formulada pela requerente, perquiri se se encontra ultrapassado o prazo de prisão preventiva em que se encontra, por, eventualmente, haver sido excedido o prazo determinado na lei para entrega do sujeito procurado ao Estado de emissão do mandado.


§2. – FUNDAMENTAÇÃO.

§2.(a). – ELEMENTOS PERTINENTES PARA A DECISÃO.

i). – A requerente foi detida, por pedido formulado pelo …, e ao amparo do regime de mandado de detenção Europeu, no dia 16 de Junho de 2010;

ii). – Foi apresentada a primeiro interrogatório no dia 17 de Junho de 2020;

iii). – No despacho a que alude o item antecedente, foi irrogada à arguida a medida de coacção de prisão preventiva.

Como resulta do expediente junto com o requerimento inicial, a detenção da requerida mostra-se legal pelo que a valido, por ter sido efectuada ao abrigo do disposto nos artigos 1.° e 4.° da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

A inserção Schengen referida a fls. 4 o Mandado emanam da autoridade judiciária competente, contêm as informações legalmente exigidas, este é o tribunal competente para executar o mandado e os crimes em causa enquadram-se no disposto no artigo 2.°, n.°2, da Lei nº 65/2003.

Tendo em vista o não consentimento da detida à sua entrega e o requerimento de prazo para deduzir oposição, concede-se o prazo de dez dias para esse efeito, nos termos do artigo 21.°, n.°3, da Lei nº 65/2003.

Junta que seja a oposição, vão os autos com vista ao Ministério Público.

Quanto à manutenção da detenção:

A Detenção e a entrega são os únicos objectivos do mandado de detenção europeu, visando a primeira a efectivação da segunda. Por isso, em princípio, a detenção efectuada no âmbito do mandado de detenção europeu - medida autónoma, não totalmente coincidente com as medidas de coacção, designadamente com a prisão preventiva -, quando validada pelo tribunal, deve ser mantida até à entrega, sem embargo de poder (e dever) ser substituída por medida de coacção, como estabelece o nº 3 do artigo 18° da Lei nº 65/2003, designadamente quando a detenção se mostre desnecessária à obtenção do desiderato do mandado, ou seja, à efectivação da entrega (cfr. acórdão do STJ, de 21/11/2012, processo 211/12.6YRCBR, www.dgsi.pt).

Fazendo apelo ao próprio mandado bem como aos factos delituosos que determinaram a sua emissão e bem assim à circunstância de entendermos que a manutenção da detenção se mostra a medida adequada, necessária e proporcional para a satisfação das finalidades inerentes ao mandado de detenção europeu, de modo a evitar o risco de a detida se eximir ao pedido de entrega.

Decide-se que a detida aguardará os ulteriores termos em detenção.

Passe mandado de condução ao estabelecimento prisional.”

iv). – Tendo a requerente apresentado contestação foi proferido acórdão, a 21 de Junho de 2020, em que (na parte interessante) decidiu (sic): “Julga-se improcedente a oposição apresentada e defere-se a execução do Mandado de Detenção Europeu, emitido contra a cidadão alemã AA, melhor identificada nos autos, pela autoridade judiciária do ….. para efeitos de procedimento penal contra a mesma, determinando-se a sua entrega ao Estado membro de emissão;

Mantém-se o estatuto processual determinado no despacho subsequente à audição requerida.”;

v). – Tendo impulsionado recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foi, por acórdão datado de 21 de Agosto de 2020, decidido negar provimento ao recurso;

vi). – A requerente impulsionou recurso para o Tribunal Constitucional, que em acórdão datado de 21 de Outubro de 2020, decidido julgar improcedente a reclamação que havia sido apresentada à decisão sumária que havia decidido “não conhecer do objecto do recurso”.; 

vii). – O acórdão referido no item antecedente transitou em julgado no dia 5 de Novembro de 2020;

viii). – O processo foi remetido ao Tribunal da Relação em 17 de Novembro de 2020, tendo obtido cota de “exame e apresentação”, no dia 23 de Novembro de 2020;

ix). – No dia 24 de Novembro de 2020, foi proferido despacho, pelo Relator, do sequente teor (sic): “Transitado o acórdão do Tribunal Constitucional – cfr. fls. 372 – emita mandado de desligamento da requerida para efeito de execução de entrega determinada às autoridades judiciárias inglesas”; 

x). – Em 26 de Novembro de 2020, foi proferido despacho sequente (sic):  

Vem a requerida AA requerer a sua libertação imediata alegando encontrar-se esgotado o prazo da sua entrega ao Estado Membro da emissão pois encontra-se detida desde 17.06.2020, ou seja, há 159 dias sendo que, tendo havido recurso para o Tribunal Constitucional, será de 150 dias o prazo de estabelecido no art.° 30° da Lei 65/2003 de 23 de Agosto.

Invoca ainda referências à sua vida e saúde pessoal para peticionar a alteração da sua situação de detenção.

A Exma. Magistrada do M.°P.° pronunciou-se no sentido do indeferimento.

Apreciando.

Nos termos do art.° 30° da Lei 65/2003 de 23 de Agosto "a detenção da pessoa procurada cessa quando, desde o seu início, tiverem decorrido 60 dias sem que se/a proferida pelo tribunal da relação decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu. "

Nos termos do n° 2 do mesmo preceito, o prazo previsto no número anterior é elevado para 90 dias se for interposto recurso da decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu proferida pelo tribunal da relação.

Nos termos do nº 3 os prazos previstos nos números anteriores são elevados para 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional,

O que o preceito referido regulamenta não é a contagem do prazo de entrega, mas sim o da manutenção possível da detenção que só pode ser mantida pelos referidos períodos nas diversas e sucessivas etapas da decisão. Ora, no caso, a decisão do Tribunal da Relação ocorreu dentro do prazo indicado no nº 1, a decisão do Supremo Tribunal de Justiça ocorreu dentro do prazo referido no nº 2 do predito preceito e a decisão do Tribunal Constitucional ocorreu dentro do prazo previsto no nº 3 do mesmo preceito.

Não se mostra excedido pois qualquer prazo de detenção nos termos invocados pois que o que releva para efeitos de contagem dos prazos fixados no artigo 30° da Lei n° 65/2003, de 23 de agosto são as datas da prolação dos acórdãos respectivos.

Para efeitos da efectivação da entrega da requerida, regula o art.° 29° da mesma Lei. "a pessoa procurada deve ser entregue no mais curto prazo possível, numa data acordada entre o tribunal e a autoridade judiciária de emissão, devendo a entrega "ter lugar no prazo máximo de 10 dias, a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção", prazo esse a que acresce um outro igual, nos termos do nº 3 do citado preceito.

O transito em julgado ocorreu no dia 5-11-2020, dada a natureza suspensiva dos recursos interpostos da decisão de entrega proferida por esta Relação, pelo que o prazo da entrega de 10 dias definido no indicado art.° 29° só correrá a partir do terceiro dia útil após aquela data em que ainda é possível à parte a pratica de um acto processual, mediante pagamento de multa, só nessa data se podendo considerar a decisão definitiva para efeitos de contagem do sobredito prazo.

E, assim sendo, não se mostra esgotado o prazo de entrega da requerida ao Estado de emissão o qual não desistiu do cumprimento do mandado.

Quanto à alteração da sua situação de detenção, as circunstâncias que invoca em nada relevam, porque preexistentes à detenção decretada, para a pretendida alteração e consequente libertação, tanto mais que os mandados de desligamento para efeitos de execução efectiva da entrega determinada se mostram já emitidos.

Por todo o exposto, indefere-se ao requerido.”;

xi). – Em 27 de Novembro de 2020, foi proferido despacho que a seguir queda transcrito (sic):

Ao abrigo do art. 29º, nº 3 da Lei nº 65/2003, de 23/08 e vista a alegação constante do formulário que antecede, defiro à prorrogação do prazo de entrega em conformidade com os voos ali mencionados”.

xii). – Os voos a que alude o despacho que antecede indicam como datas os dia 7 e 8 de Dezembro de 2020.


§2.(b). – PRESSUPOSTOS DE QUE DEPENDE A PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS.

A providência (excepcional) de habeas corpus – cfr. artigos 220º a 223º do Código de Processo Penal – é qualificada como um expediente jurídico-constitucional de reacção perante uma situação de evidente/ostensiva violação do direito que, a qualquer cidadão, é constitucionalmente reconhecido de não ser privado de acção e movimentação individual, fora dos casos em que a lei permite o decretamento de privação de liberdade (indiciação de acções penalmente puníveis nas situações previstas no artigo 202º do Código de Processo Penal ou após confirmação judicial, por sentença, de cometimento de crimes – previamente imputados a um individuo – por que o tribunal tenha imposto uma condenação em pena de prisão efectiva).

Por a medida de coacção de prisão preventiva se configurar como uma forma de asseguramento e normalização de um procedimento judicial que colide e alanceia a capacidade individual de acção e movimentação, liberta de qualquer constrangimento externo – v.g. por banda do Estado – a lei comina prazos máximos e inderrogáveis durante os quais um cidadão pode ser mantido na situação de prisão preventiva, antes de julgamento por uma indiciação/imputação jurídico-criminal – cfr. artigo 215º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal. 

A vulneração dos prazos legalmente estatuídos, possibilita aquele que se encontre privado de liberdade – detenção ou prisão – por razão, ou motivo, que se não quadre com o quadro legal estabelecido no ordenamento jurídico vigente pode pedir a apreciação da situação em que se encontra ao Supremo Tribunal de Justiça.

O instituto de habeas corpus configura-se, a um tempo, como um direito fundamental e uma garantia. O instituto mostra-se a um tempo um direito, na medida em que a lei, maxime a Constituição, o confirma como um valor e um estado subjectivo activo incrustado na constelação individual de direitos irremíveis do cidadão e que se fixa, directa e imediatamente, na esfera jurídica de qualquer cidadão no gozo pleno dos seus direitos cívicos, e ao mesmo tempo uma garantia na medida em que permite a qualquer cidadão reagir contra uma situação que repute abusiva e violadora de um direito – a liberdade de acção e de livre movimentação pessoal – inscrito como inderrogável no amplexo de direitos fundamentais do individuo. (Em outros ordenamentos jusprocessuais, caso do italiano, a forma de reacção contra a ilegalidade da aplicação de medidas de privação de liberdade consideradas desproporcionadas e inadequadas é efectuada através de um procedimento denominado «riesame», que tem o poder de avaliar a legitimidade e o mérito da medida coercitiva aplicada “senza essere vincolato né dagli eventualli motivi del recorso dell´imputato, né dalla motivazione del provvedimento che ha applicato la misura – art. 309, coma 9” [“sem estar vinculado, nem pela eventual fundamentação (motivos) do recurso do imputado, nem pela motivação da providência que aplicou a medida – artigo 309, nº 9] (tradução nossa) – cfr. Paolo Tonini, Manuale Breve de Diritto Processuale Penale, Giuffrè Editore, 2017, p. 344. De forma residual a reacção/impugnação contra a aplicação de medidas cautelares é efectuada através o «apello», ou seja um meio de impugnação residual relativamente ao «riesame» e que é utilizado em todos os casos em que não é aplicada «per la prima volta (ab initio)» uma medida coercitiva. Porém, desde 2013 que, por força da condenação da Itália pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por procedimentos adoptados com a expulsão de imigrantes, o Estado italiano vem providenciando pela adopção de legislação actuante e efectiva que permite actuar em casos de violação da liberdade da pessoa.)     

Legitimamente, e por direito, o pedido pode ser impulsionado por qualquer cidadão (“no gozo dos seus direitos políticos”) e deve ser apresentado à autoridade à ordem da qual o cidadão se encontra preso. (“A) O habeas corpus é uma garantia constitucional de proteção da liberdade física (liberdade de locomoção, de “ir e vir”, na expressiva formulação da lei brasileira), e não de quaisquer outros direitos fundamentais. O habeas corpus é um “direito-garantia”, um instrumento de proteção da liberdade, não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito à liberdade, esse sim um direito fundamental estabelecido no art. 27.º da Constituição.

B) O habeas corpus é uma providência, independente do sistema de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.

Mas deverá qualificar-se como "extraordinária", no sentido que lhe era atribuído pelo DL n.º 35043, ou seja, como subsidiária dos recursos judiciais?

A autonomia do habeas corpus relativamente aos recursos dificilmente se coaduna com a sua subsidiariedade, entendida como exigindo o esgotamento dos recursos ordinários para que seja legítima a intervenção da providência. O habeas corpus deve servir para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente, ou seja, aquelas em que a privação da liberdade se mostrar claramente ilegal, sendo então o meio adequado, e não excecional, de fazer frente à ilegalidade.

A providência só pode ser entendida como “extraordinária” no sentido da sua singularidade relativamente aos recursos penais, pela sua exclusiva finalidade de meio de reação à privação ilegal da liberdade e pelo seu processamento específico, não como mecanismo supletivo ou subsidiário de tutela da liberdade.

C) A Constituição esboça uma definição das situações abrangidas pela garantia (“abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”). Constata-se, assim, que os pressupostos e a extensão da providência não são definidos com precisão, o mesmo sucedendo com a definição do tribunal competente, pelo que se impõe a intervenção do legislador ordinário para dar cumprimento ao preceito constitucional, para dar efetividade à garantia constitucional do habeas corpus, à semelhança do que aconteceu com as anteriores constituições portuguesas.

Mas como interpretar a expressão: “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”? Trata-se de dois requisitos ou de um só? Sendo dois, serão cumulativos?

Há quem sustente a falta de autonomia entre os dois requisitos enunciados, que seriam afinal um só: a ilegalidade da detenção ou da prisão; a expressão “por virtude”, subsequente a “abuso de poder”, demonstraria que o restante enunciado da frase seria a explicitação desse conceito de “abuso de poder”, não sendo este uma exigência suplementar relativamente à detenção ou prisão ilegal. Por outras palavras, sempre que haja detenção ou prisão ilegal estará verificado o condicionalismo de intervenção do habeas corpus.” – Cfr. Maia Costa, in Revista Julgar, 2016, ano 29, págs. 218-246. 

Como fundamento desta pretensão, de carácter excepcional, o peticionante pode convocar uma das sequentes situações: a) incompetência da entidade que ordenou ou efectuou a prisão; b) ter a prisão uma razão, ou substrato jurídico-factual, arredada do quadro legal estabelecido; e c) ser a prisão mantida para além do prazos que a lei determina e fixa ou que a decisão judicial haja determinado. “Cfr, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, que se deixa transcrito, parte interessante.

A providência de habeas corpus tem, como resulta da lei, carácter excepcional.

Não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendida, antes, por se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional, haja ou não ainda aberta a via dos recursos ordinários.

“E é precisamente por pretender reagir contra situações de excepcional gravidade que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários”.

Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal: a) Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.

“Exemplos de situações abrangidas por estas disposições poderiam encontrar-se na prisão preventiva decretada por outrem que não um juiz; na prisão preventiva aplicada a um arguido suspeito da prática de crime negligente ou punível com pena de prisão inferior a três anos; na prisão preventiva que ultrapasse os prazos previstos no artigo 215.º do C.P.P.

Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”.

Mas a providência excepcional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».

Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal.

Exactamente por isso, a matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão de habeas corpus tem forçosamente de ser certa, ou, pelo menos, estabilizada, sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder ordenar algumas diligências de última hora – art.º 223.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal – mas sempre sem poder substituir-se à instância de julgamento da matéria de facto, e apenas como complemento esclarecedor de eventuais lacunas de informação do quadro de facto porventura subsistentes, com vista à decisão, ou seja, na terminologia legal, cingidas a esclarecer «as condições de legalidade da prisão».

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu acórdão de 16 de Dezembro de 2003, proferido no procedimento de habeas corpus n.º 4393/03-5, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

“(…) Pelo contrário, os recursos de agravo previstos no artigo 219.º [do Código de Processo Penal] podem ter outros fundamentos, sobretudo os relacionados com a inexistência de uma necessidade cautelar que torne indispensável a aplicação da medida de coacção; com a não adequação da medida à necessidade cautelar; com a desproporcionalidade da medida face ao perigo que se visa evitar. Pense-se, a título de exemplo, em situações em que não se verifique qualquer perigo de fuga do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa; em casos em que a medida aplicada não é idónea a garantir a não ocorrência do perigo que se receia; ou ainda na aplicação de uma medida demasiado gravosa tendo em conta outras que deveriam ser preferidas por menos desvaliosas e igualmente eficazes ou tendo em conta a gravidade do delito cometido e a sanção que previsivelmente lhe será aplicada”.

A natureza sumária e expedita da decisão de habeas corpus, por outro lado, não permite que, quando o aspecto jurídico da questão se apresente altamente problemático, o Supremo se substitua de ânimo leve às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, possa censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. Até porque, permanecendo discutível e não consensual a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial – numa apreciação pouco menos que perfunctória, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.”

Como se assinalou no acórdão supra citado – de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira – o procedimento (providência) de habeas corpus não assume carácter ou natureza residual, antes se perfila como um procedimento autónomo e com identidade própria que pode coexistir com o recurso. A providência de habeas corpus não se destina a reagir contra uma decisão reputada injusta de aplicação de uma medida de privação de liberdade, rectius prisão preventiva, antes se destina a pôr cobro a uma situação de ilegalidade e abuso de poder por parte das autoridades. A providência de habeas corpus não se destina a corrigir ou reavaliar as decisões judiciais que dentro da legalidade apliquem a medida coactiva de prisão preventiva. Ela surge no universo do direito como meio de ilaquear um estado patológico decorrente de uma actuação contrária à lei e ao arrepio dos adequados e correctos modos de apreciação e avaliação de uma situação factual (em que uma medida de coacção como a prisão preventiva não pode ser aplicada).

“Por outro lado, a providência de habeas corpus, por alegada prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do art. 222.º do CPP, perante situações de violação ostensiva da liberdade das pessoas, seja por incompetência da entidade que ordenou a prisão, seja por a lei não permitir a privação da liberdade com o fundamento invocado ou sem ter sido invocado fundamento algum, seja ainda por se mostrarem excedidos os prazos legais da sua duração.

São tais razões - e só elas – que justificam a celeridade e premência na apreciação extraordinária da situação de privação de liberdade com vista a aquilatar se houve abuso de poder ou violação grosseira da lei, na privação da liberdade, que imponha de imediato a reposição da legalidade.

A providência de habeas corpus, enquanto remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade, que se traduzam em abuso de poder, ou por serem ofensas sem lei ou por serem grosseiramente contra a lei, não constitui no sistema nacional um recurso dos recursos e muito menos um recurso contra os recursos. (v.v.g. Ac. deste Supremo de 20-12-2006, proc. n.º 4705/06 - 3.ª)

Tal não significa que a providência deva ser concebida, como frequentemente o foi, como só podendo ser usada contra a ilegalidade da prisão quando não possa reagir-se contra essa situação de outro modo, designadamente por via dos recursos ordinários (v. Acórdão deste Supremo de 29-05-02, proc. n.º 2090/02- 3.ª Secção, onde se explana desenvolvidamente essa tese).

Aliás, resulta do artigo 219º nº 2 do CPP, que, mesmo em caso de recurso de decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas de coacção legalmente previstas, inexiste relação de dependência ou de caso julgado entre esse recurso e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos.

O habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação de liberdade, ou a sindicar nulidades ou irregularidades nessas decisões – para isso servem os recursos ordinários - mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou, erro grosseiro) enquadrável no disposto das três alíneas do nº 2 do artº 222ºdo CPP.” (Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.06.2017, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, no processo de habeas corpus sob o nº 881/16.6JAPRT-X.S1.)

No mesmo eito segue o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 16-03.2015, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, em que a propósito da providência especial de habeas corpus se escreveu (sic): “A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31º da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220º e 222º do CPP. Estabelecem tais preceitos os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.  

Nos termos do artigo 222º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de i) a mesma ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ii) ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou iii) se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222º do CPP. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005, “no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”.

Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma determinada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo – valendo os efeitos que em cada momento ali se produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar, a decidir segundo o regime normal dos recursos – produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos da petição referidos no artigo 222º, nº 2 do CPP.

A providência em causa assume, assim, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a mesma não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.

Na verdade, a essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre. É exactamente nessa linha que se pronuncia Cláudia Santos, referindo, nesta senda que “confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.12.2019; Proc. nº 130/17.0JGLSB-Q.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Matos e no mesmo eito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.05.2003, Proc. nº 03P1778, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira. [Cláudia Santos, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, Fascículo 2, p. 300]) Também Cavaleiro Ferreira avança que "o habeas corpus é a providência destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade" (Citado em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.04.2008, Proc. nº 08P1504, relatado pelo Conselheiro Rodrigues Costa. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1986, p. 273)  

A providência excepcional em causa não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, ou seja, não é, nem pode ser, meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. O habeas corpus está, assim, reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, exactamente por serem ilegais, impõem, e permitem, uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida. (“Ora, o habeas corpus não é um modo de impugnação das decisões que aplicam medidas de coação. Pode, na modalidade do art. 222.º, atacar tanto situações de prisão preventiva (ou obrigação de permanência na habitação), como de cumprimento de pena (por excesso de prazo). E, na do art. 220.º, pode incidir sobre situações completamente alheias a um processo penal, como garantia que é contra qualquer situação de privação de liberdade não validada judicialmente.

O habeas corpus é uma garantia situada à margem do sistema de impugnações do processo penal e, como tal, deveria constar de diploma autónomo do Código de Processo Penal, que abrangesse a totalidade do regime do instituto, incluindo os “regimes especiais” que fossem necessários (como os de portadores de anomalia psíquica, previsto no art. 31.º da Lei de Saúde Mental), o que reforçaria a visibilidade e a legibilidade do mesmo e reforçaria o seu prestígio institucional.

Tal como está estruturado, o habeas corpus constitui um remédio contra a privação ilegal da liberdade. O que significa desde logo que o habeas corpus está exclusivamente direcionado para pôr termo à ilegalidade, quando constatada, restituindo o detido à liberdade.

Afastado do âmbito da providência fica, pois, o apuramento das responsabilidades dos autores das ilegalidades verificadas, a determinar em processo autónomo. Como igualmente lhe é alheia a reparação dos direitos dos lesados, a peticionar no foro próprio, conforme prevê o art. 225.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal. A finalidade do habeas corpus, enquanto garantia da liberdade individual, esgota-se na reposição da legalidade, ou seja, na libertação do detido, quando constatada uma detenção ilegal.

(…) O habeas corpus em virtude de prisão ilegal está previsto no art. 222.º do Código de Processo Penal. Estamos aqui perante situações em que a prisão foi decretada ou validada por um juiz, servindo, pois, a providência para "fiscalizar” uma decisão jurisdicional.

Numa primeira análise, não deixa de ser estranho que exista um mecanismo de controlo de decisões jurisdicionais fora do sistema de recursos penais. Na verdade, o modo de impugnação por excelência de decisões desse tipo é o recurso para um tribunal superior. O habeas corpus, para ter razão de ser, deverá ter uma função diferente da dos recursos, deverá servir como instrumento de proteção da liberdade quando os meios ordinários não servirem de base suficiente para essa proteção. Nesse sentido, e só ele, o habeas corpus é uma providência extraordinária.

Mas deverá o sujeito ter de esgotar os meios ordinários de impugnação para ter acesso ao habeas corpus? Já se abordou esta questão, pronunciando-nos pela negativa, em face do texto constitucional.

A posição afirmativa constituía, porém, a jurisprudência corrente do Supremo Tribunal de Justiça até ao início deste século. Mas essa orientação veio a ser abandonada a partir do acórdão de 3.7.2001 (cons. Armando Leandro), que decidiu precisamente que a admissibilidade de recurso da decisão, ou a sua pendência, não impede o habeas corpus, desde que verificados os respetivos pressupostos.

Esta posição veio a ser consagrada na lei, no n.º 2 do art. 219.º do Código de Processo Penal, pela Lei n.º 48/2007, de 29-862.

Na verdade, no habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade. No habeas corpus procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal.

De fora do âmbito da providência ficam todas as situações que são enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão, bem como na análise dos pressupostos materiais das medidas privativas da liberdade. Para essas situações estão reservados os recursos penais, como o do art. 219.º do Código de Processo Penal. O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, ou seja, num meio de acelerar a tramitação dos recursos penais, que dispõem de tramitação diferente, não esquecendo que o referido recurso do art. 219.º tem igualmente um prazo específico para decisão (30 dias). O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna aliás com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei.

Nesta perspetiva, não existe sobreposição ou “concorrência” entre a providência e o recurso penal. Cada um dos meios tem o seu objeto específico de impugnação.

Em síntese: desde que verificados os requisitos do habeas corpus (prisão ilegal por algum dos fundamentos previstos na lei), a providência é admissível, independentemente de ter sido interposto recurso ordinário da mesma decisão.

O prazo estabelecido para a decisão da providência é de 8 dias, conforme a própria Constituição, no n.º 3 do art 31.º, determina. Esse prazo é válido para qualquer das modalidades da providência. Contudo, para o caso da detenção ilegal, deve entender-se que só excecionalmente esse prazo deve ser esgotado.

Em qualquer caso o prazo é meramente ordenador, ou seja, não é atribuída qualquer consequência processual à infração do mesmo. Na verdade, a lei não contém nenhuma disposição idêntica ao citado art. 4.º do DL n.º 320/76, que determinava a libertação do preso caso a providência não fosse decidida no prazo. Por outro lado, a Constituição, já o vimos, não impõe essa solução, embora não a proscreva. Seria aliás essa a solução mais consentânea com o espírito garantístico da providência.

Por último, refira-se que, respeitando o sentido do texto constitucional, a Lei n.º 44/86, de 30-09, que regula o estado de sítio e o estado de emergência, assegura expressamente o direito de habeas corpus às pessoas detidas ou com residência fixa com fundamento em violação das normas de segurança em vigor após a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (n.º 2, al. a) do art. 2.º). Ou seja, no nosso ordenamento jurídico, o habeas corpus não pode, em caso algum, ser suspenso.” – Cfr. Maia Costa, in Revista Julgar, Ano 2016, Ano 29, pags. 218-246.

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu Acórdão de 16 de Dezembro de 2003, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

A natureza sumária da decisão de habeas corpus, por outro lado, não se deve conjugar com a definição de questões susceptíveis de um tratamento dicotómico e em paridade de defensibilidade. É que, em tal hipótese e como se acentua em decisão deste Tribunal de 1 de Fevereiro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. 

Até porque, permanecendo discutível, e não consensual, a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento – ainda para mais numa apreciação pouco menos que perfunctória –, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial –, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.” (Disponível em www.dgsi.pt.)

Assoalhados com o que vem sendo uma posição jurisprudencial constante e uniforme, apreciar-se-á o caso em tela de juízo.


§2.(c). – A SOLUÇÃO DO CASO.

A questão, tal como a deixamos enunciada, atina com o prazo para entrega da pessoa procurada ao Estado requerente. Ou seja, uma vez superado o processo jurisdicional (estrito) – audição do procurado, oposição e respectivos recursos (ordinários) – e definida a pretensão do Estado requerente no sentido positivo, isto é, da entrega do sujeito procurado – para nos atermos ao caso em análise – a entrega tem de se executar, impreterivelmente, dentro do prazo de 10 dias estipulado no artigo 29º da 65/2003, de 23 de Agosto, com a última alteração da Lei nº 115/2019, de 12 de Setembro.

Num escorço breve, através de um mandado de detenção europeu uma autoridade judiciária pede à congénere de outro Estado-Membro a detenção de um sujeito que ela reputa poder estar involucrado na prática de uma actividade punível pela lei penal do respectivo país e que pretende ouvir, eventualmente acusar e levar a julgamento.

Para satisfação do predito desiderato, pede à autoridade judiciária de outro Estado-Membro que proceda à detenção de uma determinada pessoa e que a mesma lhe seja entregue para os fins inscritos no pedido que haja formulado.

Em toda a entrega de sujeitos imputados ou condenados por delito não só se contempla a relação entre os Estados implicados. Pressupõe uma prévia relação entre o Estado de emissão e a pessoa reclamada (fruto do procedimento penal que contra a mesma se dirige) e engendra uma relação entre o Estado de execução e o sujeito a entregar (antes, o procedimento de extradição, agora o de entrega). Desta maneira convergem três campos de direito: o internacional, o penal e o processual. O Direito Penal é expressão da soberania dos Estados e como tal opera com limite da perseguição dos delitos tornando necessários mecanismos de colaboração internacional. Por seu lado, o Direito Processual Penal regula o exercício do ius puniendi mediante um entramado de difíceis equilíbrios entre a protecção de sensíveis e valiosíssimos direitos fundamentais e a necessidade de dotar o Estado das potestades necessárias para proteger a colectividade perseguindo eficazmente os delitos. Uma sorte de «Direito constitucional aplicado» ou de sismógrafo que reflecte os valores básicos plasmados na constituição do Estado. Logicamente cria conflitos quando essa soberania ultrapassa as fronteiras e choca com outras «constituições aplicadas». A entrega de um sujeito pelo Estado em que se haja refugiado, a outro Estado que o persiga penalmente, para que possa exercitar o ius puniendi supõe o máximo nível de cooperação penal. Daí que a extradição, enquanto susceptível de causar gravame irreparável na liberdade de um sujeito junto com a lesão de outros valores, constitua um dos exemplos claros de colisão entre sistemas que não têm por que solver («solventar») de igual maneira esse difícil equilíbrio direitos fundamentais - protecção da colectividade.” [Cfr. Clara Penín Alegre, “La Orden de Detención Europea”, in “Cooperación Judicial Penal en Europa”, Dirigida por Miguel Carmona Ruano; Ignacio U. Gonzalez Veja; Victor Moreno Catena, Editorial Dykinson, Madrid, 2013, p. 497 e 501]    

No que concerne aos princípios inspiradores refere a Autora citada que “o primeiro objectivo que a Ordem de Detenção Europeu (ODE) vem desencadear é o reconhecimento mútuo das resoluções judiciais a que alude o preâmbulo da DM (Directiva Marco, equivalente a Directiva Quadro) que a regula. Sem embargo e pese a enfâse com que se alude à mesma, a regulação mínima que impõe a DM não suprime o procedimento de verificação dos requisitos e garantias da resolução cuja execução se insta, exigindo finalmente uma decisão da autoridade de execução acerca da sua procedência. Daí que se debata na doutrina e nos tribunais se a ODE continua a ser um procedimento de extradição pela sua finalidade, a entrega de um sujeito acusado ou condenado por delito, e limitação de uns mesmos direitos para a levar a efeito, mantendo pronunciamentos recaídos em matéria de extradição para a ODE.

Em segundo, igualmente assinalado na DM (Directiva Quadro) ao mesmo nível que a anterior, é a protecção dos direitos fundamentais. De facto, a melhor maneira de afiançar a confiança recíproca é aumentando esta exigência. E daí que seja básico para a compreensão e interpretação da regulação sobre a ODE o seu respeito escrupuloso. (…) Portanto, na medida em que o reconhecimento mútuo descansa na confiança de que o sistema jurídico do resto dos EEMM é respeitador com o conteúdo absoluto destes direitos [os direitos fundamentais] os tribunais devem interpretar a normativa exigindo que o respeito seja efectivo.”  

A emissão de um mandado de detenção europeu por uma autoridade judicial da União Europeia em que se reclama a detenção e entrega de um determinado sujeito tem em vista i) o exercício de acções penais (entrega para julgamento); ii) execução de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade (entrega para cumprimento).     

Não obstante, não é esta, ou pelo menos não o é em exclusivo, a sua natureza. Em primeiro lugar e como o nome indica, é uma «ordem» ditada por uma AJ (Autoridade Judiciária) para que se proceda à detenção imediata de um individuo dentro do âmbito da EU, equivalente a uma requisitória internacional que precisa de uma prévia resolução pela qual se acorde a privação de liberdade. (…)

Segundo, para além de uma ordem, este instrumento contém uma «solicitação de entrega». (…)

Terceiro, a ODE dita-se através de um «formulário unificado» de que todas as AJ dos EEMM devem dispor.”

Já quanto às características que se indicam para o MDE são: “a) a judicialização, por ser um mecanismo exclusivamente judicial, o que suprime toda a intervenção governativa e o principio da oportunidade, permitindo a cooperação directa entre AAJJ; b) a homogeneização, “a DM assenta em bases de um procedimento comum que todos os EEMM implementaram com uma margem de discricionariedade”; c) harmonização, facilitada por uma formulário comum; d) simplificação, desaparece como fase independente a detenção prévia da extradição; e) celeridade, consequência do desaparecimento da tramitação governativa, da comunicação directa entre as AAJJ e do estabelecimento de prazos muitos breves; f) flexibilidade procedimental, contempla a possibilidade de que o reclamado consinta a entrega, com uma redução drástica do prazos; g) favorecimento da entrega, suprime-se o controle da dupla tipificação para 32 categorias de delitos e reduzem-se os motivos de denegação; e i) garantismo, fortalecendo o respeito pelos direitos fundamentais do reclamado desse o momento da detenção e ao largo de toda a tramitação, aplicando à condenação o tempo de privação da liberdade sofrido pelo motivo de entrega.” [Clara Penín Alegre, op. loc. cit. págs. 502-504.]    

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal Justiça, são avonde as decisões que se debruçaram sobre a temática do mandado de detenção Europeu.

Por todas, escreveu-se no douto acórdão, de 5 de Novembro de 2014, desta Secção, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, que: “O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista á detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade-artigo 1º da Lei 65/2003 

A adequação do procedimento, ou o seu campo de aplicação, exprime-se na equação entre o fim concretamente pretendido e a finalidade designada na lei para aquele procedimento, ou seja, a propriedade, ou impropriedade, do procedimento é uma questão de ajustamento da pretensão formulada ao perfil inscrito na lei.  

Nos autos essa pretensão concreta é deduzida em termos formalmente correctos e para conseguir uma finalidade que é a constante da Lei, ou seja, pretende o Estado Francês a entrega de um cidadão holandês a fim de exercer o procedimento criminal por crimes cuja prática está indiciada. 

Sendo patente essa convergência entre o pedido formulado e a norma estruturante do procedimento não compete ao Estado requerente entrar em consideração com factores exógenos que se inscrevem noutro contexto processual.  

Para a validade do mandado apenas releva a sua adequação á finalidade pretendida. 

II. - Num breve apelo à raiz do instituto importa relembrar que o Tratado de Amesterdão, em vigor desde 1 de Maio de 1999, instituiu o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça - ELSJ (artigo 29º).A cooperação judiciária em matéria penal continuou a fazer parte do III Pilar, não tendo sido "comunitarizada", como o foram a cooperação em matéria civil e as matérias de asilo e emigração. Realçam-se as importantes alterações introduzidas a nível da cooperação penal a qual deixou de ser uma cooperação meramente intergovernamental, dado o crescente papel da Comissão e do Parlamento Europeu. 

Efectivamente, passou a existir a possibilidade de adopção de decisões-quadro para efeitos de aproximação legislativa (instrumento de contornos semelhantes ao da directiva do I Pilar mas sem efeito directo);  

- a Comissão passou a ter direito de iniciativa  

- previu-se, em termos a definir, a participação de autoridades judiciárias e de polícia criminal em acções a realizar no território de um outro Estado Membro;  

- a nível das relações externas, o artigo 38 do TUE veio permitir à União Europeia concluir por, unanimidade, acordos interna­cionais com Estados terceiros ou organizações internacionais em matérias relevantes do III pilar.  

Por outro lado, o Tratado de Amesterdão integrou o "acquis Schengen" no acervo da União Europeia. Um dos objectivos do Tratado de Amesterdão foi facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça, mediante a instituição de acções em comum no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal, através da prevenção e combate à criminalidade, organizada ou não, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos, os crimes contra as crianças, o tráfico ilícito de armas, o tráfico de droga e o combate à corrupção e à fraude através, quer de uma cooperação mais estreita entre autoridades judiciárias e outras autoridades competentes dos Estados Membros, quer da aproximação de disposições de direito penal dos Estados Membros.  

0 Tratado de Nice, que entrou em vigor a 1 de Fevereiro de 2003, não introduziu grandes alterações institucionais em matéria de cooperação judiciária penal, traduzindo antes um quadro de continuidade. 

A importância conferida ao Espaço de Segurança, Liberdade e Justiça pelo Tratado de Amesterdão foi reafirmada pelos Chefes de Estado e de Governo, tendo sido realizado um Conselho Europeu em Tampere, em 15 e 16 de Outubro de 1999, exclusivamente dedicado a estas matérias, cujas conclusões são invocadas como fundamento do trabalho da União Europeia em matéria de cooperação judiciária penal nos últimos cinco anos. Mais do que um mero enunciar de princípios, constituíram um desenvolvimento qualitativo nos trabalhos da União Europeia e um momento essencial na história do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Para além das múltiplas áreas aí elencadas (protecção das vítimas, prevenção da criminalidade, luta contra a Criminalidade - Eurojust, Task Force Chefes de Polícia, equipas de investigação conjuntas, Academia Europeia de Polícia, reforço da Europol, Estratégia contra a droga - acção específica contra o branqueamento de capitais), que foram efectivamente incrementadas, foi retomada a ideia de um Plano de Acção para Concretização do ELSJ, tendo-se concluído que o reconhecimento mútuo de decisões se deveria tomar o eixo essencial da cooperação judiciária na União Europeia tanto em matéria penal como em matéria civil, aplicável quer a sentenças judiciais, quer a outras decisões de autoridades judiciárias.  

Para implementação deste princípio foi adoptado um Programa de medidas destinadas a aplicar o princípio do reconhecimento mútuo de decisões penais com um conjunto de medidas a adoptar e respectivo prazo de adopção.  

O programa de medidas destinado a dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais, referido no ponto 37 das conclusões do Conselho Europeu de Tampere, e aprovado pelo Conselho em 30 de Novembro de 2000, aborda a questão da execução mútua de mandados de detenção.  

Na elaboração da decisão quadro que conduziu á criação do mandado de detenção europeu foi determinante o objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça o que conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias.  

A instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que, até á criação da referida figura, prevaleciam entre os Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial, como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.  

O objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas, ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleciam entre Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitada em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.  

O mandado de detenção europeu previsto na decisão-quadro de 2002 constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de "pedra angular" da cooperação judiciária. Pode-se afirmar que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros substituindo, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição, incluindo as disposições nesta matéria do título III da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen.  

O seu núcleo essencial reside em que, «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União». O que significa que as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste Estado. [Veja-se a este propósito Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, 13, (2003) e o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Janeiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar] 

Numa primeira linha – e cingindo-nos ao caso em análise – o Estado emissor da ordem (mandado) de detenção deverá ter formulado um juízo de indiciação apta, idónea e capaz contra um determinado sujeito com vista a submetê-lo a julgamento no ordem jurisdicional desse Estado, pedindo, com base nesse juízo de imputação factual, a detenção a qualquer Estado membro a detenção e, terminados os trâmites jurisdicionais competentes e compatíveis, a respectiva entrega para os fins indicados no mandado. Será assim uma ordem de, ou para, comparecimento, efectivo e presencial, de um imputado pela prática de um (indiciado) crime num dos Estados Membros aos actos judiciais tendentes à apreciação e julgamento de feito cometido na esfera territorial do país emissor (aplicação efectiva e real do ius punendi).

Numa segunda linha o asseguramento por parte de um Estado Membro que a aplicação do ius punendi, maxime pela anterioridade de um julgamento e de imposição, por virtude desse julgamento, de uma sanção penal por um tribunal do Estado Membro, é efectivamente executado e realizado no exercício da soberania que lhe é conferido pelo poder de punir aqueles que cometem acções previstas e punidas pela lei penal.

Visando o MDE estes dois escopos a um tempo jurídico-processuais e de afirmação da soberania fundante e constitucional do Estado Membro emissor, ao Estado executor resta pouco mais que não seja a efectivação/asseguramento do pedido que é formulado por um Estado que se coloca na mesma ordem constitucional e cuja legislação comum assume uma feição injuntiva na ordem jurídica interna de cada dos estados Membros que constituem o grupo de nações que constituem o bloco institucional em que se congregam e federam (pelo menos em algumas áreas da organização societária e do Estado).

No caso concreto, o Estado requerido (Portuga) deferiu o pedido das autoridades judiciárias inglesas de detenção da cidadã de nacionalidade alemã, AA, para sujeição a julgamento pela imputação concretamente formulada no mandado de detenção emitido.

Deferido o pedido, numa fase jurisdicional estrita ou de decisão – apreciação do pedido, por valimento e subsistência da situação jurídico-factual que demonstrada na “causa de pedir” e determinação da entrega – segue a fase de entrega, isto é a fase em que o sujeito requerido já tem o seu estado definido (pela decisão firme transitada em julgada) e em que sobra a tramitação própria da transferência (física) do sujeito a entregar a efectivar entre o Estado requerente e o Estado requerido. Não deixando de ser uma fase judicializada, dado que o detido se mantém adstrito às medidas de coacção que lhe hajam sido impostas e só com a efectiva entrega elas se excisarão, ou apartarão, da esfera de obrigações e deveres a que qualquer sujeito fica obrigado pela imposição de medidas de coacção, o facto é que ela não deixa de ser intrometida, ou perpassada, por uma fase burocrático-administrativa pela intervenção de autoridades externas ao aparelho judiciário, no caso as autoridades policiais de guarda de fronteira, através do Gabinete Sirene – que têm a seu cargo o depósito/armazenamento de dados pessoais relativo a infracções que devam ser comunicados entres os Estados Membros, a respectiva troca de informação de dados pessoais e referentes criminais e a transmissão de pedidos entre os Estados membros, para só referir aqueles que ao caso interessam – que intercambiam as comunicações de, ou para, transferência/entrega e do sujeito a entregar. Para a efectivar/executar uma entrega os Estados, através das respectivas autoridades de polícia, organizam o que se designa de escoltas, que custodiam a pessoa a entregar. Naturalmente, estes trâmites burocráticos deverão ser tramitados e operacionalizados dentro dos prazos indicados na lei, mas sempre sob a supervisão e controle da autoridade judiciária do Estado de emissão, dado que, cm acima se disse todo o processo está sob a égide das autoridades judiciárias dos países engolfados no processo de detenção.

A lei – cfr. artigo 30º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto – fixa os “prazos máximos de detenção”. Assim prescreve o nº 1 do citado preceito que “A detenção da pessoa procurada cessa quando, desde o seu início, tiverem decorrido 60 dias sem que seja proferida decisão pelo tribunal da relação sobre a execução do mandado de detenção europeu, podendo ser substituída por medida de coacção prevista no Código de Processo Penal.” E o nº 2 da norma em apreço que o prazo (de detenção) se eleva para 90 dias “se for interposto recurso da decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu proferida pelo tribunal da relação”, sendo esse prazo elevado para 150 dias “se for interposto para o Tribunal Constitucional”.  

Numa hermenêutica que consideramos arrimada à letra da lei, a norma fixa os prazos máximos da detenção da pessoa procurada por referência às decisões dos órgãos jurisdicionais a que cabe, num procedimento de execução de mandado de detenção europeu por parte da entidade (Estado) requerido, ditar uma decisão de acordo com o processamento regulado na lei – tribunal da relação, primeira instância a quem compete ouvir a pessoa detida e determinar a medida de coacção adequada e proporcional à salvaguarda do cumprimento do pedido formulado, Supremo Tribunal de Justiça, a quem caberá apreciar um eventual recurso da decisão ditada pelo tribunal de primeira instância (no procedimento estabelecido) e, por fim o Tribunal Constitucional, quanto à fiscalização da constitucionalidade. A decisão a que se alude deverá ser, naturalmente, uma decisão firme, ou seja, uma decisão transitada em julgado, que defina e fixe de forma inderrogável a sorte do pedido de detenção e entrega de uma pessoa procurada. 

Em vista da referência estabelecida na lei – como se disse referida à decisão sore a execução do mandado de detenção, segundo uma arrimada ao sentido (significativo) literal – poder-se-á questionar, pensamos que legitimamente, o que acontece se as decisões dos diversos órgãos jurisdicionais forem proferidas dentro dos prazos estipulados nos parágrafos normativos contidos no preceito do artigo 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto e, no entanto, a detenção se estender para além dos 150 dias estabelecidos para a decisão. A epígrafe do artigo anuncia e pretende regular os “prazos máximos de duração e detenção”. Se os prazos máximos são referidos às decisões dos órgãos jurisdicionais existentes na ordem judiciária, então, numa hipótese, por absurdo, ditadas todas as decisões dentro dos prazos estipulados nos parágrafos da norma regente, ficava cumprida a obrigação legalmente definida, podendo a pessoa detida ficar indefinidamente detida, por a exigência dos 150 dias para as decisões judiciais ter sido cumprida.

Não se nos afigura que uma hermenêutica glosada nos termos hipotizados possa ser a que deva vingar, em face da urgência com que a lei pretende dotar e imprimir ao procedimento. Em nosso aviso, o procedimento regulado na lei não deve ser excisado, ou seja, o procedimento não pode ser fragmentado em fase decisória e fase de entrega. A fase de decisão, ou de definição do sentido a conferir a um pedido de execução do mandado de detenção europeu, não deverá ser autonomizada e erigida como uma fase que fornece o elemento definidor e exclusivo do processo regulador da execução do mandado. O procedimento viger tem de se entender como unitário e sequencial, Isto é, à fase de decisão, definição do pedido de execução do mandado de detenção, deve seguir-se, de imediato a fase de entrega, que, como se infere do artigo 29º da Lei 65/2003, estipula e estabelece, igualmente, prazos peremptórios e que só podem ser defraudados e vulnerados por motivo de força maior, cfr. nº 3 do artigo 29º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.      

Para a entrega – definida de forma firme (com decisão transitada em julgado) o pedido e a de-terminação de entrega – rege, igualmente, de forma irremível e inafastável, o artigo 29º da normação adrede. Assim, estipula o artigo 29º da mencionada Lei que a entrega deve ser efectivada no mais curto prazo de tempo possível (em data a acordar entre o tribunal e a autoridade judiciária de emissão), não devendo exceder o prazo de 10 dias. A lei admite que este prazo não seja cumprido – nº 2 do artigo 29º - em casos de força maior “que ocorra num dos Estados Membros”, impondo, porém, que o tribunal e a autoridade judiciária de emissão encetem contactos para ser acordada uma data de entrega, “a qual deverá ter lugar no prazo de dez dias a contar da nova data acordada.”

Do estatuído no artigo 29º da Lei nº 65/2003, notadamente, nos seus nºs 2 e 3, é possível escandir duas situações. Uma primeira para a entrega após a decisão definitiva relativa ao deferimento do pedido e respectiva entrega, que deve ocorrer no prazo de 10 dias, a contar do momento em que o sistema judiciário do Estado requerido emite uma decisão firme (transitada em julgado) quanto ao pedido formulado pela autoridade judiciária de emissão. Uma segunda, quando, e se, verificada uma situação de força maior num dos Estados membros e por virtude dessa anómala, inesperada e inultrapassável situação surgida a entrega não possa ser efectuada no prazo de 10 dias, caso em que – já ultrapassado o prazo estipulado no nº 2 – se deverá proceder á marcação de uma nova data para entrega e a partir da consignação dessa nova data, passará a transcorrer, de novo, e um novo, prazo de 10 dias para entrega. É possível, escandir duas situações que desencadeiam dois prazos distintos. Um primeiro que transcorre a partir do trânsito em julgado da decisão que determinou a entrega da pessoa requerida e um outro que surge quando tendo-se verificado uma situação de força maior o prazo inicial se esgotou, por impossibilidade intransponível e inesperada, em que o novo prazo se forma a partir, não de um acto judicial predefinido e temporalmente fixado, mas sim de um acto aleatório, constituído ou materializado com, ou após, a marcação de data para entrega, ou seja de um acto consertado entre o tribunal de decisão e a autoridade judiciária de emissão.

Quanto ao primeiro dos dois prazos fixados, a lei parece não deixar margem para dúvidas. A entrega deve ser realizada e efectivada nos 10 dias posteriores à decisão definitiva que determinou, de forma (agora) inderrogável a entrega da pessoa à autoridade judiciária de emissão.

E esse prazo mostra-se irremivelmente ultrapassado. A decisão transitou em julgado no dia 5 de Novembro de 2020, conforme aposição de termo de trânsito, atestada no Tribunal Constitucional, e ainda que se pudesse esgrimir com o desconhecimento do trânsito por parte do tribunal da Relação – que é, naturalmente, admissível, dado que o processo só aí foi recebido, a crer no termo exarado no processo de “exame e apresentação” – no dia 23 de Novembro, ainda que tenha sido expedido do Supremo Tribunal de Justiça no dia 17 de Novembro de 2020, o facto é que desde o dia 23 até hoje já se exauriu o prazo de 10 dias estipulado na lei. O processo não contém elementos que permitam escrutinar uma eventual comunicação por parte do órgão de fiscalização de constitucionalidade, ao tribunal da relação, da ocorrência do trânsito em julgado da decisão em que ficaria definido o pedido de entrega e a respectiva determinação de entrega ditada na decisão do tribunal da relação. O solipso elemento com que nos podemos arroupar e abroquelar é o que vem consignado no despacho de fls. 107 (fls. 428 do processo principal), em que o relator indefere o pedido de libertação imediata da detida, por alegação de ultrapassagem do prazo de 150 – exactamente 159, com viria alegado no requerimento em que se pedia a libertação – por, saber que a decisão do tribunal constitucional havia sido proferida no prazo de 150 dias estipulado na lei (cfr. nº 3 do artigo 30º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto. [O que nos é permitido constatar, pela consulta do processo é que o processo foi remetido, no Tribunal Constitucional, à conta no dia 12 de Novembro de 2020, após remetido ao Supremo Tribunal de Justiça, donde foi remetido ao tribunal da relação a 17 de Novembro de 2020, tendo sido aposto termo de “exame e apresentação”, no dia 23 de Novembro de 2020 e presenta para despacho ao relator, no dia 24, para prolação do despacho transcrito no item ix). do apartado adrede [“Transitado o acórdão do Tribunal Constitucional – cfr. fls. 372 – emita mandado de desligamento da requerida para efeito de execução de entrega determinada às autoridades judiciárias inglesas”]

No dia 24 de Novembro de 2020 já se haviam exaurido os 150 dias estipulados no artigo 30º, nº 3 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto – duração do prazo máximo de detenção até ser proferida decisão pelo Tribunal Constitucional. (O prazo de 150 dias terminou no dia 14 de Novembro de 2020, antes de o processo ter sido remetido pelo Supremo Tribunal de Justiça para o tribunal da relação).

A situação processual e detentiva da arguida ficaria num limbo se se considerar que o prazo de duração máxima da detenção é referida à prolação de uma decisão proferida pela entidade referida no nº 3 do artigo 30º. Ou então terá de se considerar que o prazo máximo da detenção é de 150 dias e findo esse prazo, porque a situação de detenção (da pessoa procurada) ainda se mantém o tribunal deverá, de imediato incoar a fase de entrega, que, nos termos do artigo 29º, deverá ser efectivada, no prazo de 10 dias, excepto se vier a ocorrer uma situação de “força maior” que impossibilite ou ilaqueie a entrega. 

Não será demais chamar à colação o estipulado no artigo 217º do Código de Processo Penal, que reza: “o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo.”

A extinção da prisão preventiva, no caso de prisão preventiva aplicada em processo de mandado de detenção europeu, não pode deixar de ser estabelecida e fixada legalmente, sob pena de se criar um vazio insustentável, ilegal e ominosamente contrário ao mais elementar paradigma constitucional. E esse prazo em nosso juízo não poderá ultrapassar o prazo máximo para a prolação de decisão firme que determine a execução de entrega da pessoa procurada, e no caso detida (ou irrogada com a medida de coacção de prisão preventiva), de 150 dias a que deverão acrescer 10 dias para a entrega. Exauridos estes prazos terá de, numa interpretação que estimamos arrimada à regulação de urgência e compromissória de um instrumento de regulação de relações internacionais e entre Estados membros de uma comunidade de nações, se ter por extinta a prisão preventiva da pessoa procurada (e detida). Sob pena de cairmos numa indefinição insuportável e incomportável para um ordenamento arrimado a um paradigma constitucional conforme a uma ordem justa e observadora dos direitos dos cidadãos, seja qual seja a sua nacionalidade e estatuto de cidadania tem que que se entender que a lei fixa prazos máximos para a privação de liberdade de um cidadão.

Se enveredarmos por esta solução interpretativa – de que após a fase de decisão, que terá de estar concluída e definida no prazo de 150 dias, se deverá seguir, de forma invadeável e impreterível, a fase de entrega – então, o tribunal da Relação deveria ter iniciado o processo de entrega a partir do dia 14 de Novembro de 2020. [A lei manda, no caso de prisão preventiva que o tribunal que decretou a medida de coacção mais gravosa – prisão preventiva – que em caso de recurso fique traslado no tribunal de origem. O mesmo deveria ter ocorrido, ou deverá ocorrer, no de o processo relativo a mandado de detenção europeu ser remetido a outro tribunal por força da interposição de recurso.]       

Acresce que, a lei, não configura, e/ou conforma, uma situação de prorrogação/extensão do primevo prazo estipulado para a entrega, isto é, daquele que decorre do termo do processo judicializado, tout court, ou seja do processo estendido desde a audição da pessoa cuja entrega é pedida até ao trânsito em julgado da decisão que confirma o deferimento do pedido de entrega e a determina. O que lei prevê, e consente, é possibilidade de efectivação de entrega no prazo definido no nº 2 do artigo 29º da lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, por motivo ou razão de força maior ocorrida em qualquer dos Estados membros, uma justificação de impossibilidade de entrega, por ocorrência dessa situação inesperada, anómala e inultrapassável, a marcação de uma nova data, acordada entre o tribunal e a autoridade judiciária de emissão, e a formação e constituição de um novo prazo de entrega, que não deverá, ou, formulado na afirmativa, deverá ser efectivado, de 10 dias, a partir deste acto de marcação da data de entrega. 

Em face ao diacronismo (processual) recenseado o que importará dirimir é, (i) se, quando o processo foi recebido no tribunal da relação e foi presente ao relator para incoação da fase/procedimento de entrega, os prazos máximos já se haviam exaurido; (ii) se, tendo atestado esse facto, não estaria cominado ao tribunal rever a medida de coacção; (iii) e qual a consequência da omissão por parte do tribunal da relação de ao ter constatado o trânsito em julgado da decisão não ter assumido uma posição de revisão da medida de coacção imposta à pessoa detida.

Em nosso juízo, e em contrário ao que deixa pressupor o despacho de indeferimento proferido sobre um pedido de libertação da detida, o facto de a decisão ter sido proferido dentro do prazo estipulado na lei – 150 dias – não isenta o tribunal de apreciar a situação da pessoa detida para efeito da aferição do prazo máximo de detenção, devendo fazê-lo para assegurar a manutenção da medida de coacção para a fase seguinte. Sendo a decisão proferida e transitada em julgado antes do prazo fixado no nº 3 do artigo 30º da Lei ordenadora, o tribunal só cumpre o prazo para prolação da decisão. A partir desse prazo inicia-se o prazo para entrega e tem que estar assegurada a continuidade da pessoa procurada (e detida) para a fase sequente, ou seja, para a fase de entrega. E exaurido este, ou seja, o prazo de 150 (da fase jurisdicional stritu sensu, assim classificada por comodidade e arrumo de ideias por processo de fragmentação da diacronia necessária), incoa outro (da fase de entrega) que deverá ter a duração de 10 dias, só podendo ser defraudado e desvirtuado se ocorrer uma situação de “força maior”. 

Tendo ajustada a interpretação gizada teríamos então que (i) o prazo de 150 dias, referente à auto-classificada fase de jurisdicionalização terminou no dia 14 de Novembro de 2020; (ii) a partir dessa data incoa a fase de entrega que não poderá exceder 10 dias (nº 2 do artigo 29 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto; (iii) logo a fase de extinção da medida de prisão preventiva deveria ser declarada a 24 de Novembro de 2020 (precisamente o dia em que o processo foi presente ao relator e este proferiu despacho de desligamento da detida do processo). A partir dessa data deveria ter sido ditada a cessação da prisão preventiva, o que vale dizer, fazer cessar a medida de coacção em que a pessoa procurada se encontrava involucrada e determinar a sua libertação.

Em desinência de tudo o que acabamos de expor temos para nós que a prisão preventiva, em que a pessoa procurada se encontra involucrada, se extinguiu com o transcurso dos prazos (adicionados) de 150 dias, referente à fase para decisão, com mais 10, referente à fase de entrega. A adição destes dois prazos (máximos) definidos na lei ordenadora da execução do mandado de detenção europeu constituem, na interpretação que pretendemos assentar e fazer vingar, o prazo máximo de duração de prisão preventiva que pode ser imposto a uma pessoa procurada a quem tenha sido irrogada a medida de coacção de prisão preventiva, devendo ser declarada cessada logo que exaurido (extinto) esse prazo completo e final de 160 dias. 

Pouco tempo antes da realização da audiência foi recebido neste Supremo Tribunal de Justiça, um requerimento subscrito pelos Ilustres Mandatários da requerente com a informação de que (sic) “A arguida foi, hoje de madrugada, pelas 3.00 horas, dia feriado, antecedido de dia de tolerância de ponto para a função pública, em operação conduzida pelo Gabinete Nacional da Interpol, transportada do dito EP para o Aeroporto da …. para ser entregue às Autoridades britânicas e com vista à sua condução ao …”, e em que pede que “o pedido de Habeas Corpus deve, assim, ser julgado e decidido, sob pena de, neste caso, uma interpretação diversa do alcance subjacente a um dos fundamentos previstos para a extinção da instância (artigo 277.º, alínea e) do CPC, por remissão do artigo 4.º do CPP) permitisse que se pudesse encontrar, designadamente para eventual alívio de quem consentiu a entrega nos termos descritos, um meio destinado a defraudar o sentido e a garantia que estão umbilicalmente ligados ao direito fundamental de Habeas Corpus e dele inseparáveis, frustrando o seu exercício por parte da arguida, com a consequente violação da Constituição da República Portuguesa, concretamente do disposto nos artigos 27.º, n.º 1 (direito à liberdade e à segurança), 20.º, n.ºs 1, 4 e 5 (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), 31.º (habeas corpus), 16.º, n.º 2 (âmbito e sentido dos direitos fundamentais), 18.º, n.º 1 (força jurídica) e 15.º, n.º 1 (estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus).”

O pedido de habeas corpus, pela sua própria natureza – actualidade da situação que o impele – deve ser decidido tendo como pressuposto o estado (efectivo) de prisão do requerente. Pensamos ser de lhana compreensão e inteligibilidade o paradoxo que se poderia constituir se, o Tribunal, viesse a decidir um pedido de libertação de uma pessoa que, no ínterim, havia sido colocada em liberdade, por qualquer evento sucedido entre a instauração do procedimento e a decisão do mesmo.

Como sobreveio – entre a instauração do procedimento e o respectivo julgamento – a entrega da requerente não resta ao Tribunal declarar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide. É o que fará no dispositivo, sem que, no entanto, antes se assevere a ilegalidade da prisão, nos termos que se deixaram explicitados supra e que a decisão não deixaria de ser a libertação imediata da requerente.

A requerente foi, efectivamente, entregue às autoridades judiciárias de emissão, no dia 8 de Dezembro, como foi certificado pelo Gabinete Nacional de Interpol.

A confirmação atesta e coonesta o que foi comunicado pelo Ilustre mandatário e do mesmo passo o que se deixa asserido nos parágrafos antecedentes quanto à exigência da actualidade do decretamento da medida peticionada.    

    

§3. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Declarar extinto o procedimento, por inutilidade superveniente do procedimento (artigo 277º, alínea e) do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º do Código de Processo Penal) 

- Isentar a requerente o pagamento de custas.


Lisboa, 9 de Dezembro de 2020


Gabriel Martim Catarino (Relator)

Manuel Augusto de Matos

António Pires da Graça (Presidente da Secção)

(Declaração nos termos do artigo 15º-A da Lei nº 2072020, de 1 de Maio: O acórdão tem a concordância do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro adjunto, Dr. Manuel Augusto de Matos, não assinando, por a conferência se haver realizado por meios  de comunicação à distância.)

_________

[1] Vide, designadamente, os artigos noticiosos disponíveis nos seguintes links:
· https://www.jn.pt/justica/cadeia-de-tires-tem-121-reclusas-infetadas-com-covid-19-13007607.html
· https://tvi24.iol.pt/sociedade/infetadas/covid-19-prisao-de-tires-com-158-infetados-incluindo-148-reclusas-e-duas-criancas
· https://www.publico.pt/2020/11/09/sociedade/noticia/prisao-tires-148-reclusas-duas-criancas-quatro-guardas-covid19-1938564
· https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-11-08-Covid-19-na-cadeia-de-Tires.-Reclusas-queixam-se-das-condicoes-e-ameacam-avancar-para-tribunal
· https://tvi24.iol.pt/sociedade/10-11-2020/covid-19-advogados-denunciam-situacoes-graves-na-prisao-de-tires
· https://expresso.pt/coronavirus/2020-11-09-Covid-19.-Prisao-de-Tires-com-158-infetados-incluindo-148-reclusas-e-duas-criancas