Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
349/14.5TBMTA.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
DECLARAÇÕES INEXATAS OU RETICENTES
QUESTIONÁRIO CLÍNICO
ANULABILIDADE DO CONTRATO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E DE PROVA
Data do Acordão: 02/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMERCIAL – CONTRATOS COMERCIAIS / SEGUROS / VALIDADE DO CONTRATO.
DIREITO DOS SEGUROS – CONTRATO DE SEGURO ( RAMO VIDA ).
Legislação Nacional:
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 429.º.
Sumário :
I. A anulabilidade do contrato, decorrente da previsão contida no art. 429º do C. Com., não pressupõe a existência de um nexo causal entre o conteúdo da declaração inexacta ou reticente do segurado acerca do seu real estado de saúde - omitindo, em termos censuráveis, determinada patologia que o afectava à data da celebração do seguro - e o sinistro, a morte ou invalidez do segurado causada por determinada doença específica, não ficando o efeito anulatório precludido pela circunstância de a morte ou incapacidade terem radicado num processo patológico totalmente diverso e autónomo da doença culposamente omitida aquando do preenchimento do questionário clínico.

II. Na verdade, o nexo causal a estabelecer é entre a patologia omitida pelo segurado e a celebração do contrato de seguro, nos precisos termos em que o foi, cumprindo averiguar, num juízo de prognose, se – conhecendo efectivamente a seguradora tais patologias omitidas no preenchimento do questionário clínico – teria celebrado, mesmo assim, o contrato nos termos em que o celebrou, assumindo a cobertura de certos e determinados riscos.

III. Cabe à seguradora o ónus de alegar, no momento próprio (ou seja, ao contestar a pretensão formulada pelo A.) , os factos impeditivos da validade do contrato de seguro que considere verificados –tendo de alegar e demonstrar que foram efectivamente prestadas declarações omissivas acerca de determinada patologia que, já então, afectava o segurado e que, se a seguradora a tivesse oportunamente conhecido, não teria, segundo a sua prática comercial, contratado nos termos em que o fez, não assumindo consequentemente os riscos cuja cobertura o segurado lhe exige através da acção.

IV. Se a seguradora, na sua estratégia processual, alegou, na contestação, como circunstâncias determinantes da recusa de celebração do negócio e como facto impeditivo da validade do contrato de seguro, um conjunto cumulativo de factos e circunstâncias que, em larga medida, não logrou demonstrar na acção – apenas tendo ficado demonstrada, perante a matéria de facto fixada, a verificação isolada de um desses requisitos - não pode ter-se por verificado o efeito impeditivo à validade do negócio, decorrente do preceituado no art. 429º do C.Com.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




1. AA propôs contra BB - Companhia de Seguros, SA, acção declaratória, pedindo a condenação da R. a pagar ao Banco CC as quantias devidas por virtude de empréstimo contraído pela A., garantido por seguro de vida contratado com a R., e à A. o remanescente do capital seguro, após liquidação da hipoteca, e até ao limite de €40.000,00,acrescido de juros moratórios desde a citação.

Contestou a R., invocando, desde logo, a nulidade do seguro em causa, em consequência da prestação de informações inexactas acerca do seu historial clínico, susceptíveis de influenciar a vontade de contratar da seguradora, alterando a forma como o risco proposto foi apreciado - e concluindo pela improcedência da acção.

Efectuado julgamento, foi proferida sentença, na qual se considerou a acção procedente, condenando-se a R. no pedido.

Inconformada, apelou a R., tendo a Relação concedido provimento ao recurso – começando por enunciar a factualidade provada:

A) - Em 2/6/2006, a A. celebrou com a R. um contrato de seguro de Vida, com a apólice nº 62…, para garantia do pagamento do empréstimo bancário contratado com o agora Banco CC, SA, e que se destinava à construção de imóvel que constituiria habitação própria e permanente, dado como garantia de hipoteca.

B) - (...) Negócio celebrado por escritura pública outorgada em 9/8/2006, no valor de € 40.000.

C) - O valor de capital seguro correspondia à totalidade do montante emprestado, enunciado em B).

D) - (...) Capital que a R. se obrigava a pagar em caso de morte ou invalidez total e permanente da pessoa segura.

E) - A. e R. acordaram que seriam beneficiários do contrato elencado em A) o Banco aí enunciado, pelo capital em dívida, ficando o remanescente para os herdeiros da A., em caso de morte, e para a A., em caso de invalidez.

F) - Para activar a cobertura é necessário, de acordo com o contrato elencado em A), que se verifique um grau de desvalorização igual ou superior a 66,6%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor na data da avaliação da desvalorização sofrida pela pessoa segura, não entrando para o seu cálculo quaisquer incapacidades ou patologias preexistentes.

G) - (...) Estando igualmente excluídas de todas as coberturas complementares, salvo convenção em contrário, os sinistros devidos a doenças ou incapacidades preexistentes à data da aceitação da adesão ao contrato de seguro.

H) - (...) Tendo A. e R. acordado definir que "Invalidez Total e Permanente” significa a limitação funcional permanente e sem possibilidade clínica de melhoria em que, cumulativamente, estejam preenchidos os seguintes requisitos: a) A Pessoa Segura fique completa e definitivamente incapacitada de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade remunerada compatível com os seus conhecimentos e aptidões; b) Corresponda a um grau de desvalorização igualou superior à percentagem definida em Condições Particulares, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor na data da avaliação da desvalorização sofrida pela Pessoa Segura, não entrando para o seu cálculo quaisquer incapacidades ou patologias preexistentes; c) Seja reconhecida previamente pela Instituição de Segurança Social pela qual a Pessoa segura se encontra abrangida ou pelo Tribunal do Trabalho ou, caso a Pessoa segura não se encontre abrangida por nenhum regime de Segurança Social, por junta médica.

I) - (...) A. e R. acordaram em cobrir o risco atinente à Garantia Complementar, incluindo-se aqui a Invalidez Total e Permanente por Doença, considerando-se inválida a Pessoa Segura que apresente um grau de desvalorização igual ou superior a 66,66 %, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais em vigor na data de avaliação da desvalorização sofrida pela Pessoa Segura, não entrando para o seu cálculo quaisquer incapacidades ou patologias pre-existentes.

J) -  Em 17/5/2007 foi diagnosticado à A. um carcinoma ductal invasivo da mama direita.

K) - Em virtude da doença referida em J), a A. foi submetida a uma mastectomia simples e pesquisa de gânglio sentinela à direita e a quimioterapia.

L) - (...) Tendo ainda sofrido de osteopenia secundária.

M) - (...) E sido diagnosticada com perturbação bipolar, despoletada por alguma intercorrência / inferência subjectiva relativa à sua patologia mamária.

N) - Em 13/3/2013 foi passado Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, reportado ao ano de 2012, data de entrada de 31/10/2012.

O) - (...) Atestando que, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, a A. é portadora de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 73%, sendo a mesma determinada como definitiva.

P) - Em 28/8/2013, a A. remeteu carta à R. solicitando que esta cumprisse o contrato elencado em A) e assim amortizasse junto do Banco CC, SA, o empréstimo e restituísse o pagamento feito em 1/11/2012, bem como a pagar-lhe o remanescente.

Q) - Com vista à apreciação do risco proposto à ora R., a A. preencheu e assinou, em 12/5/2006, um questionário clínico, donde resulta a informação de que à data não sofria de doenças nervosas (depressão, epilepsia ou convulsões) nem de outras perturbações ou doenças elencadas no questionário.

R) - A A. iniciou consultas na especialidade de Psiquiatria no Centro Hospitalar do Barreiro em 30/5/2003, sendo aí seguida em 2/6/2003, 8/7/2003 e 17/9/2003, com diagnóstico de depressão.

S) - (...) Retomando as consultas / internamentos nessa especialidade em 11/6/2007, sendo-lhe diagnosticada doença bipolar tipo 1.

T) - A patologia correspondente à desvalorização de 0,2550, referente a "Psiquiatria - Perturbações funcionais importantes, com acentuada modificação dos padrões da actividade diária", não foi declarada pela A. aquando da adesão ao seguro.

U) - Pela patologia oncológica, a A. é portadora de um grau de desvalorização de 36,25%, correspondentes a uma desvalorização de 0,2500, atinente a "doença oncológica crónica (tumor maligno com estabilização clínica)" e a uma desvalorização de 0,1125, respeitante a “ablação da glândula mamária na mulher, unilateral”.

V) - A A. sofre ainda de uma desvalorização de 0,1148, adstrita a “Endocrinologia - Diabetes regular- mente equilibrada com o emprego de insulina”.


2. Passando a apreciar o mérito do recurso, considerou a Relação no acórdão recorrido:

A questão a decidir centra-se, assim, na apreciação da invocada nulidade do contrato de seguro em causa.

Antes de mais, se dirá que improcede a impugnação deduzida pela A., ora apelada, ao abrigo do disposto no art. 636º, nº2, daquele diploma, relativamente ao teor da al. R) da matéria de facto - já que o diagnóstico aí referido resulta da informação constante de fls. 134 e segs., confirmada aliás pelo depoimento da testemunha Guida da Ponte, médica psiquiatra, que à mesma vem assistindo.

Assente, pois, a factualidade constante da decisão, acha-se provado que, com vista à apreciação do risco, a apelada preencheu e assinou, em 12/5/2006, um questionário clínico, donde resulta a informação de não sofrer de doenças nervosas (depressão, epilepsia ou convulsões) nem de outras perturbações ou doenças aí elencadas.

E, bem assim que, em datas anteriores - 30/5/2003, 2/6/2003, 8/7/2003 e 17/9/2003 - teve a dita apelada consultas, da especialidade de Psiquiatria, no Centro Hospitalar do Barreiro, com diagnóstico de depressão.

Por força do disposto no art. 429° do C. Comercial, invocado pela R., ora apelante, a declaração inexacta, tal como a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado, que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, tornam o seguro nulo.

“A sanção da anulabilidade do contrato de seguro, contemplada no art. 429º C. Com., não é mais que a previsão de um caso de erro vício de vontade.

As respostas ao “questionário” são o repositório das declarações de risco da pessoa segura em que a seguradora deve confiar e em função das quais aceita o não o contrato e fixa as respectivas condições, não se concebendo a formulação de perguntas inúteis ou irrelevantes.

Imprescindível à anulabilidade é apenas a omissão ou a declaração inexacta que sejam susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar, irrelevando a verificação de nexo de causalidade entre os factos omitidos e o sinistro, tal como se não exige a verificação deste ou não releva qualquer análise feita com base em acontecimentos posteriores à subscrição da proposta, na qual as declarações são feitas” - ac. STJ, de 6/7/2011, in www.dgsi.pt


No caso, afigura-se, indubitável que, tratando-se de declaração inexacta, relativa a circunstância conhecida pela declarante, a mesma necessariamente influiu, atenta a própria natureza do seguro, nas condições em que o contrato foi celebrado.

Em tais termos, forçoso se torna concluir pela sua invalidade e consequente improcedência do pedido, com base naquele, formulado na acção.


3. Inconformada, interpôs a A. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões:

a)  Ao conhecer do Recurso apresentado pela Ré Companhia de Seguros BB, o Tribunal da Relação de Lisboa fez o elenco exaustivo de toda a matéria alegada pela Recorrente;

b)  Não obstante a Autora, agora Recorrente, ter contra-alegado e pedido a ampliação do recurso, o Tribunal não só não se pronunciou sobre a admissibilidade da ampliação,

c)  Como se limitou a dizer que a Recorrida pugnou pela manutenção da decisão proferida pela primeira instância;

d)  Ou seja, o Tribunal a quo omitiu toda a matéria alegada pela recorrida AA;

e)  MAIS, no ponto 3 do douto acórdão, refere-se que o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente;

f)  Ou seja, o Tribunal Recorrido persiste em não conhecer da matéria alegada pela autora AA;

g)  Depois, de forma lacónica, refere-se que não há lugar à alteração da matéria de facto porque há uma informação a fls 134 e segs (será o resto dos autos ??), confirmada pelo depoimento da psiquiatra;

h) A recorrente tem o direito de saber qual o documento ( a fls 134 e segs) que atesta que a mesma sofreu de depressão, nomeadamente qual o período que durou a doença, o médico que a diagnosticou, medicação, etc

i)    Bem como tem o direito de saber qual a parte do depoimento da Psiquiatra que refere tal diagnóstico!

j)   Porque a mesma apenas falou em sintomas! E sintomas de enfarte não significam enfarte do miocárdio, bem como sintomas de depressão podem também não significar que a pessoa padeça de depressão;

I)   E como é que uma médica que assiste a pessoa desde 2007, pode atestar que em consultas ocorridas em 2003 foi diagnosticada depressão?

m) Tudo isto seriam as respostas que a Recorrente obteria se o Tribunal da Relação de lisboa não omitisse o dever de fundamentar de forma especificada a decisão sobre não alterar a matéria de facto dada como provada;

n) Bem como se não tivesse ab intio recusado a pronunciar-se sobre a requerida ampliação do recurso, conforme requerido pela Recorrente.

o) Foi violado o disposto nas alíneas b) e d) do n° 1 do artigo 615° do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 666° do mesmo diploma.


Em face do exposto,

Requer-se a V. Exas. Se dignem dar provimento ao presente recurso, declarando-se a nulidade do douto acórdão recorrido!


A recorrida contra alegou, pugnando pela confirmação do decidido no acórdão recorrido.

Remetidos os autos à Relação para se pronunciar acerca da nulidade do acórdão invocada pela recorrente, fê-lo através do acórdão de fls. 327, considerando inverificada a nulidade decorrente de omissão de pronúncia.


4. Tem-se sedimentado na jurisprudência o entendimento segundo o qual a anulabilidade do contrato, prevista no art. 429º do C. Com. , não pressupõe a existência de um nexo causal entre o conteúdo da declaração inexacta ou reticente do segurado acerca do seu real estado de saúde - omitindo, em termos censuráveis, determinada patologia que o afectava à data da celebração do seguro - e o sinistro, a morte ou invalidez do segurado causada por determinada doença específica: e, deste modo, o efeito anulatório não fica precludido pela circunstância de a morte ou incapacidade terem radicado num processo patológico totalmente diverso e autónomo da doença culposamente omitida aquando do preenchimento do questionário clínico.

Na verdade, o nexo causal a estabelecer é entre a patologia omitida pelo segurado e a celebração do contrato de seguro, nos precisos termos em que o foi, cumprindo averiguar se – conhecendo efectivamente a seguradora tais patologias omitidas no momento do preenchimento do questionário clínico – teria celebrado, mesmo assim, o contrato nos termos em que o celebrou, assumindo a cobertura de certos e determinados riscos.

E, para estabelecer tal nexo causal entre a omissão ou reticência e a celebração ou conteúdo do contrato de seguro, tem naturalmente de se formular um juízo de prognose, assente na susceptibilidade de o facto omitido ( a existência de determinada patologia) influir efectivamente na vontade de contratar e no conteúdo das cláusulas estipuladas, em função do âmbito dos riscos cobertos pela seguradora.

Cabe, assim, à seguradora o ónus de alegar, no momento próprio, (ou seja, ao contestar a pretensão formulada pelo A.), os factos impeditivos da validade do contrato de seguro que considere verificados – ou seja, tem de demonstrar que foram efectivamente prestadas declarações omissivas acerca de determinada patologia que, já então, afectava o segurado e que, se a seguradora a tivesse oportunamente conhecido, não teria, segundo a sua prática comercial corrente, contratado nos termos em que o fez, não assumindo consequentemente os riscos cuja cobertura o segurado lhe exige através da acção.


No caso dos autos, as instâncias divergiram na apreciação deste tema.

Na verdade, a sentença proferida em 1ª instância havia concluído:

Com relevância nesta sede, flui da factualidade demonstrada que a Autora havia sofrido um episódio de depressão em 2003, pelo qual foi consultada quatro vezes no âmbito da especialidade de psiquiatria, e que não mencionou tal historial no questionário que preencheu, destinado à avaliação do risco pela seguradora, não obstante existir um campo em que se enunciava essa mesma doença (depressão) e que o cliente (pessoa a segurar) deveria declarar não só as doenças actuais como as passadas.

Subsiste então, inequivocamente, uma declaração inexacta por parte da Autora.

Porém, o que é invocado pela Ré é que essa declaração inexacta respeita à doença bipolar tipo 1, o que se veio a apurar não se verificar, uma vez que o diagnóstico desta doença só veio a ocorrer posteriormente à elaboração do sobredito questionário, como vimos supra.

O que se trata aqui, pelo contrário, é um episódio de depressão, cujas sequelas, pela análise da factualidade apurada, não mais se voltaram a sentir (desde 2003), e que não foi invocada pela Ré como relevante.

«Embora o artigo 429.º estabeleça que a omissão ou inexactidão da declaração é sancionada com a nulidade do contrato, é de realçar que não é qualquer declaração inexacta ou reticente que desencadeia a possibilidade de invalidade do seguro. É indispensável que a inexactidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria ou teria contratado em diversas condições, se as conhecesse. Assim, para efeitos do artigo 429.º, uma declaração só será inexacta ou reticente, se puder influir sobre a existência ou condições do contrato, ou seja, se for susceptível de aumentar o risco ou prémio (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/04/2010, in www.dgsi.pt, processo 421/07.8TCFUN.L1-6, relator Dr. Granja da Fonseca; conferir também Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2003, in www.dgsi.pt, processo 03B3631, relator Dr. Santos Bernardino)

Ora, neste campo, é pertinente reter que a Ré invocou que a declaração inexacta que levaria à conclusão que esta não celebraria aquele contrato de seguro ou teria contratado em diversas condições, se as conhecesse, respeita à doença bipolar tipo 1, e já não a episódio de depressão, o qual, aliás, nada teve que ver com a incapacidade invocada pela Autora, porquanto não compõe (parcialmente) a desvalorização calculada.

Ou seja, não se logrou apurar que a Ré teria contratado em condições diversas ou recusado o seguro caso tivesse conhecimento de uma depressão ocorrida em 2003, sem sequelas aparentes para os anos seguintes (não se sabe que tipo e gravidade de depressão se trata, mas apenas que as consultas terminaram em 2003, como vimos).

Repare-se que no caso da jurisprudência acima citada (no que tange o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa) se analisava um caso de diabetes, omitida do questionário que permite às seguradoras analisar o risco em questão, demonstrando-se as sequelas da diabetes para o aumentar do risco, o que não sucedeu no vertente caso. Aqui, invocou-se que seria a doença bipolar 1 como declaração inexacta, o que não se veio a apurar, uma vez que se alcançou que o diagnóstico desta doença apenas ocorreu em 2007, ou seja, após a celebração do contrato de seguro, inexistindo qualquer nexo causal razoável entre a depressão e aquela doença, não se olvidando o carcinoma mamal que entretanto ocorreu.

Deste modo, não se tendo demonstrado que a Ré não faria aquele contrato de seguro (ou seja, pelo menos naqueles termos, sem agravar o prémio) caso soubesse que a Autora tinha sido consultada por quatro vezes por depressão, três anos antes da elaboração do questionário para aferição do risco, não se olvidando que a Ré não invocou tal situação, invocando sim a inexactidão de declaração devido a uma doença diferente (bipolar tipo 1), esta sim com relevância para a incapacidade da Autora, improcede a excepção (de nulidade) deduzida pela Ré.


Pelo contrário, a Relação entendeu, de forma sucinta, que - achando-se provado que, com vista à apreciação do risco, a apelada preencheu e assinou, em 12/5/2006, um questionário clínico, donde resulta a informação de não sofrer de doenças nervosas (depressão, epilepsia ou convulsões) nem de outras perturbações ou doenças aí elencadas e que, bem assim, em datas anteriores - 30/5/2003, 2/6/2003, 8/7/2003 e 17/9/2003 - teve a dita apelada consultas, da especialidade de Psiquiatria, no Centro Hospitalar do Barreiro, com diagnóstico de depressão – estaria suficientemente demonstrada a existência de uma censurável declaração omissiva no questionário clínico, susceptível de despoletar o vício de anulabilidade do contrato.


Importa, pois, proceder a uma análise aprofundada, quer do teor da contestação da R., quer do conjunto de factos provados e não provados, para poder concluir, com segurança, sobre qual daquelas versões conflituantes deverá prevalecer na composição do litígio.

Começando pela análise do teor da contestação apresentada pela seguradora, o que dela resulta é o seguinte quadro factual alegatório:

19 - A A. havia iniciado consultas na especialidade de Psiquiatria no Centro Hospitalar do Barreiro em 30/5/2003

20 - Tendo a partir de então um historial regular de consultas e internamentos, com diagnóstico de doença bipolar

21 – Doença que não era desconhecida da A. na data em que preencheu e assinou o questionário clínico.

22 - A patologia correspondente ao Cap. X, número grau IV desvalorização 0,2550 – esta incapacidade parcial refere-se a Psiquiatria – perturbações funcionais importantes, com acentuada modificação dos padrões da actividade diária – que esteve na origem do pedido de indemnização foi diagnosticada em data anterior ao do início do contrato, e a mesma não foi declarada pela pessoa segura aquando da adesão ao seguro.

33 - Ora a informação referente a doença psiquiátrica não era desconhecida da candidata a pessoa segura, já que estava objectiva e medicamente diagnosticada desde Maio de 2003 e o questionário clínico foi poe esta preenchido em 12 de Maio de 2006

34 - Foram prestados pela pessoa a segurar informações inexactas, que alteraram a forma como foi apreciado pela R. o risco proposto.

35 – Doença psiquiátrica que se fosse do conhecimento da R. levaria a que não fosse aceite o risco proposto, ou, caso o celebrasse, o prémio seria muito superior ao fixado

Resulta, deste modo, claramente que a excepção peremptória de anulabilidade do contrato, por viciação da vontade, foi construída pela R/seguradora com base na expressa alegação de que, à data do preenchimento do questionário clínico, a A. já padecia de doença bipolar, sendo esta patologia/ doença psiquiátrica (susceptível de desencadear perturbações funcionais importantes, com acentuada modificação dos padrões de actividade diária) que já estaria na génese das consultas verificadas em 2003 e que – a ter sido revelada aquando do preenchimento do questionário clínico - teria influenciado decisivamente a vontade de contratar da seguradora.

Não foi, porém, manifestamente este o quadro factual que resultou da produção da prova – sendo obviamente essencial, para compreender adequadamente a materialidade do litígio, atender tanto aos factos provados como aos não provados: é que, como decorre da sentença, a fls. 211, constitui factualidade não provada que:

- A A. soubesse que lhe havia sido diagnosticada doença bipolar tipo I na data em que preencheu e assinou o questionário clínico

- A patologia descrita em T tivesse sido diagnosticada à A. em data anterior ao do início do contrato.

Ou seja, da conjugação dos factos provados e dos não provados resulta que a referida al. T) terá de ser lida do seguinte modo:

T) A patologia correspondente à desvalorização de 0,2550, referente a "Psiquiatria - Perturbações funcionais importantes, com acentuada modificação dos padrões da actividade diária", não foi declarada pela A. aquando da adesão ao seguro, não se provando, todavia, que a mesma tivesse sido diagnosticada à A. em data anterior à do início do contrato.

Daqui decorre obviamente que não pode, perante a matéria de facto fixada, estabelecer-se qualquer conexão entre o diagnóstico de depressão, feita nas consultas ocorridas em 2003, e a doença bipolar tipo I subsequentemente despoletada na A.: constituem, pois, quadros clínicos perfeitamente autónomos – e obviamente de gravidade e potencial repercussão nos padrões de actividade da A. perfeitamente diversos – o diagnóstico de depressão verificado muito antes da celebração do seguro (ignorando-se completamente o grau, natureza e intensidade da referida depressão e, bem assim, se a mesma originou algum tratamento específico ou se projectou desfavoravelmente nos padrões de actividade pessoal ou profissional então desenvolvidos pela A.) e a doença bipolar que a seguradora não logrou demonstrar que já existisse em data anterior à do início do contrato.

Saliente-se que a factualidade impeditiva da validade do negócio efectivamente alegada na contestação da seguradora se consubstanciava na ocultação pela A. da existência de uma doença psiquiátrica diagnosticada medicamente desde Maio de 2003 e traduzida na referida doença bipolar, geradora de um historial regular de consultas e internamentos – e sendo essa doença psiquiátrica que determinaria causalmente a seguradora, se a tivesse conhecido oportunamente, a não contratar nos termos efectivamente acordados; ora, não é obviamente possível, por estar há muito precludida, a alteração, em momento processual ulterior, do conteúdo de tal núcleo factual essencial invocado na contestação (como, de algum modo, a recorrente parece pretender fazer, ao invocar agora, na sua alegação de recurso, que afinal o simples diagnóstico de depressão seria, só por si, bastante para a seguradora/recorrente ter recusado a celebração do seguro de vida – cfr. concl. 6ª).

Na verdade, e como atrás se demonstrou, o quadro factual essencial alegado pela R. na contestação, como facto impeditivo da pretensão deduzida – e referente ao real estado de saúde e às circunstâncias médicas e clínicas do segurado em sede de doenças ou perturbações psiquiátricas existentes na data do contrato - resultou, em larga medida, não provado, já que apenas se apurou que a A. tinha sido diagnosticada, no ano de 2003, em três consultas de especialidade de Psiquiatria, de depressão – não ficando minimamente demonstrada, nem a gravidade e intensidade de tal depressão (não podendo obviamente considerar-se qualquer sintoma depressivo como doença psiquiátrica), nem a necessidade de específico tratamento médico na sequência de tal diagnóstico, nem que tais consultas e diagnóstico tivessem qualquer conexão com a referida e – tudo o indica superveniente - doença bipolar, em que a R. tinha feito essencialmente assentar a viciação da sua vontade negocial

Ou seja: no caso dos autos, a seguradora, na sua estratégia processual, alegou, na contestação, como circunstâncias determinantes da recusa de celebração do negócio e como facto impeditivo da validade do contrato de seguro, um conjunto cumulativo de factos e circunstâncias que, em larga medida, não logrou demonstrar na acção – tendo ficado demonstrada a verificação isolada de apenas um desses requisitos: o diagnóstico, em três consultas, de depressão, sendo os dados de facto processualmente adquiridos manifestamente insuficientes para se poder caracterizar tal diagnóstico como doença psiquiátrica censuravelmente ocultada pela proponente do seguro.

E, assim sendo, não tendo a seguradora logrado demonstrar o conjunto de factos e circunstâncias que, nos precisos termos alegados na sua contestação, justificariam a recusa na celebração do contrato de seguro, não pode ter-se por verificado o efeito impeditivo à validade do negócio, decorrente do preceituado no art. 429º do C.Com.


6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, concede-se provimento à revista, revogando o decidido no acórdão recorrido e, consequentemente, na procedência da acção, repondo o decidido em 1ª instância, condena-se a Ré «BB - Companhia de Seguros, S.A.», em cumprimento do contrato de seguro celebrado com a Autora AA pela apólice n.º 6…, na liquidação perante o «Banco CC, S.A.» de todas as quantias devidas com o empréstimo para construção titulado pela Autora desde o dia 1 de Novembro de 2012, e aquelas que, se necessário, se vierem a liquidar em execução, bem como no pagamento à Autora do remanescente do capital seguro, após liquidação da hipoteca e até ao limite de € 40.000, acrescido de juros moratórios, à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 02 de Fevereiro de 2017

Lopes do Rego (Relator)

Távora Victor

Silva Gonçalves