Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3410/22.9YRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: EXTRADIÇÃO
REVELIA
ROUBO
INDEFERIMENTO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO / M.D.E. /RECONHECIMENTO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa CPLP subscreveram, em 23 de novembro de 2005, na cidade da Praia, uma Convenção sobre Extradição, que vigora atualmente na ordem jurídica portuguesa e na brasileira, tendo entre nós entrado em vigor em 1 de março de 2010.

II. No seu artigo 4.º al. e), dispõe a Convenção que pode haver recusa facultativa de extradição se: “e) A pessoa reclamada tiver sido condenada à revelia pela infracção que deu lugar ao pedido de extradição, excepto se as leis do Estado requerente lhe assegurarem a possibilidade de interposição de recurso, a realização de novo julgamento ou outra garantia de natureza equivalente.”.

III. A questão invocada pelo Recorrente resume-se a saber se a extradição deveria ter sido recusada, com base no disposto no artigo 4.º, alínea e) da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em virtude de o extraditando ter alegadamente sido condenado à revelia pela infração que deu lugar ao pedido de extradição.

IV. Importa distinguir uma revelia proprio sensu, total e irrestrita, em que o condenado não é “ouvido nem achado” e acaba por ser mero sujeito passivo e “objeto” de decisão em procedimento totalmente desenvolvido à sua revelia, do que realmente sucedeu, que só pode ser considerado “revelia” improprio sensu, ou numa forma mitigada, designadamente para efeitos do artigo 4.º, alínea e) da Convenção. Resulta dos autos que o recorrente não esteve presente em juízo apenas porque assim o decidiu, tendo contudo sido representado e defendido, e tendo tido conhecimento do que se foi passando.

V. A recusa facultativa de extradição, prevista no artigo 4.º, alínea e) da Convenção, respeita apenas à situação de o extraditando ter sido absolutamente alheio à realização do julgamento, não tendo conhecimento prévio do mesmo e não tendo constituído mandatário para sua representação. O comportamento do extraditando no seu processo no Brasil consubstancia uma renúncia tácita ao direito de estar presente em audiência e de se defender pessoalmente, pelo que não poderia agora, nesta sede, vir invocar essa circunstância – opção que apenas a si é imputável (logo, agindo em venire contra factum proprium, ou seja, com abuso do direito – cf. art. 334 do Código Civil) – para lhe serem concedidas novas oportunidades de defesa. A expressão “revelia” é, no caso, usada apenas num sentido amplo e até impróprio de o julgamento ter decorrido na ausência do arguido, não significando que este desconhecia da sua realização. Também o direito processual penal português prevê, no artigo 333.º do Código de Processo Penal, que o julgamento decorra na ausência do arguido, desde que este se encontre regularmente notificado para a sua realização.

VI. Verifica-se, pois, que o extraditando exerceu plenamente os seus direitos de defesa no julgamento realizado, tendo-lhe sido concedido o direito a um processo equitativo e a um julgamento justo, não havendo uma efetiva situação de revelia proprio sensu, pelo que não há qualquer fundamento para que se exija ao estado brasileiro que conceda as garantias previstas na parte final da alínea e) do artigo 4.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
Relatório


1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa promoveu, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 2, da Lei 144/99, de 31 de agosto, e da Convenção de Extradição entre Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o cumprimento do pedido de extradição do cidadão AA, de nacionalidade brasileira, nascido em .../.../1990, em ..., no Brasil, filho de BB e de CC, titular do passaporte n.º ..., emitido pela República Federativa do Brasil, válido até 16/10/2027, com autorização de residência n.º ..., emitida pelo SEF, em 29/02/2022, sita na Rua ..., ..., ... ..., para cumprimento da pena de 8 anos e 9 meses de prisão, em que foi condenado pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelos artigos 157.º, parágrafo 2.º, I, II e III e 70.º do Código Penal brasileiro.

2. O recorrido foi ouvido, não tendo dado o consentimento à sua entrega ao Estado requerente e não prescindindo do princípio da especialidade.

E deduziu oposição, tendo invocado como fatores impeditivos do cumprimento da extradição a circunstância de ter sido condenado sem ter estado presente em nenhuma das sessões da audiência de discussão e julgamento, nem durante a prolação da sentença, tendo por isso sido julgado e condenado à revelia, o que consubstanciaria fundamento para recusa facultativa da extradição, nos termos do artigo 4.º, alínea e) da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Acrescentou também que tem a sua vida organizada em Portugal, vivendo com a sua mulher e os seus filhos e exercendo atividade laboral.

3. O Ministério Público respondeu, tendo concluído que se mostram preenchidas todas as condições para que seja concedida a extradição, pugnando, assim, pela improcedência da oposição deduzida, considerando dever ser autorizada a entrega do requerido à República Federativa do Brasil, para cumprimento de pena.

4. Por acórdão de 19 de janeiro de 2023, o Tribunal da Relação de Lisboa autorizou o pedido apresentado, tendo determinando a entrega do extraditando às autoridades brasileiras.

5. Desta decisão, veio o extraditando recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça, sem que tenha formulado as necessárias conclusões.

                

6. Após ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento, a fim de ser corrigida a referida omissão, veio o extraditando apresentar um requerimento, a 2 de março de 2023, tendo formulando as seguintes conclusões ao recurso apresentado:

“I. O recorrente foi condenado à revelia, o que restou cabalmente comprovado pelos documentos do processo originário que tramitou no Brasil.
II. As autoridades brasileiras mentiram descaradamente ao dizer que o recorrente não foi condenado à revelia, quando a própria sentença proferida pelas mesmas autoridades é expressa neste sentido, tendo sido decretada a revelia do recorrente.
III. A revelia do recorrente foi, inclusive, objeto de promoção do Ministério Público brasileiro, sendo sentenciado pelo Magistrado neste sentido.
IV. A mesma revelia foi confirmada pelo MM. Des. Rel. DD, quando do julgamento do Recurso de Apelação em 2º grau.
V. As autoridades brasileiras não garantem ao recorrente o direito a um novo julgamento, sendo, inclusive, expressamente declarado pelas mesmas.
VI. Essa situação de nebulosidade e de cerceamento de defesa, que colocam em dúvida, inclusive a efetiva participação do recorrente no crime em que foi condenado revelia, não satisfaz as condições mínimas do processo no âmbito do qual o presente pedido de cooperação foi formulado, sendo que não oferece garantias de um procedimento que respeite as condições internacionalmente indispensáveis à salvaguarda dos Direitos do Homem, não satisfazendo, igualmente, as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais
VII. Assim, pelo acima exposto, deve ser reformada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, para não conceder a extradição do recorrente às autoridades brasileiras, uma vez que este foi condenado à revelia pelo Estado requerente, com fulcro no art. 4.º, al. e) da Convenção de Extradição Entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na cidade de Praia, a 23 de Novembro de 2005.”


7. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, concluindo nos seguintes termos:

“1. O acórdão recorrido autorizou a extradição do recorrente para a República Federativa do Brasil, para cumprimento da pena de 8 anos e 9 meses de prisão e na pena de 21 dias de multa, ao mínimo legal, pela prática de um crime de roubo p. e p. pelos arts. 157º, parágrafo 2º, I, II e 70º, do C. Penal Brasileiro, em que foi condenado no processo nº ...28, que corre termos na 1ª Vara Judicial da Comarca de ...,Tribunal de Justiça do Estado de ...;
2. O recorrente no final da motivação de recurso não formulou as respetivas conclusões, como impõe o art. 412º, nº 1, do C.P.P. ex. vi art. 25º, nº 2, da Lei 144/99, de 31 de agosto;
3. O presente recurso foi admitido sem que lhe tenha sido feito o convite para formular as conclusões, nos termos do art. 414º, nº 2, do C.P.P.;
4. Pelo Exmª Sr. Conselheiro relator deverá, em nossa opinião, ser efetuado o convite ao recorrente para apresentar as conclusões, sob pena de rejeição do recurso – art. 417º, nº 3, in fine, do CP.P. ex. vi. art. 25º, nº 2, da Lei 144/99, de 31 de agosto;
5. A sentença condenatória brasileira transitou em julgado, quanto ao recorrente a19 deoutubrode2021 e quanto ao Ministério Público a 4 de fevereiro de 2021;
6. Conforme o despacho de 2 de fevereiro de 2023, proferido pela Srª Juíza da 1ªVara Judicial da Comarca ... “não há que se falar em revelia, uma vez que o réu foi patrocinado por Advogado Constituído, durante todo o processo criminal, sendo-lhe assegurados o contraditório e a ampla defesa, conforme previsto pelo artigo 5o, inciso LIV, da Constituição Federal, que garante que indivíduo só será privado de sua liberdade ou terá seus direitos restringidos mediante um processo legal, exercido pelo Poder Judiciário, por meio de juiz natural”;
7. No processo brasileiro o recorrente não foi julgado à revelia para os efeitos do art. 4º, e), da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP, já que constitui advogado, este apresentou resposta e esteve presente no julgamento, onde proferiu alegações finais e interpôs recurso, não tendo os direitos de defesa do recorrente ficado prejudicado e garantido que foi o contraditório;
8. De resto a revelia a que se refere o do art. 4º, e), da Convenção tem de ser a absoluta/operante, como bem se decidiu no acórdão recorrido, ou pelo menos em sentido próprio, o que não se verifica no caso do recorrente;
9. Mesmo que assim se não entenda, a causa de recusa em apreço é apenas facultativa, não devendo ser atendida, pois o recorrente embora julgado na sua ausência, constitui mandatário judicial, exerceu no processo os seus direitos de defesa, alegou, recorreu, tendo sido garantido o contraditório e a sentença condenatória já transitou em julgado;
10. Não é atendível o acórdão STJ de 19 de setembro de 2007, invocado pelo recorrente;
11. Este acórdão tem data anterior à entrada em vigor a da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP, que só foi assinada na Cidade da Praia, em 23 de novembro de 2005, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 49/2008, de 18 de julho de 2008, publicada no DR de 15 de setembro de 2008 e promulgada no Brasil pelo Decreto 7935, de 19 de fevereiro de 2013;

12. E a alínea a), do n.º 1, do art. 6º, da Lei nº 144/99, sob a epígrafe de requisitos gerais negativos da cooperação internacional, que estabelece que o pedido de cooperação é recusado “quando o processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal”, não é aplicável;

13. Pois, na “Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, tal como ocorre relativamente ao Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu, encontra-se subjacente a ideia de cooperação judiciária internacional em matéria penal, tendo em vista o combate célere e eficaz da criminalidade, na base da confiança recíproca entre os Estados contratantes e do reconhecimento mútuo, princípios através dos quais se garante que as decisões judiciais de qualquer um dos Estados serão respeitadas e tomadas em consideração por todos os outros Estados nos precisos termos em que foram proferidas” – acórdão do STJ, de 30 de outubro de 2013, no proc. 86/13.8YREVR.S1 e “O princípio de confiança mútua que subjaz e constitui o cerne da cooperação judiciária internacional funda-se na convicção de que todos os subscritores dos instrumentos daquela cooperação comungam de um conjunto de valores nucleares tributários dos direitos do Homem, estando sujeitos aos mesmos mecanismos específicos e comuns da garantia daqueles valores” – Acórdão do STJ de 22 de abril de /2020, Proc. 499/18.9YRLSB.S1;
14. A República Federativa do Brasil é um Estado soberano de democracia institucional instituída e consolidada, cuja Constituição garante ser um Estado de Direito Democrático e o respeito pelos direitos humanos;
15. Ademais, a República Federativa do Brasil é um país reconhecido como integrado nas nações democráticas, membro da O.N.U., que subscreveu convenções internacionais respeitantes aos Direitos Humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradante e que se reclama da tradição constitucional humanista e de princípios que são inerentes e imanam da própria ideia de Estado de direito democrático e do respeito mútuo pelos compromissos assumidos internacionalmente com os outros Estados, como é o caso da Convenção da Extradição da CPLP;
16. Assim, se por um lado não é invocável o art. 6º, a), da Lei nº144/99, por outro sempre se dirá que o processo no âmbito do qual foi formulado o pedido de cooperação oferece todas as garantias de um procedimento que respeite as condições internacionalmente indispensáveis à salvaguarda dos Direitos do Homem satisfazendo, igualmente, as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, contrariamente ao defendido pelo recorrente;
17. O recorrente não invoca, pois, fundamentos legais válidos para ser recusado o pedido de extradição.”

8. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal de Justiça apresentou parecer, manifestando o entendimento de que o presente recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se os termos da decisão recorrida.

Efetuado o exame preliminar, remeteu-se o processo a vistos legais e de seguida à Conferência.


II

Fundamentação

A

Dos Factos


Encontra-se assente a seguinte factualidade:

1. O requerido é cidadão brasileiro.

2. No âmbito do processo n.º ...28, que correu termos pela 1.ª Vara Judicial da Comarca ..., Tribunal de Justiça do Estado de ..., por sentença de 12 de novembro de 2018, foi o ora requerido/extraditando condenado na pena de 8 anos e 9 meses de prisão e na pena de 36 dias de multa, pela prática de um crime de roubo p. e p. pelos Arts. 157.° parágrafo 2.°, I, II e III e 70° do Código Penal brasileiro.

3. Interposto recurso pelo ora requerido/extraditando, por acórdão de 16.12.2020, transitado em julgado, proferido pela 15.ª Câmara de Direito Criminal da Justiça de ..., foi dada procedência parcial ao recurso de apelação, na parte relativa à pena de multa, reduzindo-a para 21 dias, ao mínimo legal.

4. No âmbito do processo identificado em 1, o ora requerido/extraditando foi citado por edital, constituiu defensor, apresentou resposta e apresentou alegações finais.

5. Os factos pelos quais o requerido/extraditando foi condenado foram praticados em 23/08/2017.

6. As autoridades Judiciárias do Brasil solicitaram, através da Interpol, a detenção do cidadão ora requerido, EE, com vista à sua extradição para aquele país, com base num pedido de detenção internacional, emitido pelo Juiz da 1.ª Vara Judicial de Embu das Artes, Tribunal de Justiça do Estado de ..., do Brasil.

7. Tal pedido foi inserido no Sistema da Interpol com o n.° 2022/59710 e número de controlo A-7729/9-2022 (notícia vermelha), com vista à sua detenção e subsequente extradição.

8. O requerido foi detido no dia 17 de novembro de 2022, pelas 8 horas, em Lisboa, área de jurisdição do respetivo Tribunal da Relação, encontrando-se desde então nessa situação, à ordem deste processo.

9. A audição do extraditando teve lugar no dia 18 de novembro de 2022, perante Juiz Desembargador de turno junto do mesmo Tribunal. Foi proferido, após a audição, despacho a validar a detenção do detido e a determinar a manutenção da mesma.

10. Sua excelência a Ministra da Justiça, por despacho proferido em 22 de dezembro de 2022, concluiu que «( ) considerando o disposto no artigo 1.º, 2.º, n.ºs 1 e 2 e 10.º, n.ºs 2 e 3 da Convenção de Extradição entre Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, bem como assim os artigos 3.º e 4.º a contrario da mesma Convenção e 6.º a 8." a contrario e 48.º, n.º 2 da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, aprovada pela Lei nº 144/99, de 31 de agosto, e tendo em conta a informação prestada pela Procuradoria-Geral da República, declaro admissível o pedido de extradição apresentado pelo Republica Federativa do Brasil respeitante a AA.».

11. O Acórdão que concedeu a extradição, da ... Secção Criminal ..., data de 19 de janeiro de 2023.

12. O requerido/extraditando encontra-se em Portugal desde 19.11.2017, juntamente com o seu agregado familiar, que é constituído pela companheira FF e três filhos, GG (nascido em .../.../2012), HH, (nascida em .../.../2014) e II, (nascida em .../.../2016), todos titulares de autorização de residência atribuído pelas autoridades portuguesas e matriculados em estabelecimento de ensino.

13. O requerido/extraditando é sócio-gerente da AA, Unipessoal, Lda, com matrícula ...00.

14. FF auferia, em novembro de 2022, por trabalho por conta de outrem, 1557,38 Euros.


B

Dos factos ao Direito


1. In casu, o pedido de extradição foi efetuado pelas autoridades brasileiras, ao abrigo da Convenção de Extradição entre Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia, em 23 de novembro de 2005, publicada no Diário da República, I série, n.º 178, de 15 de setembro de 2008.

2. Por despacho proferido a 22 de dezembro de 2022, a Ex.ma Senhora Ministra da Justiça declarou admissível o pedido de extradição apresentado pelo Brasil.

3. Por seu turno, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que o mesmo preenchia os requisitos legais, tendo aceitado o pedido de extradição.

4. Thema Decidendum: A questão invocada pelo Recorrente resume-se a saber se a extradição deveria ter sido recusada, com base no disposto no artigo 4.º, alínea e) da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em virtude de o extraditando ter sido condenado à revelia pela infração que deu lugar ao pedido de extradição.

Cumpre apreciar e decidir


C

Do Direito


1. O acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, entendeu que, no caso dos presentes autos, inexistia qualquer fundamento para recusar a extradição solicitada pelas autoridades brasileiras.

Consta, na verdade, da sua fundamentação que:

“O presente pedido de extradição [que “constitui uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal, através da qual um Estado (requerente) pede a outro (requerido) a entrega de uma pessoa que se encontre no território deste último, para efeitos de procedimento criminal, ou de cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa de liberdade, por infracção cujo conhecimento seja da competência dos tribunais do Estado requerente” - acórdão do Supremo Tribunal de 3-5-2012, processo n.º 290/11.3YRCBR.S1, 3.ª secção,] foi formulado pela República Federativa do Brasil, ao abrigo da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia, em 23 de Novembro de 2005 [da qual é Estado Contratante e signatário, por Decreto nº 7.935, de 19 de Fevereiro de 2013], ao Estado Português [igualmente Estado contratante e signatário – Resolução da Assembleia da República nº 48/2008, publ. no DR., 1ª Série, de 15 de Setembro de 2008], para efeitos de cumprimento da pena de 8 anos e 9 meses de prisão e da pena de 21 dias de multa, pela prática de um crime de roubo p. e p. pelos Arts. 157° parágrafo 2°, I, II e III e 70° do C. Penal brasileiro, aplicada pela autoridade judiciária brasileira competente – art. 31.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31.8.

A admissibilidade da extradição solicitada (extradição passiva) será, pois, aferida em função da referida Convenção e da lei relativa à cooperação internacional (Lei 144/99, de 31-08), e ainda pelo CPP, conforme dispõem o artigo 229.º deste diploma e o artigo 3.º, n.º 1, daquela Lei.

O pedido de extradição está devidamente documentado/fundamentado, satisfaz os requisitos dos arts. 23.º e 31.º da Lei 144/99, de 31 de Agosto, bem como os do artigo 2º da Convenção, e encontra-se instruído com os elementos previstos no art. 44.º da citada Lei e nos arts. 9º e 10º da Convenção.

O extraditando é a pessoa procurada para efeitos de cumprimento de pena privativa da liberdade, superior a um ano, cuja execução ainda não foi iniciada, aplicada pela Autoridade Judiciária competente da República Federativa do Brasil, onde foram praticados e julgados os factos integradores do um crime de roubo p. e p. pelos Arts. 157° parágrafo 2°, I, II e III e 70° do C. Penal brasileiro e igualmente puníveis, na legislação penal portuguesa, nos termos do Art. 210° n.°s 1 e 2 al. b), com referência ao Art. 204° n.° 2 al. f) do C. Penal, com pena abstrata máxima de 15 anos de prisão – arts. 1º e 2º da Convenção.

À luz do ordenamento jurídico brasileiro - Cfr. Art. 109° II, do C. Penal brasileiro – e do ordenamento jurídico português, conforme resulta do disposto no Art. 122°, n.° 1, al. a) do C. Penal Português, o procedimento penal não se encontra prescrito – artigo 3º, nº 1 al. f) da Convenção – e não se verificam quaisquer das condições obstativas previstas nas alíneas a) [crime punível com pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade física], b) [crime classificável pelo Estado requerido como político ou com ele conexo], c) [crime exclusivamente militar], d) [a pessoa reclamada tiver sido indultada, amnistiada ou perdoada no Estado requerido relativamente aos factos subjecentes ao pedido de extradição] ou e) [julgada por tribunal de excepção] do citado art. 3º.

Como decorre do disposto no artigo 55.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 144/99, oposição só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição, que no caso em apreciação são reconduzíveis à ocorrência de qualquer das circunstâncias previstas no artigo 3º da Convenção, atrás elencadas.

Sendo o requerido/extraditando a pessoa procurada, resta apurar se deverá proceder o pedido de oposição deduzido pelo extraditando, por procedência de alguns dos fundamentos [causas] elegíveis para a recusa facultativa de extradição – art. 4º da Convenção.

Como resulta do requerimento de oposição, alega o mesmo que não estão reunidos os requisitos para o deferimento do pedido de extradição por ter sido julgado à revelia e não estarem asseguradas as condições para a ressocialização no Estado requerente, onde não têm família.

Lateralmente alegou ainda incongruências e/ou inverdades constantes do documento da Interpol e no formulário do pedido de extradição, ter chegado a Portugal em 19.11.2017, no início de 2019 ter obtido um certificado de registo criminal do Ministério da Justiça e Segurança Pública da República Federal do Brasil onde não consta a inscrição de qualquer condenação pelo sistema judicial brasileiro; ter título de residência emitido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, fundamentado em atividade laboral subordinada e residência certa em Portugal.

Recusa facultativa de extradição

Sob a epígrafe “Recusa facultativa de extradição” dispõe o art. 4º da Convenção aplicável que:

«A extradição poderá ser recusada se:

a) A pessoa reclamada for nacional do Estado requerido;

b) O crime que deu lugar ao pedido de extradição for punível com pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida;

c) A pessoa reclamada estiver a ser julgada no território do Estado requerido pelos factos que fundamentam o pedido;

d) A pessoa reclamada não puder ser objecto de procedimento criminal em razão da idade;

e) A pessoa reclamada tiver sido condenada à revelia pela infracção que deu lugar ao pedido de extradição, excepto se as leis do Estado requerente lhe assegurarem a possibilidade de interposição de recurso, a realização de novo julgamento ou outra garantia de natureza equivalente.». - Sublinhado nosso.

Não tendo sido alegada, nem se verificando no caso dos autos, atenta a factualidade provada, quaisquer das circunstâncias previstas nas alíneas a) a d), resta aferir se a situação dos autos integra a previsão da alínea e), ainda que não seja necessariamente determinante da recusa de extradição, dada a natureza facultativa que lhe foi conferida.

Ora conceito normativamente previsto “condenada à revelia” – nem poderia ser outro tendo em conta os princípios norteadores da cooperação internacional em matéria penal – corresponde à situação da revelia absoluta [revelia operante], em que o réu/arguido não pratica no processo qualquer acto, por si, ou por mandatário/defensor constituído [não contesta, não apresenta defesa, não se faz representar].

Tal situação, manifestamente, não correu no caso dos autos. Pese embora o extraditando tenha sido citado editalmente, o mesmo interveio no processo, através de defensor por si constituído, apresentou defesa, alegações finais e interpôs recurso, vendo até a pena alterada por via do mesmo.

Não se verifica, pois, este fundamento de recusa.

Quanto ao segundo fundamento invocado como integrador de causa de recusa facultativa de extradição – ausência de condições para a ressocialização – o mesmo não está previsto na Lei 144/99, de 31 de Agosto, nem na Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia, em 23 de Novembro de 2005, como causa de recusa de extradição.

O extraditando alicerçou tal fundamento no art. 3º, nº 1, al. b) de outra Convenção, igualmente vinculativa para o Estado Português [e também assinada na Cidade da Praia em 23 de Novembro de 2005, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 46/2008, de 18 de Julho de 2008 e ratificada por Decreto do Presidente da República nº 64/2008, de 12 de Setembro, publ. no DR, 1ª Série, de 12 de Setembro de 2008] mas que não regulamenta o processo de extradição.

Como decorre do texto da referida Convenção, nomeadamente do seu artigo 1º, a mesma destina-se a regular o auxílio nas comunicações de informações, de actos processuais e de outros actos públicos quando se afigurem necessários à realização das finalidades do processo, bem como os actos necessários à perda, apreensão ou congelamento ou à recuperação de instrumentos, bens, objectos ou produtos do crime.

É, manifesta a sua inaplicabilidade ao processo de extradição.

Não figurando o fundamento invocado como causa de recusa, facultativa ou obrigatória, improcede a oposição deduzida.

Carecem igualmente de qualquer relevância jurídica a alegação da existência de discrepâncias ou incorrecções no documento da Interpol ou no preenchimento do formulário.

A decisão condenatória com base no qual é formulado o pedido está certificada nos autos e contém todos os elementos necessários à apreciação do pedido, permitindo, sindicar as discrepâncias invocadas. Está igualmente assente que a decisão transitou em julgado [o certificado de registo criminal do Ministério da Justiça e Segurança Pública da República Federal do Brasil, junto aos autos, do qual não consta a inscrição de qualquer condenação pelo sistema judicial brasileiro, está datado de 2019, e a decisão transitou posteriormente em função do recurso interposto pelo ora extraditando].

Por todo o exposto, ao abrigo das disposições legais referidas, e dando cumprimento à obrigação do Estado Português prevista no artigo 1º da Convenção, impõe-se dar procedência ao pedido de extradição.

O processo de extradição é gratuito, nos termos do artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, sem prejuízo do disposto nas alíneas c) e d) e n.º 4 do artigo 26.º do mesmo diploma, respeitante a despesas na execução do pedido”.

2. Como explicita o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de janeiro de 2018, processo n.º 1331/17.6YRLSB.S1 (Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos), disponível em www.dgsi.pt:

“A extradição constitui uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal, através da qual um Estado (requerente) pede a outro (requerido) a entrega de uma pessoa que se encontre no território deste último, para efeitos de procedimento criminal, ou de cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa da liberdade, por infração cujo conhecimento seja da competência dos tribunais do Estado requerente”.

  Consubstancia, assim, não qualquer tipo de processo-crime contra o extraditando, visando apenas a pronúncia do Estado requerido acerca do pedido de extradição efetuado por um outro Estado, pelo que apenas se aprecia se estão preenchidos os pressupostos materiais desse pedido extradicional. Neste sentido, entre outros, veja-se o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de setembro de 2007, proferido no Processo n.º 3338/07 (Relator: Conselheiro Raul Borges).

3. Nos presentes autos, está em causa o cumprimento, pelas autoridades portuguesas, de um pedido de extradição formulado pelas autoridades brasileiras, no sentido de lhes ser entregue um cidadão de nacionalidade brasileira, a fim de ser cumprida a pena de prisão em que foi condenado.

 

4. No que respeita às normas aplicáveis ao processo de extradição, o sistema normativo português encontra-se estruturado em três níveis hierarquizados[1]: no topo da pirâmide, situa-se a Constituição da República Portuguesa, e “a ela se subordinam todas as demais disposições do ordenamento jurídico português, sejam de origem internacional ou nacional”, num plano intermédio situa-se o direito internacional, onde se integram um conjunto alargado de convenções internacionais relativas à extradição, a que Portugal se encontra vinculado, e, num plano inferior, o direito interno[2] .

  Como tal, “[a] admissibilidade de extradição, nomeadamente quando Portugal é o Estado requerido (extradição passiva), é regulada pelos tratados e convenções internacionais, e, na sua falta ou insuficiência, pela lei relativa à cooperação internacional (Lei nº 144/99, de 31 de Agosto) e ainda pelo Código de Processo Penal, conforme dispõem o artigo 229º deste diploma e o artigo3º, nº 1, daquela Lei. A aplicação da lei interna portuguesa é, pois, subsidiária” (conforme o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de janeiro de 2018, proferido no Processo n.º 1331/17.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto de Matos, disponível em www.dgsi.pt.).

  Assim, e em conformidade com o disposto no artigo 3.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto:

  “1 - As formas de cooperação a que se refere o artigo 1.º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.

  2 - São subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.”

5. Ora, os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa CPLP – onde se incluem tanto Portugal, como o Brasil – subscreveram, em 23 de novembro de 2005, na cidade da Praia, uma Convenção sobre Extradição, a qual veio a ser ulteriormente ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/94, de 3 de fevereiro, e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 18 de julho, publicada no Diário da República n.º 178, de 15-09-2008, tendo entrado em vigor em 1 de março de 2010.

  No artigo 1.º da referida Convenção estabelece-se, assim, que:

‘Os Estados Contratantes obrigam -se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas na presente Convenção, as pessoas que se encontrem nos seus respectivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente’.

  Por seu turno, no artigo 2.º, n.º 1 prevê-se que “[d]ão causa à extradição os factos tipificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano” e, no n.º 2, que “[s]e a extradição for requerida para o cumprimento de uma pena privativa da liberdade exige -se, ainda, que a parte da pena por cumprir não seja inferior a seis meses”.

  Acresce que, enquanto no artigo 3.º se elencam os casos em que a extradição é inadmissível, no artigo 4.º fazem-se constar os fundamentos de recusa facultativa. Aí se dispõe, então, que:

  “A extradição poderá ser recusada se:

  a) A pessoa reclamada for nacional do Estado requerido;

  b) O crime que deu lugar ao pedido de extradição for punível com pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida;

  c) A pessoa reclamada estiver a ser julgada no território do Estado requerido pelos factos que fundamentam o pedido;

  d) A pessoa reclamada não puder ser objecto de procedimento criminal em razão da idade;

  e) A pessoa reclamada tiver sido condenada à revelia pela infracção que deu lugar ao pedido de extradição, excepto se as leis do Estado requerente lhe assegurarem a possibilidade de interposição de recurso, a realização de novo julgamento ou outra garantia de natureza equivalente.”

6. A questão sub judice respeita, precisamente, à recusa que, no entender do extraditando, deveria ter sido efetuada, com base na alínea e) do artigo 4.º, por este ter sido condenado à revelia no processo-crime que origina o presente pedido extradicional.

  Ora, compulsada a factualidade assente, verifica-se que o extraditando foi condenado, por sentença de 12 de novembro de 2018, na pena de 8 anos e 9 meses de prisão e na pena de 36 dias de multa, pela prática de um crime de roubo. Interposto recurso pelo ora requerido, foi proferido acórdão a 16 de dezembro de 2020, já transitado em julgado, que deu procedência parcial ao referido recurso, na parte relativa à pena de multa, reduzindo-a para 21 dias.

  Encontra-se, ainda, provado (em conformidade, aliás, com o expressamente alegado pelo recorrente) que este, no âmbito do mencionado processo-crime, constituiu advogado, apresentou resposta e apresentou alegações finais, tendo, também, interposto recurso, não obstante não ter estado presente durante a audiência de julgamento.

  De facto, o recorrente foi citado por edital, mas constituiu advogado que o representou nesse processo, incluindo em fase de recurso, não se podendo, de modo algum, concluir que o extraditando esteve alheio ao processo e à condenação, desconhecendo o que decorria, mas antes que, de livre e espontânea vontade, decidiu ausentar-se e não comparecer em tribunal. Verifica-se, assim, que a falta do recorrente no seu julgamento foi uma opção sua, tomada apesar de bem saber que o mesmo se encontrava a decorrer e quais os factos que lhe eram imputados, bem sabendo que o processo seguia os seus termos apesar da sua ausência, e, não obstante essa circunstância, escolheu não voltar ao Brasil, nem antes, nem depois da prolação e do trânsito em julgado da sentença condenatória, exercendo de modo claro o seu direito em não estar presente na audiência de discussão e julgamento.

7.Pois bem. A verdade é que a recusa facultativa de extradição, prevista no artigo 4.º, alínea e) da Convenção, respeita, como não pode deixar de ser, à situação de o extraditando ter sido absolutamente alheio à realização do julgamento, não tendo conhecimento prévio do mesmo e não tendo constituído mandatário para sua representação.

Como bem se compreende, não poderão ser equivalentes as situações em que o julgamento decorre de modo totalmente à margem do visado daquelas em que, como ocorre nos presentes autos, o arguido opta por não comparecer, escolhe um advogado para o representar, que por sua vez tem uma participação ativa no julgamento e, inclusivamente, apresenta recurso. Não faria, assim, o menor sentido que fosse agora concedida ao extraditando a possibilidade de se realizar novamente o julgamento na sua presença – quando não compareceu porque não quis e não porque não tinha conhecimento da sua realização – ou de nova interposição de recurso, prerrogativa que já utilizou e que, inclusive, resultou numa decisão que até lhe é mais favorável. Poucas vezes haverá tão patente propriedade no brocardo les absents ont toujours tort (que em português se traduziria de forma negativa: “os ausentes nunca têm razão”, e de que existem, aliás, equivalentes latinos), para mais neste caso em que o ausente apenas está ausente porque quer, mas se faz representar…

Com efeito, tal comportamento, por parte do extraditando, consubstancia uma renúncia tácita ao direito de estar presente em audiência e de se defender pessoalmente, pelo que não poderá agora, nesta sede, vir invocar essa circunstância – opção que apenas a si é imputável (logo, agindo em venire contra factum proprium, ou seja, com abuso do direito[3]) – para lhe serem concedidas novas oportunidades de defesa. O extraditando invoca, por diversas vezes, que nas várias instâncias se fez constar que o mesmo havia sido julgado à “revelia”. Todavia, a verdade é que tal expressão é mencionada num sentido amplo, tendo de ser harmonizada com a circunstância provada (e que o recorrente não põe em causa, antes admitindo que tal corresponde em absoluto à verdade) que o mesmo constituiu mandatário que assegurou a sua defesa. Daqui decorre que a expressão “revelia” é usada apenas no sentido de o julgamento ter decorrido na ausência do arguido, não significando que este desconhecia da sua realização.

8. Tal procedimento, aliás, encontra semelhança com o direito processual penal português onde se prevê, no artigo 333.º do Código de Processo Penal, que o julgamento decorra na ausência do arguido, desde que este se encontre regularmente notificado para a sua realização, apenas diferindo do sistema judicial brasileiro quanto à necessidade, em Portugal, de o visado ser notificado pessoalmente da decisão condenatória, apenas começando a correr o prazo de interposição de recurso nesse momento.

9. Considere-se ainda que o extraditando refere, além do mais, que:

“[e]ssa situação de nebulosidade e de cerceamento de defesa, que colocam em dúvida, inclusive a efetiva participação do recorrente no crime em que foi condenado à revelia, não satisfaz as condições mínimas do processo no âmbito do qual o presente pedido de cooperação foi formulado, sendo que não oferece garantias de um procedimento que respeite as condições internacionalmente indispensáveis à salvaguarda dos Direitos do Homem, não satisfazendo, igualmente, as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”.

Embora de forma algo vaga, o extraditando afirma, assim, ter havido uma violação da Convenção Europeia Convenção Europeia dos Direitos Humanos, sem que refira, porém, qual a norma em concreto que se encontra violada, nem de que modo tal circunstância seria fundamento de recusa do pedido extradicional. Ora este tipo de referências de violação de metanarrativas constitucionais não pode ter acolhimento sem a especificação concreta do que se violaria, e sem a aproximação lógico-argumentativa entre tal ou tal normativo, tal ou tal interpretação dele, e o quid em apreço. Mutatis mutandis, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 244 / 2007, proferido no Proc.º n.º 63/07, 1.ª secção (Relator: Conselheiro Rui de Moura Ramos), designadamente afirmando:
“Vem, com efeito, este Tribunal reiteradamente afirmando que não constitui “forma idónea e adequada de suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa a simples invocação de que seria inconstitucional (…) certa ou certas normas legais, na interpretação que a decisão das instâncias lhes conferiu, não suficientemente definida ou precisada pelo recorrente (…), cabendo sempre à parte que pretende suscitar adequadamente uma questão de inconstitucionalidade normativa o ónus de especificar qual é, no seu entendimento, o concreto sentido com que tal norma ou normas foram realmente tomadas no caso concreto pela decisão que se pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional” (Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3, 2004, p. 8)”.

10. Importa contudo referir que o disposto no artigo 6.º, alínea a) da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, onde se prevê que “[o] pedido de cooperação é recusado quando o processo não satisfizer ou não respeitar as exigências da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de Novembro de 1950, ou de outros instrumentos internacionais relevantes na matéria, ratificados por Portugal”, não consubstancia fundamento de recusa da presente extradição, por, aos presentes autos, se aplicar o disposto na Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e não o referido diploma legal, em conformidade com o já explanado supra.

11. Não obstante, sempre se diga que, no que respeita ao direito a um processo equitativo, o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos prevê que “[q]ualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela”, bem como que “[o] acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos […] Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha”.

12. Ora, em nenhum normativo se proíbe que o julgamento decorra na ausência do arguido, não resultando dos procedimentos utilizados pelo Tribunal Brasileiro qualquer violação, seja da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, seja das normas constitucionalmente previstas no direito português, legislação que, como se mencionou supra, prevê um procedimento semelhante ao que sucedeu no processo que correu termos no Brasil.

13. Nesta senda, foram desenvolvidas pelas autoridades as diligências adequadas, que visaram assegurar a publicidade do julgamento, sendo manifesto que o extraditando teve conhecimento do mesmo, o que levou a que pudesse tomar todas as providências que entendeu adequadas, por forma a assegurar a sua defesa.

 Como tal, dos factos assentes não resulta que a decisão condenatória em causa, proferida na ausência do arguido, tenha sido o resultado de um processo em que resulte uma flagrante denegação de justiça, contrária às imposições do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ou dos princípios a ele subjacentes[4].

14. Ademais, sempre se esclareça que o presente caso em nada se assemelha ao citado[5]  pelo extraditando nas suas alegações de recurso. Porquanto, nesse outro aresto, estava em causa a realização de julgamento que havia tido lugar sem que o visado tivesse qualquer conhecimento do mesmo, não tendo tido oportunidade de constituir advogado, apresentar a sua defesa ou oferecer as suas provas, não tendo sido sequer informado da natureza e da causa da acusação contra si formulada, nem dispondo de tempo ou dos meios necessários para a preparação da sua defesa e para exercer o contraditório, tendo inclusivamente o julgamento tido lugar antes do termo do prazo concedido no edital de notificação respetivo.

15. Finalmente, e conforme é referido pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta na sua resposta ao recurso,

“[…] a República Federativa do Brasil é um Estado soberano de democracia institucional instituída e consolidada, cuja Constituição (promulgada a 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/1992 e 68/2011, pelo Decreto legislativo nº 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nºs 1 a 6/1994) serve a “instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, in preâmbulo.

Ademais, a República Federativa do Brasil é um país reconhecido como integrado nas nações democráticas, membro da O.N.U., que subscreveu inúmeras convenções internacionais respeitantes aos Direitos Humanos e à Cooperação Judiciária Internacional, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradante.

Ora, reclamando-se da tradição constitucional humanista e de princípios que são inerentes e imanam da própria ideia de Estado de direito democrático, e do respeito mútuo pelos compromissos assumidos internacionalmente com os outros Estados, como é o caso da Convençãoda Extradição da CPLP, apresenta-se que a República Federativa do Brasil e os poderes nela instituídos, como o judicial, assegurou e não deixará de assegurar o respeito pelos direitos fundamentais do recorrente e suas garantias de defesa e de lhe ser assegurado o respeito pela sua integridade física e moral, em caso de execução da pena em que foi condenado.

Assim, por um lado não é invocável o art. 6º, a), da Lei nº 144/99, e por outro lado sempre se dirá que o processo no âmbito do qual foi formulado o pedido de cooperação oferece todas as garantias de um procedimento que respeite as condições internacionalmente indispensáveis à salvaguarda dos Direitos do Homem satisfazendo, igualmente, as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.”

16. Desta forma, deve recordar-se que

“o princípio de confiança mútua que subjaz e constitui o cerne da cooperação judiciária internacional funda-se na convicção de que todos os subscritores dos instrumentos daquela cooperação comungam de um conjunto de valores nucleares tributários dos direitos do Homem, estando sujeitos aos mesmos mecanismos específicos e comuns da garantia daqueles valores” [6] .

Inexistindo qualquer fundamento para concluir, como pretende o recorrente, que o pedido de cooperação formulado não oferece garantias de um procedimento que respeite as condições internacionalmente indispensáveis à salvaguarda dos Direitos do Homem, não satisfazendo, igualmente, as exigências da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

17. Verifica-se, em conclusão, que o extraditando exerceu plenamente os seus direitos de defesa no julgamento realizado, tendo-lhe sido concedido o direito a um processo equitativo e a um julgamento justo, não havendo uma efetiva situação de revelia proprio sensu, pelo que inexiste fundamento para que se exija ao estado brasileiro que conceda as garantias previstas na parte final da alínea e) do artigo 4.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Em face do exposto, improcede claramente o recurso apresentado.


IV

Dispositivo


Termos em que, decidindo em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente o Acórdão recorrido.

Sem tributação (artigo 73.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto).

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de março de 2022

Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Dr. Sénio Alves (Juiz Conselheiro Adjunto)

Dr. Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

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[1] A questão, para Portugal e para outros países, pode ser controversa, em termos gerais. Não no caso concreto. Cf., por todos, P. Ferreira da Cunha, Repensar o Direito Internacional, Coimbra, Almedina, 2019, p. 58 ss., p. 97, p. 279 ss..
[2] Mário Serrano, Cooperação Internacional Penal, vol. I, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2000, pp. 27 e 28.
[3] Recorde-se a descrição normativa geral do Código Civil: Artigo 334.º – Abuso do Direito: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.”
[4] Ao contrário do caso apreciado no acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de 24 de março de 2005, caso Stoichkov c. Bulgária, referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de setembro de 2007, processo n.º 07P3338, relatado pelo Conselheiro Raul Borges, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P3338 (Relator: Conselheiro Raul Borges), disponível em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de agosto de 2020, proferido no Processo n.º 1281/19.1YRLSB.S1 (Relatora: Conselheira Margarida Blasco), disponível em www.dgsi.pt.