Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1074/15.5PAOLH.E1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: DUPLA CONFORME
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
IN DUBIO PRO REO
DESFIGURAÇÃO GRAVE E PERMANENTE
MEIO INSIDIOSO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 02/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL – FACTO / PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO / FORMAS DO CRIME / CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO QUALIFICADO / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA – JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DE PROVA / SENTENÇA / NULIDADE DA SENTENÇA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / FUNDAMENTOS DO RECURSO.
Doutrina:
- ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES GASPAR, JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, EDUARDO MAIA COSTA, ANTÓNIO JORGE DE OLIVEIRA MENDES, ANTÓNIO PEREIRA MADEIRA, ANTÓNIO PIRES HENRIQUES DA GRAÇA, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 1081;
- AUGUSTO SILVA DIAS, Crimes contra avida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, p. 102;
- CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, Coimbra 1968, p. 210;
- FERNANDA PALMA, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, p. 65;
- FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p. 145 ; Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, p. 227 e ss.;
- FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, Almedina, 2.ª edição, p. 84;
- MAIA GONÇALVES, Código Penal Português Anotado, 18.ª edição, 2007, p. 517;
- MARIA JOÃO ANTUNES, Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 171 e 188;
- MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA, Textos, Direito Penal II. Os Homicídios, volume II, AAFDL, 1998, p. 42;
- NELSON HUNGRIA, Comentário ao Código Penal Brasileiro, Volume V, p. 167 a 169;
- PAULO DE SOUSA MENDES, Lições de Direito Processual Penal, 2015, Almedina, p. 222;
- TERESA SERRA, Homicídios em Série, conferência integrada em Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 1995), CEJ, 1998, Volume II, p. 153-154 ; Jornadas sobre a revisão do Código Penal, edição da AAFDL, 1998, p. 131 a 133.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 11.º, N.º 2, 14.º, 23.º, N.ºS 1 E 2, 50.º, N.º 1, 132.º, N.º 2, ALÍNEA I), 144.º, ALÍNEAS A), B) E C) E 145.º, N.ºS 1, ALÍNEA C) E 2.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 127.º, 358.º, N.º 3, 379.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 410.º, N.º 2, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 24-07-1998, PROCESSO N.º 436/98;
- DE 18-11-1998, PROCESSOS N.º 855/98;
- DE 17-09-2009, PROCESSO N.º 169/07.3GCBNV.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 04-07-2013, PROCESSO N.º 1243/10.4PAALM.L1.S1;
- DE 18-06-2014, PROCESSO N.º 659/06.5GACSC.L1.S1;
- DE 01-02-2017, PROCESSO N.º 335/08.4GAPMS.C2;
- DE 27-04-2017, PROCESSO N.º 452/15.4JAPDL.L1.S1;
- DE 20-09-2017, PROCESSO N.º 596/12.4 JABRG.G2.S1;
- DE 11-10-2017, PROCESSO N.º 480/14.7PASXL.L1.S1;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 74/16.2JDLSB.L1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 130/98, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT.
Sumário :

I - Mostrando-se confirmada, em sede de recurso, a sentença do tribunal de 1.ª instância quanto à condenação do arguido-demandado civil e ora recorrente no pagamento aos demandantes civis das quantias de 30.000,00 euros, 1.398,67 euros e 9.313,43 euros, acrescidas de juros de mora, respectivamente a título de compensação por danos não patrimoniais e de indemnização decorrente da assistência prestada àquela, tendo o acórdão recorrido confirmado, por unanimidade, toda a decisão da 1.ª instância relativa aos pedidos de indemnização e com a mesma fundamentação jurídica, verifica-se, indiscutivelmente, a dupla conforme quanto à matéria civil, impeditiva do recurso para o STJ.

II - Não implicam uma alteração substancial da acusação, as alterações que, após a produção da prova, o Tribunal Colectivo entendeu introduzir que não se traduzem em factos novos, mas antes na pormenorização ou especificação dos factos já constantes do despacho de acusação que não vão além do objecto do processo fixado na acusação.

III - Traduz-se numa alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, a imputação, em julgamento, ao arguido de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. c), (por referência ao art. 144.º), e 2, e 132.º, n.º 2, al. i), do CP, este por referência ao meio “insidioso”, em detrimento do crime de ofensa à integridade física grave, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.°, 11.° 2, 23.°, n.ºs 1 e 2 e 144.°, alíneas a) e c), do Código Penal, e da prática de um crime de ofensa à integridade física grave, quanto à alínea b) do artigo 144.° do Código Penal, e também quanto à alínea a) do mesmo artigo, que lhe eram imputados na acusação pública e dos quais o arguido foi absolvido, na medida em que não houve adição de nenhum outro crime aos que já constavam da acusação, mas antes, o houve foi uma outra maneira de encarar os factos constantes da acusação, subsumindo-os a um outro tipo legal de crime.

IV - Sendo comunicada ao arguido a alteração da qualificação jurídica operada, em cumprimento do n.º 3 do art. 358.º do CPP, assim se assegurando as suas garantias de defesa e o contraditório, forçoso é concluir que não se observa a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, invocada pelo recorrente.

V - Não pode servir de fundamento ao recurso dirigido ao STJ a verificação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. O STJ, como tribunal de revista, apenas conhece de tais vícios oficiosamente, se eles decorrerem do texto da própria decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum.

VI - O vício previsto pela al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.

VII - Este vício não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127.° do CPP), subtraída aos poderes de cognição do STJ.

VIII - Também não se pode confundir este vício com o eventual erro de qualificação jurídica dos factos. Isto é, quando o Tribunal entende que aqueles factos não são integradores do crime que vem imputado. Só estamos perante o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal, podendo, não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

IX - Constatando-se da leitura da decisão recorrida que se consegue entender o raciocínio lógico e coerente que levou o tribunal recorrido, face à factualidade dada como provada, a decidir pela condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, forçoso é concluir que não se verifica o mencionado vício de insuficiência de prova para a decisão de facto provada.

X - Resultando da conjugação e ponderação de toda a prova produzida, a certeza da prática pelo arguido, dos factos dados como assentes, não cabe falar em violação do princípio “in dubio pro reo”, que apenas é suscitado quando ocorram dúvidas insuperáveis de prova de determinados factos (negativos).

XI - Integra a circunstância agravante prevista na al. a) do art. 144.º do CP (“desfiguração grave e permanente”) a actuação do arguido que causou queimaduras extensas na ofendida, que provocaram o surgimento no perineo de área cicatricial na região inguinal, no terço superior e terço médio da face interna da coxa direita e no terço superior e no terço médio das faces anterior, lateral e interna da coxa esquerda (aqui por enxerto), deixando cicatrizes extensas, notoriamente visíveis e que atingem a figura da visada, desfigurando-a e que não são reversíveis.

XII - Preenche a qualificativa prevista na al. i), do n.º 2, do art. 132.º do CP (“meio insidioso”), a actuação do arguido que lançou água a ferver sobre o corpo da assistente quando esta se encontrava a dormir, em completa desprotecção, desprevenida e indefesa, incapaz de reagir e evitar a agressão, na medida em que, a actuação do arguido se se enquadra nas situações em que é usado um meio desleal, traiçoeiro, ardiloso, um instrumento de uma armadilha, de uma cilada, em situação na qual a vítima se encontra especialmente desprotegida perante o agressor, já que atua de forma absolutamente dissimulada, oculta, pois espera que a visada adormeça (na sua própria casa) e, nessa altura (e já após a meia noite), aproveita o estado de abandono da visada, em descanso, para a atingir, em condições não apenas inteiramente imprevisíveis para a vítima, mas sobretudo caracterizadoras de uma situação de absoluta indefesa por parte desta.

XIII - Ponderando as elevadas exigências de prevenção especial, pois que o arguido foi já anteriormente condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física, o muito elevado grau de ilicitude dos factos, a gravidade das suas consequências, o elevado o grau de violação dos deveres impostos, face à relação existente com a vítima (com quem vivia, numa relação idêntica à de cônjuges), e o grau da culpa do agente, que se manifesta pela forma como atuou - com dolo directo - e pela motivação da sua conduta (em face da informação da vítima que terminava a sua relação com o arguido, este, movido por um sentimento de vingança - não obstante a vítima aceitar que aquele permanecesse lá em casa até ao natal, por não ter para onde ir esperou que a vítima adormecesse, foi aquecer uma panela de água e deitou-a, a ferver, para cima da vítima e abandonou o local, levando o telemóvel da vítima para que aquela não pudesse pedir auxílio, indiferente às consequências da sua conduta), entende-se justa a pena de 6 anos de prisão aplicada ao arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.ºs 1, al. c) e 2, por referência aos arts. 144.º e 132.º, n.º 2, al. i), do CP.

XIV - Perante a pena aplicada, tendo em conta o disposto no n.º 1 do art. 50.º do CP, fica prejudicada a ponderação da suspensão da execução da pena.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de ... (Juízo Central Criminal de ..., J4) no Processo Comum Colectivo n.º 1074115.5PAOLH, foi julgado o arguido AA, nascido em ....1969, [...] - pela prática:

- de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144.º, alíneas a) e b) do Código Penal;

- e de um crime de ofensa à integridade física grave, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 2, 23.º, n.ºs 1 e 2 e 144.º, alíneas a) e c), do Código Penal.

Foram deduzidos os seguintes pedidos de indemnização civil:

- Pela ofendida/assistente BB, que pediu a condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia de 50.000,00 euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros, contados desde a citação do demandado, e do valor a liquidar, correspondente à intervenção cirúrgica a que a assistente ainda terá que se submeter;

- Pelo Centro Hospitalar do ..., EPE, que pediu a condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia da quantia de 1.398,67 euros (mil trezentos e noventa e oito euros e sessenta e sete cents), acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização ao demandado até integral pagamento;

- Pelo Centro Hospitalar de ..., EPE, que pediu a condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia de quantia de 9.313,43 euros (nove mil trezentos e treze euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização ao demandado até integral pagamento;

2. A final - e depois de comunicada ao arguido a alteração não substancial dos factos e a alteração da sua qualificação jurídica (despacho de fols 895) - veio a decidir-se:

- Quanto à matéria crime:

A) Absolver o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física grave, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 2, 23.º, n.ºs 1 e 2 e 144.º, alíneas a) e c), do Código Penal, e da prática de um crime de ofensa à integridade física grave, quanto à alínea b) do artigo 144.º do Código Penal, e também quanto à alínea a) do mesmo artigo, mas nesta parte sem prejuízo da imputação da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, por referência a tal norma.

B) Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º n.ºs 1, alínea c) e 2, por referência aos artigos 144.º e 132.º, n.º 2, alínea i), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

- Quanto à matéria cível:

Condenar o demandado AA:

- no pagamento à demandante BB da quantia de 30.000 (trinta mil) euros, a que acrescem os juros de mora, à taxa legal, desde a data desta decisão até integral pagamento;

- no pagamento ao demandante Centro Hospitalar do ..., EPE, da quantia de 1.398,67 euros (mil trezentos e noventa e oito euros e sessenta e sete cêntimos), a que acrescem os juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização ao demandado até integral pagamento;

- no pagamento ao demandante Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, da quantia de 9.313,43 euros (nove mil trezentos e treze euros e quarenta e três cêntimos), a que acrescem os juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização ao demandado até integral pagamento;

3. Recorreram o arguido e o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Évora.

3.1. O arguido pediu, na procedência desse recurso, a revogação do acórdão recorrido e em sua substituição ser proferido outro que:

a) Declare a nulidade do acórdão recorrido, prevista no artigo 379.º, n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal, e, nos termos do disposto no artigo 122.º, n.º 2 do citado diploma legal, ordene a repetição do ato, sendo reaberta a audiência para que sejam as alterações comunicadas ao arguido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 359.º do Código de Processo Penal;

- Ou, caso assim não se entenda,

b) Absolva o arguido da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. c) (por referência aos arts 144.º) e 132 n.º 2, al. i), do Código Penal, uma vez que o tribunal considerou provados factos sem que deles tivesse sido feita prova, quando era imperativo que fossem considerados como não provados, sendo notório o erro de julgamento e a violação do princípio in dubio pro reo;

- Ou, caso assim não se entenda,

c) Absolva o arguido da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, al. 1 al. c) (por referência ao art.° 144.º) e 132.º, n.º 2, al. i), do Código Penal, porque, no caso dos autos, não estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, não se verificando a especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente; quanto muito, embora sem conceder, o arguido apenas poderá ser condenado pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148 n.º 1 do Código Penal;

- Ou, caso assim não se entenda,

d) Reduza a pena concretamente aplicada ao arguido, a qual não deverá ultrapassar 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, ainda que sujeita a regime de prova a delinear pela DGRSP, por estarem verificados os pressupostos do artigo 50.º e seguintes do Código Penal, a qual realizará de forma adequada e suficiente o objectivo de prevenir a prática de futuros crimes da mesma natureza pelo arguido;

E,

e) Julgue os pedidos de indemnização civil deduzidos por BB, Centro Hospitalar do ..., EPE, e Centro Hospitalar de ..., EPE, integralmente improcedentes, por não se mostrarem verificados os pressupostos de responsabilidade civil por factos ilícitos expressos no artigo 483.º do Código Civil, absolvendo-se o demandado AA de todo o peticionado;

- Ou, julgando verificados os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, a indemnização arbitrada à demandante BB, pelos danos não patrimoniais, deverá ser fixada em montante nunca superior a € 15.000,00 (quinze mil euros), por tal quantia se mostrar ajustada e adequada aos danos verificados.

3.2. O Ministério Público pugnou pela condenação do arguido na pena de 6 anos de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.

4. Por acórdão proferido em 26-04-2018, o Tribunal da Relação de Évora deliberou:

- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido;

- Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando a decisão recorrida, no que respeita à medida da pena aplicada ao arguido, que foi elevada para 6 (seis) anos de prisão.

5. Inconformado, recorre o arguido perante este Supremo Tribunal, rematando a respectiva motivação com as conclusões que se transcrevem:

CONCLUSÕES

1  - A condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia,
se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358° e 359° do
CPP, acarreta a nulidade da sentença (artigo 379° n.° 1 al. b) do citado diploma legal).

2 - No despacho acusatório, era imputado ao arguido AA a prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144° al. a) e b) do Código Penal, com pena de prisão de 2 a 10 anos.

3 - Por força da comunicação nos termos do artigo 358° n.° 1 e 3 do CPP, e procedendo à alteração da qualificação jurídica, o Tribunal condenou o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145° n.° 1 al. c) (por referência ao art. 144°) e 2 e132°n.°2 al. i) do CP.

4 - De acordo com o artigo 1o n.° 1 al. f) do CPP, considera-se alteração substancial dos factos "aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis."

5 - A comunicação efectuada pelo Tribunal ao arguido, em 08/05/2017. traduz-se numa "agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis" e, por isso, constitui uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.

6 - Porque a alteração comunicada consubstancia uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, estava o Tribunal vinculado ao disposto no artigo 359° do CPP, de modo que a factualidade alterada não poderia ter sido tomada em conta pelo Tribunal, para efeito de condenação no processo em curso, a não ser que ao arguido tivesse sido dada a possibilidade de se pronunciar acerca da continuação do julgamento pelos novos factos e, apenas, se o mesmo tivesse dado o seu assentimento nesse sentido.

7 - Em virtude do arguido ter sido condenado por factos que se traduzem numa alteração substancial, implicando uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, sem lhe ter sido dada a possibilidade de se pronunciar nos termos do artigo 359° do CPP, o acórdão recorrido, subscrevendo esta posição, violou o princípio do contraditório estatuído no artigo 32° n.° 5 da CRP.

8 – O acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no artigo 379° n.° 1 alínea b) do CPP, uma vez que o arguido foi condenado por factos diversos dos descritos na acusação fora dos casos e das condições previstos no artigo 359° do CPP, razão pela qual o presente recurso deverá proceder quanto à imputação ao acórdão sob recurso da referida nulidade.

9  - A consequência da nulidade, nos termos do disposto no artigo 122° n.° 2 do
CPP, é a repetição do acto, deverá pois ser reaberta a audiência, para que sejam
as alterações comunicadas ao arguido nos termos e para os efeitos do disposto no
artigo 359° do CPP.

10 - A prova produzida - testemunhal, documental e pericial, na qual o Tribunal alicerçou a sua convicção não lhe permitia concluir, como concluiu, que o arguido AA praticou o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145° n.° 1 al. c) (por referência ao art 144°) e 2 e 132° n.° 2 al. i) do CP pelo qual foi condenado.

11 - Os elementos de prova que impunham decisão diversa, designadamente:

- as declarações do arguido prestadas na audiência de discussão e julgamento, onde esclareceu ter-se tratado de um acidente, na sequência de um desequilíbrio, pois nunca foi sua intenção magoar a assistente BB de propósito (gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 08/03/2017, com início às 9:31:31 e o seu termo pelas 10:11:57, de minutos 9:07 a 10:00, 16:44 a 16:52, 19:10 a 20:52, 22:17 a 22:25, 24:43 a 24:50, 27:00 a 27:10, 30:10 a 30:37 e 39:20 a 39:35);

- declarações da assistente BB, onde referiu que pelas 22H00/22H30 desse dia, como estava cansada e tinha sono, deitou-se no sofá e adormeceu, não se tendo apercebido de mais nada, e que acordou quase à 1H00, não sabia o que era, apenas sentiu o corpo a inchar, não sabia que era água a ferver, confirmando que "Para tomar banho, aqueciam a água na panela, levavam para a casa de banho e metiam no alguidar", esclarecendo que era hábito do arguido tomar banho todos os dias (gravadas em 08/03/2017, com início às 10:36:12 e o seu termo pelas 10:58:14, de minutos 16:23 a 16:35 e 17:05 a 18:53, e com início às 11:18:13 e termo às 12:02:16, de minutos 18:49 a 19:10 e 20:35 a 20:54).

12 - A versão do arguido, relativamente às circunstâncias em que os factos ocorreram, não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova, nem mesmo pelas declarações da assistente, daí que a prova seja insuficiente para a condenação do arguido relativamente aos factos cuja prática lhe foi imputada.

13 - Se, de um lado, o arguido negou veementemente ter aquecido água numa panela no intuito de a atirar para cima de BB, com o propósito de atingir e molestar fisicamente os seus órgãos de reprodução feminina e afectar a sua capacidade de fruição sexual e a possibilidade de usar o corpo de modo esteticamente agradável, de forma livre, deliberada e consciente, por outro lado, BB afirmou estar a dormir desconhecendo, por isso, a forma como os acontecimentos se desenrolaram, donde resulta a impossibilidade de atingir-se a decisão de direito a que se chegou, (i.é, a intenção do arguido de atingir e molestar BB)

14 - Não obstante o arguido ter impugnado a matéria de facto dada como provada nos pontos 10., 21., 24., 25. e 26., invocando para o efeito erro de julgamento ao abrigo do artigo 412° n.° 3 do Código de Processo Penal, o Tribunal recorrido veio escudar-se na fundamentação apresentada pelo tribunal de 1a instância para justificar a sua convicção e no princípio da livre apreciação da prova, apesar da prova quanto à culpabilidade do arguido ser inexistente, como resultava patente do texto da decisão recorrida o que ora também sucede.

15 - No caso dos autos, não resultou demonstrada o conhecimento e vontade do arguido de realização do tipo legal de crime, nem que tivesse actuado com dolo e, muito menos, que tivesse despejado a água sobre a assistente propositadamente.

16   - Os meios de prova produzidos não foram devidamente apreciados e
valorados no acórdão sob recurso, revelando-se insuficientes para concluir que o
arguido praticou o crime pelo qual foi condenado e, desse modo, ocorre a
insuficiência da matéria de facto para a decisão tomada, vício que ora se invoca.

17 - Atendendo à prova em apreço, inexistindo prova segura e inequívoca de que o arguido quis ofender molestar BB na sua integridade física, várias incertezas se colocavam necessariamente ao tribunal e, porque assim, estava este obrigado a fazer apelo ao princípio in dubio oro reo, o qual impunha a absolvição do arguido por falta de provas.

18 - O tribunal recorrido violou o disposto no artigo 127° do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da livre apreciação da prova, fazendo uma apreciação arbitrária dessa mesma prova, bem como o disposto no artigo 32° n.° 2 da Constituição da República Portuguesa, limitando-se a decidir segundo meras presunções de culpabilidade, o que impõe a sua revogação e substituição por outro que absolva o arguido AA da prática do crime pelo qual foi condenado.

19 - A conduta do arguido não preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, p. e p. pelo artigo 145° n.° 1 al. c) (por referência ao art. 144° a) e 2 e 132° n.° 2 al. i) do Código Penal.

20 - A desfiguração grave e permanente é a alteração do aspecto de figura, do ofendido (desde logo o rosto e o corpo no seu conjunto - ver o Código Penal de 1982, de Leal Henrique e Simas Santos, volume 2, página 102).

21 - Deverá, portanto, atender-se apenas às deformidades notáveis, ou seja, à susceptibilidade para que a lesão seja notada, ponderando a extensão, a localização no corpo da pessoa ofendida, a cor da pele, e outros elementos.

22 - No caso concreto dos autos, as lesões de BB, dada a sua localização, não são notadas nem visíveis e, não integrando o conceito de deformidade notável, a previsão da alínea a) do artigo 144° do Código Penal não se encontra preenchida.

23 -A desfiguração grave e permanente é a alteração visível do aspecto/figura do ofendido, o que não ocorre in casu.

24 - As lesões/cicatrizes no corpo da ofendida não são visíveis, atenta a zona do corpo atingida, habitualmente coberta pelo vestuário, sendo certo que também não resultou demonstrada a visibilidade de tais marcas quando aquela está de fato de banho, estando em falta os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito.

25 - O acórdão recorrido deverá ser revogado, por não estar verificada a circunstância agravante prevista na al. a) do artigo 144° do Código Penal e, consequentemente, o arguido não poderia ter sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145° n.° 1 al. c) do Código Penal.

26 - Por seu turno, "meios insidiosos" são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta, e cujo poder mortífero se encontra oculto, surpreendendo a vítima, tornando-se extremamente difícil ou impossível a defesa.

27 - A água quente tem um uso corrente, sendo utilizada na higiene pessoal bem como nas lides domésticas, podendo ser utilizada para outras finalidades, não estando abrangida no conceito jurídico-penal de "meio insidioso".

28 - Além disso, no caso dos autos, o arguido esclareceu que pretendia utilizar a água quente, que aqueceu previamente, para tomar banho, resultando as lesões na assistente de um acidente - desequilíbrio do arguido que fez com que a água se derramasse sobre a mesma (declarações gravadas em 08/03/2017, com início às 9:31:31 e o seu termo pelas 10:11:57; de minutos 16:44 a 16:52, 24:43 a 24:50, 9:07 a 10:00, 27:00 a 27:10 e 30:10 a 30:37), o que não foi contrariado por qualquer outro meio de prova.

29 - O arguido não actuou de forma dissimulada, oculta, nem se aproveitou do seu estado de abandono para a atingir de modo que, in casu, não está verificada a circunstância agravante qualificativa mencionada na alínea i) do n.° 2 do artigo 132° do Código Penal.

30 - Para se afirmar a existência de especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente, impõe-se a análise das circunstâncias concretas que rodearam a prática do facto e a conclusão de que elas são tais que exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou que são merecedoras de um severo juízo de censura, o que falece no caso dos autos.

31 - No caso em apreço, não se verifica a especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente, nem o crime em causa foi praticado através do uso de "meio insidioso", pelo que o arguido não pode ser condenado nos moldes previstos no artigo 145° n.° 1 do Código Penal.

32 - Uma vez que, no caso sub judice, não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, impõe-se a absolvição do arguido AA da prática do crime pelo qual foi condenado.

33 - O acórdão recorrido, limitando-se a aderir à fundamentação do Tribunal de 1a instância, fez uma incorrecta interpretação e aplicação da lei, violando o disposto no artigo 132° n.° 2 alínea i) e 145° n.° 1 ambos do Código Penal impondo-se, por isso, a sua revogação.

34 - O acórdão recorrido, ao alterar a medida da pena aplicada ao arguido, fixando-a em seis anos de prisão, violou flagrante e ostensivamente o disposto nos artigos 40°, 70° e 71°, todos do Código Penal.

35    - O Tribunal não procedeu a uma correcta análise e ponderação das
circunstâncias enumeradas
, exemplificativamente, no artigo 71° do Código Penal
para determinar a medida concreta da pena. Não teve em consideração,
nomeadamente que,

36  - O arguido está perfeitamente integrado, quer familiar quer socialmente.

37   - Sempre trabalhou na pesca e/ou na apanha de marisco/bivalves,
maioritariamente na zona de ..., tendo hábitos de trabalho e competência nas
tarefas realizadas, registando curtos períodos de inactividade profissional,
relacionados com as épocas de defeso ou termo de contratos de trabalho, sendo
considerado uma pessoa trabalhadora.

38 - Reparte o seu tempo entre o desempenho da actividade profissional, as zonas piscatórias de ... (mercado e espaços envolventes) e o convívio com colegas de profissão.

39 - Não obstante a precaridade que caracteriza a actividade piscatória, trabalha desde há alguns meses na pesca e na apanha de mariscos/bivalves, por conta da empresa CC, na zona de ..., auferindo rendimento variável em função do resultado do pescado.

40 - E apresenta significativa apreensão relativa à intervenção da Justiça, tudo conforme resulta do relatório social para determinação da sanção junto aos autos de 18/04/2017, onde se concluiu existir condições para o arguido, em caso de condenação, cumprir uma medida não privativa de liberdade com acompanhamento por parte da DGRSP.

41 - Não resultando dos autos qualquer intenção ou vontade do arguido de infligir sofrimento na assistente BB mas, antes, que não queria magoá-la (conforme declarações na sessão de 08/03/2017, com início às 9:31:31 e o seu termo pelas 10:11:57, de minutos 26:10 a 26:25).

42 - Apesar de ter averbada uma condenação, no âmbito do Processo n.° 316/06.2PAOLH do extinto 1o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ..., os factos remontam a 24/03/2006 e a pena de multa foi já declarada extinta pelo pagamento.

43 - Dos factos apurados não resulta a falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita.

44 - Por todo o exposto, ainda que se mostrasse indispensável a aplicação de pena privativa da liberdade para satisfazer as exigências de prevenção, geral e especial, a pena aplicada ao arguido se afigura claramente excessiva e em total desacordo com a culpa do agente, daí que que não tenha havido adequação quanto à determinação da medida concreta da pena.

45 - A pena aplicada ao arguido, de seis anos de prisão, é objectivamente desproporcional e desajustada.

46 - O acórdão recorrido violou os princípios básicos de determinação da medida da pena, ao arrepio dos critérios previstos nos artigos 40°, 71° 145° n.° 1 al. c) (por referência ao art. 144°) e 2 e 132° n.° 2 al. i), todos do Código Penal.

47 - Por isso, sem prejuízo de se considerar que o conjunto da prova produzida impõe a absolvição do arguido, caso seja outro o entendimento de V. Exas., sempre se imporá a redução da pena aplicada ao arguido para uma pena de prisão em medida não superior a 3 (três) anos, suspensa na sua execução por igual período ainda que sujeita a regime de prova a delinear pela DGRSP, a qual realizará de forma adequada e suficiente o objectivo de prevenir a prática de futuros crimes da mesma natureza pelo arguido.

48 - Havendo que ponderar as razões de prevenção especial que se fazem sentir no caso concreto, para efeitos do disposto no artigo 50° n.° 1 do Código Penal.

49 - São dois os pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão: um de ordem formal e que consiste em a pena de prisão não ser superior a 5 anos; e outro de ordem material, e que consiste em o tribunal concluir que, face à personalidade do arguido, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

50 - Encontra-se verificado o requisito de ordem formal, no pressuposto que a pena a aplicar ao arguido não deverá ser em medida superior a três anos de prisão, assim como o de ordem material. Pois,

51 - Abonam a favor do arguido as seguintes circunstâncias:

- Encontrar-se familiar, social e profissionalmente integrado;

- As suas condições de vida e situação pessoal;

- Ter colaborado com o Tribunal para a descoberta da verdade;

- A condenação anterior não merecer relevo, atendendo a que os factos remontam a 24/03/2006 e a pena já foi declarada extinta pelo cumprimento;

- A ofendida ter refeito a sua vida e de nunca ter sido intenção do arguido magoá-la.

52  - A censura dos factos praticados e a ameaça da prisão serão ainda suficientes para advertir o arguido contra a prática de novos crimes da mesma natureza. sendo que a consideração das exigências de prevenção geral, apesar da sua intensidade, no caso concreto não impõem a prisão efectiva do arguido e, simultaneamente, contribuirá para a consolidação da sua personalidade e para a plena assunção das suas responsabilidades como membro da sociedade, realizando de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

53 - É possível fazer-se uma prognose social favorável ao arguido em termos que permitem suspender-lhe a execução da pena de prisão que vier a ser-lhe aplicada, em medida não superior a três anos, afastando-se, desse modo, o arguido do efeito estigmatizante da prisão.

54 - Estando verificados os pressupostos de que o artigo 50° n.° 1 do Código Penal faz depender a suspensão da execução da pena de prisão, esta sempre poderá ser subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta e, bem assim, sujeita a regime de prova assente num plano individual de readaptação social.

55 - O acórdão recorrido enferma, assim, de erro notório na determinação da medida da pena aplicada ao arguido e, ainda, por não ter procedido à suspensão da execução da mesma, em violação do disposto nos artigos 50°, 51°, 52°, 53° e 54°, todos do Código Penal.

56 - Só a aplicação de uma pena privativa da liberdade, suspensa na sua execução, reflectirá e tomará em consideração as circunstâncias atinentes à medida da culpa, razão pela qual se deverá proceder à revogação do acórdão recorrido.

57 - No caso dos autos, não se mostram verificados os pressupostos de responsabilidade civil por factos ilícitos nos termos do artigo 483° do Código Civil.

58 - Não resultou demonstrada a intenção do arguido ofender o corpo ou a saúde de BB, falece o requisito da "culpa" exigido para a condenação do arguido nesta sede [em virtude do erro de julgamento dos pontos 10, 24, 25 e 26 dos factos provados, que consubstancia flagrante violação do princípio in dubio pro reo].

59 - Com o que os pedidos de indemnização civil deduzidos por BB, Centro Hospitalar do ... EPE e Centro Hospitalar de ... EPE deveriam ter sido ser julgados integralmente improcedentes e, em consequência, absolver-se o arguido AA de todo o peticionado.

60 - O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso, haja dolo ou mera culpa, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização - artigos 494.° "ex vi" artigo 496.° n.° 3 do Código Civil, para o que deverá atender-se aos padrões normalmente utilizados pelos tribunais em casos análogos e tudo o mais que acompanhe o caso concreto.

61 - Referiu a demandante BB, de forma espontânea e bastante credível, que "anda bem todo o dia, faz a sua vida, é uma pessoa animada e brincadeiras" (declarações gravadas em 08/03/2017, com início às 11:18:13 e o seu termo pelas 12:02:16, de minutos 33:38 a 33:49), daí se retirando que as consequências dos factos não são assim tão gravosas nem a impedem de levar uma vida normal.

62 - A testemunha DD afirmou que BB faz as lides domésticas e cuida dos filhos, convivendo com a mesma uma vez por semana, como fazia antes (depoimento gravado na sessão de 08/03/2017, com início às 12:15:13 e o seu termo pelas 12:23:37, de minutos 06:44 a 07:26).

63   - Quanto ao impacto que os factos em julgamento tiveram na vida da
demandante, esclareceu a testemunha EE que, na
actualidade, aquela fala, ri, brinca, vai tomar café com ela, continua a ser a mesma
pessoa (depoimento gravado em 08/03/2017, com início às 12:24:04 e termo às
12:29:26, de minutos 01:51 a 02:17).

64 - No que concerne à vida afectiva/amorosa, afirmou a testemunha ... que a viu beijar o Sr. ... no seu café, viu-o muitas vezes a dirigir-se para a casa dela, a andarem juntos na rua, a fazerem compras, viu beijos na boca, notando-a satisfeita com esta relação (depoimento gravado em 08/03/2017, com início às 15:56:34 e o seu termo pelas 16:07:00, de minutos 03:00 a 3:56, 04:40 a 5:10, 06:40 a 06:50, 07:25 a 07:35 e 10:06 a 10:11), tudo levando a crer que também neste campo a demandante retomou a normalidade.

65 - O valor a este título arbitrado pelo acórdão recorrido (€ 30.000,00) afigura-se-nos inflaccionado, levando em conta o facto de a supressão da própria vida ser indemnizada com o valor aproximado de € 50.000,00.

66 - Neste circunstancialismo, é de considerar que a indemnização arbitrada à demandante, no valor de € 30.000.00 (trinta mil euros), peca por excessiva atendendo à factualidade que resultou provada, nomeadamente quanto aos danos não patrimoniais.

67 - A indemnização arbitrada, pelos danos não patrimoniais causados a BB, não deverá ser em montante superior a € 15.000,00 (quinze mil euros), portal quantia se mostrar ajustada e adequada.

Nestes termos e nos mais de Direito deverá o presente recurso ser admitido, por estar em tempo, a decisão ser passível de recurso e o recorrente parte legítima, e, atentos os fundamentos expostos, verificada a procedência do presente recurso, ser revogado o acórdão recorrido e em sua substituição ser proferido outro que:

a)             Declare a nulidade do acórdão recorrido, prevista no artigo 379.° n.° 1 al.
b) do Código de Processo Penal, e, nos termos do disposto no artigo
122.° n.° 2 do citado diploma legal, ordene a repetição do acto, sendo
reaberta a audiência para que sejam as alterações comunicadas ao
arguido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 359° do
Código de Processo Penal.

Ou, caso assim não se entenda,

b)              Absolva o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145.° n.°
1 al. c) (por referência ao art. 144.°) e 2 e 132.° n.° 2 al. i) do Código
Penal, uma vez que o Tribunal considerou provados factos sem que
deles tivesse sido feita prova, quando era imperativo que fossem
considerados como não provados, sendo notório o erro de julgamento e
a violação do princípio
in dubio pro reo.

Ou, caso assim não se entenda,

c)             Absolva o arguido AA da prática de um
crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.°
n.° 1 al. c) (por referência ao art. 144.°) e 2 e 132.° n.° 2 al. i) do Código
Penal porque, no caso dos autos, não estão preenchidos os elementos
objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, não se verificando a
"desfiguração", a utilização de "meio insidioso" nem a especial
censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente; quanto
muito, o arguido apenas poderia ser condenado pela prática, em autoria
material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e
p. pelo artigo 148.° n.° 1 do Código Penal.

Ou, caso assim não se entenda,

d)              Reduza a pena concretamente aplicada ao arguido, a qual não deverá
ultrapassar 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual
período, ainda que sujeita a regime de prova a delinear pela DGRSP,
por estarem verificados os pressupostos do artigo 50.° e seguintes do
Código Penal, a qual realizará de forma adequada e suficiente o
objectivo de prevenir a prática de futuros crimes da mesma natureza
pelo arguido.

E,

e)        Julgue os pedidos de indemnização civil deduzidos por BB
, Centro Hospitalar do ... EPE e Centro Hospitalar
de ... EPE integralmente improcedentes, por não se
mostrarem verificados os pressupostos de responsabilidade civil por
factos ilícitos expressos no artigo 483.° do Código Civil, absolvendo-se o
demandado AA de todo o peticionado;
ou, julgando verificados os requisitos da responsabilidade civil por factos
ilícitos, a indemnização arbitrada à demandante BB, pelos danos não patrimoniais, deverá ser reduzida para
montante nunca superior a € 15.000,00 (quinze mil euros), por tal
quantia se mostrar ajustada e adequada aos danos verificados.

6. Respondeu o Ministério Público junto da Relação de Évora, concluindo:

«CONCLUSÕES

1.       Nos termos do artigo 434° do CPP, o recurso para o STJ visa exclusivamente questões de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410° n°s 2 e 3 do mesmo diploma legal - detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergente da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410° n° 2 do Código de Processo Penal e/ou nulidade da decisão, nos termos do artigo 379° nº2 do CPP -cfr.Art°410 nº 3 do CPP.

2.       A recorrente suscita neste recurso as questões que colocara ao desembargo do tribunal da relação, formulando acervo conclusivo com questões ora (re)suscitadas e que foram já bastamente dilucidadas no acórdão recorrido.

3- No recurso interposto o que salta à vista é que a arguida motiva como se estivesse a impugnar a decisão proferida em 1a instância, mas não já o douto acórdão publicado pelo Tribunal da Relação de Évora do qual recorre.

4. O Tribunal da Relação encerrou o ciclo do conhecimento da matéria de facto, por um lado, e a decisão proferida não ostenta qualquer vício, ao nível dessa mesma matéria, que a torne uma decisão incorrecta, ao ponto de vista da lógica jurídica, a impor qualquer conhecimento oficioso de vícios elencados no artigo 410º nº 2 do CP.

5- Por isso, entendemos que o recurso apresentado pelo arguido não pode manifestamente, proceder, razão pela qual deve o mesmo ser improcedente.

6.      Sempre se dirá que está devidamente concretizada a qualificação do crime de ofensa à integridade física qualificada que resulta de uma análise séria sobre as circunstâncias que envolveram a formação da vontade de praticar o crime para se concluir legitimamente que o arguido agiu por vingança e de forma insidiosa infligindo-lhe o máximo de sofrimento possível. É, pois, indiscutível que se acha correto o enquadramento jurídico que se deu aos factos.

7.      A medida da pena encontrada para o recorrente no acórdão objecto do recurso deverá ser mantida, já que os bens jurídicos postos em crise, o dolo directo com que actuou e as suas concretas condições de vida permitem concluir que essa pena é adequada e se enquadra nos critérios legais, não se descortinando que preceito legal tenha resultado por ele violado, em perfeita harmonia com o disposto nos artigos 71º e 72° do Código Penal.

8.      O acórdão recorrido deve ser confirmado, visto não padecer de qualquer vício, nem viola nenhum dos normativos invocados pelo recorrente, antes, comportando uma decisão que se nos afigura justa, equilibrada e proporcionai, traduzindo a resposta que a comunidade tem por adequada aos factos cometidos, sua gravidade e consequências.»

7. Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer onde, após invocar a ilegitimidade do Ministério Público quanto ao segmento do recurso relativo à questão da indemnização civil, expressa o entendimento de que:

«[…]

5 – O recorrente não tem razão.

O seu recurso não merece provimento.

5.1. Dando aqui por reproduzida, com a devida vénia, a resposta do MP, que acompanhamos, oferece-nos apenas sublinhar o seguinte:

A matéria de facto provada está definitivamente fixada (cfr. art. 434º, do CPP).

A este Venerando Tribunal compete proceder ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios da decisão contemplados no art. 410º, nºs 2 e 3 do CPP.

Do texto da decisão ora recorrida não se detectam quaisquer dos vícios elencados no citado preceito, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

De sublinhar que é do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora que é interposto o recurso e não da decisão da 1ª instância. O recorrente reedita as questões, quanto aos vícios contemplados no art. 410º, nºs 2 e 3 do CPP, suscitadas no recurso para o Tribunal da Relação, que expressamente se pronunciou, sobre tal matéria, decidindo não padecer o Acórdão da 1ª instância de quaisquer dos vícios a que se reporta o art. 410º, do CPP.

A decisão ora recorrida não padece de quaisquer dos vícios elencados nos nºs 2 e 3, do art. 410º, nem de qualquer das nulidades a que se referem os arts. 374º e 379º do CPP.

A matéria de facto está fixada, importa agora proceder ao reexame da matéria de direito.

5.2. Tem particular relevância para o destino dos autos a questão suscitada pelo recorrente relativamente à alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da decisão que, em seu entender está contemplada no art. 359º, por força do que dispõe o art. 1º, al. f), ambos do CPP.

Por isso que o arguido não poderia ter sido condenado pelo crime de ofensas à integridade física agravada, p. e p. pelo nº 3, do art. 145º com referência ao art. 144º, ambos do CP.

Mas não tem razão, como cristalina e fundadamente explana o Acórdão recorrido, a fls. 1056 e segs..

Os factos são os descritos na acusação e estes integram o crime de ofensas corporais qualificadas, p. e p. pelo art. 145º, nº 3 do CP e não, como o MP imputa ao arguido, o crime p. e p. pelo art. 144º do CP.

Neste caso, não há alteração substancial dos factos e da respectiva qualificação jurídica contemplada no art. 359º do CPP, mas sim, verifica-se uma alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação, pelo que ao caso se aplica o disposto nos arts. 358º, nº 3 do CPP.

Como bem respondeu o Acórdão recorrido à questão da nulidade da sentença por força da alteração que o recorrente considera substancial dos factos e da respectiva qualificação jurídica constantes da acusação, foi cumprido o disposto no art. 358º, nºs 1 e 3 do CPP.

Foi dada oportunidade ao arguido de exercer o seu direito de defesa, quer quanto à alteração não substancial dos factos, quer quanto à alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe eram imputados na acusação (cfr. Acórdão recorrido, fls. 32).

5.3. Da factualidade provada, releva a assente sob os nºs 10, 24, 25 e 26.

O arguido, no dia 22.12.2015, pela 1h00, ao verificar que a ofendida se encontrava a dormir no sofá, foi aquecer água numa panela, dirigiu-se àquela e atirou a água a ferver para cima dela, atingindo-a (facto nº 10). O arguido quis atingir e a molestar fisicamente os órgãos de reprodução feminina, afectando a capacidade da função sexual e a possibilidade de usar o corpo de modo esteticamente agradável (facto 24). Agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ser proibida e punida por lei penal a sua conduta (facto 25).

O arguido não está arrependido (facto 26).

Estes factos preenchem os elementos típicos do crime de ofensas à integridade física qualificada, pelo qual foi o arguido condenado.

O Acórdão recorrido, confirmando, nesta parte, a decisão da 1ª instância, aplicou correctamente o direito à matéria fixada, pelo que não merece censura.

5.4. Relativamente ao quantum da pena aplicada, 6 anos de prisão, mostra-se a medida adequada, proporcional e necessária.

A frieza e insensibilidade da actuação do arguido, repercute-se na sua postura posterior, em julgamento, não mostrando arrependimento.

Encontrando-se a vítima em casa, descontraída e descansada, dormindo, confiante na aceitação pelo arguido do termo da relação marital que mantinham, este, com total indiferença e maldade, ferve água que atira para cima daquela, atingindo-a nas suas zonas íntimas e reprodutivas, causando-lhe lesões graves e dores intensas.

O art. 145º do CP contempla um tipo de culpa agravada de ofensa à integridade física por força da cláusula geral de especial censurabilidade e perversidade do agente, com reporte ao art. 132º, nº 2, do CP – cfr. anotações ao preceito de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código Penal.

O arguido agiu de modo insidioso. Decidiu o Ac. do STJ de 04.07.1996, citado em anotação do art. 132º, do mesmo Código Penal Comentado que comete o crime de homicídio por meio insidioso o agente que mata a sua esposa (…) quando esta dormia. Mutatis mutandis esta Jurisprudência tem plena aplicação ao caso concreto dos autos. 

São exponenciais os casos de violência doméstica grave que vêm a ser cometidos pelo cônjuge ou companheiro(a)  rejeitado(a).

São crimes que afectam e perturbam a paz social e a convivência familiar, censurados fortemente pela comunidade.

São exigentes as necessidades de prevenção geral e especial, pelo que não merece reparo a medida da pena de 6 anos de prisão aplicada.

6 - Pelo exposto,

emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso do arguido AA.»

8. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, não tendo sido apresentada resposta.

9. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Matéria de facto

É a seguinte a matéria de facto dada como provada e como não provada na 1.ª instância pelo Tribunal Colectivo e integralmente confirmada pelo Tribunal da Relação:

A. Factos provados

1 - O arguido AA iniciou uma relação de namoro em Julho de 2015 com BB, tendo vivido juntos desde aquele mês (cerca de uma semana após iniciarem o namoro) no ....

2 - À data dos factos viviam com BB, na referida morada, FF, nascido em ...2006, GG, nascida em ....2014, e ..., nascido em ....2014.

3 - Durante o tempo em que o arguido e BB viveram juntos ocorreram discussões.

4 - No dia 22 de Dezembro de 2015, de manhã, a BB disse ao arguido para este levantar os abonos para pagar a renda da casa e a água e para, com 20,00 euros que iam sobrar, comprar uns ténis novos.

5 - Nesse dia, à hora do almoço, o arguido AA regressou a casa sem os ténis que deveria ter comprado e, questionado pela BB, o arguido disse-lhe que os tinha comprado, mas que estavam guardados num armazém de um amigo.

6 - A ... acabou por descobrir que o arguido não comprara os ténis e, num café aonde se tinham deslocado após o almoço, confrontou-o com esse facto, ao que o arguido respondeu dizendo que gastara os 20 euros em cocaína, tendo-lhe então a BB dito que a relação deles terminava.

7 - A BB foi trabalhar e, por volta das l8h30, o arguido e a BB regressaram à casa onde viviam, tendo começado entre eles uma discussão.

8 - A BB voltou a dizer ao arguido que a relação terminara, querendo o arguido permanecer lá em casa, acabando a BB por o deixar lá permanecer até ao Natal, por o arguido não ter para onde ir.

9 - Por volta das 22h00/22h30, a BB foi-se deitar no sofá da sala, onde dormia, ficando a sua filha GG deitada num carrinho de bebé encostado ao sofá, tendo o arguido saído da sala.

10 - Cerca da 1h00 o arguido, ao verificar que a BB se encontrava a dormir no sofá, estando a GG a dormir no carrinho de bebé, foi aquecer água numa panela, dirigiu-se à BB e atirou a água a ferver para cima dela, atingindo-a.

11- Após, o arguido saiu de casa e foi para parte incerta, levando consigo o telemóvel da BB.

12 - BB acabou por sentir a zona atingida a inchar e a arder e, após algum tempo, pediu ajuda, tendo II, que ouviu a BB pedir ajuda, chamado o INEM, que ali se deslocou e transportou a BB para o Serviço de Urgência do Hospital de ....

12 - A BB, após terem sido feitos os cuidados primários, foi transportada para o Hospital de ..., onde foi internada na Unidade de Cuidados de Queimados a 24.12.2015.

13 14 - A BB, como consequência do descrito, sofreu queimadura de 2.° grau da região abdominal infra umbilical (com zona de 2.° grau/3.º grau), de toda a área genital, de todo o perímetro anterior dos 2/3 superiores das coxas, da metade lateral da nádega esquerda, de 3/4 inferiores da nádega direita e da porção superior da face posterior de ambas as coxas, pequenas flictenas na palma e dorso do 3.° dedo da mão direita e dorso do 3.° dedo da mão esquerda, correspondente a cerca de 16% da superfície corporal total.

15 - Apresenta:

- no períneo: área cicatricial hipopigmentada de queimadura na face anterior da região inguinal, na face interna de ambas as coxas (ao nível das pregas inguinais), no terço médio e inferior da região glútea, bilateralmente;

- no membro inferior direito: área cicatricial quelóide, de queimadura, no terço superior e terço médio da face interna da coxa;

- no membro inferior esquerdo: área cicatricial avermelhada, de enxerto, no terço superior e no terço médio das faces anterior, lateral e interna da coxa, com afectação da capacidade de fruição sexual.

16 - Na Unidade de Cuidados de Queimados do Centro Hospitalar de ... foi submetida a terapêutica regular, com pensos e desbridamentos cirúrgicos, e a uma operação plástica reconstrutiva, realizada em 11.02.2016, consistente ao desbridamento e enxerto da pele, a fim de manter a área cruenta na região infra púbica.

           17 - A BB teve de fazer fisioterapia para recuperação funcional dos membros inferiores.

           18 - A BB foi transferida para o Hospital de ... em 22.02.2016, tendo ficado internada desde 23.02.2016 no Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital de ... até ter tido alta hospitalar, no dia 8.03.2016.

19 - A BB sentiu dores nas zonas atingidas pela águia a ferver.

20 - A BB sentiu dores nas zonas atingidas durante 2 anos e seis meses, o que a impede de ir à praia.

21 - Não tem disponibilidade para encetar uma relação afectiva e/ou sexual.

22 - Sofre de Transtorno de Stress Pós-Traumático.

23 - São expectáveis as seguintes ocorrências na vivência da BB:

a)      humor depressivo ou sub-depressivo;

b)      auto-imagem corporal depreciativa;

c)     dificuldades em eventuais relacionamentos afectivos, com possibilidade de não existência dos mesmos;

d) dificuldades na socialização, com possibilidades de isolamento;

e) fruição sexual;

e) [[1]] fenómenos de "pensamentos intrusivos" (sensação de regressar frequentemente a determinado pensamento sem controlo do mesmo) e/ou flashbacks (revivenciamento da situação traumática, com ou sema ausências da realidade).

24 - Quis o arguido AA, com o seu comportamento, atingir e molestar fisicamente os órgãos de reprodução feminina, afectando a capacidade de fruição sexual e a possibilidade de usar o corpo de modo esteticamente agradável.

25 - Agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ser proibida e punida por lei penal a sua conduta.

26 - O arguido não está arrependido.

27 - O arguido provém de uma família modesta, sendo o pai mestre numa traineira e a mãe empregada fabril em conserveira. Os pais separaram-se ainda o arguido era menor, tendo este ficado a viver na companhia da mãe com mais três irmãos. Foram referidos hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do pai, associados às ausências prolongadas de casa. Abandonou a frequência escolar após terminar a 4.3 classe, após várias retenções e um comportamento escolar pouco investido.

Começou a coadjuvar a família na pesca e na apanha de marisco/bivalves, mantendo-se integrado no agregado materno até ingressar no serviço militar obrigatório. Após o termo deste o arguido autonomizou-se, tendo iniciado uma relação marital da qual nasceu um filho (actualmente com 15 anos de idade e institucionalizado). Esta união de facto durou cerca de 10anos, tendo-se caracterizado por alguma instabilidade relacional, traduzida por discussões frequentes, comportamentos agressivos e persecutórios, eventual consequência de hábitos de consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do arguido.

Sempre trabalhou na pesca e/ou na apanha de marisco/bivalves, maioritariamente na zona de ..., tendo hábitos de trabalho e competência nas tarefas realizadas. Há registo de curtos períodos de inactividade profissional, por vezes em contexto das épocas de defeso e também após termo de contratos de trabalho.

Actualmente reparte o seu tempo entre o desempenho da actividade profissional, as zonas piscatórias de ... (mercado e espaços envolventes) e a permanência/convívio com colegas de profissão.

Com uma situação profissional pouco definida, em função da precariedade que caracteriza a actividade piscatória, trabalha desde há cerca de três meses na pesca e na apanha de marisco/bivalves por conta da empresa CC, na zona de .... Aufere quantias variáveis, em função do resultado do pescado, podendo auferir cerca de 150 euros por semana.

Reside sozinho, numa casa cedida gratuitamente na .... Consome bebidas alcoólicas de forma regular e funcional, situação que, segundo o próprio, gere sem problemas.

Revela algumas dificuldades na elaboração de uma análise crítica dos factos.

É considerado uma pessoa trabalhadora.

Foi condenado, por decisão de 9.03.2010, transitada em julgado em 11.04.2010 (Proc. 316/06, do Tribunal de ...), na pena de 115 dias de multa, à taxa diária de 3 euros, pela prática, em 24.03.2006, de um crime de ofensa à integridade física, pena declarada extinta pelo cumprimento.

28 - Após sair do hospital a BB continuou a fazer tratamentos em casa do seu pai (onde se manteve até Abril de 2016), local onde se deslocavam funcionários do centro de saúde.

As dores sentidas pela BB nas zonas atingidas mantiveram-se até depois do verão de 2016.

Actualmente sente dores quando fazem pressão na zona atingida ou quando faz mais frio. Em consequência dos factos:

- ficou mais triste e sente-se muito triste;

- tem medo do arguido e anda assustada, não se sentindo segura;

- tem pesadelos;

- chora sempre que se lembra do ocorrido;

- sente angústia;

- tem desgosto e vergonha pela forma como o seu corpo se encontra (com as cicatrizes), sentindo nojo de si própria.

29 - Na sequência dos factos descritos o Centro Hospitalar do ..., EPE, prestou assistência médica à BB no valor de 1.398,67 euros.

30 - Na sequência dos factos descritos o Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE, prestou assistência médica à BB no valor de 9.313,43 euros.

B. Factos não provados

Não se provou que:

a) as discussões referidas em 3 ocorriam em virtude do arguido AA ser uma pessoa ciumenta e violenta, e ocorriam quase diariamente;

b) as mais das vezes as discussões eram motivadas pelo facto do arguido não trabalhar, não querer encontrar emprego nem ajudar a BB a sustentar a família;

c) a BB desconfiava que o arguido fumava produtos estupefacientes;

d) os factos descritos em 4 ocorreram pelas 10/11 horas, o dinheiro foi logo entregue pela BB e visava pagar também as despesas com a electricidade;

e) por volta das 18hOO o arguido AA regressou a casa sem os ténis novos que deveria ter comprado e, questionado pela BB sobre a razão de o não ter feito, aquele respondeu-lhe: "olha, com esse dinheiro comprei coca";

f) de imediato (logo após o descrito na al." e) dos factos não provados) gerou-se entre eles uma discussão, tendo nesse momento a BB dito ao arguido para ele ir apanhar as suas coisas e sair de casa, que já não o queria lá mais;

g) os factos descritos em 9 ocorreram por volta das 23h30 e o arguido ficou a andar de um lado para o outro, e, em 10, o arguido destapou a BB.»

C. A convicção do tribunal

«Quanto aos "factos descritos em 1 a 10 decorreu, em primeira linha, das declarações da assistente, que teve directa intervenção nos factos e os relatou de forma vívida e emocionada, própria de quem revive factos dolorosos que efectivamente vivenciou, dando ainda deles uma versão coerente, intrinsecamente consistente e plausível. Essa versão era ainda corroborada pelas lesões efectivamente sofridas. Quanto ao descrito em 2, atendeu-se ainda aos documentos de fls. 149 e 150 na fixação das datas de nascimento do FF e da GG.

A versão do arguido [que sustentou que se dirigia para a casa de banho, com água para tomar banho, e que se desequilibrou ao passar perto do sofá onde a BB estava sentada, tendo-a então atingido] constituía, de forma transparente, uma tentativa (algo desastrada) de branquear a sua conduta, de se desculpabilizar (escudando-se num putativo acidente que afastaria a sua responsabilidade), não tendo merecido qualquer crédito. De um lado, a forma confusa, superficial, reticente e fria como a relatou contrastou de forma flagrante com a coerência, pormenorização, emotividade e verosimilhança da versão da assistente, que se oferecia logo como mais convincente e autêntica. O mero confronto das duas versões, nos termos referidos, logo justificava que se confiasse na versão da assistente. De outro lado, a versão do arguido mostrava-se frágil e inverosímil, sem poder persuasivo. Assim, e quanto ao momento essencial dos factos, revelou extrema dificuldade em descrever o «acidente», começando por dizer que não sabia bem o que aconteceu, que não se lembrava, e só após insistências caba por dizer que se desequilibrou, mas sempre sem conseguir descrever essa situação, o que efectivamente teria acontecido; depois, também não consegue explicar porque leva para o exterior da casa a panela, e sobretudo porque leva consigo o telemóvel da BB, e porque se vai embora sem pedir ajuda (na verdade, nem sequer procura contactar a BB, para ver como estaria), o que constituem comportamentos incompreensíveis do ponto de vista da existência de um mero acidente; a própria necessidade de tomar banho às horas referidas depois dos eventos traumáticos ocorridos [discussão e termo da relação do casal] se mostra absolutamente implausível. Tais dados já seriam bastantes, só por si, para retirar qualquer valor persuasivo à sua versão. Por fim, esta versão é ainda repelida por dados acessórios apurados: apesar do desequilíbrio ter provocado o derrame da água, este derrame é tão controlado que não atinge o arguido (como este admitiu) e apenas ocorre sobre a BB, pois apenas esta e as mantas do sofá ficam molhadas (como decorreu das declarações desta BB e da testemunha II [vizinha da BB e do arguido, que se deslocou ao local ao ouvir os pedido de ajuda da BB]). Donde não se ter atribuído qualquer valor persuasivo aos exactos termos desta versão.

Sem embargo, desta versão ainda decorria, de um lado, a admissão, pelo arguido, da autoria dos factos (embora não na forma como ele exactamente os descreve)! - autoria que sempre se alcançaria por via indirecta (por inferência), por não haver outra possibilidade alternativa'. E, de outra banda, permite, ao excluir qualquer acidente, e no descrito contexto dos factos, afirmar que a conduta do arguido corresponde à descrita: despejar a água sobre a assistente.

O arguido admitiu ainda alguns dos factos acessórios ou laterais descritos (a maior parte inócua do ponto de vista do núcleo essencial da discussão), relevando, de forma particular, a admissão, aqui plausível, do descrito em 11 dos factos provados.

Em particular e quanto ao facto de a água estar a ferver, atendeu-se aos termos das queimaduras infligidas, que só se explicam por a água estar muito quente - e atendendo ainda ao depoimento, honesto, da aludida testemunha II, a qual referiu que ainda se queimou ao tocar na panela que o arguido abandonara (como este admitiu) no exterior da casa.

A matéria descrita em 12 decorreu do depoimento da aludida testemunha II, que teve directa participação em parte desses eventos (sendo a deslocação ao hospital confirmada pelos elementos documentais dos autos).

As declarações da assistente, sempre credíveis, e, de forma especial, os documentos dos autos (fls. 61/75/91 e ss., 100 e ss., 129 e ss., 230/286 e 478 e ss.) e os exames de fls. 426/433, 578/625 e 843 permitiram ainda a fixação da matéria descrita em 13 a 23 - notando-se, em particular, que a matéria descrita em 23, embora corresponda a uma mera possibilidade (expectativa), corresponde a um juízo pericial (fls, 578/625), que tem natureza factual (perícia esta de onde decorre, ainda, a matéria descrita em 22).

O depoimento da testemunha JJ [que conhecia a BB e o arguido, especialmente por frequentarem o seu café] não se mostrou bastante para afastar a convicção formada quanto à matéria descrita em 21 (primacialmente a partir das declarações da assistente), por se ter mostrado demasiado parcial [estranhando-se, mormente, que, perguntada pela existência de alguma relação da BB, refira dados instrumentais (vê uma pessoa a entrar na casa dela, etc.), mas omita os beijos na boca que, em momento posterior do depoimento, refere ter visto no seu café, quando estes seriam o sinal mais claro e directo daquela relação].

No que toca aos elementos subjectivos em causa, considera-se aqui, na linha do entendimento jurisprudencial pacífico e da solução doutrinal dominante, que se trata de verdadeira matéria factual (e não de elementos a surpreender por via normativa, mormente a partir da perigosidade típica da conduta). Tal entendimento, e face à natureza (exclusivamente psíquica) destes factos, postula, por um lado, que, na falta de confissão do agente do ilícito (único a conhecer directamente o seu estado psíquico), tais dados sejam indemonstráveis por forma directa, e, de outro lado, e como consequência disso, que tais factos sejam aferidos (e assim demonstrados) a partir dos factos objectivos apurados nos quais as motivações e determinações psicológicas dos agentes se reflictam, considerados à luz das regras da experiência e no quadro dos valores em causa e da perigosidade específica da acção para o bem jurídico.

No caso releva especialmente o meio utilizado [água a ferver, sendo amplamente sabido que esta provoca queimaduras extensas e graves, com elevadíssima probabilidade de causar sequelas permanentes], a forma de execução [deitando-se a água directamente sobre a visada, quando esta está a dormir, vestida e indefesa - assim se podendo escolher o local visado, dada a absoluta passividade da visada; e se garantindo também maior agressividade, pois a visada não se apercebe imediatamente do que ocorre.', não reagindo logo, e a roupa molhada aumenta o tempo de exposição ao calor] e o local visado [local que, repete-se, o arguido teve a possibilidade de escolher, dada a passividade da BB, adormecida]. Neste contexto, a matéria descrita em 24 e 25 constituía uma realidade (subjectiva) manifestamente segura, inferindo-se de tal quadro de forma directa, unívoca e clara (ou para além de toda a dúvida razoável). Donde a sua afirmação.

Já a mesma conclusão não era possível sustentar quanto à filha da BB (no sentido de que o arguido quis atingi-la com a água, teve esse evento como uma consequência necessária da sua conduta, ou sequer previu a possibilidade de tal suceder e conformou-se com tal possibilidade), considerando que: a BB e a sua filha estavam colocadas em espaços físicos separados (embora próximos ou contíguos), o que permite algum controlo sobre os efeitos da acção (ou melhor, dominar a acção quanto aos visados); e que a acção é efectivamente controlada, pois, segundo o que decorre das declarações da BB e da aludida testemunha II, apenas a BB e o sofá onde esta se encontra são atingidos. Com efeito, estes dados sugerem fortemente que o arguido nunca considerou a possibilidade de atingir a filha da BB ou, pelo menos, são manifestamente insuficientes para sustentar asserção contrária. De outro lado, as razões determinantes da acção do arguido também respeitam apenas à assistente. Por fim, o desconhecimento de outros pormenores da conduta do arguido (v.g., a distância a que despeja a água", ou a sua exacta posição quando o faz) também contribuem para dificultar a sustentação da referida asserção. Donde a exclusão da matéria da al. 1) dos factos não provados. Pese embora o arguido tenha afirmado estar arrependido (em rigor, pediu desculpa pelo que aconteceu e por ter dado trabalho «aos senhores», reportando-se ao tribunal), a sua postura face aos eventos ocorridos, desculpando-se a si mesmo, ao invés de assumir a responsabilidade pelos seus actos, mostra que não foi afectado de forma relevante pelos factos que praticou, que não está arrependido (ninguém pode estar genuinamente arrependido de algo que nega ter feito). Aliás, a afirmação final (relativa ao trabalho que causou ao tribunal) traduzia um outro sentido da sua afirmação: preocupava-o o impacto da situação no tribunal, que ia decidir a sua sorte, não estando propriamente preocupado C ou afectado) pelos factos que praticou (ou pela sorte da assistente). Donde a fixação do descrito em 26 C e a exclusão do descrito na al. q) dos factos não provados).

Os factos reportados em 27 decorreram do relatório social C em que, pelas suas fontes e metodologia, se confiou) e do CRC juntos aos autos, e ainda do depoimento, honesto, da testemunha LL [amigo do arguido, por isso conhecendo aspectos da sua maneira de ser].

Quanto à matéria descrita em 28 atendeu-se às declarações da assistente BB, credíveis, e aos depoimentos, honestos e convincentes, das testemunhas MM [pai da assistente, cuja situação acompanhou, tendo-a recebido em sua casa após a alta hospitalar], NN, EE e OO [amigas da BB, cuja situação por isso foram acompanhando] e, de forma mais ténue, PP [que tem contactos com a BB]. altamente credíveis nesta parte, da assistente

Quanto ao descrito em 29 e 30, a assistência deriva, como já referido, das declarações da BB e dos documentos dos autos, tendo-se atendido, quanto aos valores em causa, aos documentos de fls, 639/640 e 719.

Quanto à al. a) dos factos não provados, a efectiva frequência das discussões não foi exactamente concretizada (a BB referiu que ocorriam dia sim dia não, mas tratava-se de referência genérica não rigorosa; que, de qualquer modo, não coincidia com a alegação; e não se justificavam indagações adicionais sobre esta matéria, meramente circunstancial).

No que toca à matéria da al. m) dos factos não provados, a assistente reportou apenas que, pelo sofrimento que implica, não quer realizar a operação. Donde a exclusão desta matéria.

Quanto aos demais factos não provados que não foram expressamente considerados, foram excluídos, por não ter sido produzida prova que os confirmasse ou por se terem apurado factos distintos, incompatíveis com aqueles que se excluíram.

Eliminaram-se:

- os adjectivos por exprimirem conclusões (opiniões) do acusador e não factos (a realidade que pretendem valorar é apenas aquela que decorre dos estritos factos apurados) - mormente quanto aos adjectivos «grave e permanente», os quais têm também, no caso, uma específica carga normativa, dado o tipo legal imputado, que só por si justificaria a sua exclusão do domínio factual;

- a menção «o arguido não atingiu a bebé que se encontrava a dormir num carrinho de bebé, por mera casualidade», por conclusiva: constitui uma mera avaliação do acusador, a sua opinião sobre factos (descritos ou não).

O mesmo vale para a menção «podendo, atenta a sua tenra idade, privá-la de um importante órgão ou desfigurá-la grave e permanentemente, o que não conseguiu por razões alheias à sua vontade»: as avaliações do acusador não constituem factos;

- as menções «que a mesma além do prejuízo estético sofrido» e «sofre, igualmente, de danos psicológicos», por conclusivas: traduzem avaliações e não factos;

- o parágrafo «assim, o arguido com o seu comportamento, fez com que a BB ficasse afectada de maneira grave na sua capacidade/possibilidade de utilizar o corpo, uma vez que, de acordo com o relatório de perícia médico-legal ... », por conclusiva: trata-se de conclusão (opinião ou valoração) que o acusador faz do relatório que refere (referência esta também indevida, pois o relatório constitui, no caso, meio de prova e não facto relevante);

- a menção «o que conseguiu», por conclusiva: tendo uma feição objectiva, representa a avaliação que o acusador faz dos factos descritos, face à intenção do arguido;

- a menção «psicologicamente debilitada», por conclusiva: constitui um juízo de valor, a realizar a partir dos factos descritos".

2. Delimitação do objecto do recurso

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites de cognição do Tribunal Superior.

Neste caso, o recorrente suscita as seguintes questões:

a) Da nulidade do acórdão recorrido – artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP por violação do artigo 359.º do mesmo diploma;

b) Da existência do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão – artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, decorrente da insuficiência dos meios de prova para a decisão;

c) Erro no enquadramento jurídico-penal dos factos provados;

d) Erro na determinação da medida concreta da pena;

e) A suspensão da execução da pena.

f) A improcedência dos pedidos de indemnização civil formulados pelos demandantes ou a redução da indemnização arbitrada à assistente-demandante BB.

3. Da questão prévia relativa à inadmissibilidade do recurso quanto à matéria cível

 No despacho preliminar relegou-se para este momento a apreciação da questão enunciada, o que se fará de seguida.

Para tanto, há que recordar que agora recorrente foi condenado em 1.ª instância:

- no pagamento à demandante BB da quantia de 30.000 (trinta mil) euros, a que acrescem os juros de mora, à taxa legal, desde a data desta decisão até integral pagamento;

- no pagamento ao demandante Centro Hospitalar do ..., EPE, da quantia de 1.398,67 euros (mil trezentos e noventa e oito euros e sessenta e sete cêntimos), a que acrescem os juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização ao demandado até integral pagamento;

- no pagamento ao demandante Centro Hospitalar de ..., EPE, da quantia de 9.313,43 euros (nove mil trezentos e treze euros e quarenta e três cêntimos), a que acrescem os juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização ao demandado até integral pagamento;

O Tribunal da Relação de Évora, no acórdão recorrido, negou provimento ao recurso que o arguido interpusera, tendo confirmado integralmente, no que releva para a questão agora em apreço, a decisão da 1.ª instância relativamente à parte cível.

Ou seja, o acórdão impugnado, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, confirmou, com a mesma fundamentação e sem voto de vencido, a decisão da primeira instância quanto à condenação do recorrente no pedido de indemnização civil formulado pela demandante e pelos Centros Hospitalares referidos.

Acompanhando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 01-02-2017, proferido no processo n.º 335/08.4GAPMS.C2 – 3.ª Secção, dir-se-á que:

«No que diz respeito ao regime de admissibilidade de recurso para o STJ dos acórdãos ou dos seus segmentos decisórios que versem matéria cível, importa, desde logo, chamar a atenção para a profunda alteração introduzida, nesta matéria, pelo DL n.º 48/2007, de 29.08, com o aditamento do n.º 3 ao art. 400.º do CPP.

Trata-se de uma verdadeira mudança de paradigma, pois o legislador penal, ao estabelecer neste n.º 3, que «mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil», quis, a bem da “igualdade” entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal [[2]], que a admissibilidade dos recursos para o STJ das decisões proferidas sobre os pedidos de indemnização cível enxertados em processo penal, deixasse de estar dependente da recorribilidade do segmento decisório relativo à matéria criminal, como até aí sucedia [[3]].

E se é certo não ter o legislador definido normas próprias de admissibilidade de recurso para a parte da sentença relativa ao pedido de indemnização civil, dúvidas não restam impor-se ao julgador, por força do estatuído pelo art. 4.º do CPP, socorrer-se do regime previsto para os processos de natureza exclusivamente civil.

Quer tudo isto dizer que a admissibilidade de recurso para o STJ dos acórdãos ou dos seus segmentos decisórios que versem matéria cível passou, desde então, a ser regulada, subsidiariamente, pelo regime jurídico do recurso de revista previsto no Código de Processo Civil e que estiver em vigor, à data da prolação da decisão recorrida, conforme vem sendo entendimento largamente maioritário da jurisprudência deste STJ [[4]]».

Nestes autos, o acórdão do tribunal de 1.ª instância foi proferida em 8 de Maio de 2017 e o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Évora foi proferido em 26 de Abril de 2018.

Constata-se, assim, que ambas as decisões foram proferidas já na vigência do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que entrou em vigor no dia 01 de Setembro do mesmo ano, sendo, por isso, aplicável, por força do citado artigo 4.º do CPP, o regime dos recursos previsto no novo CPC, relativamente aos pressupostos de admissibilidade de recurso para o Supremo que tenha por objecto o pedido de indemnização civil, maxime o regime processual civil do n.º 3 do seu artigo 671.º.

Sob a epígrafe «Decisões que comportam revista», estabelece aquela disposição que:

«Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que, confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte».

No caso vertente, mostra-se confirmado, em sede de recurso, a sentença do tribunal de 1.ª instância quanto à condenação do arguido-demandado civil e ora recorrente no pagamento aos demandantes BB, Centro Hospitalar do ..., EPE e Centro Hospitalar de ..., EPE das quantias de 30.000,00 euros, 1.398,67 euros e 9.313,43 euros, acrescidas de juros de mora, a título de compensação por danos não patrimoniais e de indemnização decorrente da assistência prestada àquela.

Não restam dúvidas de que existe total coincidência quantitativa entre a indemnização fixada na 1.ª instância e a fixada, por unanimidade, no Tribunal da Relação.

Tendo o acórdão recorrido confirmado, por unanimidade, toda a decisão da 1.ª instância relativa aos pedidos de indemnização e com a mesma fundamentação jurídica, verifica-se, indiscutivelmente, a dupla conforme.

Não estando em causa a aplicação do regime da revista excepcional do artigo 672.º do CPC, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto nos artigos 414.º, n.º 2, do CPP e 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 4.º do CPP.

Assim, o recurso interposto, no que respeita à parte civil, é rejeitado nos termos dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2, do CPP.

4. Apreciação do recurso quanto à parte criminal

4.1. Da nulidade do acórdão recorrido – artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP por violação do artigo 359.º do mesmo diploma

Reeditando a questão que já suscitara no recurso perante o Tribunal da Relação, o recorrente considera que (conclusões 7, 8 e 9):

7 - Em virtude do arguido ter sido condenado por factos que se traduzem numa alteração substancial, implicando uma agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, sem lhe ter sido dada a possibilidade de se pronunciar nos termos do artigo 359° do CPP, o acórdão recorrido, subscrevendo esta posição, violou o princípio do contraditório estatuído no artigo 32° n.° 5 da CRP.

           8 – O acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no artigo 379° n.° 1 alínea b) do CPP, uma vez que o arguido foi condenado por factos diversos dos descritos na acusação fora dos casos e das condições previstos no artigo 359° do CPP, razão pela qual o presente recurso deverá proceder quanto à imputação ao acórdão sob recurso da referida nulidade.

           9 - «[Devendo], pois, ser reaberta a audiência, para que sejam as alterações comunicadas ao arguido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 359° do CPP.

            Examinando os autos, observamos que, conforme acta de fls. 895/896 (3.º volume), e após a produção da prova, foi proferido despacho «a comunicar uma possível alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica, ao abrigo do disposto no art.º 358.º, n.º 1 e 3, do C.P.P.».

            Esse despacho encontra-se reproduzido no acórdão recorrido e tem o seguinte teor:

«Em função do decurso do julgamento e dos termos da prova nele produzida poderão diagnosticar-se alterações da factualidade descrita no despacho de acusação.

São estas as alterações relevantes:

O arguido AA iniciou uma relação de namoro em Julho de 2015 com BB, tendo vivido juntos desde aquele mês (cerca de uma semana após iniciarem o namoro).

À data dos factos viviam com a BB, FF, nascido em ....2006, GG, nascida em ....2014, e HH, nascido em ....2014.

No dia 22 de Dezembro de 2015, de manhã, a BB disse ao arguido para este levantar os abonos para pagar a renda da casa e a água e para, com 20 euros que iam sobrar, comprar uns ténis novos.

Nesse dia, à hora do almoço, o arguido AA regressou a casa sem os ténis que deveria ter comprado e, questionado pela BB, o arguido disse-lhe que os tinha comprado, mas estavam guardados num armazém de um amigo.

A BB acabou por descobrir que o arguido não comprara os ténis e, num café aonde se tinham deslocado após o almoço, confrontou-o com esse facto, ao que o arguido respondeu dizendo que gastara os 20 euros em cocaína, tendo-lhe então a BB dito que a relação deles terminava.

A BB foi trabalhar e, por volta das 18h30, o arguido e a BB regressaram à casa onde viviam, tendo começado entre eles uma discussão.

A BB voltou a dizer ao arguido que a relação terminara, querendo o arguido permanecer lá em casa, acabando a BB por o deixar lá permanecer até ao Natal por o arguido não ter para onde ir.

Por volta das 22.00/22.30 hrs., a BB foi-se deitar no sofá da sala onde dormia, ficando a sua filha GG deitada num carrinho de bebé encostado ao sofá, tendo o arguido saído da sala.

Cerca da 01h00 o arguido, ao verificar que a BB se encontrava a dormir no sofá, estando a GG a dormir no carrinho de bebé, foi aquecer água numa panela, dirigiu-se à BB e atirou a água a ferver para cima dela.

A BB acordou por sentir a zona atingida a inchar e a arder.

Apresenta, no perineo, área cicatricial hipopigmentada de queimadura na face anterior da região inguinal, na face interna de ambas as coxas (ao nível das pregas inguinais) no terço médio e inferior da região glútea, bilateralmente; no membro inferior direito: área cicatricial quelóide, de queimadura, no terço superior e terço médio da face interna da coxa; no membro inferior esquerdo: área cicatricial avermelhada, de enxerto, no terço superior e no terço médio das faces anterior, lateral e interna da coxa - com afectação da capacidade de fruição sexual.

A BB não pode apanhar sol na zona atingida durante 2 anos e 6 meses, o que a impede de ir à praia.

O arguido não está arrependido.

Além disso, considera-se, face aos factos descritos no despacho de acusação atinentes ao núcleo central da acção (despejar água a ferver sobre a vítima adormecida), que os factos poderiam ainda sustentar a aplicação do regime do art. o 145 n.os 1, al.ª c) (por referência ao art.° 144) e 2, e 132 n.° 2 al.ª i) do CP, este por referência ao meio insidioso - imputando-se assim a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.

Desta forma, e ao abrigo do disposto no art. ° 358, n.º 1 do CPP, comunica-se a ocorrência das aludidas alterações (não substanciais) dos factos e da alteração da sua qualificação jurídica, para os termos da parte final do mesmo art.º 358 n.º 1 (também por força do n.º 3 do mesmo artigo

           Foi dada a palavra à Ilustre Defensora do arguido e, «no seu uso foi dito nada ter a opor ou a requerer» (fls. 896).

            Conhecendo desta questão, lê-se no acórdão recorrido:

           «É nula a sentença que condenar por factos "diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358.º e 359.º (art.º 379 n.º 1 al.ª b) do CPP).

Naqueles preceitos prevêem-se três situações:

1)      alteração não substancial dos factos descritos na acusação, com relevo para a decisão (art.° 358.º, n.º, n.º 1, do CPP);

2)      alteração da qualificação jurídica (art.º 358.º, n.º 3 do CPP);

3)      alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver (art.º 359.º do CPP).

Ora, em primeiro lugar deve anotar-se que o arguido foi notificado, nos termos do art.º 358.º, n.os 1 e 3 do CPP, quer da alteração não substancial dos factos descritos na acusação - a fim de poder pronunciar-se sobre os mesmos e exercer o seu direito de defesa relativamente a eles - quer da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, sendo que:

Por um lado, nada obsta a que o tribunal tome em consideração os factos que, constituindo uma alteração dos factos descritos na acusação, sejam relevantes para a decisão, desde que ao arguido seja dada a oportunidade de sobre eles exercer o seu direito de defesa - como foi - e desde que deles não resulte a imputação de um crime diverso ao arguido ou o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis (como no caso não resulta).

Por outro lado, nada obsta a que o tribunal proceda à uma alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao agente, desde que essa alteração se baseie nos factos descritos na acusação -como no caso se baseou - e desde que ao arguido seja dada oportunidade de exercer o contraditório - como foi - ainda que dessa alteração venha a resultar a incriminação e condenação do arguido por crime mais grave (trata-se aqui de uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, não da alteração de factos, que com aquela não se confunde). Assim, concluindo, o arguido teve oportunidade de exercer o seu direito de defesa, quer relativamente à alteração não substancial dos factos a que o tribunal procedeu, quer relativamente à alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe vinham imputados na acusação (no rigoroso respeito pelo art.º 358.º, n.os 1 e 3 do CPP) - alteração da qualificação jurídica que não assentou, como se vê da matéria de facto que lhe foi imputada na acusação e do despacho que a ela procedeu, em qualquer alteração substancial dos factos, entendida como aquela que tenha como efeito a imputação (com base nesses novos factos) de um crime diverso ou a agravação dos limite máximos das sanções aplicáveis (art.º 1.º, al.ª f) do CPP) - pelo que não faz qualquer sentido a pretendida aplicação do art.º 359 do CPP e, consequentemente, a nulidade do acórdão recorrido prevista no art.º 379 n.º 1 al.ª b) do CPP, por violação dos arts. 358 e 359 do mesmo código.»

Na síntese feita no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 130/98[5], «[o]s factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal1 e o âmbito do caso julgado.

Acompanhando o mesmo acórdão:

 «Segundo Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág,145) é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal, ou seja, os princípios segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente); e - mesmo quando o não tenha sido - deve considerar-se irrepetivelmente decidido.

Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação.

O processo penal admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos.

A este respeito os artigos 358º e 359º do CPP, que regulam esta matéria, distinguem entre «alteração substancial» e «alteração não substancial ou simples» dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo, assim, apelo à definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do CPP. Neste preceito se estabelece que, para efeitos do disposto no presente Código, "(...) considera-se alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis".

O artigo 359º rege para esta alteração substancial, determinando que uma tal alteração da factualidade descrita na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso (nº 1), salvo se, havendo acordo entre o Ministério Público, arguido e o assistente na continuação do julgamento e o conhecimento dos factos novos não acarretar a incompetência do tribunal (nº2), concedendo-se então ao arguido, sob requerimento, um prazo para preparação da defesa (nº 3).

Ao invés, se a alteração dos factos for simples ou não substancial, isto é, tal que não determine uma alteração do objecto do processo, então o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constem da acusação e que tenham relevo para a decisão do processo. A lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358º, nº 1, parte final).» Ressalva-se, porém, o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa (n.º 2).

Efectivamente, a acusação do Ministério Público delimita o objecto do processo, mas não o objecto da discussão, como decorre do disposto no n.º 4 do artigo 339.º do CPP: «Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º»

Como se considera no acórdão deste Supremo Tribunal de 17-09-2009, proferido no processo n.º 169/07.3GCBNV.S1 – 5.ª Secção[6], «o tribunal está vinculado ao objecto do processo, definido pela acusação ou pela pronúncia, e o objecto do processo […] pode ser definido, segundo uma concepção prevalecente na doutrina e na jurisprudência, “como o facto, o acontecimento global da vida, o acontecimento histórico, incluindo todos os acontecimentos com ele ligados, do qual deriva a acusação admitida” (FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, Almedina, 2.ª edição, p. 84). Portanto, um facto que pode ser constituído por uma multiplicidade de factos singulares que se conjugam numa unidade de sentido, permitindo apercebê-lo como um acontecimento da vida real, dotado de individualidade e de características próprias (o tal pedaço de vida), incindível enquanto formando um todo significante do ponto de vista social e do ponto de vista jurídico, na medida em que esse complexo de elementos pode ser também relevante deste último ponto de vista e, nomeadamente, do ponto de vista jurídico-penal».

Por conseguinte, lê-se no mesmo acórdão, «o objecto do processo é a acusação, sim, mas enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, susceptível de um juízo de subsunção jurídico-penal. Esse é que é o quid que se tem de manter idêntico até à decisão final (a eadem res), não obstante as mutações que venha a sofrer. Em tal sentido, a acusação funciona como garantia para o arguido: «(…) a garantia de que apenas do que é acusado se terá de defender, e de que só por isso será julgado, posto que a eadem res da acusação à sentença é seguramente uma fundamental garantia para uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias e de ter assim um julgamento leal -, mas, por outro lado, no sentido também de não frustrar uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infracção acusada» (CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, Coimbra 1968, p. 210)».

         

Daí que, convocando novamente o citado acórdão do Tribunal Constitucional, «é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados «ex novo» e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição».

 

Segundo OLIVEIRA MENDES, a alteração não substancial é «aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis»[7].

Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, foi consagrado, por via do aditamento do n.º 3 ao artigo 358.º do CPP, a solução da livre qualificação jurídica dos factos pelo tribunal do julgamento, com reserva da obrigatoriedade de prévia comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e da concessão, a requerimento daquele, do tempo necessário à preparação da defesa…

Revertendo à situação sub judice, é manifesto que não ocorreu qualquer alteração substancial dos factos. As alterações que, após a produção da prova, o Tribunal Colectivo entendeu introduzir não se traduziram em factos novos, mas antes na pormenorização ou especificação dos factos já constantes do despacho de acusação de fls. 590 a 598 (2.º volume). A mera comparação das fórmulas textuais das duas peças processuais confirma de imediato tal afirmação. Os factos constantes do despacho em causa não vão além do objecto do processo fixado na acusação. Não são novos, nem são susceptíveis de autonomização. Daí que não implicaram uma alteração substancial da acusação.

Ou seja, convocando expressão usada no citado acórdão deste Supremo Tribunal de 17-09-2009, «não houve adição de nenhum novo crime [ao] que já constava da acusação. O que houve foi uma outra maneira de encarar os factos constantes da acusação, subsumindo-os a um outro tipo legal de crime»

E, como já se deu conta, o tribunal comunicou a alteração (não substancial) dos factos ao arguido, assim cumprindo o que dispõe o citado artigo 358.º do CPP, tendo o mesmo dito nada ter a opor ou a requerer. Com o que foi dado ao arguido a oportunidade processual de organizar a sua defesa quanto a tais factos então especificados.

Nesta perspectiva, não se considera terem sido feridos os direitos de defesa e do contraditório do arguido-recorrente.

O que verdadeiramente relevante sucedeu foi a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, aquela outra maneira de encarar os factos constantes da acusação, subsumindo-os a um outro tipo legal de crime, e que, como já foi dito, não foram objecto de modificação no despacho proferido pelo Tribunal Colectivo.

A alteração da qualificação jurídica desses factos traduziu-se na imputação do crime de ofensa à integridade física qualificada previsto no artigo 145.º, n.os 1, alínea c), (por referência ao artigo 144.º), e 2, e 132.º, n.° 2, alínea i), do Código Penal, este por referência ao «meio insidioso».

Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, foi consagrado, por via do aditamento de um número ao artigo 358.º, n.º 3, do CPP a solução da livre qualificação jurídica dos factos pelo tribunal do julgamento, com reserva da obrigatoriedade de prévia comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e da concessão, a requerimento daquele, do tempo necessário à preparação da defesa.

Para MARIA JOÃO ANTUNES, «é distinta da questão da alteração dos factos a da alteração da qualificação jurídica dos factos. E é distinta, desde logo, porque se sabe de antemão que a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida na audiência, bem como todas as soluções jurídicas, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia (artigo 339.º, n.º 4, do CPP»[8].

Segundo esta Autora, «há alteração da qualificação jurídica dos factos quando os factos se mantêm, alterando-se somente a sua qualificação jurídica», apontando como «exemplo de escola», o caso daquele que é acusado de homicídio simples, «por se ter entendido que a morte não foi produzida em circunstâncias que revelassem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, e vem a ser condenado por crime de homicídio qualificado, por o tribunal de julgamento, perante os mesmos factos, ter concluído por uma especial censurabilidade»[9].

E, como salienta OLIVEIRA MENDES, «[a]o alargar o âmbito de aplicação do instituto [da alteração não substancial dos factos] à alteração da qualificação jurídica dos factos, o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa do arguido – n.º 1 do artigo 32.º -, consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado (as disposições legais é que definem e estabelecem a natureza jurídica do facto, o tipo de culpa exigido para o seu preenchimento e demais elementos constitutivos, as sanções aplicáveis e outros elementos essenciais para a correcta e adequada defesa do arguido, devendo-se ter em vista que a própria tramitação processual depende da qualificação jurídica dos factos, sendo o que acontece «com a forma do processo, a competência do tribunal e o modo de exercício e a extensão do direito ao recurso)»[10].

No caso aqui em apreço, foi comunicada ao arguido a alteração da qualificação jurídica operada, em cumprimento do n.º 3 do artigo 358.º do CPP, assim se assegurando as suas garantias de defesa e o contraditório.

Perante o exposto, não se observa a nulidade invocada pelo recorrente, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.

4.2. Da existência do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão – artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, decorrente da insuficiência dos meios de prova para a decisão

4.2.1. A segunda questão que o recorrente suscita prende-se com a sua  insistência quanto à verificação do vício apontado, reeditando nas conclusões 10.ª a 16.ª as afirmações que tecera nas conclusões 13.ª a 27.ª do recurso interposto para a Relação.

No exame desta questão, considerou o Tribunal da Relação no acórdão recorrido o seguinte:

«Alega o arguido que o acórdão enferma do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, porquanto, deste não constam os elementos integradores do tipo subjectivo doloso, em nenhuma das suas modalidades, relativamente às consequências que agravam as ofensas à integridade física.

Consta da matéria de facto, a este propósito:

- que o arguido "quis: atingir e molestar fisicamente os órgãos de reprodução feminina, afectando a capacidade de fruição sexual e a possibilidade de usar o corpo de modo esteticamente agradável";

- que o arguido "agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ser proibida e punida por lei penal a sua conduta".

A insuficiência da matéria de facto para a decisão - enquanto vício da sentença, previsto no art.º 410 n.º 2 al.ª a) do CPP - verificar-se-á quando se chega à conclusão de que, com os factos provados, não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, porque existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para tal decisão.

Tal insuficiência existirá - escreve-se no acórdão do STJ de 98.11.18, Proc. 855/98 […] -  "quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe se o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídico-criminal, pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa que ainda seja possível apurar, sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir".

A insuficiência da matéria de facto provada - enquanto vício da decisão - "não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada.

Para que exista aquele vício é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida, por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria de facto.

Não ocorre aquele vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar.

A demonstração dessa insuficiência não pode emergir da mera discordância em relação à forma como o tribunal recorrido terá apreciado a prova produzida, pois aí poderá haver erro de julgamento... " (acórdão do STJ de 24.07.98, Proc. 436/98, que mantém actualidade).

Tal vício, por outro lado, deverá resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, apreciada na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos (art.º 410 n.º 2 do CPP).

Assim entendido, e apreciada a decisão recorrida, na sua globalidade, não se descortina a existência do invocado vício, sendo que da mesma constam, com clareza, os factos que integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado, designadamente, que o arguido quis "atingir e molestar fisicamente os órgãos de reprodução feminina, afectando a capacidade de fruição sexual e a possibilidade de usar o corpo de modo esteticamente agradável", e que o fez "de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ser proibida e punida por lei penal a sua conduta".

O dolo desdobra-se no conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito, e na intenção de realizar o facto (no caso do dolo directo), sendo costume ser expresso - escreve-se no acórdão para uniformização do STJ de 20.11.2014, in www.dgsi.pt- "por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado deforma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, representando na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude) ".

Ora, em face dos factos dados como provados não pode deixar de se concluir que o arguido agiu de "forma livre ", "deliberada"/voluntária, querendo "atingir e molestar fisicamente os órgãos de reprodução feminina", e consciente, sabendo que, ao agir desse modo, afectava a sua "a capacidade de fruição sexual e a possibilidade de usar o corpo de modo esteticamente agradável", ou seja, representando na sua consciência todas as circunstâncias do facto, incluindo, necessariamente, as suas consequências.»

Convocando considerações que se teceram no acórdão de 27-04-2017, proferido no processo n.º 452/15.4JAPDL.L1.S1 – 3.ª Secção, relatado pelo agora relator, de acordo com o disposto no artigo 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, «Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito».

Por seu lado, o artigo 434.º do CPP, em matéria de conhecimento de recursos, circunscreve os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto do artigo 410.º, n.os 2 e 3, do mesmo Código.

Ora, constitui jurisprudência constante e uniforme deste Supremo Tribunal (desde a entrada em vigor da Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto) a de que o recurso da matéria de facto, ainda que circunscrito à arguição dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 410.º, tem de ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta instância de recurso, quanto a tal vertente, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Como se lê no acórdão de 18-06-2014 (Proc. n.º 659/06.5GACSC.L1.S1 – 3.ª Secção), «o conhecimento daqueles vícios, constituindo actividade de sindicação da matéria de facto, excede os poderes de cognição do Supremo Tribunal, enquanto tribunal de revista, ao qual apenas compete, salvo caso expressamente previsto na lei, conhecer da matéria de direito – artigo 33º, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais [[11]]. O Supremo Tribunal de Justiça, todavia, não está impedido de conhecer aqueles vícios, por sua iniciativa própria, nos circunscritos casos em que a sua ocorrência torne impossível a decisão da causa, assim evitando uma decisão de direito alicerçada em matéria de facto manifestamente insuficiente, visivelmente contraditória ou viciada por erro notório de apreciação»

O Supremo Tribunal de Justiça tem, pois, os seus poderes de cognição estrita e pontualmente fixados no citado artigo 434.º, do CPP, limitados ao exclusivo reexame da matéria de direito, não podendo intrometer-se no reexame da matéria de facto, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º,  n.os 2 e 3, do CPP.

«Daí resulta, como justamente se sublinha no acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-07-2013 (Proc. n.º 1243/10.4PAALM.L1.S1 – 3.ª Secção), que aos recorrente é vedado erigir a divergência factual com o decidido, a convicção adquirida nesse domínio, em fundamento de recurso para este STJ, porque não teve contacto à vista com as provas, do qual deriva, após a sua produção, reexame e análise crítica, a convicção probatória do Tribunal, que não tem que coincidir com a da parte, modelada, como bem se entende, à luz do seu interesse, a fixação do acervo factual».

Continuando a seguir o citado acórdão:

«Esse papel incumbe às instâncias às quais é viabilizado aquele contacto, numa relação apelidada já de proximal, pela aproximação aos meios de prova, particularmente ao testemunhal, cuja especificidade, pela forma multifacetada de prestação, é essencialmente apreensível, mais na 1.ª instância do que na 2.ª instância, esta podendo conhecer de facto e de direito, nos termos do art.º 428.º, do CPP, contudo o seu julgamento se cinge aos pontos de facto indicados no condicionalismo do art.º 412.º n.º 3, do CPP.

E a Relação fecha, em definitivo, como regra, o ciclo do conhecimento da matéria de facto, seja por aquele conhecimento limitado, seja ainda pelos poderes de modificabilidade que lhe são outorgados no art.º 432.º, a), e c), seja pelo conhecimento oficioso dos vícios previstos no art.º 410.º n.º 2, do CPP.

E neste último âmbito, parificadamente com o reconhecido para este STJ, na observância do AFJ, de 19.10.95, in DR, Série A, de 28.12.95, atenta a natureza de tais vícios, de gravidade, comprometendo a lógica do decidido, a credibilidade das decisões judiciais ante os seus destinatários próximos e a comunidade mais ampla de cidadãos, que aguarda dos tribunais, decisões acertadas e justas, só assim se lhes impondo na sua missão de julgar.

Essas anomalias situam-se ao nível da matéria de facto, da lógica jurídica, são impeditivas de bem se decidir, viciando o silogismo judiciário, criando disfuncionalidades, incoerência interna nos termos da decisão, como se decidiu nos Acs. deste STJ, de 7.12.2005, CJ, Acs. STJ, XIII; T III, 224 e de 29.3.2006, in P.º n.º 651/06 -3.ª Sec.

O STJ quando conhece oficiosamente, dessas anomalias, em revista alargada, mantém-se, ainda, portanto na sua esfera de competência específica, enquanto definindo o direito em última instância, porque seria incompaginável com essa função proferir decisão de direito sobre uma base factual afectada por esses vícios, desde que resultem do texto da decisão recorrida por si só, sem recurso a elementos exteriores, ou em conjugação com as regras da experiência comum, aquilo que é usual acontecer, com probabilidade forte de ser evento normal.»

Como também se salienta no acórdão de 11-10-2017, proferido no processo n.º  480/14.7PASXL.L1.S1 – 5.ª Secção:

«Constitui jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que uma vez decidido o recurso pela Relação ficam esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, tornando‑se esta definitivamente adquirida, salvo se ocorrer algum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, de que este Supremo Tribunal de Justiça apenas deva conhecer oficiosamente.

Tem sido entendido que os vícios previstos nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP não podem constituir objecto do recurso de revista a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça, e que este tribunal deles somente conhece ex oficio, quando constatar que a decisão recorrida, devido aos vícios que denota ao nível da matéria de facto, inviabiliza a correta aplicação do direito ao caso sub judice (neste sentido, vide, entre muitos outros, o Acs. do STJ de 13-11-2014, Proc. n.º 249/11.0PECBR.C1.S1; de 07-05-2014, Proc. n.º 250/12.7JABRG.G1.S1; de 18-06-2014, Proc. n.º 659/06.5GACSC.L1.S1; de 02-10-2014, Proc. n.º 87/12.3SGLSB.L1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt; bem como Acs. de 13-02-2014, Proc. n.º 160/13.0TCLSB.L1.S1; de 27-02-2014, Proc. n.º 1572/11.0JAPRT.P1.S2; de 10-04-2014, Proc. n.º 431/10.8GAPRD.P1.S1; de 14-05-2014, Proc. n.º 42/11.0JALRA.C1.S1; de 18-09-2014, Proc. n.º 1299/09.2PBLRA.C1.S1; de 25-09-2014, Proc. n.º 384/12.8TATVD.L1.S1, todos acessíveis in www.stj./jurisprudencia/sumários de acórdãos/Criminal - Ano de 2014).

Na linha deste entendimento, não é admissível um recurso interposto de um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação para este tribunal, na parte em que convoca a reapreciação da decisão proferida sobre matéria de facto, quer em termos amplos, quer por erro de julgamento (erro na apreciação da prova), ainda que decorra do disposto no art. 434.º, do CPP, uma salvaguarda relativamente aos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP.»

Como igualmente se lembra no recente acórdão de 12-07-2018, proferido no processo n.º 74/16.2JDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção, relatado pelo Cons. Lopes da Mota, ora Juiz Adjunto, «tem sido insistentemente repetido (por todos, o acórdão de 15.12.2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, rel. Cons. Raul Borges, e exaustiva jurisprudência nele mencionada, em www.dgsi.pt), os vícios da decisão previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP constituem vícios lógicos do discurso decisório em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se evidenciam a partir do próprio texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, os quais, a existirem, na impossibilidade de serem resolvidos pelo tribunal de recurso, podem conduzir ao reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do dispostos no artigo 426.º do CPP. Diferentemente, a violação das regras de fundamentação (artigo 374.º do CPP), poderá gerar nulidade do acórdão, nomeadamente por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia (artigo 379.º, n.º 1, al. a) e c), e 425.º, n.º 4, do CPP).»

Como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Tribunal, os vícios previstos no citado artigo 410.º, n.º 2, do CPP, têm de constar ou resultar evidente do teor da própria decisão em matéria de facto, por si ou em conjugação com as regras da experiência, pois que diz respeito à matéria de facto; por isso, o seu conhecimento em recurso constitui matéria da competência do tribunal da Relação, sem prejuízo de este Supremo Tribunal dele conhecer oficiosamente para poder decidir da matéria de direito da sua competência.

Assim, concluiu-se no mesmo acórdão, não pode qualquer dos vícios mencionados naquela disposição legal servir de fundamento ao recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, nem constituir nulidade que possa ou deva ser arguida em recurso (artigo 379.º, n.º 2, do CPP), tendo-se rejeitado o recurso, nos termos do disposto no artigo 420.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por irrecorribilidade da decisão impugnada no segmento em que o arguido persiste na impugnação da matéria de facto.

Reafirma-se:

Não pode servir de fundamento ao recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça a verificação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP. O Supremo Tribunal, como tribunal de revista, apenas conhece de tais vícios oficiosamente, se eles decorrerem do texto da própria decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum.

Nesta conformidade, por irrecorribilidade da decisão impugnada no segmento em que o arguido persiste impugnação da matéria de facto por insuficiência da mesma para a decisão, há que rejeitar nesta parte o recurso interposto, nos termos do citado artigo 420.º, n.º 1, do CPP.

O Supremo Tribunal de Justiça pode, no entanto, como já foi dito, conhecer oficiosamente dos referidos vícios da matéria de facto, conhecimento que, como salienta PEREIRA MADEIRA, «pode – e deve – situar-se para além do já levado a cabo pela Relação, sendo que no que já tenha aí sido decidido, a discussão está encerrada por força dos limites da competência entre aquelas duas espécies de tribunais superiores, pois é na Relação que, em regra, se encerra a discussão do facto»[12].

           Seguindo este entendimento, impõe-se apenas conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e, em particular, do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, invocado pelo recorrente, dispensando-nos de examinar os restantes vícios porque manifestamente não ocorrem na decisão recorrida.

O vício previsto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.

Assim o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto; ocorre quando da factualidade vertida na decisão se verifica faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou absolvição. Insuficiência em termos quantitativos, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

Revertendo para o acórdão recorrido, entendemos que o mesmo não padece do apontado vício pois, de modo algum podemos concluir que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

Cumpre referir que este vício não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, questão do âmbito da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP), subtraída aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.

Também não se pode confundir este vício com o eventual erro de qualificação jurídica dos factos. Isto é, quando o Tribunal entende que aqueles factos não são integradores do crime que vem imputado. Só estamos perante o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal, podendo, não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.

Ora, concordando inteiramente com a análise desta questão efectuada no acórdão recorrido, que se reproduziu supra, a matéria de facto dada como provada no acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo é suficiente para fundamentar a decisão de condenação do arguido.

Da decisão recorrida consegue-se entender o raciocínio lógico e coerente que levou o tribunal recorrido, face à factualidade dada como provada, a decidir pela condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.

Como bem se considera no acórdão sob recurso, «apreciada a decisão recorrida, na sua globalidade, não se descortina a existência do invocado vício, sendo que da mesma constam, com clareza, os factos que integram os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime pelo qual o arguido foi condenado, designadamente, que o arguido quis "atingir e molestar fisicamente os órgãos de reprodução feminina, afectando a capacidade de fruição sexual e a possibilidade de usar o corpo de modo esteticamente agradável", e que o fez "de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ser proibida e punida por lei penal a sua conduta"».

Concretamente, em relação ao dolo, ali se afirma, com o que concordamos, que, «em face dos factos dados como provados não pode deixar de se concluir que o arguido agiu de "forma livre ", "deliberada"/voluntária, querendo "atingir e molestar fisicamente os órgãos de reprodução feminina", e consciente, sabendo que, ao agir desse modo, afectava a sua "a capacidade de fruição sexual e a possibilidade de usar o corpo de modo esteticamente agradável", ou seja, representando na sua consciência todas as circunstâncias do facto, incluindo, necessariamente, as suas consequências.»

Pelo exposto, consideramos que a factualidade dada como provada afigura-se suficiente e adequada para fundamentar a solução de direito encontrada no acórdão recorrido.

Questão distinta deste erro-vício é saber se se concorda com a solução de direito encontrada, sobre a qual mais à frente nos pronunciaremos.

4.2.2. Em relação com a invocação do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, afirma o recorrente que, «Atendendo à prova em apreço, inexistindo prova segura e inequívoca de que o arguido quis ofender molestar BB na sua integridade física, várias incertezas se colocavam necessariamente ao tribunal e, porque assim, estava este obrigado a fazer apelo ao princípio in dubio oro reo, o qual impunha a absolvição do arguido por falta de provas» (conclusão 17.ª)[13].

O desenvolvimento efectuado a propósito da não verificação do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão permite que se conclua manifesta falta de fundamento da invocação da violação do princípio in dubio pro reo.

Retomando desenvolvimento efectuado no acórdão deste Supremo Tribunal de 27-04-2017, proferido no processo n.º 452/15.4JAPDL.L1.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo ora relator:

O princípio in dubio pro reo é um princípio geral, estruturante do processo penal, decorrente do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, assumindo, como tal e como qualquer outro princípio jurídico, a natureza de uma questão de direito de que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, deve conhecer.

O princípio in dubio pro reo significa, segundo PAULO DE SOUSA MENDES, que «a dúvida sobre os pressupostos de facto da decisão a proferir deve ser valorada a favor da pessoa visada pelo processo»[14].

De acordo com este princípio, citando-se MARIA JOÃO ANTUNES, «o tribunal deve dar como provados os factos favoráveis ao arguido, quando fica aquém da dúvida razoável, apesar de toda a prova produzida»[15]. A dúvida que fique aquém da razoável deverá ser valorada, prossegue a mesma autora, de forma favorável ao arguido, tanto mais que este se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.

Convocando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 08-01-2014 (Proc. n.º 7/10.0TELSB.L1.S1 – 3.ª Secção), associou-se a este princípio a natureza exclusiva de «princípio referente à prova dos factos, ligado à sua valoração pelas instâncias, com o fundamento de que escapam a este STJ a refracção das provas na convicção do julgador, os elementos influentes na sua formação que só ele pela sua subtileza, atenção, emoção e inteligência pode apreender, proporcionados pela oralidade e imediação. O princípio valia ao nível da dúvida razoável com relação aos factos, desde que se alcançasse que o tribunal incorreu naquele estado e não o declarou seja porque não atentou na sua sucumbência seja porque era uma consequência de erro notório na apreciação da prova e não extraiu a consequência derivada da sua infracção.

O princípio serve para controlar o procedimento do tribunal quando teve dúvidas em termos de matéria de facto e não para controlar as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve.

Não se pense, no entanto, que tudo o que diz respeito à aquisição da matéria da facto se cinge a este natureza porque todo o processo aquisitivo da matéria de facto envolve a observância de normas e a convicção probatória não é uma consequência do arbítrio e de um processo irracional, pois que o princípio obedece a uma orientação normativa, envolvente da convicção probatória em moldes de esta ser motivada e objectivada».

Assim, como se refere no acórdão que se vem acompanhando:

«Baseado no princípio constitucional da presunção de inocência (art.º 32.º n.º 2, da CRP), constituindo um limite normativo da livre convicção probatória, assume vertente de direito, passível de controle deste STJ, quando ao debruçar-se sobre o conjunto dos factos, procura detectar se se decidiu contra o arguido, não declarando a dúvida evidente já porque esta resultava de uma valoração emergente da simples texto da decisão recorrida por si ou de acordo com as regras da experiência, de acordo com aquilo que é usual acontecer, já por incurso em erro notório na apreciação da prova.- cfr. Ac. do STJ, de 8.7.2004, P.º nº 111221/04 - 5.ª Sec.

Nesta conformidade este STJ tem afirmado, nem sempre com uniformidade, o seu teor de princípio de direito, por ele controlável, de afirmação de regra de decisão, pilar de uma convicção sã e escorreita, que só o é quando o juiz ele próprio já não tem dúvidas, no dizer de Eberardt Schmidt, pois que se se lhe suscitam várias possibilidades que, conscientemente, não logra remover, trilha ainda o caminho da incerteza, deve actuar o princípio».

Neste conspecto, devendo ser o princípio in dubio pro reo configurado como princípio de direito, como princípio jurídico atinente à avaliação e valoração da prova, certo é também que, como tem sido reconhecido, ele tem uma íntima correlação com a matéria de facto, em cujo domínio ele é verdadeiramente operativo, aí assumindo toda a relevância prática. Para PAULO DE SOUSA MENDES, [o] princípio só diz respeito à prova da questão-de-facto»[16].

Como se lê no acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-04-2011 (Proc. n.º 7266/08.6TBRG.G1.S1 – 3.ª Secção), a violação do princípio in dubio pro reo, «só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.

Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355º nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme artº 32º nº 1 da Constituição da República».

Em suma, como se sublinha no acórdão de 29-05-2013, proferido no processo n.º 344/11.6JALRA.E1.S1 – 3.ª Secção, «o STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido».

Ora, compulsadas, tanto a decisão recorrida, como também a decisão da 1.ª instância, não se detecta, tendo em atenção nomeadamente, a fundamentação da matéria de facto, qualquer dúvida quanto aos factos que se devia dar por provados ou não provados.

A violação do princípio in dubio pro reo pressupõe que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de incerteza, de dúvida, quanto aos factos dados como provados e não provados.

Como não é manifestamente o caso, «o recorrente só pode pretender que, apesar de o Colectivo da 1.ª instância [tal como o Tribunal da Relação] não ter tido dúvidas sobre o que considerou provado, deveria tê-las tido» (acórdão de 27-02-2014 (Proc. n.º 160/10.2GCVFR.S1 - 5.ª Secção)[17]. Mas isso, lê-se neste acórdão, «não constitui qualquer vício da decisão recorrida, mas antes discordância do recorrente para com ela».

Ora, a divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal recorrido é irrelevante.

Como também, a este propósito, se considera no acórdão de 06-12-2006, proferido no proc. n.º 06P3651 – 3.ª Secção, «o STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão impugnada resulta, por forma evidente, que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, posto que, saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista».

           O acórdão recorrido retoma e convoca a fundamentação apresentada pelo tribunal do julgamento para justificar a sua convicção, nomeadamente, quanto à matéria de facto cuja prova o arguido questiona, concluindo que ela (a fundamentação) «mostra-se lógica, coerente e racionalmente justificada, segundo as regras da experiência e os critérios da normalidade, em suma, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127 do CPP [princípio que o recorrente afirma também ter sido infringido – conclusão 18.ª]».

           Por outro lado, refere-se ainda na decisão recorrida, «o recurso em matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento, sendo antes, e apenas, uma oportunidade para remediar eventuais males ou erros cometidos pelo tribunal recorrido, pelo que se impõe ao recorrente que, impugnando a matéria de facto, especifique as provas que impõem decisão diversa da recorrida – sim, impõem, como expressamente se dispõe no art.º 412 n.º 3 al.ª b) do CP'P - com referência às concretas passagens dos depoimentos produzidos em audiência em que se funda a impugnação (n.º 4 do mencionado preceito), ou seja, ao conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, donde se conclua - em suma - que a convicção que o tribunal formou, relativamente a essa matéria em concreto, está errada, seja porque não tem suporte nas provas produzidas (quer porque o que foi dito pelos intervenientes processuais não corresponde ao que consta da fundamentação, quer porque documentos há nos autos que não foram tomados em consideração, quer porque outras testemunhas ouvidas contradizem o que consta da fundamentação), seja porque tais provas não foram apreciadas de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e os critérios a normalidade do acontecer.

No caso em apreço o recorrente limita-se a manifestar a sua divergência quanto ao decidido, em suma, por divergir da credibilidade que mereceram ao tribunal as declarações da assistente, em detrimento das suas e, no que respeita ao facto dado como provado em 21, em detrimento do depoimento da testemunha .., que - de acordo com a percepção do tribunal perante o qual foi prestado - "não se mostrou bastante para afastar a convicção formada quanto à matéria descrita no ponto 21... por se ter mostrado demasiado parcial... ".

Ora, a divergência do recorrente quanto à convicção que o tribunal formou, com tais fundamentos, não é razão para censurar a correcção de raciocínio que levou o tribunal a dar como provada aquela factualidade.»

 

            Como conclui na decisão sob recurso:

            «[…] as provas em que o recorrente baseia a sua divergência quanto ao decidido foram apreciadas e valoradas pelo tribunal segundo as regras da experiência e os critérios da normalidade da vida, e dessa análise se evidencia a correcção de raciocínio lógico dedutivo que levou o tribunal a dar como provada aquela factualidade, por outro lado, impugnando a prova dessa factualidade, o recorrente limita-se a manifestar a sua divergência quanto ao decidido, por discordar da credibilidade que tais provas mereceram (ou não mereceram) ao tribunal, o que não é razão para questionar a correcção de raciocínio que levou o tribunal a dar como provada tal factualidade, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova a que o tribunal se encontra vinculado, ex vi art.º 127 do CPP.

            […]

           E sendo assim, como é, não faz qualquer sentido a invocada violação do princípio in dubio pro reo, pois que a violação deste princípio supõe uma situação de dúvida - dúvida séria, razoável - e que, em face da mesma, o tribunal decida em desfavor do arguido, o que no caso não acontece, pois que ao tribunal da 1.ª instância nenhumas dúvidas se suscitaram, como aqui não se suscitam, concretamente, quanto à prova daquela factual idade, pelo que carece de fundamento a invocada violação do princípio in dubio pro reo

           Esta conclusão e os fundamentos em que ela assenta merecem a nossa total adesão.

           Da conjugação e ponderação de toda a prova produzida, resultou a certeza da prática pelo arguido supra identificados, dos factos dados como assentes pelo que não cabe falar em violação do princípio in dubio pro reo, que apenas é suscitado quando ocorram dúvidas insuperáveis de prova de determinados factos (negativos).

            Do exposto, e exprimindo a nossa concordância com o que, a este propósito, consta do acórdão recorrido, não podemos concluir que tenha havido violação do princípio in dubio pro reo, reafirmando-se que a decisão recorrida não evidencia qualquer dúvida em relação a qualquer facto.

           

           E também não se qualquer infracção ao princípio da livre apreciação da prova, nem ofensa de qualquer preceito ou princípio constitucional, improcedendo também nesta parte o recurso interposto.

 4.3. Erro no enquadramento jurídico-penal dos factos provados

4.3.1. Alega o arguido que a sua conduta não preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, em síntese, porque não se verifica a circunstância agravante «desfiguração grave e permanente» prevista na alínea a) do artigo 144.º do Código Penal (conclusões 19.ª a 24.ª), não se verificando igualmente «a especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente» pois «o crime em causa [não] foi praticado através do uso de “meio insidioso”» (conclusões 26.ª a 31.ª).

Também estas questões foram suscitadas no recurso interposto para a Relação.

O acórdão recorrido, relativamente à agravante «desfiguração grave e permanente», retoma a decisão da 1.ª instância e tece as seguintes considerações:

«A esse propósito escreveu-se na decisão recorrida:

"Desfigurar significa alterar substancialmente a aparência do lesado, admitindo-se que o conceito deve ser entendido «de forma ampla, como "dano estético", independentemente da parte do corpo em que tem lugar» (ou seja, não se limitando ao rosto ou às partes que compõem a fisionomia de um individuo). No que toca ao carácter grave da desfiguração, releva a intensidade da lesão e o «seu efeito sobre as "relações naturais e sociais" do lesado», o que depende da sua visibilidade, mas levando em conta os hábitos sociais, pelo que o facto de a desfiguração passar desapercebida no dia-a-dia da pessoa não lhe retira relevo típico, devendo atender-se também ao seu impacto quando a vítima se encontra de fato de banho, ou no âmbito da sua vida sexual. Por fim, a lesão (desfiguração) deve ser permanente, o que se entende significar que a lesão deve ter um carácter duradouro, sendo previsível que perdure por um lapso de tempo indeterminado (mas não tendo que ser perpétua)" - Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2.a ed., 342 e seguintes, que disse seguir de perto.

"No caso, temos que a actuação do arguido causou queimaduras extensas, que provocaram o surgimento no perineo... de área cicatricial na região inguinal, no terço superior e terço médio da face interna da coxa direita e no terço superior e no terço médio das faces anterior, lateral e interna da coxa esquerda (aqui por enxerto). Trata-se de cicatrizes extensas, notoriamente visíveis e que atingem a figura da visada, desfigurando-a - a sua localização (podendo ser ocultada pela roupa) não monta pois, como se referiu, o relevo típico da desfiguração mantém-se quando a lesão tenha impacto expressivo nos momentos em que a vítima se encontra de fato de banho, ou no âmbito da sua vida sexual, e é esse justamente o caso... Elas são também permanentes pois, pela sua natureza, não são reversíveis, vão se manter indefinidamente - e também não é, notoriamente, possível eliminá-las através de intervenções estéticas (aliás, uma das cicatrizes mantém-se na sequência de intervenção plástica realizada), pelo que fica arredada a possibilidade de discutir se a intervenção estética que elimine a desfiguração permite excluir a verificação do elemento típico. Está, pois, verificada a circunstância agravante".

E não se vê que a decisão recorrida mereça qualquer censura ao considerar que se verifica uma desfiguração grave e permanente da ofendida.

De facto, e recapitulando quanto se deixou dito, que não nos merece mais considerações, como escreveu Paula Ribeiro de Faria, na obra citada, 1.ª edição, 226, invocando nesse sentido Leal-Henriques e Simas Santos, o conceito desfiguração deve ser entendido de forma ampla, como "dano estético", "independentemente da parte do corpo em que tem lugar... " (anote-se que aí se questionou se a alteração introduzida no Código Penal, substituindo a expressão deformidade por desfiguração, devia ser entendida como referindo-se apenas a "lesões do rosto ou das partes que integram a fisionomia de um indivíduo" ou se deveria abranger "lesões de outras partes do corpo…", concluindo que nesse conceito deve caber qualquer dano estético, "independentemente da parte do corpo em que tem lugar", sendo certo que o legislador não circunscreveu tal desfiguração ao rosto, por exemplo, como acontece no CP italiano, segundo aí se dá conta: "deformazione ovvero sfregio permanente dei viso").

Diga-se ainda que o art.º 144 al.ª a) do CP não faz depender a agravação da visibilidade ou notoriedade das lesões - contrariamente ao que acontecia no Código Penal de 1886, art.º 360 n.os 1 e 3, punindo diversamente a ofensa que produza "deformidade pouco notável" ou "deformidade notável", ou seja, pondo o acento tónico na notoriedade da deformidade - mas da sua gravidade (e permanência), "aferida em função da intensidade da lesão... o local em que ocorreu, bem como a sua visibilidade... e das relações naturais e sociais do lesado... é preciso ter aqui em conta a particular situação da pessoa ofendida... e o efeito que a lesão possa assumir no quadro da sua vida de relação" (Paula Ribeiro de Faria, na obra citada, 1.ª edição, 226), por outro lado, desfigurar significa, etimologicamente, alterar a figura, a forma exterior de um corpo, a sua configuração, o aspecto exterior da pessoa (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. Xl), não necessariamente o rosto, conceito que o legislador penal não podia ignorar quando substituiu as expressões "deformidade pouco notável" e "deformidade notável" pela expressão "desfiguração grave e permanente", tanto mais que, como é sabido, o Código Penal de 1982 teve a sua principal fonte de inspiração o Código Penal alemão, onde no conceito de desfiguração estão abrangidas lesões de outras partes do corpo, como o admite a maioria da doutrina desse país (Paula Ribeiro de Faria, na obra citada, 1.ª edição, 226).

Perante os factos provados – vide factos n.ºs 13 a 23 -, de novo, expressamos a nossa concordância com as instâncias sobre a verificação da desfiguração grave e permanente da vítima enquanto elemento de agravação da conduta do arguido.

Para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «a desfiguração representa uma modificação da aparência física da vítima, independentemente da parte do corpo humano atingida. Condição da lei é de que essa desfiguração seja aparente, isto é, visível a terceiros, na medida em que atinge a “figura” da vítima. É irrelevante que a parte do corpo desfigurada seja habitualmente coberta pelo vestuário»[18].

A desfiguração significa para AUGUSTO SILVA DIAS, «deformação da figura, degradação da aparência. Não se limita ao rosto, podendo ocorrer em qualquer parte do corpo»[19].

A lei acrescenta, como pressuposto da agravação, que a desfiguração seja «grave e permanente», o que acontece, segundo M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, «com a alteração grave da aparência da pessoa do ponto de vista estético, quando sejam de esperar acentuados prejuízos psíquicos nas relações com os outros»[20].

Por seu lado, como sucede no caso sub judice, a desfiguração provocada na ofendida é grave e é permanente já que está em causa, uma «alteração substancial da aparência» da mesma que se manterá «de forma definitiva ou por um largo e indeterminado período de tempo». Para os autores que se vêm de citar, a desfiguração permanente deve ser entendida «não como exigência de perpetuidade, mas apenas pretendendo significar que os efeitos da lesão sofrida são duradouros, sendo previsível que perdurem por um período de tempo indeterminado»[21].

Também AUGUSTO SILVA DIAS associa a desfiguração permanente ao seu carácter duradouro, de duração imprevisível (não necessariamente perpétua), reportando-se temporalmente a sua comprovação à sentença judicial[22].

4.3.2. O arguido foi condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea c), com referência ao artigo 144.º, alínea a), do Código Penal.

Este tipo legal repousa, como salienta PAULA RIBEIRO DE FARIA, no mesmo pensamento que presidiu à construção do tipo legal de homicídio qualificado, ou seja, a ideia de “uma especial censurabilidade ou perversidade do agente”.

A aplicação do artigo 145.º e o funcionamento da qualificação que aí se prevê «supõem a verificação de uma lesão da integridade física simples (art.143.º), grave (art. 144.º) [e artigo 144.º-A], ou a ocorrência de um dos resultados que nos termos do art. 145.º são susceptíveis de conduzir a uma agravação da responsabilidade do agente», tornando-se necessário que, além da verificação de qualquer um destes resultados, «a conduta do agente revele uma censurabilidade acrescida, uma “especial censurabilidade ou perversidade”»[23].

Prevê-se, pois, uma incriminação autónoma quando as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade, em paralelo com a incriminação qualificadora do homicídio[24].

Foi decidido que a «especial censurabilidade ou perversidade» da conduta do arguido revela-se com o facto de ter atirado água a ferver para cima da ofendida BB que se encontrava a dormir no sofá, atingindo-a (facto 10), que as instâncias caracterizaram como utilização de um «meio insidioso».

Alega novamente o recorrente que «a água quente tem um uso corrente, sendo utilizada na higiene pessoal bem como nas lides domésticas, podendo ser utilizada para outras finalidades, não estando abrangida no conceito jurídico-penal de “meio insidioso”», continuando a insistir que, «no caso dos autos (…) esclareceu que pretendia utilizar a água quente, que aqueceu previamente, para tomar banho, resultando as lesões na assistente de um acidente»

Também aqui sem razão, pois que, conforme se lembra na decisão recorrida, «o recorrente parte de factualidade diversa da apurada para defender tal posição, sendo certo que, por um lado, não foi utilizada "água quente", mas água a ferver, o que não é a mesma coisa, depois - e contrariamente ao alegado, como acima se demonstrou - não se tratou de um acidente, mas de uma conduta intencional, voluntária e consciente (e pensada), visando um determinado resultado (o arguido, aproveitando-se da situação em que a vítima se encontrava, a dormir, no sofá, "foi aquecer água numa panela, dirigiu-se à BB e atirou água a ferver para cima dela... ")».

E, a propósito da caracterização do «meio insidioso», lê-se no mesmo acórdão:

«Como muito claramente se escreveu na decisão recorrida a esse propósito, entende-se por "«meio insidioso»... todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno - do ponto de vista do seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto [F. Dias, CCCP L pág. 69/70}, ou os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais [Leal-Henriques e Simas Santos, CP Anot., 3. a ed., pág. 72}, reportando-se à atitude do agente que age dissimuladamente ou traiçoeiramente, sem permitir à vítima uma possibilidade de defesa [P. Pinto de Albuquerque, cit., pág. 352/3], dizendo-se, em suma, que é um qualquer meio desleal, traiçoeiro, ardiloso, um instrumento de uma armadilha, de uma cilada, situação na qual a vítima se encontra especialmente desprotegida perante o agressor, o que torna a conduta deste especialmente censurável face. do STJ 08P292 de 26-03-2008, in www.dgsi.pt}... a actuação do arguido corresponde a este enquadramento, já que atua de forma absolutamente dissimulada, oculta, pois espera que a visada adormeça (na sua própria casa) e, nessa altura (e já após a meia noite), aproveita o estado de abandono da visada, em descanso, para a atingir, em condições não apenas inteiramente imprevisíveis para a vítima, mas sobretudo caracterizadoras de uma situação de absoluta indefesa por parte desta. Ele escolhe «as condições em que o facto pode ser cometido de forma mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade, de desprotecção da vítima em relação ao agressor», num contexto de absoluto desamparo da vítima, incapaz de reagir. Ora, e como já foi salientado pelo ST 1, o meio insidioso também abrange «a eleição das condições em que, pelo seu uso, a vítima é colocada em posição de não resistir, tirando o agente proveito da distracção» [Proc. 1730/14.5JAPRT-Sl E, in www.dgsi.pt). E o meio usado (água a ferver), que aumenta o grau de indefesa (é difícil evitar o ataque, mesmo quando a vítima o antecipa ou dele se apercebe) e a potencialidade danosa... acentuam este carácter insidioso, pérfido, da actuação. Donde se considerar verificada esta circunstância qualificativa. Partindo do preenchimento desta alínea (deste exemplo-padrão), importa ainda apurar se a circunstância em causa revela, no caso, a especial censurabilidade ou perversidade que constitui, afinal, o fundamento do agravamento da reacção penal, face ao tipo de culpa do art. o 145 n.º 1 do CP. Ou seja, o efeito indiciário derivado da verificação do exemplo-padrão tem que «ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expresso». A especial censurabilidade ou perversidade ocorre se à conduta «puder ligar-se uma especial baixeza da motivação ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vítima ou à função que ela desempenha» [F. Dias, cit., para o art. o 132, mas aplicável mutatis mutandis, à situação dos autos]. Na mesma linha, pode dizer-se que haverá especial censurabilidade quando «as circunstâncias (...) são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores»,' e especial perversidade quando se esteja perante «uma atitude profundamente rejeitável» [Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina 1998, pág. 63164]. Assim, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido ac. STJ Proc. 517108.9JACBR.Cl.S1, in www.dgsi.pt]. No caso, releva o que ficou exposto quanto à forma de execução... o local de cometimento do crime (em casa da vítima), a motivação do arguido (ligada à cessação da relação afectiva) e a ligação que havia entre a ofendida e o arguido. Dados estes que exacerbam a gravidade da conduta, e assim da culpa que esta conduta reflecte: a culpa que os factos revelam (que deles irradia) traduz o aludido exacerbado distanciamento do arguido face aos valores comunitários, indicando. aliás, uma profunda indiferença por esses valores. Justificando assim a qualificação imputada, podendo dizer-se que estes dados reflectem uma forma de realização do facto especialmente desvaliosa (especialmente censurável). Sendo que a forma da execução, dissimulada, com alguma frieza (por esperar que a vítima adormeça), com uma violência intrínseca muito elevada (pelo meio eleito e pelos efeitos sabidos das queimaduras), revelam uma flagrante falta de empatia e até uma certa maldade, podendo também dar conta da especial perversidade que a lei contempla como forma de culpa agravada".

E face à clareza destes fundamentos, com referência ao meio utilizado e circunstâncias em que os factos ocorreram - que, pela sua clareza, não carecem de maiores desenvolvimentos - não se suscitam dúvidas que o arguido actuou em circunstâncias que revelam uma especial censurabilidade e perversidade, em suma, que se verifica a qualificativa prevista na al.ª i) do n.º 2 do art.º 132 do CP, sendo certo que o arguido, não obstante o esforço argumentativo, não traz aos autos razões ou argumentos que permitam questionar os fundamentos em que se baseou a decisão recorrida para concluir pela existência desta agravante, limitando-se a questionar a sua existência com base em pressupostos que não se verificam, ou seja, com base uma factualidade diversa da que foi dada como prova.»

Retomando considerações tecidas no acórdão de 20-09-2017 (Proc.º 596/12.4 JABRG.G2.S1 – 3.ª Secção), relatado pelo ora relator, a propósito do crime de homicídio qualificado que se podem igualmente convocar para a situação presente, o crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º do Código Penal, constitui uma forma agravada de homicídio. A qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no nº 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º.

«O critério generalizador, lê-se no acórdão do STJ de 21-01-2009 (Proc. n.º 08P4030), está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.

Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.

Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.

A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, págs. 27-28).

O modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa - através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. idem, pág. 28)».

O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar especial censurabilidade àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação».

Segundo FIGUEIREDO DIAS, «a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2». E que «a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador», concluindo: «Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2»[25].

           E a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem mantido uma interpretação do tipo do artigo 132.º do Código Penal como sendo baseado estritamente na culpa mais grave, revelada pelo agente, tendo como fundamento o facto do agente revelar especial censurabilidade ou perversidade no seu comportamento, sendo ainda entendimento uniforme deste Supremo Tribunal o de que as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, os chamados exemplos-padrão, são meramente exemplificativas, não funcionando automaticamente e devem ser compreendidas enquanto elementos da culpa, como se dá nota no acórdão de 02-4-2008, proferido no processo n.º 07P4730, onde se referencia abundante jurisprudência sobre este tópico.

No que especialmente releva para o caso agora em apreço, cumpre insistir, quanto à cláusula geral do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, que, subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta nas circunstâncias elencadas, o que motiva a agravação.

Como considera TERESA SERRA, «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito.

No artigo 132º, trata-se de uma censurabilidade especial, que existe quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.

A especial perversidade supõe «uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade».

Dominantemente, refere a autora, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto[26].

Para FIGUEIREDO DIAS, «[o] especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.

O pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas[27].

Segundo FERNANDO SILVA, a especial censurabilidade prende-se essencialmente com a atitude interna do agente, traduzida em conduta profundamente distante em relação a determinado quadro valorativo, afastando-se dum padrão normal. O grau de censura aumenta por haver na decisão do agente o vencer de factores que, em princípio, deveriam orientá-lo mais para se abster de actuar, as motivações que o agente revela, ou a forma como realiza o facto, apresentam, não apenas um profundo desrespeito por um normal padrão axiológico, vigente na sociedade, como ainda traduzem situações em que a exigência para não empreender a conduta se revela mais acentuada.

A especial perversidade representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de matar assenta em pressupostos absolutamente inaceitáveis. O agente toma a decisão sob grande reprovação atendendo à personalidade manifestada no seu comportamento. O agente deixa-se motivar por factores completamente desproporcionais, aumentando a intolerância perante o seu facto[28].

Por fim, o entendimento de AUGUSTO SILVA DIAS segundo o qual «[h]á unanimidade na doutrina e jurisprudência nacionais em torno da ideia de que, em último termo, a qualificação do homicídio assenta num especial tipo de culpa: toda a punição por homicídio qualificado tem de passar pela comprovação da especial censurabilidade ou perversidade do agente (n.º 1) e isso exige uma ponderação final da atitude deste»[29].

O que determina a agravação, no caso do crime de homicídio qualificado, como também perante ofensa à integridade física qualificada, é sempre, sublinha-se no acórdão de 12-07-2018 (74/16.2JDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção), relatado pelo Ex.mo Juiz Adjunto (Cons. Lopes da Mota), um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível.

Como já foi dito, entende o recorrente que a sua conduta não revela especial censurabilidade ou perversidade, e que, concretamente, não está preenchido o exemplo-padrão da alínea i), do nº 2, do artigo 132.º, do Código Penal. Ou seja, não houve utilização de qualquer meio insidioso.

Não lhe assiste qualquer razão. Decidiu o tribunal recorrido na consideração, em síntese, de que, face à matéria de facto provada, a conduta do arguido se revela especialmente censurável, «já que atua de forma absolutamente dissimulada, oculta, pois espera que a visada adormeça (na sua própria casa) e, nessa altura (e já após a meia noite), aproveita o estado de abandono da visada, em descanso, para a atingir, em condições não apenas inteiramente imprevisíveis para a vítima, mas sobretudo caracterizadoras de uma situação de absoluta indefesa por parte desta».

E, em sede de qualificação jurídico-penal, consideramos que no acórdão se ajuizou bem a concreta conduta do arguido e aqui recorrente, desde logo porque, ao invés do que este entende, considerou que o preenchimento da circunstância qualificativa prevista na alínea i) do citado artigo 132.º, n.º 2 do Código Penal, ou seja, a actuação insidiosa.

Este Supremo tribunal tem, com alguma frequência, procedido à caracterização e delimitação do conceito jurídico-penal de «meio insidioso» enquanto exemplo-padrão indiciador da especial censurabilidade e perversidade para a qualificação do homicídio, em considerações que, já se disse, podem ser transpostas para a situação que aqui se nos depara – a ofensa à integridade física qualificada.

Segundo se lê no acórdão de 17-01-2011 (Proc. n.º 00P2843), «”Meios insidiosos" são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta e cujo poder mortífero se encontra oculto, surpreendendo a vítima, tornando-se extremamente difícil ou impossível a defesa».

No acórdão de 30-11-2011, proferido no processo n.º 238/10.2JACBR.S1 – 3.ª Secção (Relator: Cons. Raul Borges), é feito um extenso desenvolvimento a propósito da caracterização daquele conceito com o registo de abundantes contributos da jurisprudência e da doutrina.

Como se lê no sumário desse acórdão:

«A noção de meio insidioso não é unívoca, girando sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da acção. Por outras palavras, poderá dizer-se que a subsunção não pode ficar-se por uma interpretação que se quede pela consideração apenas do meio utilizado, da forma como é executado o facto, atendendo à natureza do instrumento, mas antes tendo em consideração uma visão mais abrangente, completa, em que entra a imagem global do facto, o que é dizer no caso, apreciar os factos na sua globalidade, analisar a conduta no seu conjunto, avaliar a atitude do agente, o que será avaliado em função das específicas nuances do evento e do pleno das circunstâncias enformadoras do concreto sucesso submetido a juízo.

[…] Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a “natureza do meio/instrumento/arma, que é utilizado”, e por outro, averiguar as “circunstâncias acompanhantes”, isto é, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto concreto de circunstâncias em que aquela concreta arma/meio/instrumento de agressão, no caso de bens eminentemente pessoais, foi utilizada: a distância a que o agressor se encontrava da vítima (a curta distância, com disparo à queima roupa, ou não), a situação em que esta se encontrava (prevenida ou desprevenida, desprotegida, descuidada, indefesa, com possibilidade de resistência ao agressor ou não), a zona do corpo atingida, o momento e o local escolhido para a agressão, com actuação em espaço fechado, ou aberto, com ou sem espera, com ou sem emboscada, com ou sem estratagema, com ou sem traição, com ou sem perfídia, disfarce, surpresa, dissimulação, engano, abuso de confiança, ou distracção da vítima, ou não, de forma sub-reptícia, ou não, de forma imprevista ou não, com ataque súbito, inesperado, sorrateiro, ou não, com ou sem possibilidade de a vítima oferecer resistência, enfim, todo o conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes/determinantes do evento letal, ou quase letal, no traço de um desenho panorâmico, de uma imagem multifacetada, de supervisão, de síntese, a final, de um retrato vivencial, de uma fotografia, guardadora de eventos ocorridos, condensada, definida, a juzante, com todos os contornos e pormenores, independentemente dos retoques, e que mais do que a natureza da arma ou instrumento utilizado, indiciam o meio utilizado naquele analisado concreto agir, como particularmente perigoso ou insidioso.»

Estava aí em causa a conduta de um arguido que, empunhando um machado, entrou no quarto onde ofendida (com quem mantinha há algum tempo uma relação de natureza sexual), encontrava a dormir e dirigiu-se à cama onde ela se encontrava deitada com a filha e desferiu com a lâmina do machado, pelo menos, dois golpes na cabeça daquela, sem que a mesma se apercebesse sequer da presença do arguido, uma vez que dormia. Com esses golpes de machado, o arguido causou à ofendida lesões que foram causa adequada da sua morte.

«Face à facticidade apurada, lê-se no mesmo acórdão, dúvidas não há de que, atendendo não só à natureza do instrumento utilizado, mas ao modo e conjunto de circunstâncias em que actuou, visando a [ofendida], aproveitando o facto de esta se encontrar a dormir, sem qualquer possibilidade de defesa, agindo de forma traiçoeira e sub-reptícia, é de ter a conduta do arguido como especialmente censurável e agindo de modo perverso, ao cometer o crime que vitimou aquela com meio insidioso».

Referenciam-se aí um conjunto de «decisões em que são fornecidos contributos para a definição e enquadramento da qualificativa em causa», em situações que revelam grande similitude com a que está aqui em apreciação.

«Assim, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de: 

19-12-1989, processo n.º 40392, BMJ n.º 392, pág. 243 – Quando na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, se fala em meio insidioso, a lei quer aludir não só às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, mas também aos que são particularmente perigosos, e que não pondo em risco o agente, do mesmo passo torna difícil ou impossível a defesa da vítima. O conceito abrange os meios aleivosos, traiçoeiros ou desleais, abarcando, atentas a sua latitude e elasticidade, os crimes cometidos com emboscada, traição, aleivosia ou estratagema. 

06-06-1990, processo n.º 41009, CJ 1990, tomo 3, pág. 19 e BMJ n.º 398, pág. 269 – Em caso de tentativa de homicídio, refere-se: Aquele que, num lar de idosos, tendo havido anteriores discussões, inopinadamente sem que alguém se apercebesse das suas intenções, levantando-se da sua mesa e aproximando-se da mesa da vítima, colocando-se atrás desta – que dormitava com a cabeça apoiada nos braços e sobre a mesa – desfere com uma navalha três golpes na cabeça do ofendido, actua utilizando um meio insidioso que se traduz num meio traiçoeiro e desleal com um instrumento gravemente perigoso. Considera-se que a agressão foi ainda cometida com motivo fútil, utilizando instrumento gravemente perigoso, com frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados.

14-04-1994, processo n.º 46437, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 263 – Comete o crime de homicídio qualificado tentado, o arguido que, sem qualquer troca de palavras, de noite, golpeou o ofendido, no peito e na face, com uma faca de que estava munido, com o propósito de lhe retirar a vida, visto se ter socorrido de meio insidioso, que é sinónimo de traiçoeiro.

26-06-1996, processo n.º 533/96, SASTJ n.º 2, pág. 60 – A utilização pelo arguido de uma arma de fogo, tirando a vida à vítima com ela, sem lhe dar qualquer possibilidade de defesa, integra a agravante da alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.  

4-07-1996, processo n.º 48774, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222 – Em caso de homicídio qualificado tentado, decide-se: “Age à traição, utilizando meio insidioso, o arguido que, munido de uma faca de cozinha, se dirige para o quarto da ofendida, sua esposa, e quando esta se encontrava deitada a dormir, desferiu um golpe com esse instrumento, atingindo-a no abdómen”.

      Considera-se que “a surpresa e a deslealdade do ataque deram origem à completa desprotecção da ofendida, aumentando seriamente as probabilidades de lesão do bem jurídico vida”. (Seguem-se aqui os acórdãos de 11-06-1987 e de 19-12-1989, publicados no BMJ, n.º s 368 e 392, a págs. 312 e 243).

31-10-1996, processo n.º 725/96, BMJ n.º 460, pág. 444 – Considera-se preenchida a circunstância em caso em que, decidido a vingar-se, o arguido muniu-se de uma caçadeira, escondeu-se na berma da estrada e aguardou a passagem do veículo. Depois, de forma traiçoeira, efectuou vários disparos a curta distância do automóvel do assistente de modo que este nem sequer se apercebesse que estava a ser objecto de um atentado, tornando impossível a sua defesa, a tudo acrescendo a perigosidade da arma utilizada, o local escolhido e a desprotecção do ofendido. Pelo crime de homicídio qualificado tentado é aplicada a pena de 10 anos de prisão. (Com o mesmo relator do acórdão anterior que é citado, bem como os aí citados).

9-10-1997, processo n.º 1319/96, BMJ n.º 470, pág. 217 – Em caso de ofensa à integridade física corporal qualificada, considera-se que “Uma pedra, mesmo utilizada na mão, porque meio objectivamente apto a provocar ferimentos ou lesões graves, é de considerar insidioso”.

29-10-1997, processo n.º 647/97-3.ª, SASTJ n.º 14, pág. 162 – Meio insidioso é o que utiliza a insídia. Esta é aleivosia, traição, o mesmo é dizer, ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada, antes de perceber o gesto criminoso.

      Revela especial censurabilidade ou perversidade, na medida em que utiliza meio insidioso, a conduta do arguido que, transportando uma arma de fogo (espingarda caçadeira) embrulhada num saco de papel, sem a exibir à vítima nem trocar com esta qualquer palavra, apanhando-a desprevenida, disparou com aquela arma sobre esta, causando-lhe a morte.

29-10-1997, processo n.º 1081/97-3.ª, SASTJ n.º 14, pág. 166 – Constitui meio insidioso, revelando uma especial censurabilidade e perversidade, o seguinte quadro de circunstâncias:

- Se o arguido, munido de uma arma de fogo, se aninhou entre giestas, junto a uma estrada, esperando que outra pessoa ali passasse, como o fazia habitualmente;

- Se, quando a pessoa se aproximou, conduzindo a sua motorizada, na qual transportava a sua mulher, o arguido se levantou, fez pontaria na direcção e à altura da cabeça daquela e, à distância de cerca de dois metros, disparou voluntariamente um tiro com a arma referida, com intenção de atingir e tirar a vida da mesma;

- Se o arguido disparou a arma de fogo sem qualquer troca de palavras com a vítima, que se encontrava desarmada, desprevenida e indefesa, pretendendo vingar-se da imputação por esta feita acerca dos ferimentos ocasionados num cão. 

12-11-1997, processo n.º 1203/97-3.ª, SASTJ n.º 15 e 16, pág. 164, e BMJ n.º 471, págs. 47 a 114 – Em caso de arguidos ligados ao movimento de skinheads em Portugal, afirma-se: “Constitui meio insidioso de provocar a morte, revelando uma especial censurabilidade e perversidade, o seguinte quadro de circunstâncias:

- se onze homens, cinco dos quais calçando botas com biqueira em aço, pontapeiam e dão murros a um único homem;

- se, ainda por cima, um dos onze homens pega na base de cimento de um sinal de trânsito e dá com ela duas vezes na cabeça da vítima:

- se, para além daquilo, três dos onze homens voltam depois atrás para darem ainda mais pontapés na vítima já agonizante, tudo numa rua que parece deserta e cerca da 1 H 30 M”.

11-12-1997, processo n.º 1050/97-3.ª, SASTJ, n.ºs 15 e 16 (Novembro e Dezembro de 1997) pág. 209 – No conceito de meio insidioso – cuja amplitude visa especialmente flexibilizar o conceito ou evitar que se lhe retire elasticidade – cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros e desleais ou perigosos e, gravemente perigosos, enquanto instrumentos de agressão, nele se devem considerar em atenção à experiência comum as armas brancas (facas, punhais, navalhas, etc.), que mais difícil (ou mesmo impossível) tornam a defesa da vítima e de consequências mais graves (ou irreparáveis) a agressão.

     Comete o crime de homicídio qualificado, p. p. pelas alíneas c) e f), do n.º 2 do art. 132.º, o arguido que desfere ao ofendido uma navalhada, atingindo-o em zona do corpo que apanhasse (“onde calhasse”), mesmo que aí tivesse órgãos vitais, conformando-se com qualquer resultado que daí adviesse, designadamente a morte que representou como possível, desferindo-lha pelo simples facto de o ofendido se recusar a acompanhá-lo à discoteca.

5-02-1998, processo n.º 1159/97, BMJ n.º 474, pág. 300 (citado no acórdão de 02-04-2009, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 186) - Age com especial censurabilidade e perversidade o arguido que agiu através de um meio traiçoeiro e desleal, com uma arma e diversos cartuchos de zagalote, esperando a vítima, acoitado pelos arbustos e sem que este pudesse contar com a emboscada e assim, defender-se em igualdade de armas ou com alguma possibilidade de resistência.

1-10-1998, processo n.º 673/98, CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 180 – O recurso a uma navalha ou canivete, como arma branca que é, que fica quase escondida na mão, tem sido considerado como utilização cobarde e insidiosa de uma arma de corte, isto é, (no caso) como comissão de um crime de ofensas à integridade física com utilização de meio insidioso.

14-11-1998, processo n.º 732/98 – A alínea f) do n.º 2 do art. 132.º, do CP, ao falar em meio insidioso quer aludir não só às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, mas também aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossível a defesa da vítima.

28-10-1999, processo n.º 843/99-5.ª, SASTJ 1999, n.º 34, pág. 84 - O arguido, ao disparar uma caçadeira, alta noite, contra uma pessoa que assoma a uma janela, a cerca de 10 metros de distância, utiliza, para ferir, um meio particularmente perigoso e insidioso.

27-09-2000, processo n.º 292/00-3.ª, SASTJ, Edição Anual 2000, pág. 126 - Meio insidioso é aquele que, tal como o veneno, a que a lei actual o equipara, tem, em si mesmo ou na forma por que é utilizado, um carácter enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para a vítima, constituindo para esta uma surpresa ou colocando-a em situação de especial vulnerabilidade ou desprotecção que torna para ela especialmente difícil a sua defesa.»

Mais recentemente, no acórdão de o8-01-2014 (Proc. n.º 221/12.3GDFAR.E1.S1 – 5.ª Secção), considerou-se presente a qualificativa «meio insidioso» numa «agressão levada a cabo pelo arguido [que] se desencadeou de maneira imprevisível para a [ofendida]. Não é por se estar a discutir com alguém que se tem que prever que esse alguém, sem ser visto, ao agir pelas costas da vítima, a vai atacar com uma navalha na região cervical. Pelas costas da ofendida, quando ela estava sentada e reclinada para a frente a pintar as unhas dos pés».

No acórdão de 12-03-2015 (Proc. n.º 185/13.6GCALQ.L1.S1 – 3.ª Secção), considerou-se que a «“insídia” caracteriza-se por um comportamento dissimulado, ardiloso ou traiçoeiro, colocando a vítima numa situação de indefesa. É um comportamento desleal, enganoso ou pérfido, que reduz a vítima à condição de presa fácil do agressor. A espera dissimulada, envolvendo completa surpresa da vítima perante a agressão, pode constituir inegavelmente uma actuação insidiosa, enquadrável na citada al. i), se confirmada em concreto a especial censurabilidade ou perversidade da conduta».

Assim foi caracterizada situação aí em causa em que «o disparo letal foi efectuado pelo arguido do interior da sua residência, quando a vítima se aproximava, mas não estava em condições de observar o arguido. A vítima foi apanhada de surpresa nesse momento e não teve qualquer possibilidade de se defender. Houve efectivamente uma espera por parte do arguido, que ficou a aguardar o regresso da vítima e, ao vê-la aproximar-se, dissimuladamente atirou contra esta, numa posição em que ela não o podia avistar.

O comportamento do arguido foi traiçoeiro, revelando inegável perfídia, enquadrável na especial censurabilidade ou perversidade prevista no art. 132º, nºs 1 e 2, do CP».

A agravante em apreço foi igualmente considerada presente no acórdão de 02-12-2015 – 3.ª Secção, na situação em que «o arguido/recorrente, saindo do estabelecimento de café, retomou ao estabelecimento, cerca de 20/30 minutos depois, já munido de uma faca, e achando-se a vítima sentada, envolveu-a com o braço esquerdo, como se de um abraço se tratasse e agindo dissimulada e traiçoeiramente sem permitir à vítima uma possibilidade razoável de defesa, desfere uma facada na zona do abdómen da vítima, junto à grade costal, vítima essa só se terá apercebido da faca na mão do arguido, quando a lâmina já se encontrava espetada».

No acórdão de 25-10-2017 (Proc. n.º 3080/16.3JAPRT.S1 – 5.ª Secção) considerou-se igualmente patente o «Meio insidioso», traduzido «na circunstância de, aproveitando o ensejo de a vítima […] se encontrar na sala de estar da residência que ambos partilhavam, sentada num cadeirão frente à televisão, haver o arguido retirado da gaveta de um móvel existente na sala de jantar um cordão e, aproximando-se por detrás da vítima, o ter passado pelo pescoço daquela e, puxando-o fortemente para trás, o haver cruzado junto a nuca, aí o mantendo sob pressão durante alguns momentos até se convencer que estava morta».

Meio insidioso, afirma-se aí, consistente, «não na natureza do instrumento - como visto, um cordão – que o arguido elegeu para tirar a vida à sua cunhada mas, no modo como, aproveitando-se da oportunidade de a mesma estar desprevenida, desprotegida, alheia ao que se passava na sua retaguarda, usou o dito instrumento para, nas condições descritas nos pontos 6, e 7 dos factos provados, impedindo-a de opor qualquer espécie de resistência, executar facilmente o seu propósito homicida».

No citado acórdão de 30-11-2011 dá-se igualmente nota dos contributos da doutrina sobre esta circunstância qualificativa que importa reter, aí se referindo:

«Dentro da elasticidade do conceito, Nelson Hungria, in Comentário ao Código Penal Brasileiro, volume V, págs. 167 a 169, refere que meio insidioso é uma expressão com grande amplitude, que pode ser um “meio dissimulado na sua influência maléfica”, podendo também ser um “meio fraudulento ou sub-reptício por si mesmo”, que inclui traição (“ataque súbito e sorrateiro, atingida a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso”), emboscada (“dissimulada espera da vítima em lugar onde terá de passar”), ou simulação (“ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa e para lhe diminuir e retirar toda a possibilidade de defesa”).

 

Para Fernanda Palma, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, pág. 65, a possibilidade de qualificação deriva da circunstância de os meios utilizados, dado o seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto, tornarem especialmente difícil a defesa da vítima ou arrastarem consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos.

Defende a delimitação do outro meio insidioso por referência à utilização do veneno, afirmando: “O insidioso tem a função de exprimir aqueles meios que actuam com a mesma intensidade, facilidade e dificuldade de serem descobertos que o veneno, não tendo pois a função de exprimir uma atitude do agente, mas a eficácia objectiva de um meio”.

Para o Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, § 27, págs. 38-39, meio insidioso será “todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno - do ponto de vista pois do seu carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto”.

Teresa Serra, in Homicídios em Série, conferência integrada em Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 1995), CEJ, 1998, volume II, págs. 153-154, e Jornadas sobre a revisão do Código Penal, em edição da AAFDL, 1998, págs. 131 a 133, a propósito da questão de saber em que medida o desamparo da vítima pode ou não apresentar uma estrutura valorativa próxima da imagem do exemplo padrão então contido na alínea f), ao contrário de Fernanda Palma para quem o insidioso tem a função de apenas exprimir a eficácia objectiva de um meio, propende a efectuar uma interpretação com sentido amplo, de modo a incluir a função de exprimir uma atitude do agente, que explora e aproveita a vulnerabilidade física e ingenuidade da vítima, revelando uma personalidade especialmente perversa. Refere que “… reconhece-se geralmente que a noção de meio insidioso abrange não apenas meios materiais especialmente perigosos de execução do facto, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de modo mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade e de desprotecção da vítima em relação ao agressor: é o caso da facada traiçoeira pelas costas ou do disparo de arma de fogo em emboscada, meios que retiram à vítima qualquer capacidade de protecção. Aliás, o fundamento da qualificação contida nesta alínea reconduz-se precisamente à utilização de meios pelo agente, por forma a aproveitar-se dessa desprotecção da vítima” (realces nossos).

Maria Margarida Silva Pereira, in Textos, Direito Penal II. Os Homicídios, volume II, AAFDL, 1998, pág. 42, ao referir-se ao homicídio por traição ou por insídia, para usar a expressão do Código, diz que “Trair é aproveitar distracção, enganar a vítima, criar uma situação que a coloque em posição de não poder resistir com a mesma facilidade”.

Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, 2.ª edição, Quid Juris, 2008, pág. 79, diz a propósito: “Está em causa o modo de execução do crime, nomeadamente através de uma actuação insidiosa. Ou seja, o agente utiliza um meio traiçoeiro, enganador, que expõe a vítima para que se reduzam as suas possibilidades de defesa. A vítima desconhece que o agente está a empreender um processo casual com vista à produção da sua morte, por isso torna-se numa “presa” fácil e desprotegida, sem hipótese de defesa. (…) A pedra de toque que nesta circunstância faz pressupor a maior censurabilidade é a traição, por esse motivo o envenenamento da vítima surge apenas para demonstrar o espírito que a norma pretende alcançar, abrindo a hipótese de utilização de outros meios insidiosos.

A análise do meio insidioso passa por abordar a forma como a vítima se encontrava, e o modo como o agente empreendeu a sua conduta. Assim, por exemplo, um faca pode ser utilizada de forma insidiosa, se, no meio de uma multidão, alguém atingir outro pelas costas, ou se a vítima se encontrar a dormir”.

Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 18.ª edição, 2007, pág. 517, reportando-se ao meio insidioso entende que se trata de um conceito amplo, onde caberia o próprio veneno, e que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e os desleais. Acrescenta que “não foram particularizados quaisquer meios para não retirar elasticidade ao conceito”, devendo haver, devido a esta elasticidade, “um particular cuidado na concreta indagação e constatação da especial censurabilidade ou perversidade que estão na base da agravação, e que são sua condição sine qua non”.»

Ora, tendo presentes todos estes contributos jurisprudenciais e doutrinais, não oferece quaisquer dúvidas de que o condicionalismo em que o arguido praticou a os actos não pode deixar de reclamar um especial juízo de censura, preenche adequadamente a circunstância que, prevista na citada alínea i) do número 2 do artigo 132.º do Código Penal.

O arguido agiu insidiosamente. Lançou água a ferver sobre o corpo da assistente quando esta se encontrava a dormir, em completa desprotecção, desprevenida e indefesa, incapaz de reagir e evitar a agressão. Como bem se afirma na decisão recorrida, a actuação do arguido se se enquadra nas situações em que é usado um meio desleal, traiçoeiro, ardiloso, um instrumento de uma armadilha, de uma cilada, em situação na qual a vítima se encontra especialmente desprotegida perante o agressor, «já que atua de forma absolutamente dissimulada, oculta, pois espera que a visada adormeça (na sua própria casa) e, nessa altura (e já após a meia noite), aproveita o estado de abandono da visada, em descanso, para a atingir, em condições não apenas inteiramente imprevisíveis para a vítima, mas sobretudo caracterizadoras de uma situação de absoluta indefesa por parte desta. Ele escolhe «as condições em que o facto pode ser cometido de forma mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade, de desprotecção da vítima em relação ao agressor», num contexto de absoluto desamparo da vítima, incapaz de reagir».

Com referência ao meio utilizado (água a ferver) e circunstâncias em que os factos ocorreram, não se suscitam dúvidas que o arguido actuou em circunstâncias que revelam uma especial censurabilidade e perversidade, verificando-se a qualificativa prevista na alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

Nenhuma censura, pois, merece a decisão sob recurso. Donde se conclui que a conduta do arguido é de enquadrar no crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, por referência aos artigos 144.º e 132.º, n.º 2, alínea i), do Código Penal, como bem decidiram as instâncias.

Improcede também nesta parte o recurso do arguido.

4.4. Medida da pena

Invoca o recorrente erro na determinação da medida concreta da pena, dizendo que a pena aplicada é «objectivamente desproporcional e desajustada» e pugnando pela sua redução em termos de não ultrapassar três anos, suspensa na sua execução.

Revisitando considerações que se teceram no acórdão deste Supremo Tribunal, de 13-07-2017 (Proc. n.º 54/15.5JBLSB.E1.S1 – 3.ª Secção), retomadas no acórdão de 10-08-2018 (Proc. n.º 176/17.8PBEVR.S1 – 3.ª Secção), ambos relatados pelo ora relator:

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, a medida da pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40.º, n.º 2, do mesmo Código.

Na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).

Sobre a determinação da pena, em razão da culpa do agente e das exigências de prevenção, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-12-2011, proferido no processo n.º 706/10.6PHLSB.S1 – 5.ª Secção, convocado também no acórdão de 27-05-2015 (proc. n.º 445/12.3PBEVR.E1.S1 – 3.ª Secção):

«Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).

Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.

Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.).

Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).

Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.»

A defesa da ordem jurídico-penal – lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-07-2014 (proc. n.º 1081/11.7PAMGR.C1.S1 – 3.ª Secção), «tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização».

Como justamente refere MARIA JOÃO ANTUNES, «[s]e a medida da pena é a protecção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade, e se a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do CP), então a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, actuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens»[30].

A medida da pena, considera a mesma autora, «há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida»[31].

O acórdão recorrido fundamenta a aplicação da pena de 6 anos de prisão aplicada ao arguido nos seguintes termos:

«É sabido, mas não será demais recordar, que a aplicação das penas e medidas de segurança "visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade" (art.º 40 do CP), não podendo em caso algum ultrapassar a medida da culpa (art.º 40 n.º 2 do CP).

A protecção dos bens jurídicos implica, pois, que a pena, sem ultrapassar a medida da culpa, seja adequada e suficiente para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos, incentivar a convicção que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte da comunidade (acórdão do STJ de 14.03.2001, CoI. Jur., Ano IX, 1. 1,245). A medida da pena será encontrada dentro da moldura de prevenção - cujo limite nos é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos (dentro do que é consentido pela culpa) e o mínimo das exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico - e em função da necessidade de socialização do agente, através da sua adesão aos valores da comunidade, dissuadindo-o da prática de novos crimes.

É dentro deste quadro que a pena deve ser determinada, tomando em consideração o disposto no art.º 71 n.º 2 do CP, ou seja, todas as circunstâncias - as apuradas - que militem contra o agente e a seu favor.

No caso em apreço, na determinação da medida concreta da pena (dentro da moldura de 3 a 12 anos de prisão), o tribunal [colectivo], depois de fazer apelo aos fins que se visam com a punição e aos critérios que devem presidir à sua determinação (arts 40 e 71 n.º 2 do CP), ponderou, por um lado:

- o grau da ilicitude do facto, "ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente (relevam as características da execução não directamente valoradas na qualificação dos factos, mormente o local, espaço íntimo, e a hora da acção, o tipo de relacionamento existente e a gravidade das sequelas causadas)";

- a intensidade do dolo (o arguido actuou com dolo directo e intenso);

- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram ("pode discernir-se, subjacente aos factos, um sentimento de desrespeito e vontade de infligir sofrimento").

Por outro:

- as condições pessoais do agente e a sua situação económica (''percurso pessoal regular, laboralmente investido, embora com alguma concomitante precariedade");

- a conduta anterior e posterior ao facto ("foi condenado por um crime de natureza análoga, mas objectivamente menos grave, cuja pena cumpriu").

Por outro, a culpa do arguido e as prementes exigências de prevenção geral e especial que no casos e fazem sentir, dados os reflexos comunitários deste crime.

E, perante tais circunstâncias, condenou o arguido na pena de quatro anos de prisão, pena que, perante as circunstâncias dos factos, as exigências e prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir e as circunstâncias que depõem contra o agente e a seu favor, não se mostra adequada e suficiente a satisfazer tais finalidades.

De facto:

- são elevadas - muito elevadas - as exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir, atenta a natureza do crime, as circunstâncias em que ocorre - acima destacadas - e o alarme social que lhe está associado, como são elevadas as exigências de prevenção especial, pois que o arguido foi já anteriormente condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física, por sentença transitada em julgado em 11.04.2010, e - sem questionar o direito que lhe assiste - não revelou nem revela qualquer atitude crítica relativamente aos factos, que continua a não assumir e a desvalorizar, não obstante as evidências e a gravidade dos mesmos;

- é elevado - muito elevado - o grau da ilicitude dos factos, atento o modo de execução dos mesmos, e a gravidade das suas consequências (vejam-se os pontos 12 a 23 da matéria de facto dada como provada);

- é elevado o grau de violação dos deveres impostos, face à relação existente com a vítima (com quem vivia, numa relação idêntica à de cônjuges), e o grau da culpa do agente, que se manifesta pela forma como atuou - com dolo directo - e pela motivação da sua conduta (em face da informação da vítima que terminava a sua relação com o arguido, este, movido por um sentimento de vingança - não obstante a vítima aceitar que aquele permanecesse lá em casa até ao natal, por não ter para onde ir - esperou que a vítima adormecesse, foi aquecer uma panela de água e deitou-a, a ferver, para cima da vítima e abandonou o local, levando o telemóvel da vítima para que aquela não pudesse pedir auxílio, indiferente às consequências da sua conduta). Nestas circunstâncias, a pena aplicada - de quatro anos de prisão, dentro da moldura de 3 a 12 anos - não se mostra adequada e suficiente, quer para satisfazer as exigências de prevenção geral acima destacadas - em suma, para repor a confiança da comunidade na validade e eficácia das normas violadas - quer para satisfazer as exigências e prevenção especial que no caso se fazem sentir, pois que, fazendo apelo aos critérios da razoabilidade, ante a postura do arguido perante os factos, cuja gravidade não interiorizou - e que desvaloriza - o seu passado criminal e o elevado grau da culpa, ela não seria suficiente para lhe fazer sentir a gravidade do crime e, consequentemente, para prevenir a prática, no futuro, de idênticos comportamentos.

Entende-se, por isso, que - perante tais circunstâncias, e sem perder de vista as condições pessoais do agente e a sua situação económica (''percurso pessoal regular, laboralmente investido, embora com alguma concomitante precariedade"), que pouco relevam em termos de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido - se justifica e impõe a aplicação da pena de seis anos de prisão, pena que, não indo além da culpa, se mostra necessária - e adequada - para satisfazer os fins que se visam com a punição.»

Esta fundamentação não pode deixar de merecer a nossa concordância.

Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, a medida concreta da pena é fixada em função da culpa e das exigências da prevenção, devendo atender, nomeadamente, à ilicitude do facto, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados na prática do crime e à sua motivação, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior aos factos, à sua falta de preparação para manter conduta lícita.

Na realização dos fins das penas – protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal) – as exigências de prevenção geral constituem uma finalidade de primordial importância em casos como o presente em que nos deparamos com um acto de violência doméstica, uma agressão muito grave praticada sobre a assistente, pessoa com quem o arguido estabelecera uma relação de namoro em Julho de 2015 e que passaram a viver juntos desde cerca de uma semana após iniciarem o namoro (facto 1), provocando o crime cometido pelo arguido uma intensa perturbação na comunidade.

Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos – artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal – definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado na norma incriminadora aqui presente – o respeito pela vida e integridade física da pessoa.

Relembrando considerações já tecidas, e convocando o ensinamento de FIGUEIREDO DIAS, «A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida»[32].

Como já se consignou, citando-se MARIA JOÃO ANTUNES, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida.

Significando a prevenção geral positiva ou de integração, sublinha-o AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, que a pena é um meio de interpelar a sociedade e cada um dos seus membros para a relevância social e individual do respectivo bem jurídico tutelado penalmente.

A prevenção geral positiva tem ainda, considera o mesmo autor, a dimensão ou objectivo da pacificação social ou, por outras palavras, do restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva ou individual. Esta mensagem de confiança e de pacificação social é dada, especialmente, através da condenação penal, enquanto reafirmação efectiva da importância do bem jurídico lesado[33].

Em termos de prevenção geral, tanto positiva, como intimidatória, as necessidades de endurecimento da reacção penal fazem-se sentir de forma elevada, perante a revolta gerada junto da população em geral pelo tipo de criminalidade ora em apreço, que, como todos constatam, surge com frequência.

No caso presente, é muito elevado o grau de ilicitude dos factos, assumindo a culpa do arguido a forma de dolo directo, em elevada intensidade.

O arguido manifestou em todo o processo executivo do crime uma vontade firme dirigida ao facto e uma intensidade que impressionam negativamente.

Não há dúvida de que as qualidades da sua personalidade manifestadas no facto que praticou revelam uma marcada desconformação com o direito, atenta a gravidade e o modo de execução dos factos.

Em face do exposto, e reafirmando o nosso juízo de concordância com a fundamentação da medida da pena aplicada na decisão recorrida, entendemos que, numa moldura penal do crime praticado pelo arguido, compreendida entre 3 e 12 anos de prisão, a pena de 6 anos de prisão é justa e adequada e satisfaz as exigências de prevenção geral e especial, muito prementes no caso, improcedendo o recurso interposto.

Perante a pena aplicada, tendo em conta o disposto no n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal, fica prejudicada a ponderação da suspensão da execução da pena.

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

- Rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA, no que respeita à parte cível, por inadmissibilidade, nos termos do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 414.º, n.º 2, do CPP e 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 4.º do CPP, e do artigo 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP.

- Julgar improcedentes as nulidades invocadas.

- Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, quanto à parte crime, em que se fixa a taxa de justiça em 4 UC, e quanto à parte cível, condenando-se o mesmo na soma de 5 UC, nos termos do n.º 3 do artigo 420.º do CPP.

(Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 6 de Fevereiro de 2019

Manuel Augusto de Matos (relator)

Lopes da Mota

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[1]             Alínea repetida.
[2]             Neste sentido, Proposta de Lei 109/X.
[3]             Neste sentido, Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/02, de 14.03, segundo o qual “no regime do Código de Processo Penal vigente - n.º 2 do artigo 400.º, na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto - não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal.”.
[4]            Neste sentido, entre muitos outros, Acs. do STJ de 29.09.2010, Proc. n.º 343/05.7TAVFN.P1.S1; de 07.04.2011, Proc. n.º 4068/07.0TDPRT.G1.S1; de 22.06.2011, Proc. n.º 444/06.4TASEI.L1.S1; de 30.11.2011, Proc. n.º 401/06.0GTSTR.E1.S1; de 15.12.2011, Proc. n.º 53/04.2IDAVR.P1.S1; de 19.09.2012, Proc. n.º 13/09.7GTPNF.P2.S1; de 13.02.2013, Proc. n.º 707/10.4PCRGR.L1.S1; de 14.03.2013, Proc. n.º 610/04.7TAPVZ.P1.S1; de 12.06.2013, Proc. n.º 123/09.0GCTND.C1.S1; de 30.10.2013, Proc. n.º 150/06.0TACDR.P1.S1; de 06.03.2014, Proc. n.º 89/01.5IDLSB.L1.S1 e de 10.04.2014, Proc.  n.º378/08.8JAFAR.E3.S1).
[5]             Disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[6]  Disponível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, como os demais que se citarem sem outra menção.
[7]  ANTÓNIO DA SILVA HENRIQUES GASPAR, JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, EDUARDO MAIA COSTA, ANTÓNIO JORGE DE OLIVEIRA MENDES, ANTÓNIO PEREIRA MADEIRA, ANTÓNIO PIRES HENRIQUES DA GRAÇA, Código de Processo Penal Comentado, 2016 – 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 1081.
[8]             Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 188. Itálicos no original.
[9]             Código de Processo Penal Comentado, cit., p. 189.
[10]           Ob. cit., pp. 1083-1084.
[11] Actual artigo 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, citado no texto.
[12]           Código de Processo Penal Comentado, cit. p. 1273.
[13]           Sublinhados no original.
[14]           Lições de Direito Processual Penal, 2015, Almedina, p. 222.
[15]           Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 171.
[16]           Ob. e loc. cits.
[17]           Sumários de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais – Ano de 2014.
[18] Comentário do Código Penal, 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 560.
[19]           Crimes contra avida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actuslizada, AAFDL, 2007, p. 102.
[20]          Código Penal – Parte Geral e Especial, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 605.
[21]           Ob. cit., p. 606.
[22]           Ob. cit., p. 103.
[23]           Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp..249-250.
[24]           M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, ob. cit., p. 616.
[25]           Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 26.
[26]           Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, pp. 63-64.
[27]           Comentário Conimbricense do Código Penal, cit., p. 29.
[28]          Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, Quid Juris, 2005, pp. 50-51.
[29]           Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, p. 29.
[30]           Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 44.
[31]           Idem, ibidem.
[32]           “O sistema sancionatório do Direito Penal Português”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, p. 815,
[33]  Direito Penal – Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 65-66.