Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3158/11.0TJVNF-N.G1-A.S1-A
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO EXPRESSA
CASO JULGADO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
FACTOS PROVADOS
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :

I- Para se aferir da admissibilidade do recurso de Uniformização de Jurisprudência é necessário que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada contradição assuma carácter determinante fundamental para a solução do caso, devendo integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto.

II- Não existe contradição jurisprudencial quando apesar de acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidirem questões relativas à exceção do caso julgado, no acórdão fundamento a exceção foi julgada procedente, com fundamento na identidade de pedidos entre a anterior e a posterior ação e no acórdão recorrido, foi julgada não verificada a exceção por se ter decidido que os factos considerados provados nos fundamentos da sentença proferida em primeiro lugar não podiam isoladamente considerar-se cobertos pela eficácia do caso julgado.

Decisão Texto Integral:



Processo n.º 3158/11.0TJVNF.N.G1.A.S1-A

Reclamação ( artigo 692 n.º 2 do CPC)

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça ( 6ª secção)

Relatório

AA e mulher BB vieram interpor recurso para uniformização de jurisprudência, ao abrigo do disposto nos artigos 688º, 689º, 690º e 693º do CPC, considerando que o acórdão proferido neste processo, em 11.07.2023, está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2017, proferido no Processo n.º 1565/15.8....

A final pedem se dê “provimento ao presente recurso, julgando-se que o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão fundamento, bem como que a matéria deste deve subsistir, com a consequência de nos termos do n.º 2 do artigo 695.º do Código de Processo Civil, ser revogado o acórdão recorrido e substituído em que se decida a questão controvertida.”

Não houve resposta da contraparte.

Por decisão da Ex.ma Sr.ª Juíza Conselheira Relatora de 29.01.2024, foi rejeitado liminarmente o recurso interposto, pela falta de oposição exigível.

Os Recorrentes/ reclamantes discordando dessa decisão apresentaram, nos termos do artigo 692º n.º 2 do CPC, a presente reclamação para a conferência, com os seguintes fundamentos:

“ 2. BREVE SÚMULA DAS CONCLUSÕES DO RECURSO

Afigura-se vantajoso ao conhecimento do objeto da reclamação conhecer, com um mínimo de rigor, o que consta das conclusões do recurso, e que assim se pode sumariar:

1ª – O acórdão recorrido decidiu que o caso julgado “abrange a parte decisória da sentença”, mas não estende a sua eficácia “a toda a matéria apreciada enquanto motivos objetivos da sentença, que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva e sejam de consideração autónoma”, porque “os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma não adquirem valor de caso julgado”.

O acórdão-fundamento (acórdão do STJ de 05.12.2017, disponível em, no processo n.º 1565/15.8VFR-A.S1), excluiu essas restrições da figura da eficácia do caso julgado decidindo que “objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico da parte dispositiva do julgado”.

2ª – Os recorrentes interpuseram o recurso para uniformização de jurisprudência por entenderem de todo injustificadas as limitações á eficácia do caso julgado, só por as mesmas serem, ou poderem, ser consideradas autonomizadas de qualquer outra decisão, não apenas porque no caso sub judice nada permite concluir que a decisão pretérita seja autónoma em relação à decisão seguinte, como a lei não consente, e o acórdão fundamento bem o justifica, que se exclua a eficácia do caso julgado, como se fez no acórdão recorrido, ainda que por recurso áquilo a que se chamou “questões preliminares” ou até por referência, de todo deslocada, a “valor extra processual das provas”, quando a verdade é que tudo se discute no mesmo processo e não em processos distintos, e tudo respeita à mesma matéria, e não a questões diversas.

3ª – Com efeito, o acórdão-fundamento, após discorrer sobre as duas funções atribuídas ao caso julgado, que embora distintas se complementam (autoridade do caso julgado e exceção do caso julgado) refere que essas duas funções mais não são do que duas faces da mesma moeda, destinando-se a primeira a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do principio da economia processual, e a segunda evitar que a relação jurídica material já definida possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão com ofensa da segurança jurídica, sustentando ainda que “apesar da eficácia do caso julgado material incidir nuclearmente sobre a parte sobre dispositiva da sentença, a mesma alcança também a decisão daquelas questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado (isto é, os fundamentos e as questões incidentais ou de defesa que entronquem na decisão do pleito, enquanto limites objetivos dessa decisão) em homenagem à economia processual e à estabilidade e certeza das relações jurídicas”.

4ª – Sustentaram ainda os recorrentes que não se vê como os conceitos utilizados pelo acórdão recorrido, e sob responsabilidade exclusiva dos respetivos julgadores (“decisão preliminar”, “valor extraprocessual das provas”, “processos autonomizados”) podem ter alguma aplicação, por remota que seja ao julgamento do caso que foi submetido a decisão, pelo que a colisão de decisões que é manifesta, deve ser resolvida no sentido do decidido no acórdão-fundamento.

5ª – Os recorrentes explicaram os contornos factuais e jurídicos do casus belli, nos termos seguintes:

a) Os recorrentes venderam à recorrida, um prédio rústico, sendo o preço representado pela entrega futura de dois prédios urbanos, a construir pela compradora, num loteamento que esta aí ia promover, e a empreiteira, concluído esse loteamento, entregou os dois prédios urbanos aos recorrentes que, regularizada a transmissão em termos fiscais, os ocuparam e deram de arrendamento a terceiros, ficando investidos na sua posse.

b) Antes da outorga da escritura pública de venda formal dos prédios, mas em momento em que os mesmos já haviam sido entregues e ocupados pelos recorrentes, a empreiteira Pousaconstruções, Lda. foi declarada insolvente por sentença de 23/11/2011, transitada em julgado.

c) Em consequência daquela falta de título de transmissão, os recorrentes, no apenso E, àquele mesmo processo de insolvência, reclamaram os seus créditos, que foram reconhecidos por sentença de 06/09/2013, transitada em julgado, seguindo-se a venda formal dos dois imóveis, decidida pela administradora da insolvência, e por esta efetuada.

d) Depois da venda, a administradora da insolvência requereu no processo principal a notificação dos recorrentes para pagarem à insolvente o valor das rendas que haviam percebido pelo arrendamento desses imóveis, entre a data da apreensão dos mesmos para a massa insolvente e a data da escritura de venda.

e) Esse requerimento foi deferido por despacho com o argumento de que os recorrentes eram apenas, nesse período, detentores dos imóveis e possuidores de má-fé, pelo que não podiam fazer suas as rendas recebidas, que deviam pertencer à insolvente, nos termos dos artigos 1271.º e 212.º n.º 2 do CC – e desse despacho os recorrentes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães.

f) O recurso de apelação foi julgado parcialmente procedente, mas o respetivo acórdão condenou os recorrentes a pagarem o valor das referidas rendas, com o argumento de que os recorrentes não eram possuidores dos imóveis, mas apenas seus “detentores em nome de outrem” e nunca os haviam detido de boa fé, porque “em nenhum momento lhes foi reconhecido um direito de posse (e muito menos de boa fé) sobre tais imóveis”.

g) Essa fundamentação é completamente errada porque há muito se encontrava provado, por sentença produzida no já referido apenso E de reclamação de créditos, que “os imóveis litigados foram apreendidos para a insolvência em 9.2.2012”, mas “depois de lhes terem sido entregues as chaves das casas pela Pousaconstruções, Lda., os autores ocuparam os prédios fazendo-os seus, no mês de janeiro de 2010” data a partir da qual os autores “encontram-se na posse dos mesmos prédios, com ânimo de quem usa e frui de coisas próprias, na convicção de não lesarem direitos de quem quer que seja, sem oposição de ninguém, exercendo-a à vista de toda a gente, incluindo os réus e quem nos factos descritos mais diretamente pudesse estar interessado” significando esses factos que, como concluía a sentença, “à entrega das chaves (…) seguiu-se a posse com animus rem sibi habendi”.

h) Por isso, inconformados com a condenação, os recorrentes interpuseram recurso de revista, invocando não apenas o fundamento da violação do caso julgado formado pela anterior decisão no apenso E, e de que o acórdão nem sequer tomara consciência, mas o recurso foi objeto de despacho liminar de rejeição, por se entender que não era admissível, nos termos do artigo 641.º/2 a) do CP Civil de 2013, porque os recorrentes o interpuseram “olvidando, por completo, que o mesmo respeita a um processo especial de insolvência, e que, neste tipo de processo, o recurso de revista tem um regime específico previsto no artigo 14.º do CIRE que o afasta das regras comuns de revista previstas no CP Civil de 2013”, pelo que o recurso de revista só seria admissível se houvesse “uma frontal oposição de entendimentos (expressos em dois acórdãos) sobre a aplicação de determinada solução legal, e que tal divergência se projeta decisivamente no modo como os casos foram decididos”.

i) Fundou esse despacho de rejeição a decisão de não receber o recurso também no facto de “como resulta do teor do requerimento de interposição de recurso, os Requeridos/Recorrentes fundamentam a impugnação judicial no “regime – regra da revista previsto no artigo 671.º do CP Civil de 2013, que é inaplicável, e na ofensa do caso julgado prevista no artigo 629.º/2 a) do mesmo diploma legal, que é igualmente inaplicável” de onde “impõe concluir-se, de forma tão inequívoca quanto manifesta, que o recurso em apreciação é legalmente inadmissível”, decisão de que os recorrentes reclamaram para o STJ, sustentando, entre o mais, que o artigo 14.º n.º1 do CIRE nunca teria aplicação, uma vez que foi invocada a violação de caso julgado, e, ainda que assim não fosse, que a situação descrita não permitia qualquer enquadramento nesse normativo.

j) Neste STJ foi então produzida decisão singular, de que se reclamou para a conferência, na qual, ponderando-se embora que a reclamação dos recorrentes deve proceder, porque, e tanto bastava, se alegava a violação do caso julgado, nos termos do artigo 629.º n.º 2 al. a) do CPC, no entanto, devia decidir-se desde já pelo não conhecimento do objeto do recurso, que assim foi considerando findo, nos termos dos artigos 652.º n.º 1 al. b) e 679.º ambos do CPC, porque julgada a respetiva matéria devia decidir-se que não ocorria caso julgado, pois, a decisão que pretensamente faria caso julgado não passa de uma decisão preliminar, à qual se não pode estender a eficácia do caso julgado, por uma e outra terem sido produzidas em processos autonomizados, não podendo confundir-se o valor extraprocessual das provas, que, essas sim, podiam ser objeto de apreciação noutro processo com os factos que no anterior foram tidos como assentes;

k) Sustentou-se nessa decisão que “transpor os factos provados de uma ação para outra constituiria pura e simplesmente conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado, que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui”, o que tudo significa que a matéria de facto apurada por sentença no apenso E “não adquire o valor de caso julgado passível de constituir fundamento para a admissão do recurso”.

l) Considerando essa decisão inaceitável, os recorrentes requereram que sobre o despacho em causa recaísse um acórdão, porquanto, na parte que agora importa considerar não é concebível configurar a decisão produzida no apenso de verificação de créditos atrás referido como uma questão preliminar em relação ao despacho recorrido, do mesmo modo que não é possível sustentar que os fundamentos de facto da sentença produzido no apenso E são autonomizados em relação à matéria objeto do despacho recorrido, e ainda que só podem ser considerados em termos de relevância do valor extraprocessual das provas, para além do facto de a questão de decidir da boa ou má-fé dos recorrentes, a partir do momento em que lhes foram entregues os prédios, não é uma questão distinta num e noutro momento em que foram produzidas as duas decisões em confronto, é a mesma questão, sendo verdadeiramente intolerável que, para mais, os recorrentes sejam fulminados com a afirmação absolutamente falsa de que nem tinham a posse de boa-fé nem isso lhes fora alguma vez reconhecido pelo tribunal.

m) Alegaram também os recorrentes que, entre outros, o acórdão-fundamento, apesar de ser citado como decidindo no mesmo sentido das teses do despacho sobre reclamação, na verdade o contrariava, pois esse acórdão do STJ de 05/12/2017 (proc. 1565/15.8T8VFR-AP1.S1 da 1ª Secção de que foi relator Pedro Lima Gonçalves) decidira que, entre o mais, “objetivamente a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico da parte dispositiva de julgado”.

Foram essas, sumariamente referidas, as razões invocadas em sede de conclusões para justificar a admissibilidade do recurso.

3. A CONCRETA VERIFICAÇÃO DA CONTRADITORIEDADE DAS DECISÕES

O recurso interposto padece de falta de rigor? É, por isso, abusivo?

As decisões em confronto não são equiparáveis? Quando num e noutro dos acórdãos as “telas factuais”

(sic.) são “completamente diversas”, fica por isso impedido o julgamento do recurso?

Vamos procurar responder a essas questões, postas pelo despacho reclamado, começando pela última.

3.1 O QUADRO LEGAL – ARTIGO 688.º N.º 1 DO CPC

O artigo 688.º n.º 1 do CPC dispõe que “as partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”.

Ante tal texto, é absolutamente manifesto que para se averiguar da admissibilidade do recurso para fixação de jurisprudência não há que convocar nada que respeite à matéria de facto.

Na verdade, a lei fala em “mesma questão fundamental de direito”.

A jurisprudência não tem tido dúvidas a tal respeito, como se pode abonar, por exemplo, com o que foi decidido no acórdão do STJ de 20/03/2013, (proc. 261/09. dgsi.net), que assim decidiu: “a contradição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência há de verificar-se relativamente a questões de direito que se revelem essenciais para a solução encontrada tanto no acórdão recorrido como no acórdão-fundamento. Não relevam para o efeito meros argumentos de ordem suplementar com natureza de obiter dictum”.

E no mesmo sentido, não se insistindo na questão por parecer que o entendimento é absolutamente pacífico, decidiu também o acórdão do STJ de 20/03/2014 (proc. 1937/08, Sumários, março 2014, página 38): “a admissão do recurso de fixação de jurisprudência depende dos seguintes vetores fundamentais: a) oposição entre o acórdão recorrido e outro acórdão do STJ relativamente à mesma questão de direito; b) carácter essencial da questão em que se manifesta a contradição; c) identidade substantiva do quadro normativo (identidade normativa) em que se insere a questão; d) trânsito em julgado de qualquer dos acórdãos, presumindo-se o trânsito quanto ao acórdão fundamento”.

É, pois, completamente deslocada a exigência relativa à semelhança da matéria de facto que o despacho contém, pelo que não pode a mesma ser aceite.

3.2 OS DOIS ACÓRDÃOS EM OPOSIÇÃO E A QUESTÃO JURÍDICA SUBJACENTE AO ACÓRDÃO RECORRIDO, QUE EXIGE UMA REPARAÇÃO DESTE STJ.

O acórdão fundamento decidiu a questão posta nos seguintes termos (processo n.º 1565/15.8VFR-A.S1):

“A função negativa (do caso julgado material) opera por via da “exceção dilatória do caso julgado” pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos de pedido e de causa de pedir.

Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

A decisão recorrida (processo n.º 3158/11.0TJVNF-N.G1-A.S1, de 11-07-2023), por sua vez, determinou que:

“O caso julgado abrange toda a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é o caso julgado incide sobre a decisão como a conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (…)” mas “os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma não adquirem valor de caso julgado”

Assim “a pretendida factualidade, enquanto fundamentação de facto, autonomizada da sentença proferida no apenso E (…) não adquire, conforme o exposto o valor de caso julgado, pelo que não se mostra desenhada a existência de violação de caso julgado passível de constituir fundamento para a admissão do recurso”.

Ora, ao contrário do decidido no acórdão recorrido:

a) nem se vê como no caso sub judice possam existir factos autonomizados (porque os factos são os mesmos, constam do mesmo processo, e versam sobre a mesma questão fundamental de direito);

b) nem se vê como podem ser apontadas – porque não existem, nem sequer após utilização da imaginação - razões para distinguir entre factos autonomizados e factos não autonomizados.

De resto, o que é isso de factos autonomizados e não autonomizados?!!

Tal distinção não tem qualquer cabimento.

É essa a razão da profunda discordância em relação ao decidido – e tanto bastaria para se poder falar em contradição de julgados: uma diferente exigência para avaliar se há ou não caso julgado (num caso afirma-se que não há se os factos forem não autonomizados, no outro diz-se que há quando os factos forem autonomizados).

Eis uma contradição relevante.

Importa à decisão sobre o mérito do recurso ter presente e descrever também as duas decisões contraditórias num processo e que permitem formular um juízo seguro de que só a segunda delas pode prevalecer (acórdão do STJ de 08-03-2018, processo n.º 1306/14.7TBACB-T.C1-S1, de que foi relator o Conselheiro Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt) “deve ser desconsiderado por violação do caso julgado formal assente em prévia decisão”:

1. No apenso E (apenso de verificação de créditos na insolvência de “Pousaconstruções, Lda.”, declarada no processo principal em 23-11-2011), foi proferida decisão sobre a matéria de facto, relevando a seguinte:

a) “Depois de lhes serem entregues as chaves das casas pela Pousaconstruções, Lda, os AA ocuparam os prédios, fazendo os seus nos mês de janeiro de 2010”;

b) “Desde então, os autores, a quem a ré Pousaconstruções, Lda., fez a entrega das chaves dos referidos prédios, encontram-se na posse dos mesmos prédios, com ânimo de quem usa e frui coisas próprias, na convicção de não lesaram direitos de quem quer que seja, sem oposição de ninguém, exercendo-a à vista de toda a gente, incluindo os réus e quem os factos descritos mais diretamente pudesse estar interessado”, pelo que “à entrega das chaves (…) seguiu-se a posse com animus rem sibi habendi”;

2. No processo principal, ante despacho segundo o qual os recorrentes deviam pagar à massa insolvente o valor das rendas por eles recebidas no período e que já lhes haviam sido entregues os prédios, decisão de que os recorrentes interpuseram recurso, o tribunal da Relação de Guimarães por acórdão de 02-02-2023, confirmou a decisão quanto à questão da entrega das rendas, com o fundamento, verdadeiramente surreal, de que os recorrentes eram apenas detentores dos imóveis em nome alheio, nunca os haviam possuído de boa-fé, porque “em nenhum momento lhes foi reconhecido um direito de posse (e muito menos de boa-fé) sobre tais imóveis”.

Os recorrentes sustentaram no recurso de revista, interposto no processo principal que essa decisão do recurso de apelação, que julgava que eles eram possuidores em nome alheio e nunca lhes havia sido reconhecida qualquer posse de boa-fé, violava o caso julgado formado pela sentença produzida no apenso E que, pelo contrário, reconhecia que eles tinham possuído os prédios em causa de boa-fé e até com animus rem sibi habendi no mesmo período.

Neste Supremo Tribunal o erro foi coonestado, recusando o acórdão recorrido o recebimento do recurso com o fundamento de que “os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma não adquirem valor de caso julgado” porque a decisão do apenso de verificação de créditos é uma questão preliminar e a eficácia do caso julgado não se estende a toda a matéria apreciada enquanto motivos objetivos da sentença, por não ser “antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da respetiva consideração autónoma”.

Os recorrentes consideram a decisão completamente errada e até chocantemente injusta, desde logo porque foi preciso faltar à verdade para a construir, uma vez que falsamente se afirma que nunca os recorrentes foram reconhecidos como possuidores de boa-fé, quando bastaria ter um mínimo de atenção ao processo para concluir que isso era absolutamente falso.

De facto, a decisão recorrida usa conceitos sem explicar os termos em que os entendeu aplicáveis, tais como “questões preliminares” (quando não há decisões preliminares), “questões instrumentais” (quando não há decisões instrumentais, mas apenas uma e só decisão), “valor extraprocessual das provas” (quando não há qualquer outro processo para que se pudesse considerar a existência de provas extraprocessualmente obtidas).

Os recorrentes não sabem o que é de considerar como matéria de “consideração autónoma”, nem sabem como e quando devem considerar que possa haver fundamentos da sentença que “quando autonomizados na mesma, não adquirem o valor de caso julgado”, não conhecem qualquer obra que conceptualize esses conceitos, nem podem atribuir-lhes, se corretos fossem, idoneidade para permitir qualquer distinção de outros fundamentos não autónomos, por forma a construir uma decisão, quando os fundamentos são autónomos, excluindo o caso julgado, e outra decisão, quando os fundamentos não são autónomos, caso em que adquiririam o valor de caso julgado.

O acórdão-fundamento não faz, porém, qualquer distinção para efeito de adquirir o valor de caso julgado entre fundamentos autónomos ou não autónomos, questões preliminares ou não preliminares e essa parece ser a boa, para não dizer a única aceitável e compreensível, doutrina.

Termos em que respeitosamente requerem que, em conferência seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro que receba o recurso, pois doutra maneira não se fará justiça.»

Não foram apresentadas respostas.

A decisão da Sr.ª Juíza Conselheira tem a seguinte fundamentação:

“ Da admissibilidade do recurso.

O recurso de uniformização de jurisprudência, enquanto recurso extraordinário, exige para a sua admissibilidade, que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tenha proferido um Acórdão anterior, com trânsito em julgado que se presume, não contrariando jurisprudência uniformizada do STJ, esteja em oposição com outro proferido pelo mesmo Tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, art.º 688.

A apreciação dos requisitos enunciados terá de ser necessariamente rigorosa1, presente que está em causa o apelo às Secções Civis como instrumento para uniformizar entendimentos jurisprudenciais, no pressuposto de uma pacificação e segurança jurisprudenciais, que como tal não deve ser utilizado em termos abusivos.

Dos apontados fundamentos para a admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência, manifesto se torna que a simplicidade da sua aferição não é idêntica, tendo em conta até o elemento literal do normativo, a dificuldade está guardada para a existência da contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão do STJ (acórdão fundamento), relativamente à mesma questão fundamental de direito.

Neste âmbito, estamos perante oposição/contradição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito, “a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade da situação de facto subjacente a essa aplicação”2, ou, isto é, quando o núcleo da situação de facto, à luz da norma é idêntico, havendo conflito jurisprudencial se os mesmos preceitos são interpretados e aplicados a enquadramentos factuais idênticos3, bem como em termos da estrita incidência sobre factualidade, conduzindo a conclusões opostas.

A contradição deve ser frontal, e não implícita, não bastando que se tenha abordado o mesmo instituto, pressupondo que a subsunção jurídica realizada em quaisquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, ou factualidade como tal considerada, sem ser atribuída relevância a elementos de natureza acessória, e assim ser idêntica a ratio decidendi4.

Em suma, a oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano da atendibilidade da factualidade, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis, e em conformidade contraditórias, para o qual não contribuía aspetos particulares factuais de cada um dos Acórdãos em oposição, factualidade que importa numa decisão diversa ou mesmo contrária.

2. No caso sob análise, na identificação dos elementos que determinam a invocada contradição quanto ao Acórdão fundamento os Recorrentes apontam como relevância para a procedência da sua pretensão, “Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, estende-se às decisões das questões preliminares que constituem antecedente logico da parte dispositiva do julgado”.

Constituindo o cerne da questão os limites objetivos do caso julgado, em sede deste Aresto consignou-se que quanto aos mesmos, referentes ao pedido e causa de pedir, verteu-se o acima aludido, sublinhando-se, que conforme a posição jurisprudencial predominante, que embora sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença/a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão, apesar de incidir nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, alcança ainda aquelas questões preliminares que constituem antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado.

Discutia-se nesses autos se ocorria a exceção de caso julgado, sendo formulados nesse processo o pedido de reconhecimento de uma parcela de terreno como prédio autónomo com a respetiva desanexação, alínea b), condenados os RR a isso verem declarado e reconhecido, alínea c), condenação dos RR ao cumprimento do contrato promessa de compra e venda, comparecendo na data e hora para a realização da escritura marcada pelo A, alínea d), condenação dos RR ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada mês vencido após a data agendada, alínea e). Na outra ação que antes correra termos, tinha sido formulado o pedido que fosse proferida sentença que condenando os RR, emitisse decisão que produzindo os efeitos da declaração faltosa dos RR, ou seja os efeitos de declaração de venda dos RR ao A., de uma parcela de terra a destacar do prédio identificado. Entendendo-se que o A pretendia obter o mesmo efeito útil, verificava-se a exceção do caso julgado quanto às alíneas d) e e).

Os Recorrentes, em 26.11.2012, vieram interpor ação para a verificação ulterior de créditos e eventualmente separação de bens contra a Insolvente, credores da massa insolvente e massa insolvente, pedindo que a) fossem verificados os créditos dos Autores, um deduzido condicionalmente, no montante de 174.579,26€, o qual tem a natureza garantida, outro de 90.000,00€, com a natureza de crédito comum, a serem graduados em local próprio; b) na hipótese de os prédios cuja transmissão de propriedade para os Autores se reclama se encontrarem apreendidos para a Massa, declarada a sua separação e a restituição dos Autores.

Com efeito por sentença de 23 de novembro de 2011 fora declarada a insolvência de POUSADACONSTRUÇÕES, LDA., tendo 6.02.2012 a Senhora Administradora da Insolvência juntado ao processo o auto de apreensão dos bens da Insolvente, reportado a 9.02.2012, relativamente aos bens imóveis, tendo sido proferida sentença julgando improcedente o pedido de separação e restituição aos Autores dos bens apreendidos para a massa insolvente sob os n.ºs 1 e 2 do auto de apreensão e em litígio, prosseguindo os autos para o conhecimento do demais peticionado. Admitida a ampliação do pedido dos Autores foram verificados os créditos com a natureza de créditos garantidos e a serem graduados no local próprio, tendo no âmbito da Liquidação os Recorrentes adquirido os imóveis em referência por Escritura Pública.

No processo de insolvência foi determinado que os Recorrentes deviam devolver à massa insolvente o valor das rendas dos imóveis que tinham sido aprendidos à insolvente e posteriormente adquiridos por aqueles, recusando-se os mesmos a fazê-lo face à posse pública, contínua, pacífica e de boa-fé dos imóveis, cujas chaves lhe foram entregues, pela agora insolvente, verificando-se que a matéria de facto provada na ação que tinham interposto fazia inequivocamente caso julgado contra a insolvente.

Aqui chegados, manifesto se torna que estamos perante telas factuais completamente diversas, com âmbitos processuais e normativos diferenciados, que afasta o necessário núcleo factual que possa ser minimamente equiparável, sendo certo que enquanto no Acórdão fundamento se aferiu da verificação da exceção do caso julgado, no Acórdão recorrido está em causa a ofensa do caso julgado, realidades jurídicas que sendo de modo necessário próximas, não se confundem.

Mas também em termos da fundamentação jurídica, com vista à aferição da contrariedade, consignando-se: O caso julgado material reporta-se à decisão que se prende com o mérito da causa, no concerne à relação material controvertida, com força obrigatória dentro e fora do processo, obstando que o mesmo ou outro tribunal possa definir de modo diverso o direito concreto aplicável à relação material em litígio, art.º 619 n.º 1, o designado efeito negativo – exercido através da exceção dilatória do caso julgado, cuja finalidade é evitar a repetição das causas, art.º 580, com a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente outros à decisão proferida – e o chamado efeito positivo, a autoridade de caso julgado, no sentido que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida5.

Em termos do alcance do caso julgado sobretudo material, apesar da discussão quanto a tal âmbito, é prevalecente o entendimento que o caso julgado abrange a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é, o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão, como conclusão de certos fundamentos, no reconhecimento de autoridade de caso julgado a todos os motivos objetivos, enquanto questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado6.

Quanto a tais questões preliminares, importa distinguir a sua dimensão interpretativa, geralmente aceite, em termos objetivos, relativos ao pedido e causa de pedir, que não estendendo a eficácia do caso julgado a toda matéria apreciada enquanto motivos objetivos da sentença, constituam o antecedente lógico indispensável da parte dispositiva, da respetiva consideração autónoma”.

E tendo em conta a situação em causa nos autos, com o reporte a factualidade que fora dada como provada em sede da ação referenciada, no sentido de permitir concluir que os Recorrentes sempre estiveram de boa fé, mesmo após a apreensão dos imóveis para a massa insolvente, fez-se constar, Com efeito os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma, não adquirem valor de caso julgado, porquantoNão pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser objeto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem o valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão. (…) Transpor os factos provados numa ação para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui”7.

Decorrentemente, não estamos perante com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis, e em conformidade contraditórias, mas sim casos com desfecho diferente, por reportados a situações distintas e distantes, achando-se em conformidade a diversidade, que sublinhe-se e reafirme-se, não resulta de soluções de direito opostas, mas sim para o qual contribuem aspetos particulares factuais de cada um dos Acórdãos em referência, e que importa na respetiva decisão achada para os Acórdãos fundamento e para o recorrido.»

Fundamentação

A questão essencial a decidir consiste em saber se ocorre contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento relativamente à mesma questão fundamental de direito.

De Facto

Factos essenciais considerados nos acórdãos em confronto.

No acórdão recorrido são relevantes os seguintes factos:

1. Por sentença de 23 de novembro de 2011 foi declarada a insolvência de POUSADACONSTRUÇÕES, LDA.

2. Em 16.02.2012 veio a Senhora Administradora da Insolvência (AI) juntar ao processo o auto de apreensão dos bens da Insolvente, reportado a 9.02.2012, relativamente a bens imóveis, verba n.° 1 - prédio urbano inscrito na matriz sob o art.° 1277, verba n.° 2, prédio urbano inscrito na matriz sob o art.° 1278, e bens móveis - Apenso A.

3. Por sentença de 5.09.2013 foi homologada a lista de credores apresentados pela AI, julgando-os verificados, e procedeu-se à respetiva graduação - Apenso D.

4. Em 26.11.2012, (Apenso E) AA e mulher BB vieram interpor ação para a verificação ulterior de créditos e eventualmente separação de bens contra a Insolvente, credores da massa insolvente e massa insolvente, pedindo que a) fossem verificados os créditos dos Autores, um deduzido condicionalmente, no montante de 174.579,26€, o qual tem a natureza garantida, outro de 90.000,00€, com a natureza de crédito comum, a serem graduados em local próprio; b) na hipótese de os prédios cuja transmissão de propriedade para os Autores se reclama se encontrarem apreendidos para a Massa, declarada a sua separação e a restituição dos Autores.

4.1. Em 23.11.2015 foi proferida sentença julgando improcedente o pedido de separação e restituição aos Autores dos bens apreendidos para a massa insolvente sob os n.°s 1 e 2 do auto de apreensão e em litígio, prosseguindo os autos para o conhecimento do demais peticionado.

4.2. Admitida a ampliação do pedido dos Autores quanto à alínea a) verificados os créditos dos Autores supra referidos, no montante de 285.527,46€, com a natureza de créditos garantidos e serem graduados no local próprio, em 28.04.2016, foi proferida sentença, na qual se consignou provado com relevância:

A - No processo n.º 3158/11 .O..., do T Juízo Cível do Tribunal Judicial desta comarca de ...), a que os presentes autos estão apensos, a sociedade por quotas Pousaconstruções, Lda., foi declarada insolvente, conforme sentença produzida no dia 23 de novembro de 2011, e já transitada em julgado, tendo sido nomeada como administradora da insolvência a Senhora Dr.' CC, com escritório na Rua ..., nesta cidade.

B - Em 27 de Julho de 1999, a Ré Pousaconstruções, Lda., representada pelo seu sócio gerente com poderes para o ato, DD e os aqui Autores, celebraram por escrito um contrato promessa de compra e venda (doe. n° 1 junto aos autos no apenso de reclamação de créditos dos aqui Autores, com cópia a fls. 104 a 106 deste), contrato esse que por vontade das partes, nele declarada, constitui parte integrante e complemento de um outro, no mesmo dia celebrado entre as mesmas partes - fls. 48 a 50.

C - Nesse contrato, os aí outorgantes declararam que por escritura pública nesse dia outorgada no 1° Cartório Notarial de ..., entre os Autores e a referida Pousaconstruções, Lda., foi celebrado um contrato de compra e venda através do qual os Autores venderam à citada Pousaconstruções, Lda. pelo preço de 30.000.000$00, que não foi pago, os seguintes prédios que lhes pertenciam:

1) Lameiro e vinha com ramada, situado no Lugar da ..., da freguesia de ..., concelho de ..., com a área de 5838 m2, a confrontar de Norte com EE, de Sul com a estrada, de Nascente com FF e de Poente com GG, HH e II, inscrito na matriz rústica sob o artigo 212 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° ...99 (fls. 77/78);

2) Prédio urbano de rés-do-chão e andar, com a superfície coberta de 92 m2, uma dependência com 10 m2 e quintal com 600 m2, situada no mesmo Lugar de ..., da indicada freguesia de ..., a confrontar de Norte com o Casal ..., de Sul e Poente com caminho público e de Nascente com JJ, inscrito na matriz urbana sob o artigo 144 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° ...599 (fls. 75/76).

D - Tais prédios integravam-se no património dos Autores, em cujo nome se encontravam registados na Conservatória do Registo Predial de ... (cf. documentos a fls. 76 e 78).

E - Esse contrato formal de compra e venda constituía apenas uma parte do compromisso outorgado pelas mesmas partes, representando a expressão da vontade das partes nele outorgantes, como aí declararam, o dever de pagamento do preço pela Pousaconstruções, Lda., representado por bens futuros a construir pela mesma Pousaconstruções, Lda.

F - A Ré Pousaconstruções, Lda., nos termos do contratado, prometeu vender aos Autores, dando desde logo quitação integral do preço, e os Autores prometeram comprar-lhe, duas casas geminadas, localizadas no extremo nascente dos terrenos vendidos pelos Autores pela citada escritura, casas essas a construir nos lotes n°s 9 e 10 devidamente assinaladas em planta anexa ao contrato e que dele se declarou parte integrante (cf. documento n.° 1já referido).

G - Conforme o referido contrato-promessa, a Ré Pousaconstruções, Lda. obrigou-se a construir tais casas, nos prédios adquiridos aos Autores pela referida escritura, construção que teria lugar de acordo com caderno de encargos próprio conhecido pelas partes, sendo as casas exatamente iguais às restantes que iam ser construídas pela Pousaconstruções, Lda., no local,

H - Tais casas seriam, e foram efetivamente, dotadas de cave, com garagem para 3 automóveis, rés-do-chão com sala, cozinha, casa de banho completa, marquise e despensa e 1.° andar com 3 quartos, um com quarto de banho privativo e um outro quarto de banho para os restantes quartos, correspondendo aos lotes n°s 9 e 10 do loteamento referido.

(…)

LL Os imóveis litigados foram apreendidos para a insolvência em 9.2.2012, constituindo as verbas 1 e 2 do respetivo auto de apreensão.

Da audiência de discussão resultaram provados os seguintes factos:

1- Depois de construídas as casas e porque não foram entregues aos AA, estes interpelaram a Pousaconslruções, Lda., pessoalmente e por diversas vezes após 31/1/2003, para que designasse qualquer Cartório, data e hora para a escritura, e para que lhes entregasse a posse, uso e fruição das casas, mas sem sucesso.

2 - Depois de lhes serem entregues as chaves das casas pela Pousaconslruções, Lda. - al V - os AA ocuparam os prédios, fazendo-os seus, no mês de janeiro de 2010.

3.- Desde então, os Autores, a quem a Ré Pousaconslruções, Lda., fez a entrega das chaves dos referidos prédios, encontram-se na posse dos mesmos prédios, com ânimo de quem usa e frui coisas próprias, na convicção de não lesarem direitos de quem quer que seja, sem oposição de ninguém, exercendo-a à vista de toda a gente, incluindo os Réus e quem nos factos descritos mais diretamente pudesse estar interessado.

(…)

Foi proferida a seguinte decisão :

A -Julgo reconhecido e verificado o crédito dos Autores sobre a insolvência, do montante de 174. 579,26 €uros;

B - Reconheço e declaro que este crédito dos Autores está garantido por direito de retenção, nos termos do disposto no art.º 755", n" 1, alínea f) e 759.º, do Código Civil, sobre os seguintes bens imóveis:

Artigo 1277

(…)

Artigo 1278

C - Mando que este crédito dos Autores seja pago pelo produto da venda dos imóveis identificados na alínea anterior, após graduação do mesmo crédito, nos termos dos art.º s 759 e 751, ou seja, a seguir a privilégios especiais mas antes de eventual crédito hipotecário, ainda que ainda que este tenha sido antes registado.

D - Mais reconheço aos AA. o crédito comum de 90.916,70 €uros, a ser pago com os mais créditos comuns, rateadamente, se necessário.

(…)

6. No âmbito da Liquidação (Apenso K) os Recorrentes/reclamantes adquiriram os imóveis em referência por Escritura Pública de 5.03.2020, sendo a liquidação encerrada em, 16.03.2020.

7. Em 26.02.2021 foram aprovadas as contas apresentadas pelo AI – Apenso L.

8. No processo principal a AI por requerimento de 19.05.2021 veio informar que aquando a elaboração do mapa de rateio final apercebeu-se que o valor das rendas das verbas 1 e 2 que os compradores, ora Reclamantes, tinham de devolver à massa, ainda não fora entregue, e que iria afetar o rateio a efetuar, ia insistir junto do seu Mandatário.

8.1. Em 1.07.2021 a AI solicitou a notificação dos compradores por não ter sido satisfeito o pedido.

8.2. Por requerimento de 8.07.2021 vieram os ora Reclamantes dizer que nada deviam, alegando que em 5.03.2020 tinham comprado os imóveis que arrendaram em data anterior à respetiva aquisição, ficando saldadas as contas dos mesmos com a vendedora, massa insolvente, mais aludiram que na ação que interpuseram (Apenso E), foi reconhecido o seu crédito sobre a insolvente, garantido por direito de retenção, sendo que ficaram na posse pública, contínua, pacífica e de boa fé dos imóveis, cujas chaves lhe foram entregues, pela agora insolvente, em janeiro de 2010, na sequência de ação interposta pelos mesmos para que a sentença produzisse os efeitos da declaração faltosa, quanto à transferência da propriedade dos ditos imóveis, verificando-se que a matéria de facto provada naquela ação faz inequivocamente caso julgado contra a insolvente.

8.3. Foi proferido o Despacho de 15.09.2021, que não aceitando as razões invocadas pelos Reclamantes, determinou que procedessem à entrega do valor das rendas percebidas, indevidamente.

9. Inconformados, vieram os Reclamantes interpor recurso de Apelação, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido o Acórdão de 2.02.2023, que decidiu:

“(…) os Requeridos/Recorrentes procedam à restituição à Massa Insolvente do valor total das rendas advindas dos arrendamentos dos bens imóveis que integram as Verbas nºs. 1 e 2 do Auto de Apreensão, rendas essas que serão aquelas que tenham recebido desde a data da apreensão (09/02/2012) até à data em que adquiriram os bens (05/03/2020), às quais será deduzido o valor total dos pagamentos de IMI, relativos mesmos bens, que os Requeridos/Recorrentes realizaram no mesmo período temporal, tendo esta dedução o limite máximo do valor global das rendas a serem restituídas.”

Os factos considerados no acórdão fundamento foram apenas os seguintes:

“1.1. No processo nº2540/08.4TBVFR, o aqui Autor formulou o seguinte pedido:

seja proferida sentença que, condenando os Réus, emita decisão que produzindo os efeitos da declaração faltosa dos Réus, ou seja os efeitos da declaração de venda dos Réus ao Autor, da parcela de terreno, com a área de 270 m2, a destacar do prédio sito na Rua ... ., freguesia e concelho de ..., com a delimitação constante da planta topográfica que faz parte integrante do contrato promessa junto sob o doc.1, sendo que tal prédio está inscrito na matriz sob o artº1322 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº...61, adjudicando ao Autor e transmitindo-lhe a respetiva propriedade da referida parcela de terreno.

1.2. Na presente ação, o Autor formulou os seguintes pedidos:

a) (…)

b) que se reconheça como prédio autónomo, distinto, dividido e demarcado, a parcela de terreno com a área de 270 m2, desanexando-o de facto e de direito do prédio de que proveio, desanexação essa livre de qualquer ónus ou encargos que sobre o mesmo incidam;

c) condenar-se os RR a isso mesmo verem declarado e reconhecido;

d) condenar-se os RR ao cumprimento do contrato promessa de compra e venda, comparecendo na data e hora para realização da escritura pública de compra e venda que venha a ser agendada pelo A. e mediante notificação por carta registada com aviso de receção para o domicílio profissional do(s) ilustre(s) mandatário(s) dos RR;

e) condenar-se os RR ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada mês vencido após a data agendada para a realização da escritura de compra e venda à qual não tenham comparecido no valor de 250€/mês.”

***

De Direito

O artigo 688.º n.º 1 do CPC, estipula: “As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.”.

Deste artigo resulta que a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência depende da verificação dos seguintes requisitos:

a) Contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão do Supremo relativamente à mesma questão fundamental de direito;

b) Carácter essencial ou fundamental da questão de direito no tocante à qual se manifesta a divergência;

c) Identidade substantiva do quadro normativo em que se insere a questão;

d) Trânsito em julgado tanto do acórdão anterior como do acórdão recorrido, presumindo-se o trânsito do primeiro; e

e) O acórdão recorrido não estar em harmonia com jurisprudência anteriormente uniformizada pelo Supremo.

No caso, mostram-se verificados os requisitos mencionados nas als.c) d) e e) supra.

Está, pois, em causa, decidir se existe contradição do acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, sobre a mesma questão fundamental de direito.

Os Reclamantes começam por sustentar não ter apoio legal, o entendimento da decisão reclamada, de que a admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência depende da identidade do núcleo factual essencial.

Ao contrário do que defendem os Reclamantes, a mais recente jurisprudência do STJ tem vindo a entender que a admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência pressupõe a identidade do núcleo factual essencial em ambas as decisões em confronto, como refere o recente acórdão de 15.06.2023, processo n.º 735/14. 0TBPDL.SI-C, Recurso para uniformização de jurisprudência ( relatora Fátima Gomes), que cita, neste sentido o acórdão do STJ de 20-11-2019, Recurso para uniformização de jurisprudência n.º 433/11.7TVPRT.P1.S2-A, onde se afirma o STJ tem vindo a entender, “de forma pacífica e reiterada, que a contradição relevante, neste âmbito, pressupõe ainda a identidade do núcleo essencial das concernentes situações fácticas” . Cita ainda, no mesmo sentido, os acórdãos do STJ proferidos em recursos para uniformização de jurisprudência, de 19-09-2019 ( n.º 28438/16.4T8LSB.L1.S1-A), de 12-09-2019 (2146/16.4T8LRA.C2.S1-A), de 19-03-2019, ( n.º 6233/10.4TBCSC.L2.S1-A), de 28-03-2019 ( n.º 60/13.4TBCUB.E1.S1-A), de 29-01-2019 (n.º 2303/01.8TVLSB.L2.S1-A) e de 10-01-2019 (n.º 1522/13.9TBGMR.G1.S2-A).

Ainda no recente acórdão do STJ de 08.02.2024 proferido no processo 1901/21.8TSSRE-AC1-A.S1-B, relator Oliveira Abreu, consta da fundamentação: “exige-se, ao reconhecimento da contradição de julgados, a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos, sendo que as soluções em confronto, necessariamente divergentes, têm que ser encontradas no “domínio da mesma legislação”, de acordo com a terminologia legal (…).” Este entendimento foi também o adotado no AUJ n.º 1/2020, de 2.01.2020, do mesmo relator.

Esta exigência de identidade do núcleo essencial das situações de facto, apesar de não constar expressamente na letra do citado artigo 688º n.º 1 do CPC, é fundamental dado que inexiste conflito jurisprudencial quando a diversidade de soluções jurídicas alcançadas para a composição dos interesses em litígio, num e no outro caso, assentam em diferenciações relevantes da matéria litigiosa, decorrendo a diversa solução adotada nos dois acórdãos de particularidades da matéria de facto subjacente aos litígios ( cf. neste sentido acórdão do STJ de 02.10.2014, processo n.º 68/03.0TBVPA.P2.S1-A, relator Lopes do Rego).

Como referem Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, 3º Vol. ( 3ª edição) pág. 282, “ a integração da previsão da norma que é objeto de interpretações ou aplicações divergentes faz-se com factos de certo tipo e não de qualquer tipo (…) não basta uma oposição sobre a interpretação abstrata de normas jurídicas, pois está em causa a solução de casos jurídicos, por definição concretos.”

Em suma: Para se verificar uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, é necessário que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes ou equivalentes, isto é, que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre núcleo factual essencialmente idêntico ou equivalente, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória.

Ora, no caso, como decorre dos factos relevantes acima transcritos considerados nos dois acórdãos, é manifesto que os núcleos fácticos relevantes para o alegado conflito jurisprudencial são distintos.

Por outro lado, como é entendimento uniforme do STJ a questão fundamental de direito em que repousa a alegada contradição entre o acórdão recorrido e o denominado acórdão fundamento deve assumir carácter fundamental para a solução do caso, devendo integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto. Sendo irrelevantes , as hipóteses em que a divergência invocada se traduza em argumentos laterais, coadjuvantes ou suplementares de uma solução realmente já alcançada por outra via jurídica.( cf. acórdão do STJ de 12.01.2021, relatora Maria João Tomé, que cita no mesmo sentido, os acórdãos proferidos em recursos de uniformização de jurisprudência de 20.11. 2019 (Ilídio Sacarrão Martins), n.º 433/11.7TVPRT.P1.S2-A, 19.09.2019, (Oliveira Abreu) n.º 28438/16.4T8LSB.L1.S1-A, de 12.09.2019 (Olindo dos Santos Geraldes), n.º 2146/16.4T8LRA.C2.S1-A, de 19.03.2019 (Alexandre Reis), n.º 6233/10.4TBCSC.L2.S1-A, de 28.03.2019 n.º 60/13.4TBCUB.E1.S1-A) (Abrantes Geraldes), de 29 de janeiro de 2019 e de 10.01. 2019 (Rosa Tching).

É, pois, de concluir que só há uma verdadeira contradição entre os acórdãos, quando a questão essencial, que constituiu a razão de ser e objeto da decisão, foi resolvida de forma frontalmente oposta nas decisões em confronto.

Passemos a analisar a fundamentação de direito nos acórdãos em confronto.

O acórdão recorrido, proferido em conferência, em que estava em causa, saber se o acórdão do Tribunal da Relação Guimarães proferido em 02.02.2023 ofendia o caso julgado da sentença proferida no apenso de verificação de créditos, para efeitos de admissão do recurso de revista, nos termos do artigo 629º n.º 2 al. a) do CPC, tem a seguinte fundamentação:

“Em termos do alcance do caso julgado sobretudo material, apesar da discussão quanto a tal âmbito, é prevalecente o entendimento que o caso julgado abrange a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é, o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão, como conclusão de certos fundamentos, no reconhecimento de autoridade de caso julgado a todos os motivos objetivos, enquanto questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.

Quanto a tais questões preliminares, importa distinguir a sua dimensão interpretativa, geralmente aceite, em termos objetivos, relativos ao pedido e causa de pedir, que não estendendo a eficácia do caso julgado a toda matéria apreciada enquanto motivos objetivos da sentença, constituam o antecedente lógico indispensável da parte dispositiva, da respetiva consideração autónoma.

Com efeito os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma, não adquirem valor de caso julgado, porquanto “Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser objeto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem o valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão. (…) Transpor os factos provados numa ação para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.”

No que ao caso concreto respeita, como os próprios Reclamantes/recorrentes alegam, a violação do caso julgado reporta-se a factualidade que foi apurada no Apenso E, que indicaria e que permitiria concluir que: “tinham a posse e estavam de boa fé, desde Janeiro de 2010, pelo que quando em 16 de Fevereiro de 2012 esses bens foram apreendido para a massa insolvente já tinham essa posse de boa fé e nenhuma decisão a modificou”.

Sem entrar no mérito da pretensão, como se aludiu a pretendida factualidade enquanto fundamentação de facto, autonomizada, da sentença proferida no apenso E, ação de verificação ulterior de créditos, não adquire, conforme o exposto, o valor de caso julgado, pelo que não se mostra desenhada a existência da violação de caso julgado passível de constituir fundamento para a admissão do recurso.»

O acórdão fundamento apresenta a seguinte fundamentação, quanto à concreta questão objeto do recurso:

“Ocorre a exceção de caso julgado?

Para que se verifique a exceção de caso julgado é necessário que a causa se repita e a causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, pressupondo, assim, esta exceção esta tríplice identidade (cfr. nº1 do artigo 581º do Código de Processo Civil) – tríplice identidade que não é necessária para a verificação da “autoridade do caso julgado”.

No caso presente, mostra-se somente questionada a verificação da identidade do pedido formulado nas duas acções, dado que se aceita, sem qualquer objeção, que as partes e a causa de pedir são as mesmas nessas ações.

Os pedidos formulados nas duas ações:

Nesta ação, o Autor formula o seguinte pedido:

a) (…)

b) que se reconheça como prédio autónomo, distinto, dividido e demarcado, a parcela de terreno com a área de 270 m2, desanexando-o de facto e de direito do prédio de que proveio, desanexação essa livre de qualquer ónus ou encargos que sobre o mesmo incidam;

c) condenar-se os RR a isso mesmo verem declarado e reconhecido;

d) condenar-se os RR ao cumprimento do contrato promessa de compra e venda, comparecendo na data e hora para realização da escritura pública de compra e venda que venha a ser agendada pelo A. e mediante notificação por carta registada com aviso de receção para o domicílio profissional do(s) ilustre(s) mandatário(s) dos RR;

e) condenar-se os RR ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada mês vencido após a data agendada para a realização da escritura de compra e venda à qual não tenham comparecido no valor de 250€/mês.

E na ação, que correu termos sob o processo nº2540/08.4TBVFR, o Autor Município de AA formulou o seguinte pedido:

seja proferida sentença que, condenando os Réus, emita decisão que produzindo os efeitos da declaração faltosa dos Réus, ou seja os efeitos da declaração de venda dos Réus ao Autor, da parcela de terreno, com a área de 270 m2, a destacar do prédio sito na Rua ..., freguesia e concelho de ..., com a delimitação constante da planta topográfica que faz parte integrante do contrato promessa junto sob o doc.1, sendo que tal prédio está inscrito na matriz sob o artº1322 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº...61, adjudicando ao Autor e transmitindo-lhe a respetiva propriedade da referida parcela de terreno.

Perante os pedidos nas duas ações, as instâncias tomaram posição diferentes.

Assim, a 1ª instância entendeu que existia identidade de pedidos no que respeita aos pedidos formulados sob as alíneas d) e e) da presente ação e o pedido formulado na outra ação - Ação Sumária nº2540/08.4TBVFR -, pelo que se verificava a exceção de caso julgado.

No Acórdão sob recurso entendeu-se que não existia a referida identidade de pedidos, pelo que revogou a decisão da 1ª instância, por não se verificar a exceção de caso julgado.

Ora, em face do que atrás se referiu, a identidade de pedido é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos (ainda que implícitos), do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objeto do direito reclamado e que ocorre identidade de pedido quando existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional (implícita ou explícita) pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a ação, se pretende obter, temos de concluir que se verifica a exceção de caso julgado nos termos definidos pela 1ª instância.

Assim, na Ação Sumária nº2540/08.4TBVFR, o Autor, invocando a existência de um contrato promessa de compra e venda e com fundamento no disposto no nº1 do artigo 830º do Código Civil (“se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”), pretende obter a execução específica do mesmo contrato promessa de compra e venda.

Desta forma, o Autor pretendia concretizar a aquisição da parcela de terreno identificado no contrato promessa de compra e venda.

Nos pedidos desta ação identificados sob as alíneas d) e e) pretende o Autor compelir o Réu ao cumprimento do contrato prometido, pedindo a condenação dos Réus do contrato promessa de compra e venda, com a sua comparência na data e hora para a realização da escritura pública de compra e venda e a condenação ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.

Assim, embora os pedidos nas duas ações não sejam formalmente os mesmos, o Autor pretende, com esses pedidos, obter o mesmo efeito jurídico, pelo que estamos em presença da identidade de pedidos.

Refere-se no Acórdão sob recurso que a interpretação do pedido da presente ação à luz da decisão anteriormente proferida na ação nº2540/08.4TBVFR explica, por um lado, a admissão dos pedidos formulados nas alíneas b) e c) e, por outro lado, o reconhecimento de uma interdependência entre esses pedidos e os descritos nas alíneas d) e e), que obstam ao seu tratamento atomístico e que naquela outra sentença o tribunal decretou que a obrigação principal do contrato-promessa em questão só era exequível se previamente fossem cumpridos deveres acessórios conducentes à autonomização da parcela de 270 m2 do prédio em que se integrava e como à realização do direito alegado deve ser assegurado um meio processual adequado, não podendo ele ficar dependente da livre vontade dos obrigados de cumprirem aqueles deveres acessórios identificados, deve admitir-se a propositura de uma ação tendente à condenação dos réus ao respetivo cumprimento e, todavia, o cumprimento desses deveres acessórios só tem sentido na medida em que seja instrumento da realização da obrigação principal.

Ora, desta argumentação se extrai que efetivamente se verifica que os pedidos formulados sob as alíneas b) e c), isto é, que se reconheça como prédio autónomo, distinto, dividido e demarcado, a parcela de terreno com a área de 270 m2, desanexando-o de facto e de direito do prédio de que proveio, desanexação essa livre de qualquer ónus ou encargos que sobre o mesmo incidam (alínea b)) e que se condene os RR a isso mesmo verem declarado e reconhecido (alínea c)), não podem ser vistos isoladamente e, principalmente, dos pedidos formulados sob as alíneas d) e e), porquanto são absolutamente necessários para se alcançar estes pedidos, pois esses dois pedidos têm caráter instrumental porquanto a sua finalidade única é assegurar o resultado útil e eficaz dos pedidos que estão agora em causa (indicados sob as alíneas d) e e).

Assim, o que o Autor visa verdadeiramente alcançar é a procedência dos dois pedidos formulados sob as alíneas d) e e) e estes têm como fim compelir os Réus ao cumprimento do contrato prometido nos termos pretendidos com a primeira ação, como bem se refere no voto de vencido apresentado no Acórdão sob recurso.

Deste modo, e como se referiu, pretendendo o Autor obter o mesmo efeito útil, estaremos em presença da exceção de caso julgado, como se decidiu na 1ª instância, no que concerne aos pedidos formulados sob as alíneas d) e e), porquanto se verifica a tríplice identidade para a verificação da exceção de caso julgado.»

***

Os Recorrentes/ reclamantes sustentam que a contradição jurisprudencial se verifica com a seguinte argumentação:

O acórdão fundamento decidiu a questão posta nos seguintes termos (processo n.º 1565/15.8VFR-A.S1):

“A função negativa (do caso julgado material) opera por via da “exceção dilatória do caso julgado” pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos de pedido e de causa de pedir.

Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

A decisão recorrida (processo n.º 3158/11.0TJVNF-N.G1-A.S1, de 11-07-2023), por sua vez, determinou que:

“O caso julgado abrange toda a parte decisória do despacho/sentença, mas sendo a decisão a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado incide sobre tal silogismo no seu todo, isto é o caso julgado incide sobre a decisão como a conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (…)” mas “os fundamentos de facto da sentença quando autonomizados da mesma não adquirem valor de caso julgado”

Assim “a pretendida factualidade, enquanto fundamentação de facto, autonomizada da sentença proferida no apenso E (…) não adquire, conforme o exposto o valor de caso julgado, pelo que não se mostra desenhada a existência de violação de caso julgado passível de constituir fundamento para a admissão do recurso”.

Considerando o atrás exposto sobre os requisitos da admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência no sentido de que a questão fundamental de direito em que assenta a contradição deve assumir caracter determinante para a solução do caso, ou seja, deve integrar a verdadeira ratio decidiendi e no caso presente, não se verifica, essa contradição fundamental.

Na verdade, no acórdão fundamento consta, no sumário:

“A função negativa (do caso julgado material) opera por via da “exceção dilatória do caso julgado” pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos de pedido e de causa de pedir.

Objetivamente, a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença; porém, estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente logico da parte dispositiva do julgado.”

Nas considerações gerais, sobre o caso julgado como exceção ( função negativa) e autoridade ( função positiva) para além do mais, sobre os limites objetivos do caso julgado, consta o seguinte:

“Quanto ao âmbito objetivo do caso julgado (respetivos limites objetivos), no que respeita à determinação do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal e que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado, durante algum tempo foi dominante o entendimento de que a eficácia do caso julgado apenas abrangia a decisão contida na parte final da sentença, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na pretensão reconvencional e limitada através da respetiva causa de pedir ("conceção restrita do caso julgado").

Atualmente, a posição jurisprudencial predominante reconhece, na esteira da doutrina defendida por Vaz Serra (cfr. R.L.J. ano 110º, p. 232) - embora sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença / a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão ("tese ampla") -, que, apesar da eficácia do caso julgado material incidir nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, a mesma alcança também a decisão daquelas questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado (isto é, os fundamentos e as questões incidentais ou de defesa que entronquem na decisão do pleito enquanto limites objetivos dessa decisão), em homenagem à economia processual e à estabilidade e certeza das relações jurídicas.”

No entanto, estas considerações traduzem argumentos laterais e suplementares, sendo irrelevantes para a solução do acórdão fundamento, que como resulta da transcrição supra se limitou a decidir a questão de saber se havia identidade de pedidos entre a anterior ação e a ação posterior.

Por outro lado, no acórdão recorrido o cerne da fundamentação consistiu em ter-se decidido que a sentença proferida na ação de verificação de créditos, não tinha força de caso julgado relativamente aos factos nela julgados provados e, por isso, não se verificava a exceção do caso julgado, no pressuposto que o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo principal de insolvência não estava obrigado a atender à factualidade julgada provada na anterior decisão.

Assim, apesar de ambos os acórdãos se terem movido no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica ( exceção/autoridade do caso julgado), no acórdão fundamento a questão foi decidida, com fundamento na identidade de pedidos entre a anterior e a posterior ação e no acórdão recorrido, por se ter decidido que os factos considerados provados nos fundamentos da sentença de verificação de créditos não podiam isoladamente considerar-se cobertos pela eficácia do caso julgado.

A questão fundamental de direito decidida nos acórdãos é, pois, distinta.

Os Reclamantes argumentam contra a decisão reclamada por nela constar a referência a “ factos automatizados”, sustentando não ter qualquer fundamento a distinção entre factos automatizados e não automatizados.

No entanto, como se referiu, a fundamentação determinante do acórdão recorrido em que se baseou o não conhecimento da revista por eles interposta, foi ter considerado que os factos julgados provados na sentença da ação de verificação de créditos não tinham eficácia de caso julgado.

Por outro lado, o conceito de “ factos automatizados” com referência à exceção do caso julgado, é utilizado na doutrina , nomeadamente por Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, ( 2ª edição) pág. 580, onde consta: “ os fundamentos de facto não adquirem quando automatizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado” e ainda Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol.II, pág. 636), que afirma: “ Os factos dados como provados como assentes na fundamentação da sentença não devem, contudo, ( uti singuli, isto é autonomizados da decisão de que são pressuposto), como abrangidos pelo caso julgado.”

Os Reclamantes sustentam ainda que no caso decidido pelo acórdão recorrido, não existem “factos automatizados” porque a primeira e a segunda decisões foram proferidas no mesmo processo (na ação de verificação de créditos e no processo principal de insolvência). Referem ainda que foram utilizados conceitos como “ questões preliminares e instrumentais” e valor extra processual das provas, inexplicáveis e sem fundamento,

Defendem ainda que a segunda decisão ( acórdão da Relação de Guimarães) proferida no processo de insolvência, devia ter sido desconsiderada por violação do caso julgado formal, da sentença proferida na ação de verificação de créditos, do mesmo processo de insolvência.

No entanto, estes argumentos são irrelevantes, por se limitarem a manifestar o inconformismo dos Recorrentes/reclamantes com o acórdão recorrido.

Ora o objeto da presente reclamação cinge-se à questão de saber se há contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, que justifique a admissibilidade do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, não para se apreciar se no acórdão recorrido foi indevidamente decidido não se verificar a exceção do caso julgado.

Por último, importa referir, que do acórdão fundamento não resulta qualquer referência ainda que como mero argumento lateral ou obtier dictum que a eficácia do caso julgado abrangia a factualidade julgada provada na primeira ação, até porque não estava em causa haver identidade de causas de pedir entre a ação anterior e a posterior.

Continuamos, pois, a entender que o pressuposto da identidade da questão fundamental de direito, dirimida nos acórdãos recorrido e fundamento, se não verifica.

Decisão

Pelo exposto, confirma-se a decisão reclamada, tendo por inverificado o pressuposto essencial do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência interposto pelos Reclamantes, não se admitindo, nos termos do artigo 692º, nº3, do CPC, o presente recurso.

Custas pelos Reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.

Lisboa, 19.03.2024

Os Juízes Conselheiros

Leonel Serôdio ( Relator)

Graça Amaral ( 1ª Adjunta)

Maria Amélia Ribeiro ( 2ª Adjunta)

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1. ABRANTES GERALDES, in Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição Atualizada, a fls. 558 e segs menciona que em sede do Recurso de Uniformização de Jurisprudência será defensável que se faça uma interpretação do preceituado no n.º 1 do art.º 688, que respeite a mobilização do Pleno das Secções Cíveis do Supremo e impeça o abuso abusivo deste instrumento, justificando-se uma interpretação restritiva.,↩︎

2. Cf. Ac. STJ de 12.01.2021, processo n.º 817/16.4T8FLG.P1.SA-A, in www.dgsi.pt.↩︎

3. Cf. Ac STJ de 9.03.2021, processo n.º 4359/19.8T8VNF.G1.S1, apud Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, pág. 116/117, in www.dgsi.pt.↩︎

4. Cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, pág. 547 e segs.↩︎

5. Cf.. Ac. STJ de 17.12.2019, processo n.º 1181707.8TTPRT-H-P1.S1, in www.dgsi.pt↩︎

6. Cf. Ac. STJ de 8.03.2018, processo, n.º 1306/14.7TBACB-T.C1.S1, com ampla referência doutrinária, in www.dgsi.pt.↩︎

7. Cf. Ac. STJ de 4.12.2018, processo n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1, apud, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., pág. 579/580, Maria José Capelo, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, 2015, pág. 29/31, “não ser o caso julgado um meio de prova, mas um instituto respeitante à tutela jurisdicional dos direitos, por força do qual o conteúdo de uma decisão judicial adquire uma particular eficácia”.↩︎