Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
159/05.0TTPRT.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: GONÇALVES ROCHA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO DE CAUSALIDADE
DANO REFLEXO
Data do Acordão: 05/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO DO TRABALHO - ACIDENTES DE TRABALHO
Doutrina: - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ªedição, págs. 36, 37.
- Cruz de Carvalho, em Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, pág. 26.
- Cunha Gonçalves, in Responsabilidade Civil pelos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Coimbra Editora, 1939, pág. 30.
- Feliciano Tomás de Resende, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Coimbra Editora, 1971, pág. 18.
- Melo Franco, Direito do Trabalho, BMJ, 1979 (suplemento), pág. 62.
- Veiga Rodrigues, Acidentes de Trabalho, anotações à Lei 1942 (LAT anterior à Lei 2 127), págs. 16, 17.
- Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho, reflexões e notas práticas, 1984, págs. 208, 210.
Legislação Nacional: DL N.º 382-A/99 DE 22/9: - ARTIGO 1.º.
LEI Nº 2 127, DE 3 DE AGOSTO DE 1965,
LEI N.º 100/97, DE 13-9 (REGIME JURÍDICO DOS ACIDENTES DE TRABALHO - LAT), E RESPECTIVO REGULAMENTO CONSTANTE DO DL Nº 143/99, DE 30/4: - ARTIGOS 6.º, N.ºS 1 E 6.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 18/1/1995, CJS, 249/1;
-DE 8/2/1995, COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, 1995, TOMO I, PÁG. 272;
-DE 13/1/2010, PROCESSO N.º 1466/03.2TTPRT.S1;
-DE 14/4/2010, PROCESSO N.º 459/05.0TTVCT.S1;
-DE 30/6/2011, PROCESSO N.º 383/04.3TTGMR.L1.S1, ESTES ÚLTIMOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O acidente de trabalho pressupõe uma cadeia de factos, em que cada um dos relativos elos está interligado por um nexo causal. Assim, o evento naturalístico que ele pressupõe há-de resultar duma relação de trabalho; a lesão corporal, perturbação funcional ou doença tem de resultar desse evento; e a morte ou a redução na capacidade de trabalho ou de ganho devem ter por causa a lesão corporal, perturbação funcional ou a doença.

II - Contudo, o acidente de trabalho em termos naturalísticos pode não ser instantâneo nem violento.

III - Deve considerar-se como acidente de trabalho o acontecimento anormal, de duração limitada, de que resultou uma lesão na saúde da trabalhadora, consubstanciada numa alteração do seu equilíbrio psíquico, com graves sequelas daí resultantes, que tendo ocorrido no tempo e no local de trabalho, preenche os requisitos exigidos pelo art. 6.º, n.º 1 da LAT.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1----

            AA intentou uma acção com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra as Rés

TAP-AIR Portugal S.A e
BB – Companhia Portuguesa de Seguros S.A., pedindo a sua condenação, na proporção decorrente da medida de transferência da responsabilidade emergente de acidentes de trabalho da R, empregadora, para a seguradora, no pagamento duma pensão anual e vitalícia correspondente a 50% da sua remuneração anual e no subsídio de elevada incapacidade.
Alegou para tanto que foi vítima dum acidente quando no exercício das suas funções de assistente de bordo ao serviço da 1ª R um passageiro embriagado se envolveu em conflito com a tripulação e com os restantes passageiros, o que foi causa da sua situação de incapacidade para o trabalho durante 935 dias e duma IPATH com 10% de IPP a partir de 22/01/04, data da consolidação das lesões resultantes do referido episódio. 

 Citadas as RR, veio a TAP contestar alegando que é parte ilegítima por ter a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho integralmente transferida para a seguradora, ora R.
E a seguradora também veio contestar e requerer a intervenção de CC-‑Companhia de Seguros ..., SA, por a esta ter cedido a sua carteira de seguros, nela se incluindo a apólice referente ao caso dos autos.  

Entretanto, como a Segurança Social também foi citada, veio esta pedir o pagamento da quantia de 48 236,19 euros, acrescida dos juros de mora legais até integral pagamento, importância respeitante ao reembolso das prestações pecuniárias pagas à A a partir de 13 de Setembro de 2001 e até 30/4/2004, pedido que as RR também contestaram.
E tendo havido resposta da A, onde pugnou pela improcedência das excepções alegadas, ordenou-se a intervenção da requerida CC - Companhia de Seguros ..., SA, tendo vindo contestar a DD, SA.
Alegou que, por fusão, a dita CC foi incorporada na contestante, tendo por isso, legitimidade para intervir na acção. E impugnando, veio alegar que o acidente dos autos nunca foi participado a qualquer seguradora, desconhecendo assim os factos alegados pela A.
De qualquer forma, impugna a existência do invocado acidente de trabalho, tanto mais que, e mesmo que fossem verdadeiros os factos alegados, não existe nexo de causalidade entre o evento descrito e as lesões apresentadas.
Impugna também o pedido de reembolso deduzido pela Segurança Social.

Foi proferido despacho saneador que considerou a TAP parte ilegítima na acção, por ter a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho integralmente transferida.
E foi considerada também parte ilegítima a seguradora BB por ter ocorrido a transferência da sua carteira de seguros, onde se incluía a apólice respeitante ao caso dos autos, para a CC, entretanto incorporada, por fusão, na R DD.

E tendo-se procedido a audiência de julgamento, foi proferida sentença a condenar a Ré, DD, a pagar à Autora:
a) Com efeitos a partir de 23.11.2004, a pensão anual, vitalícia e actualizável no montante de € 19.301,41, sendo actualizada a partir de 01.01.2005 para o valor de € 19.745,34, para o valor de € 20.199,44 a partir de 01.01.2006, para o valor de € 20.724,63 a partir de 01.01.2007, para o valor de € 21.222,22 a partir de 01.01.2008, para o valor de € 21.837,46 a partir de 01.01.2009 e para o valor de € 22.110,43, nos termos do DL 47/2010, a pagar adiantada e mensalmente até ao 3ºdia de cada mês, correspondendo cada uma das prestações a 1/14 da pensão anual, sendo a prestação correspondente ao subsídio de férias e de Natal paga, respectivamente, nos meses de Maio e de Novembro, acrescendo juros de mora à taxa legal desde o vencimento até integral pagamento;
b) A quantia de € 4.010,28, a título de subsídio de elevada incapacidade, acrescida de juros, à taxa legal, desde 23.01.2004 e até integral pagamento.
E foi ainda a Ré seguradora condenada a pagar ao Instituto de Segurança Social, IP, a quantia de € 43.267,01, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação para contestar o pedido de reembolso e até integral pagamento. Dos mais pedidos de reembolso foi a Ré absolvida.

Inconformada com esta sentença, apelou a seguradora pedindo a anulação do julgamento e a repetição do mesmo por ser obscura a decisão da matéria de facto no que respeita ao quesito 19, ou, se assim não se vier entender, que a resposta a este quesito seja considerada não escrita e que seja alterada a resposta ao quesito 22, de acordo com a decisão proferida no apenso para fixação de incapacidade, consignando-se que a IPP de que a Autora padece é de 10%.
Pediu ainda a revogação da decisão por considerar não ter ocorrido um acidente de trabalho, com a consequente absolvição da recorrente dos pedidos; mas se assim não se entender, pediu a sua absolvição no que respeita ao pagamento do subsídio de alta incapacidade, não devendo a pensão anual fixada exceder € 2.702,20.

A Autora veio responder e interpor recurso subordinado, arguindo ainda a nulidade da sentença.
E em sede de resposta à alegação da recorrente seguradora, conclui pela improcedência do pedido principal, pois foi vítima dum acidente de trabalho. E a entender-se que não constam do apenso todos os elementos necessários para se lhe atribuir uma IPATH, então deve julgar-se procedente o recurso subordinado, e ordenar-‑se a baixa do processo à 1ª instância para que, no apenso, seja formulado quesito expresso a apurar se ficou afectada de IPATH, sendo depois proferida nova decisão.
    
A Relação veio a proferir acórdão a considerar que, em face da factualidade provada, se pode afirmar que estão verificados todos os pressupostos para se concluir pela existência dum acidente de trabalho e consequente direito à reparação.  
            E considerando prejudicado o conhecimento da questão colocada pela apelante, respeitante à natureza e grau da incapacidade da Autora, e prejudicado também o conhecimento do recurso subordinado, deliberou, ao abrigo do disposto no artigo 712º, nº4 do CPC, anular o julgamento e actos posteriores, incluindo a sentença, apenas no que respeita à matéria de facto constante dos nºs. 29 e 31, ordenando-se que o Tribunal recorrido convoque, de novo, os senhores peritos que integraram a junta médica, com vista a estes esclarecerem se a Autora está afectada de IPATH, e, em caso afirmativo, qual a capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível, após o que se deve proferir decisão no apenso, dando, deste modo, cumprimento ao disposto no artigo 140º, nº2 do CPT, e após proferir-se sentença em conformidade, observando o que refere o artigo 135º do CPT.
                                                                  
É agora a seguradora, que inconformada, nos traz revista, tendo terminado a sua alegação com as seguintes conclusões:

1- Provou-se que a … de … de 2001, no voo TP ..., o passageiro do lugar … se encontrava embriagado;

2- tendo altercado com o comissário de bordo ao qual opôs resistência física, e acabado por ser imobilizado por este, com a ajuda de alguns passageiros.

3- Foi, no fim do voo, entregue às autoridades policiais, sem mais consequências.

4- Em relação à autora não há registo de que o passageiro tenha exercido sobre ela ou contra ela qualquer forma de violência.

5- Apenas se tendo provado que ela o conseguiu convencer a voltar ao seu lugar e que conseguiu trocar a garrafa por um bule.

6- Da matéria provada resulta que a autora e outros colegas foram convocados a resolver uma situação mais delicada com um passageiro em pleno avião,

7- tendo agido como lhes era exigível, no estrito desempenho das suas funções,

8- atenta a respectiva categoria profissional, a preparação que lhes é ministrada para estas situações e o seu estatuto remuneratório.

9- Assim, em relação ao que se passou naquele voo quanto à autora, ela não terá feito mais do que cumprir as suas obrigações profissionais,

10- não se tendo deparado com nenhum acontecimento que se possa reputar de inesperado,

11- pelo que não se verificou qualquer acidente de trabalho como, menos bem, consideraram as instâncias.

12- As instâncias, nomeadamente o Tribunal da Relação, interpretaram e aplicaram de forma menos acertada ao caso concreto o art° 6° da Lei 100/97, de 13 de Setembro, que, desta forma violaram.

            Pugna-se assim pela procedência do recurso por não se verificar a existência dum acidente de trabalho, com a consequente absolvição da R.

A A também alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido, pois os factos ocorridos desencadearam na recorrida, mesmo sem ter sido alvo directo de violência física (antes uma violência psíquica), um quadro depressivo reactivo traduzido por fobia de voo e de toda a estrutura do aeroporto, com alterações de sono e comportamentais, instabilidade emocional e crises de ansiedade, cefaleias, dificuldades de sono e pesadelos acerca do acontecimento, estando por isso reunidos os requisitos do acidente de trabalho.

Subidos os autos a este Supremo Tribunal, deu-se cumprimento ao disposto no artigo 87º/3 do CPT, tendo o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto emitido proficiente parecer no sentido da improcedência do recurso, e que após notificação às partes, não suscitou qualquer reacção das mesmas.
E corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2---

Para tanto, temos de considerar a seguinte matéria de facto:

1. A Autora esteve ao serviço da TAP, ligada por contrato individual de trabalho, pelo menos desde 02.04.1998 até 01.05.2004, exercendo funções de serviço de voo sob as ordens e direcção da TAP, com a categoria profissional de assistente de bordo.
2. No ano de 2001 a remuneração anual da Autora era de € 38.602,82.
3. No dia 29.07.2001, a Autora prestou serviço como assistente de bordo no voo TP ... com partida de … e destino a Lisboa.
4. Em 19.11.2002, em junta médica de avaliação de aptidão para voo, a Autora foi considerada, por unanimidade, inapta temporariamente por um período de um ano, ficando sob tratamento psiquiátrico.
5. Em 22.01.2004, em nova junta médica de avaliação de aptidão para o voo a Autora foi unanimemente considerada inapta definitivamente para a sua profissão habitual.
6. A TAP – AIR PORTUGAL S.A., tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a BB – Companhia Portuguesa de Seguros, através do contrato de seguro titulado pela apólice nº …, desde 01.01.1996, sendo quanto à Autora pela remuneração referida em 2.
7. Aquela apólice foi transferida para a CC – Companhia de Seguros ..., S.A., no âmbito da transferência parcial da carteira de seguros não vida da BB, autorizada por despacho do Instituto de Seguros de Portugal, publicado em 13.02.2002 no Diário da República, III série.
8. A CC – Companhia de Seguros ..., S.A., foi incorporada, por fusão, na DD, Companhia de Seguros, S.A., com efeitos a partir de 01.01.2004.
9. O voo iniciou-se com 123 passageiros dos 128 possíveis e tripulação reduzida (comandante, co-piloto, chefe de cabine, duas assistentes de bordo e um comissário de bordo).
10. Logo após a descolagem, o passageiro do lugar … começou a falar em tom de voz alto, indiciando estado de embriaguez o que foi notado pela tripulação e pelos passageiros.
11. O comissário de bordo pediu ao passageiro que baixasse o tom de voz para não importunar os outros passageiros.
12. Nesse momento o passageiro já se encontrava a beber de uma garrafa contendo bebida alcoólica que consigo trazia.
13. Pouco depois, quando lhe foi oferecido um jornal, o mesmo passageiro tentou retirar do trolley vários jornais, forçando com violência a entrega de vários exemplares, enquanto dirigia insultos e impropérios à tripulação e à companhia.
14. A situação foi informada ao comandante e ao comissário da cabine.
15.Outros passageiros mostraram sinais de inquietação em consequência do comportamento daquele passageiro.
16. Quando ao passageiro foi servida a refeição, este, uma vez insultou o comissário e tentou com uso da força retirar do trolley várias refeições, no que foi impedido pelo comissário.
17. O passageiro levantou-se do seu lugar de garrafa na mão e gritando e insultando o comissário, seguiu pelo corredor, fazendo embater a garrafa no trolley.
18. Depois dirigiu-se ao cockpit, empunhando a mesma garrafa, tendo-lhe sido impedido o acesso por uma assistente e pelo comissário, juntamente com o comissário de cabine.
19. A Autora conseguiu convencer o passageiro a voltar ao seu lugar.
20. Poucos minutos depois, quando decorria o serviço de café e chá, a Autora conseguiu trocar a garrafa do passageiro por um bule.
21. Então o passageiro levantou-se do seu lugar e começou a dirigir-se para a galley, tendo sido novamente impedido pelo comissário que o informou que aí não poderia permanecer, sugerindo-lhe que voltasse ao lugar.
22. O passageiro resistiu à ordem do comissário, dizendo que não sabia qual era o seu lugar, pelo que o comissário ofereceu-lhe ajuda, ao que o passageiro reagiu agarrando e puxando o comissário, batendo-lhe nas costas e torcendo-lhe o braço.
23. Quando o comissário se conseguiu soltar, é-lhe oferecida ajuda por vários passageiros que se levantaram e conseguiram dominar o passageiro, que acabaram por amarrar à cadeira com os cintos das cadeiras vazias, imobilizando-o contra a sua vontade.
24. O passageiro ainda tentou reagir, tentando ferrar os outros passageiros.
25. Concluído o voo, o passageiro foi retirado do avião pelas autoridades policiais, algemado.
26. Em consequência dos factos supra descritos a Autora ficou afectada de um quadro depressivo, reactivo traduzido por fobia de voo e de toda a estrutura que compreende o aeroporto, alterações do sono e comportamentais, com instabilidade emocional e crises de ansiedade aguda, cefaleias, dificuldades de sono, pesadelos acerca do acontecimento.
27. Em consequência dos factos supra descritos e do quadro descrito no ponto anterior a Autora esteve absolutamente incapacitada para o trabalho desde 13.09.2001 até 22.01.2004.
28. A consolidação médico-legal das lesões ocorreu em 22.01.2004.
29. Data a partir da qual a Autora se encontra afectada de incapacidade permanente para o seu trabalho habitual.
30. O Instituto de Segurança Social, IP, pagou à Autora a quantia de € 43.223.99 referente a subsídio de doença no período compreendido entre 13.09.2001 e 30.04.2004, bem como € 5.012,20, a título de prestações compensatórias de subsídio de natal e de férias dos anos de 2001, 2002 e 2003.

Por interessar à decisão da causa aditou ainda a Relação o seguinte:

31. Com a data de 23.11.2009, foi proferido, no apenso para fixação de incapacidade, o seguinte despacho: “ Assim, ao abrigo do disposto pelo art. 140º, nº2 do Código de Processo do Trabalho, considero a sinistrada afectada de incapacidade permanente para o trabalho, com o coeficiente de 0,010 (10%)”.

3---

               
            Face às conclusões da recorrente que delimitam o objecto do recurso, conforme resulta dos artigos 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 4 do CPC[1] e acórdão deste Supremo Tribunal de 5/4/89, BMJ 386/446, constatamos que a seguradora suscita apenas a questão da existência dum acidente de trabalho.

            Na verdade, sustenta esta que não se tendo a trabalhadora deparado com nenhum acontecimento que se possa reputar de inesperado, não se verificou um qualquer acidente de trabalho, como consideraram as instâncias, que desta forma, interpretaram e aplicaram de forma menos acertada o artigo 6° da Lei 100/97, de 13 de Setembro, que assim violaram.
            Perante o exposto, temos portanto de decidir se a recorrida foi efectivamente vítima dum acidente de trabalho, tal como concluiu o acórdão revidendo, pois apesar de se ter anulado o julgamento e a sentença, esta anulação apenas contende com os factos constantes dos números 29 e 31, onde se visa apurar somente se a A apresenta, uma IPATH e respectiva incapacidade permanente para o exercício das outras profissões.
            De qualquer modo, nada impede que se julgue a revista, tanto mais que se a mesma proceder, ficará prejudicado tudo o que a Relação ordenou em relação à determinação da incapacidade da trabalhadora.
            Vamos portanto, apreciar se a A foi vítima dum acidente de trabalho, que constitui o pressuposto do direito à reparação por si reclamada.

3.1---

            Sustenta a recorrente que a trabalhadora nada mais fez do que cumprir os seus deveres laborais, não tendo sofrido qualquer acidente, pelo que, e consequentemente, não foi vítima dum acidente de trabalho.

      Ora, estando-se perante uma situação ocorrida no dia 29.07.2001, tem a questão da sua qualificação como acidente de trabalho de ser resolvida tendo em conta o regime jurídico dos acidentes de trabalho consagrado pela Lei n.º 100/97[2], de 13/9, e respectivo regulamento constante do DL nº 143/99 de 30/4, cuja entrada em vigor ocorreu em 1 de Janeiro de 2000, por força do artigo 1º do DL nº 382-A/99 de 22/9.

Trata-se de diplomas que vieram consagrar um novo regime jurídico para os acidentes de trabalho e doenças profissionais, face à manifesta desactualização da Lei nº 2 127, de 3 de Agosto de 1965, que constituiu a base jurídica da reparação dos acidentes de trabalho e doenças profissionais dos trabalhadores por conta doutrem durante quase 30 anos, e que apesar de pequenas alterações durante este período, se foi tornando insuficiente na reparação dos seus danos.

            Daí adveio a necessidade da adaptação do seu regime à evolução da realidade sócio-laboral e ao desenvolvimento da legislação complementar no âmbito das relações de trabalho, da jurisprudência e das convenções internacionais, o que se fez com a dita Lei 100/97.

Ora, nos termos do nº 1 do seu artigo 6º, constitui acidente de trabalho o acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal de que resulte a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
               Trata-se dum conceito que teve como fonte imediata a Base V da Lei n° 2127, não apresentando alterações significativas no que toca à sua definição que já constava desta lei dos acidentes de trabalho, permanecendo assim válidas as aquisições doutrinais advindas da lei anterior.
               Por isso e citando Cruz de Carvalho, em Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, pgª 26, e Melo Franco, in Direito do Trabalho, BMJ (suplemento) de 1979, pgª 62, o conceito de acidente de trabalho está ainda hoje delimitado pela existência cumulativa dos seguintes elementos:

               a) Um elemento espacial (local de trabalho);
               b) Um elemento temporal (tempo de trabalho); e,
               c) Elemento causal que consiste na existência dum nexo de causa/efeito entre o evento e a lesão, perturbação ou doença e não propriamente uma relação de causalidade entre o trabalho e o acidente, pois esta já resulta dos dois elementos anteriormente citados.
De qualquer forma e a montante da verificação cumulativa destes pressupostos, torna-se imperioso que ocorra um evento que possa ser havido como “acidente”, que a doutrina e a jurisprudência definem como o evento anormal, em geral súbito, ou pelo menos de duração curta e limitada, com origem externa, e que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano[3].

Por isso, e como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 8/2/95[4], o acidente de trabalho pressupõe uma cadeia de factos, em que cada um dos relativos elos está interligado por um nexo causal. Assim, aquele evento naturalístico há-de resultar duma relação de trabalho; a lesão corporal, perturbação funcional ou doença tem de resultar daquele evento; e a morte ou a redução na capacidade de trabalho ou de ganho devem ter por causa a lesão corporal, perturbação funcional ou a doença.
Tem por isso que se tratar dum evento lesivo, isto é, dum facto anormal, produtor de lesão física ou psíquica, aparente ou não aparente, interna ou externa, profunda ou superficial[5].
Feliciano Tomás de Resende[6], a propósito do texto que acabou por ser adoptado no conceito de acidente de trabalho constante do nº 1 da base V da Lei 2127, refere que …”parece depreender-se da discussão havida que se reputou a palavra evento de significado inconvenientemente amplo, preferindo-se, com prejuízo do rigor formal da definição (tautologia), o termo acidente, com o sentido em geral aceite pela doutrina e jurisprudência de acontecimento ou evento súbito, inesperado e de origem externa”.
Também Melo Franco (citando Sachet)[7] define o acidente como o acontecimento anormal, em geral súbito, ou pelo menos de uma duração curta e limitada, que acarreta uma lesão à integridade física ou à saúde do corpo humano.
Do mesmo modo Vítor Ribeiro[8], para quem a noção de acidente há-de ser entendida no sentido naturalístico, devendo ele coincidir com um acontecimento ou evento súbito, violento, inesperado e de ordem exterior ao próprio lesado.   
Carlos Alegre[9] refere que a doutrina aponta como características do acidente naturalístico tratar-se dum evento exterior à constituição orgânica da vítima, em geral súbito e que causa uma acção lesiva sobre o corpo humano.
No entanto, continua este autor, esta caracterização está longe de ser completa, pois “nem o acontecimento exterior directo e visível, nem a violência são, hoje, critérios indispensáveis à caracterização do acidente. A sua verificação é extremamente variável e relativa, em muitas circunstâncias. Além disso, a causa exterior da lesão tende a confundir-se com a causa do acidente de trabalho, num salto lógico, nem sempre evidente”.
Por isso, sustenta este autor que a violência não constitui, a não ser como critério subsidiário, uma característica essencial do acidente de trabalho. E quanto à subitaneidade, que constitui uma característica importante que permite a possibilidade de localizar no tempo o evento lesivo, e por isso distinguir o acidente de trabalho da doença profissional, também este critério não resolve, sozinho, todas as situações da vida real (obra citada, 36 e 37).  
Efectivamente, já Veiga Rodrigues sustentava que o carácter repentino do acidente naturalístico não quer dizer que este deva ser instantâneo, pois pode tratar-se dum acontecimento que coincida com o dia de trabalho[10]. E continuando a citar este autor, acidente é qualquer facto ou ocorrência modificadora de um estado físico anterior, sendo que “essa modificação há-de objectivar-se na produção de uma lesão ou doença física ou psíquica, aparente ou não, interna ou externa, profunda ou superficial, de evidenciação imediata ou mediata”[11].
Donde podermos concluir que o acidente de trabalho pressupõe a ocorrência dum acidente, entendido, em regra, como evento súbito, imprevisto, exterior à vítima e que lhe provoque uma lesão na saúde ou na sua integridade física e que este evento ocorra no tempo e no local de trabalho.
Mas estes requisitos podem não aparecer de forma tão nítida e evidente em todas as situações.
Face ao exposto, vejamos então se é possível, atenta a materialidade apurada, concluir pela existência dum acidente de trabalho.

3.2---

            Resulta desta que a Autora, sendo funcionária da TAP, ao serviço de quem exercia funções de serviço de voo com a categoria profissional de assistente de bordo, no dia 29.07.2001, prestou serviço da sua profissão no voo TP ..., com partida de … e destino a Lisboa, voo que se iniciou com 123 passageiros dos 128 possíveis e tripulação reduzida (comandante, co-piloto, chefe de cabine, duas assistentes de bordo e um comissário de bordo).
Logo após a descolagem, o passageiro do lugar … começou a falar em tom de voz alto, indiciando estado de embriaguez, o que foi notado pela tripulação e pelos passageiros, tendo-lhe o comissário de bordo pedido que baixasse o tom de voz para não importunar os outros passageiros.
Pouco depois, quando lhe foi oferecido um jornal, o mesmo passageiro tentou retirar do trolley vários jornais, forçando com violência a entrega de vários exemplares, enquanto dirigia insultos e impropérios à tripulação e à companhia, situação que foi comunicada ao comandante e ao comissário da cabine.
E quando lhe foi servida a refeição, este uma vez mais insultou o comissário e tentou, com uso da força, retirar do trolley várias refeições, no que foi impedido por este.
E a certa altura, levantou-se do seu lugar de garrafa na mão e gritando e insultando o comissário, seguiu pelo corredor, fazendo embater a garrafa no trolley, e quando se dirigia para o cockpit, foi-lhe impedido o acesso por uma assistente e pelo comissário, juntamente com o comissário de cabine, tendo a A conseguido convencê-lo a regressar ao seu lugar.
E poucos minutos depois, quando decorria o serviço de café e chá, a Autora conseguiu trocar a garrafa do passageiro por um bule.
Então o passageiro levantou-se do seu lugar e começou a dirigir-se para a galley, tendo sido novamente impedido pelo comissário que o informou que aí não poderia permanecer, sugerindo-lhe que voltasse ao lugar.
No entanto, o passageiro resistiu à ordem do comissário, dizendo que não sabia qual era o seu lugar. E quando o comissário lhe ofereceu ajuda, reagiu agarrando-o, batendo-lhe nas costas e torcendo-lhe o braço.
E quando o comissário se conseguiu soltar, o que aconteceu com a ajuda facultada por outros passageiros que se levantaram, conseguiram dominá-lo, acabando por amarrá-lo à cadeira com os cintos das cadeiras vazias, imobilizando-o contra a sua vontade, ao que o passageiro ainda tentou reagir, tentando morder os passageiros.
E concluído o voo, foi retirado do avião pelas autoridades policiais, algemado.

Ora, este episódio perturbou seriamente a tripulação e os outros passageiros do voo …/Lisboa, tendo estes últimos mostrado sinais de inquietação em consequência do comportamento descrito.
            Por seu turno e em relação à A, embora na altura esta não tivesse manifestado reacções visíveis, o certo é que se apurou que ficou seriamente afectada por toda esta situação, já que dela resultou um quadro depressivo, reactivo, traduzido por fobia de voo e de toda a estrutura que compreende o aeroporto, alterações do sono e comportamentais, com instabilidade emocional e crises de ansiedade aguda, cefaleias, dificuldades de sono e pesadelos acerca do acontecimento, sequelas que se vieram a manifestar-se mais tarde.
            Por isso, e ainda como consequência de toda esta situação e do quadro depressivo e reactivo dela resultante, a Autora esteve totalmente incapacitada para o trabalho desde 13.09.2001 até 22.01.2004. E actualmente ainda apresenta sequelas resultantes deste evento, embora se não tenha apurado ainda qual o grau da respectiva incapacidade permanente que a afecta.

            Será o quadro fáctico descrito suficiente para se considerar verificada a figura do acidente de trabalho?
            As instâncias concluíram que sim, contrapondo a seguradora que, em relação ao que se passou naquele voo, a autora não terá feito mais do que cumprir as suas obrigações profissionais, não se tendo deparado com nenhum acontecimento que se possa reputar de inesperado, pelo que não se verificou o acidente de trabalho que invoca.

No entanto, consideramos que se trata dum acidente de trabalho, e por isso, gerador da obrigação de reparação dos danos dele emergentes.
Efectivamente, este episódio com o passageiro e todo o circunstancialismo que o rodeou, causou uma perturbação na A, a quem provocou uma lesão psíquica grave, derivada de trauma psicológico dele resultante, pois passou a sofrer dum quadro depressivo que a impediu de trabalhar durante cerca de dois anos e meio, e que ainda se manifesta por fobia de voo e a toda a estrutura que compreende os aeroportos, entre outras sequelas.
Tratou-se portanto dum evento anómalo e inesperado, pois nada o fazia prever, tanto mais que a entidade empregadora apenas destacou para este voo uma tripulação reduzida (comandante, co-piloto, chefe de cabine, duas assistentes de bordo e um comissário de bordo), quando se estava perante um avião cheio, que iniciou viagem com 123 passageiros dos 128 possíveis.
Por isso, e tratando-se duma situação que para a trabalhadora se revestiu dum carácter particularmente perturbador do seu equilíbrio psíquico, pois provocou-lhe um quadro depressivo resultante de stress pós-traumático, temos de a considerar como um acidente em sentido naturalístico, abrangendo-se neste conceito tudo o que é susceptível de alterar o equilíbrio anterior em que o trabalhador se encontrava, tudo o que viole esse equilíbrio, conforme sustentava Victor Ribeiro[12].
Assim, tratando-se dum acontecimento anormal, de duração limitada, de que resultou uma lesão na saúde da trabalhadora, consubstanciada numa alteração do seu equilíbrio psíquico, com graves sequelas daí resultantes, estamos perante um acidente, que tendo ocorrido no tempo e no local de trabalho, preenche os requisitos exigidos pelo artigo 6º, nº 1 da Lei 100/97, para que seja considerado um acidente de trabalho.
Na verdade, não é forçoso que a lesão se manifeste logo a seguir ao facto que a causou, pois há casos em que a lesão externa não se produz e a interna só se evidencia após alguns dias, podendo citar-se como exemplo uma explosão que pode causar ferimentos graves em alguns trabalhadores directamente atingidos, enquanto noutros pode causar apenas um forte traumatismo psíquico[13].
Alias a própria lei prevê essa possibilidade, conforme se conclui do artigo 6º, nº 6 da LAT.
 Por outro lado, é certo que não estamos perante um acontecimento súbito e repentino (embora fosse inesperado, tal como já dissemos), pois tratou-se dum episódio que perdurou durante algum tempo. No entanto, o carácter repentino do acidente não quer dizer que este deva ser instantâneo, como sustentava Veiga Rodrigues, acima citado.
Além disso, e apesar de se não ter revestido de violência directa em relação à trabalhadora, este aspecto também não é relevante, pois como já dissemos, a violência não constitui, a não ser como critério subsidiário, uma característica essencial do acidente de trabalho.
De qualquer modo e citando ainda Victor Ribeiro, violento é afinal “tudo o que é susceptível de alterar o equilíbrio anterior; tudo quanto «viole» esse equilíbrio, quer seja uma explosão, quer seja uma emanação de gás tóxico, um golpe de frio ou calor, ou mesmo uma situação particularmente angustiante, ou de trabalho excessivo que faça, por exemplo, desencadear um ataque cardíaco ou uma perturbação mental”[14].
Ora, tendo sido este episódio gerador duma perturbação de adaptação, que constituiu o desenvolvimento duma resposta psicológica a um factor de stress devidamente identificado e que se manifestou em sintomas emocionais ou comportamentais, cujo quadro clínico, misto ansioso-depressivo, foi gerador duma fobia de voo e das estruturas aeroportuárias, com alterações do sono, instabilidade emocional e crises de ansiedade aguda, cefaleias, dificuldades de sono e pesadelos acerca deste acontecimento, temos de o considerar um acidente em sentido naturalístico, susceptível de gerar a responsabilidade própria dum acidente de trabalho, porque ocorrido no tempo e no local de trabalho.
E estando reunidos os requisitos previstos no artigo 6º, nº 1 da LAT, bem decidiram as instâncias, pelo que improcede o recurso.

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Termos em que se acorda nesta Secção Social em negar a revista.

Custas a cargo da seguradora.


Lisboa, 30 de Maio de 2012

Gonçalves Rocha (Relator)

Sampaio Gomes

António Leones Dantas

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[1] Na versão anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 303/2007 de 24 de Agosto, por se tratar de acção anterior a 1 de Janeiro de 2008.
[2] A seguir designada por LAT.
[3] Neste sentido e entre muitos outros os acórdãos deste Supremo Tribunal de 13.01.2010, processo 1466/03.2TTPRT.S1; 14/4/2010, recurso nº 459/05.0TTVCT.S1, e de 30/6/2011, recurso nº 383/04.3TTGMR.L1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt, e de 18 de Janeiro de 1995, CJS, 249/1.
[4] Colectânea de Jurisprudência, 1995, tomo 1, pág. 272.
[5] Cunha Gonçalves, in Responsabilidade Civil pelos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Coimbra Editora, 1939, pgª 30.
[6] Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, pgª 18, Coimbra Editora, 1971.  
[7] Direito do Trabalho, BMJ, 1979 (suplemento), pgª 62
[8] Acidentes de Trabalho, reflexões e notas práticas, 1984, pág. 208.
[9] Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ªedição, página 36.
[10] Acidentes de Trabalho, anotações à Lei 1942 (LAT anterior à Lei 2 127), pgª 17.
[11] Obra citada, pgª 16.
[12] Obra citada, pgª 210.
[13] Cunha Gonçalves, in Responsabilidade Civil pelos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Coimbra Editora, 1939, pgª 30.
[14] Obra citada, 210.