Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4285/18.8T8MTS.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: INTERDIÇÃO
PROCESSO ESPECIAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CONSTITUCIONALIDADE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. Na interpretação do art. 901.º do CPC deve atender-se a que, estando em causa, nas acções de acompanhamento de maiores, o direito à capacidade civil, consagrado nos n.os 1 e 4 do art. 26.º da CRP, se justifica plenamente a possibilidade de o STJ sindicar as decisões da Relação quanto às quais não se verifica dupla conforme, tal como sucede, em geral, nos demais processos especiais.

II. Assim, e uma vez que a letra do art. 901.º do CPC não o exclui, entende-se que não vigora neste tipo de processos um princípio de irrecorribilidade para o STJ, sendo de concluir que o sentido útil da norma legal será o de regular especificamente a legitimidade para recorrer de decisão relativa a medida de acompanhamento de maior.

III. Não se verifica nulidade por omissão de pronúncia sobre a alegada questão da ilegitimidade de terceiros para apelar; o que pode considerar-se é existir falta de fundamentação dessa decisão da Relação, a qual, porém, foi suprida pelo acórdão da conferência.

IV. Não merece censura a decisão da 1.ª instância que concluiu que os apelantes poderiam ser directa e efectivamente prejudicados pela sentença proferida nestes autos, bem como pelo despacho que a antecedeu, pelo que, nos termos do n.º 2 do art. 631.º do CPC, lhes reconheceu legitimidade para recorrer, não obstante não serem parte na acção.

V. De acordo com decisão do TC proferida a respeito de caso reportado a situação fáctica idêntica à situação subjacente aos presentes autos - acção especial de interdição intentada em data anterior à publicação da L. n.º 49/2018, de 14.08, tendo o exame pericial e a audição do requerido ocorrido já após a entrada em vigor de tal diploma - a aplicação aos processos pendentes do disposto na nova redacção do art. 904.º, n.º 1, do CPC, que prevê a extinção da instância no caso de morte do requerido, por via do art 26.º, n.º 1 daquela mesma lei, não viola os princípios constitucionais da protecção de confiança e da tutela judicial efectiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I – Relatório


1. AA instaurou, em 11 de Setembro de 2018, acção especial de interdição por anomalia psíquica contra BB, alegando, em síntese, que: é filha do requerido, o qual sofre, desde há quatro anos, de síndrome de demência; que o estado de saúde do requerido tem vindo a piorar; que recentemente padeceu de doença do foro oncológico, tendo sido submetido a tratamentos de quimioterapia, radioterapia e cirurgia; que o requerido é accionista de duas sociedades anónimas e, antes de sofrer de demência, era pessoa muito activa, gerindo sozinho as referidas sociedades; que, em consequência da doença de que padece, não consegue gerir a sua vida pessoal nem as empresas; que se encontra dependente de terceiros para se alimentar, tomar a medicação e se deslocar; que passou a comunicar muito pouco, tendo dificuldade em manter uma conversa; que confunde a contagem monetária; que não compreende o conteúdo de documentos; que não consegue tomar decisões; que tem grande dificuldade em apor a sua assinatura; e que conferiu procuração ao seu filho que se encontra a gerir as empresas, tendo afastado a requerente das mesmas.

2. Foi dada publicidade à acção.

3. O requerido foi citado pessoalmente e não apresentou contestação.

4. Foi indeferida a pretendida interdição provisória do requerido.

5. Tendo, entretanto, entrado em vigor a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, foi determinada a adaptação da tramitação dos autos ao novo regime legal.

6. A requerente, a convite do tribunal, veio completar o alegado no requerimento inicial, peticionando que seja aplicada a medida de representação legal para actos em geral.

7. O Ministério Público foi citado em representação do requerido e não apresentou contestação.

8. Procedeu-se à audição pessoal do requerido e à realização de exame pericial.

9. O requerido veio a falecer no dia … de Abril de 2020.

10. Na sequência do falecimento do requerido, veio a requerente apresentar novo requerimento, em 5 de Maio 2020, cujo teor se transcreve:

«1. Infelizmente, atento o tempo decorrido desde que em 11 de setembro de 2018 foi instaurada esta ação, o aqui beneficiário acabou por falecer antes que tivesse sido tomada uma decisão sobre o objeto imediato do processo.

2. O óbito ocorreu depois de o mesmo ter sido submetido a interrogatório e de ter sido submetido a perícia médico-legal, a qual até foi concludente no juízo científico de verificação do estado de anomalia psíquica alegado, e até apontou a data desde que tal padecimento se verificou.

3. A presente ação foi instaurada aio abrigo da lei revogada pelo novo regime legal do acompanhamento de maiores.

4. Aquando da instauração da ação vigorava o artigo 904º do CPC, o qual nessa redação dispunha que, dando-se o óbito do interditando após o interrogatório judicial e a realização da perícia médico legal, o Requerente dispunha da faculdade de peticionar que a causa prosseguisse para aferição da existência da incapacidade e desde quando datava a incapacidade alegada.

5. É do conhecimento da Requerente que a entrada em vigor do novo regime legal do maior acompanhado se aplica, por determinação legal, aos processos de interdição pendentes naquela data.

6. Apesar do regime de aplicação da lei no tempo do novo regime legal do acompanhamento ter decidido abranger os processos de interdição pendentes e até findos de uma maneira geral, não pode estender-se in casu ao disposto ao artigo 904º, nº 1 do CPC.

7. A aplicação do novo artigo 904º, nº 1 do CPC ao caso concreto enferma de inconstitucionalidade por dois motivos centrais.

8. O primeiro, centra-se no princípio da proteção da confiança da Requerente, pois quando esta deu entrada ação o regime legal previa esta possibilidade precisamente para garantir uma tutela judicial máxima em caso de falecimento.

9. O segundo, centra-se na circunstância de a prova produzida neste processo se afigurar ser prova que dificilmente poderá ser usada num outro processo sem oposição, o que põe em causa seriamente, a possibilidade de anulação de atos eventualmente praticados pelos beneficiário na pendência da ação que tenham sido celebrado após a data da verificação da sua incapacidade.

10. Trata-se de prova que se não for aproveitada por este Tribunal porá em causa de modo sério e irremediável, o exercício de direitos por parte da Requerente que dependam da determinação da data dos efeitos da interdição e terá tornado inútil a pendência do presente processo, que mais uma vez pendia desde há 1 ano e sete meses sem que no mesmo tivesse sido tomada sequer uma decisão provisória e sem que a Requerente tivesse contribuído para tal dilação.

11. Neste mesmo sentido, já o Tribunal da Relação do Porto se pronunciou no processo nº 12342/18.4 T8PRT-P1, em acórdão datado de 10.9.2019, consultado em www.dgsi.pt, no qual se sumariou que: [...].

12. Seguindo de perto o aresto supra citado, mas densificando a fundamentação, a desaplicação foi decidida pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo nº 528/16. T8VNG S1-P1, em acórdão datado de 21.11.2019, consultado em www.dgsi.pt, no qual se sumariou que: [...].

13. Concluindo: a aplicação, aos processo de interdição pendentes, da regra que prevê como causa extintiva da instância a morte do beneficiário, sem salvaguardar a produção do interrogatório e da perícia medico legal é, no modesto entender da Requerente, inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito Democrático na vertente da violação da confiança e, mesmo em si mesmo considerado por violação do princípio da proporcionalidade e da tutela judicial efetiva. (artigo 20º da CRP)

Nestes termos, e nos melhores de direito, a requerente vem requerer a desaplicação do artigo 904º, nº 1 da sai verão atual por violação do artigo 2º e 20º da CRP, requerendo a aplicação in casu da versão anterior do mesmo preceito, requerendo consequentemente, que a presente causa prossiga, independente da agora prontamente comunicada morte do beneficiário, para:

- determinar a verificação da incapacidade alegada

- determinar desde quando a incapacidade alegada se verificou».

11. Em 6 de Maio de 2020 foram os autos com vista à Exma. Magistrada do Ministério Público, que neles exarou o seguinte:

«Face ao falecimento do requerido BB, nos termos do art. 904º, nº 1, do CP. Civil, deveria ser declarada extinta a presente instância.

No entanto, cumpre sublinhar que a petição inicial que deu origem aos presentes autos deu entrada a 11-09-2018, portanto quando ainda estava em vigor o processo de interdição e inabilitação, sendo que, no seu decorrer entrou em vigor o Regime do Maior Acompanhado.

Por outro lado, constata-se que, antes do falecimento do requerido foi efectuado exame pericial ao requerido e elaborado o respectivo relatório com data a partir da qual o requerido se tornou incapaz. Com efeito tal poderá ser de importância fundamental para eventual anulação de actos praticados pelo requerido após a data de início da incapacidade.

Assim, aderindo aos fundamentos de facto e de direito consignados nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10-09-2019 e 21-11-2019, entende-se adequado e justo averiguar a existência da incapacidade da requerida e a data provável do seu início, o que ora se promove».

12. Em 18 de Maio de 2020 foi proferida sentença em cujo introito se decidiu, nos seguintes termos, a questão processual suscitada:

«Conforme resulta do assento de óbito junto aos autos a 04/05/2020, o Requerido faleceu em …/04/2020.

A Requerente requereu o prosseguimento dos autos com vista a se determinar a verificação da incapacidade alegada e determinar quando a mesma se verificou.

Sustentou esse requerimento no facto de a presente ação ter sido instaurada ao abrigo da lei revogada pelo novo regime legal de acompanhamento de maiores, sendo que o art. 904º do CP. Civil, nessa redação, dispunha que dando-se o óbito do interditando após o interrogatório judicial e a realização da perícia médico-legal, o requerente dispunha da faculdade de peticionar que a causa prosseguisse para aferição da incapacidade e desde quando datava a mesma; que o novo regime legal revogou esta norma e aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor; que a aplicação do novo art. 904º, nº 1, do CP. Civil ao caso em apreço enferma de inconstitucionalidade, por força de violação do princípio da confiança da Requerente e por a prova produzida nestes autos dificilmente poder ser usada noutro processo, pondo em causa a possibilidade de anulação dos atos eventualmente praticados pelo beneficiário após a data da verificação da sua incapacidade.

O Ministério Público promoveu o prosseguimento dos autos, averiguando-se a existência da incapacidade do Requerido e a data do seu início.

Cumpre decidir:

A presente ação foi instaurada em 11/09/2018, sob a forma de processo especial de interdição, de acordo com o regime legal vigente antes da entrada em vigor da Lei nº 49/2018, de Agosto, de 14 de agosto, que instituiu o regime jurídico do maior acompanhado, que ocorreu em 10/02/2019.

À data da entrada da ação da ação o processo especial de interdições e inabilitações encontrava-se regulado nos arts. 891º a 905º do CP. Civil.

Dispunha o nº 1, do art. 904º, do CP. Civil que: “1 - Falecendo o requerido no decurso do processo, mas depois de feitos o interrogatório e o exame, pode o requerente pedir que a ação prossiga para o efeito de se verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada. ”

A referida Lei nº 49/2018 alterou essa norma, passando a mesma a dispor que “a morte do beneficiário extingue a instância”.

Por seu turno, o art. 26º, nº 1, da citada Lei 49/2018, prevê a sua aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.

Ao não estabelecer um regime transitório que admitisse a possibilidade do prosseguimento da ação com o falecimento da pessoa a interditar, nos termos previstos na anterior redação do art. 904º, nº 1, do CP. Civil, quando a ação foi instaurada como processo de interdição, antes da entrada em vigor da Lei nº 49/2018, agravou de modo inadmissível e arbitrário a posição dos interessados que pretendiam o estabelecimento da incapacidade da pessoa que seria interditada e a data provável do seu início, com vista à instauração de futuras ações de anulação de negócios celebrados por esta, desrespeitando o princípio constitucional de proteção da confiança e da segurança jurídica consagrado no art. 2º da Constituição da República Portuguesa. Não deve, assim, ser imediatamente aplicado aos processos iniciados antes da Lei nº 49/2018 o bloco normativo integrado pelo citado art. 26º, nº 1, conjugado com o art. 904º, nº 1, do CP. Civil, conforme foi doutamente decidido nos Acs. da R.P. de 10/09/2019, proc. nº 12342/18.4 T8PRT.P1 e de 21/11/2019, proc. nº 528/16.T8VNG. S1-P1, invocados pela Requerente e disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim, sendo, mostrando-se nestes autos realizadas a audição do Requerido e a perícia, não se aplicará aos mesmos a nova redação do art. 904º, nº 1, do CP. Civil, prosseguindo os autos com prolação de sentença onde serão apreciadas as questões da necessidade de acompanhamento e fixação da data da necessidade das mesmas.

Notifique.».

Tendo a sentença, a final, decidido:

«Face ao exposto, julgo a presente ação integralmente procedente por provada e, em consequência:

1 - Declaro que BB se encontrava em condições de lhe ser determinado acompanhamento, com aplicação da medida de representação geral e restrição dos direitos de celebrar quaisquer negócios da vida corrente; de se divorciar; de constituir união de facto; de adotar; de se deslocar no país ou no estrangeiro; de fixar domicílio, de testar e de votar.

2 - Fixo a data de conveniência de decretamento das medidas de acompanhamento, no dia 13 de maio de 2016.

3 - Consigna-se que o Requerido não outorgou testamento vital.

Fixo o valor da causa em €30.000,01.

Sem custas - art. 4º, nº 2, h), do Regulamento das Custas Processuais.

Comunique à Conservatória do Registo Civil competente - art. 153º nº 2 do Código de Processo Civil e 1920º-B do Código Civil.

(...)».

13. CC, viúva do requerido, veio aos autos requerer a autorização de consulta do processo, a fim de poder interpor recurso da decisão. A requerente, bem como a Exma. Magistrada do Ministério Público opuseram-se.

Em 1 de Julho de 2020 foi proferido o seguinte despacho:

«Requereu CC, mulher do Requerido, invocando a sua qualidade de curadora provisória do mesmo, que lhe seja concedida a possibilidade de consultar os autos através do sistema Citius.

Não obstante a referida mulher do Requerido nunca tenha tido a qualidade de curadora provisória do mesmo, que invoca, certo é que tem conhecimento do objeto dos autos, até porque apresentou contestação em nome do mesmo e o acompanhou aquando da sua audição pelo tribunal.

Acresce o Requerido já faleceu e até à sua morte viveu com a sua mulher, pelo que esta tem pleno conhecimento do seu estado de saúde.

Assim sendo, não se vislumbra que subsista qualquer interesse, designadamente a proteção da dignidade ou da intimidade da vida privada do Requerido, que importe preservar relativamente à sua viúva.

Assim sendo, autorizo a mesma a consultar os autos através do sistema Citius.

Notifique.».

14. Não se conformando com a decisão da sentença, CC e DD, respectivamente viúva e filho do requerido, dela interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual foi admitido por despacho do Juiz de 1.ª instância.

Por acórdão de 24 de Setembro de 2020, foi proferida a seguinte decisão:

«Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o recurso, ao qual concedem provimento e, em consequência, em revogar as decisões recorridas, determinando a extinção da instância nos autos ao abrigo do disposto no artigo 904.º do Código de Processo Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14/08, em vigor à data dos despachos recorridos.»

15. Desta decisão vem a requerente interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«1. O Tribunal da Relação não se pronunciou concretamente, em nenhum momento, sobre a questão da legitimidade ad recursum do recurso que lhe foi colocada pela então Apelada.

2. Esta questão concretamente deduzida pela então apelada nas suas contra-alegações de recurso era questão sobre a qual impendia um dever judicial de decisão por ser matéria de defesa por exceção, a qual condiciona e precede a apreciação do mérito do recurso.

3. A apreciação desta questão precede a da apreciação do mérito do próprio recurso porque se se vier a demonstrar não ter a terceira CC legitimidade ad recursum então a decisão in casu transitou em julgado, o que impedia que o tribunal a quo encetasse a tarefa de apreciação do mérito do mesmo.

4. A decisão recorrida ser declarada nula por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 615º, nº 1 d) e 684º do CPC, e substituída esta decisão por outra que seja a da inadmissibilidade do recurso de apelação pela Recorrente CC.

5. Nos processos de acompanhamento têm legitimidade para recorrer o Requerente, o beneficiário, o Ministério Público ou o acompanhante quando assistente, pelo que in casu só o Ministério Público e a aqui Recorrente (requerente) (se a decisão tivesse sido desfavorável – que não foi) poderia recorrer, pois não foi designado acompanhante e este, por sua vez, não era assistente nos autos.

6. Os terceiros só adquirem legitimidade ad recursum se alegarem demonstrarem terem um prejuízo direito e efetivo com a decisão proferida, nos termos do artigo 631º, nº 2 do CPC.

7. Lida a apelação não se vislumbra que tenha sido alegado algum facto concreto que demonstre que a decisão proferida tenha causado ou ameace causar prejuízo direto e efetivo aos terceiros recorrentes ou a qualquer um deles.

8. O prejuízo direto e efetivo tem subjacente a ideia de que a decisão visa diretamente o Recorrente, afastando os casos em que o prejuízo ainda que efetivo, é indireto, reflexo ou imediato ou atinge unicamente a pessoa representada, pretendendo o legislador com esta exigência evitar recursos relativamente a prejuízos eventuais longínquos, incertos, prováveis ou possíveis.

9. A ser dada consagração à tese do tribunal a quo neste ponto - o que só por mera hipótese académica se consente – então este mesmo tribunal ad quem terá de decidir que a apelante carecia de legitimidade para recorrer – como já invocado pela então apelada e aqui renovado pela aqui Recorrente e, consequentemente deve ser revogada a decisão do Tribunal da Relação com esse fundamento.

10. Na verdade, sendo apreciada - como peticionado - a questão da legitimidade ad recursum da apelante e, concluindo-se a mesma não existir pela circunstância da decisão proferida em primeira instância não resultar a procedência de ações de anulação de testamento invocado pela apelante nem a invalidade das procurações outorgadas, só pode concluir-se que CC quanto terceira não prejudicada pela decisão em apelação dela não poderia ter legitimamente recorrido.

11. O motivo que justificou a procedência do recurso de CC - no entender do Tribunal a quo - é o mesmo que evidencia carecer esta, de legitimidade ad recursum (enquanto terceira relativamente ao processo onde a decisão apelada foi decidida) pelo que, mantendo-se o eixo 1, como fundamentador da revogação da decisão apelada, está a aqui e agora Recorrente em crer que, em coerência, o presente recurso terá de proceder por revogação da decisão proferida agora fundamentada na falta de legitimidade ad recursum da apelante CC como questão precedente daquela.

12. A decisão recorrida enferma de erro quanto à apreciação da violação do princípio de proteção a confiança (artigo 2º da CRP) da apelada (aqui Recorrente) traduzido na circunstância de ter apreciado a pretensão de desaplicação do novo artigo 904º do CC ao presente processo de interdição/acompanhamento à luz das procurações juntas aos autos pela requerente da interdição e do testamento junto aos autos, pela terceira apelante.

13. A avaliação da utilidade da sentença proferida pela primeira instância - empreendida pelo Tribunal a quo para aferir da verificação ou da não violação do princípio da proteção da confiança e da inconstitucionalidade invocada pode ser aferida por esses atos – conhecidos das pessoas envolvidas e do tribunal - mas não pode esgotar-se neles.

14. A utilidade da sentença proferida e que veio a ser revogada estende-se a qualquer ato que o interditando tenha outorgado depois da data fixada para a incapacidade também, mas não só nos casos em que tenham sido outorgadas pelo beneficiário depois da publicidade da ação de interdição e ou da publicidade da mesma.

15. A causa de pedir da ação de interdição ou de acompanhamento não é a existência concreta de negócios suscetíveis de ser anulados, pelo que o filtro usado pelo Tribunal a quo para proferir a decisão não tem qualquer justificação porque os negócios invocados não integram o objeto da ação e interdição.

16. A letra do artigo 904º do CC não estabelece que só pode ser requerida para anular negócios jurídicos que foram outorgados depois da publicidade da ação de interdição e não dependia da invocação de um interesse processual específico e concreto nem faz depender a sua emanação da invocação pelo Requerente da existência de negócios concretos outorgados pelo beneficiário/interditando que se revelem poder ser anulados.

17. O legislador considerou que o interesse processual na prolação da decisão post mortem em sede de interdição se justificava desde que produzidos resultados probatórios periciais e de audição do beneficiário/interditando sem que se fizesse qualquer outra restrição ou se impusessem condições ou limites. É um interesse processual amplo e que abrange as ações que for necessário vir a intentar e para as quais aquela decisão judicial se venha a revelar absoluta ou parcialmente relevante para a pretensão de procedência da Requerente que os tenha por objeto.

18. O exercício do direito de ação por parte da aqui Requerente é um direito fundamental que, a ser restringido, só o pode ser por lei e esta não o fez, pelo que o Tribunal também não o deve fazer sob pena de tomar ele próprio decisão inconstitucional por violação já não do princípio da proteção da confiança, mas, também, por violação do direito de acesso a tutela judicial efetiva, previsto no artigo 20º da CRP e em violação direta dos artigos 17º e 18 da CRP.

19. As razões de direito substantivo invocadas (pressuposto de procedência de ações de anulação de negócios jurídicos do interditando/beneficiário) para justificar a inutilidade da decisão apelada não são suficientes para neutralizar o interesse processual da aqui Recorrente no direito à obtenção da tutela judicial possível (ou da melhor tutela judicial possível no caso concreto), no contexto das ações de interdição após a morte prematura (antes da decisão de interdição/acompanhamento) pelo beneficiário e após a produção dos meios de prova legalmente previstos como sendo os adequados.

20. É certo que o processo de interdição serve, a título principal, para proteger a pessoa do beneficiário, mas isso não conduz à conclusão imediato de que, morrendo o mesmo, nada mais há a proteger.

21. Apesar disso, o desfecho da ação de interdição/acompanhamento não deixa de ter, ainda que colateralmente efeitos jurídicos (as mais das vezes, patrimoniais) na esfera do Requerente, sendo por isso que a lei substantiva confere aos herdeiros do interdito ou do interditando a necessária legitimidade para requerer judicialmente a anulação dos negócios jurídicos outorgados pelo mesmo antes ou depois da publicidade da ação respetiva.

22. Reconhecida esta realidade, dir-se-á que a utilidade da decisão de incapacidade e da data da sua fixação tem, mesmo após a morte do destinatário da mesma, ainda uma utilidade prático-jurídica que justifica que o Requerente deste tipo de pretensão possa, ainda, e também numa lógica de economia processual retirar da prova produzida que o beneficia a produção de uma decisão que represente após aquele desenlace fatal e fortuito a sua melhor tutela judicial e, ainda, também – agora lateralmente - a melhor tutela da dignidade da pessoa do falecido.

23. Já que os efeitos da decisão não se vão poder repercutir no beneficiário por impossibilidade superveniente, podem os efeitos colaterais supra indicados produzir-se ainda porque não impossíveis e ainda úteis na esfera do Requerente daquela medida de acompanhamento.

24. Se a morte do beneficiário conduz a uma impossibilidade de decidir o acompanhamento do mesmo (dada a sua morte) já não conduz inexoravelmente à inutilidade da decisão que o considere incapaz para determinados atos jurídicos e desde quando, pois esta - como já se deixou argumentado - mantém utilidade para obter a procedência da anulação de negócios jurídicos celebrados pelo falecido depois da data da publicidade da ação e que se enquadrem na data em que o tribunal tenha declarado começar a produzir-se a incapacidade do mesmo para os atos que foram identificados.

25. Se a utilidade da decisão para o Requerente, nos casos supra invocados, não atingir o ponto de garantir a autoridade dessa decisão (se e quando definitiva) na decisão que vier a ser proferida por um outro tribunal em sede da anulação de certos negócios jurídicos outorgados pelo beneficiário falecido (vinculação pela autoridade de caso julgado – efeito positivo), pelo menos será um princípio de prova para aferir da incapacidade do mesmo no momento da outorga do ato em anulação quando tal for legalmente exigido (regime anulatório da incapacidade acidental) facilitando, desde logo, pelo menos no seu início, o standard probatório exigido, o que é particularmente assim nos casos em que a causa da incapacidade fixada em dado momento naquela decisão é cientificamente conhecida como irreversível.

26. Atenta a dificuldade de prova de tal facto (provar que no dia estava incapacitado), resulta bastante evidente que o direito à prova daquela incapacidade momentânea fica limitado em termos muito consideráveis e quase absolutos e intoleráveis quando se impede que o tribunal perante o qual foi produzida a prova da capacidade favorável à necessidade de proteção do beneficiário - como foi o caso - emane a sentença antes prevista no 904º do CC e que o Tribunal a quo revogou só porque este morreu antes da decisão final.

27. Fica altamente prejudicada a posição probatória do autor da ação de anulação – e, consequentemente, o seu direito judicial à anulação de tais atos (que a lei confere aos herdeiros) - sobretudo tendo morrido o interditando sem que a interdição fosse apreciada e decretada se o processo de interdição/acompanhamento não puder prosseguir após a produção em vida do interditando beneficiário das provas necessárias para apreciar a sua incapacidade e a data em que perdeu a mesma – se aqueles resultados probatórios não puderem se usados para proferir a decisão judicial revogada.

28. Por este motivo se pode concluir - ao contrário do que pugna o acórdão impugnado - não ser indiferente para a Requerente (aqui Recorrente) que, sobrevinda a morte do beneficiário/interditando sem que tenha sido proferida sentença, seja proferida sentença que aproveite os resultados probatórios já obtidos nessa causa.

29. Quando a decisão recorrida considera que não está violada a proteção da confiança pela extinção da instância sem decisão sobre incapacidade depois de obtidos os resultados probatórios favoráveis à mesma porque a provas em que mesma poderia ter assentado – não fora a morte do interditado - podem ser usadas pela Requerente num outro processo viola o artigo 421ºdo CPC que proíbe o valor extraprocessual das provas.

30. A prova produzida no processo de interdição/acompanhamento sido produzida entre 2 partes (Requerente e beneficiário (representado pelo MP) e perante o tribunal, pelo que a mesma não foi produzida com audiência contraditória da Apelante (agora Recorrida) precisamente por esta ali não ser parte.

31. Por consequência, a Recorrente não poderá - salvo o devido respeito - desconsiderando a inexistência de decisão judicial por extinção da instância, utilizar os resultados da prova pericial e os resultados da prova por audição do interditando/beneficiário num outro processo perante partes que relativamente a essa prova não tenham sido ouvidas e que não tenha participado na produção da mesma.

32. Não tendo tais provas valor extraprocessual pelos motivos invocados, sem decisão que após a morte do interditando beneficiário determine a sua incapacidade e da data em que a mesma se começou a revelar está - por causa da irreversibilidade da morte e da repetição dos mesmos meios de prova nesse outro processo com audiência contraditória é patente que esta decisão - que agora se viu revogada e substituída por uma decisão de extinção da instância - é altamente lesiva do sucesso do direito de ação da Recorrente que vise anular qualquer ato do beneficiário/interditando mesmo se alicerçada na incapacidade acidental do mesmo.

33. Portanto, não é verdade e está errado afirmar que os resultados probatórios possam ser emprestados a qualquer outro processo em que seja discutida a incapacidade mental do interditando e em que figurem terceiros quer sejam a Recorrida antes apelada), o filho desta ou outros que com aquele tenham contratado antes ou depois da publicidade da ação de interdição ou que tenham sido beneficiários dos seus atos.

34. E, assim sendo, aquele argumento como justificação para a desconsideração do nível necessário para garantia constitucional e proteção da confiança cai redondamente por terra também.

35. Por este motivo, a decisão ora recorrida merece revogação exatamente porque alicerçada em pressupostos jurídicos errados (que por si é violador de norma processual quanto a prova – artigo 421º do CPC), conduzindo erradamente o tribunal a quo a uma decisão injusta violadora do princípio da confiança na medida em que determina a extinção da instância do processo de interdição, após a morte do mesmo sem que tenha nele sido proferida decisão, provocando assim, de modo irreversível, e por isso manifestamente intolerável, a perda de resultados probatórios invocáveis perante terceiros apenas através da mediação de uma decisão judicial (a decisão revogada) e não de per si ou autonomamente considerados .

36. A aplicação, aos processos de interdição pendentes, da regra que prevê como causa extintiva da instância a morte do beneficiário, sem salvaguardar os resultados probatórios da produção do interrogatório e da perícia médico legal, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito Democrático na vertente da violação do princípio de proteção de confiança (artigo 2º da CRP)

37. A decisão recorrida (que determina neste contexto a extinção da instância) em si mesmo considerada é violadora do direito fundamental da tutela judicial efetiva na sua vertente de direito à prova, uma vez que é completamente desproporcional (inadequado, desnecessário e desproporcional em sentido estrito) violando assim, aquele direito fundamental (análogo a direito, liberdade e garantia) de modo que a Constituição não consente o que determina violação do artigo 20º da CRP e dos artigos 17º e 18º da CRP.

38. Mesmo que desconsiderada aqui a sucessão de leis no tempo que justificou in casu a invocação do princípio da proteção da confiança da Requerente (aqui recorrente) sempre se poderia dizer que o preceito em si (904º do CPC novo) é inconstitucional por violação dos artigos 20º, 17º e 18º da CRP.

39. É-o, mais precisamente por impossibilitar a prova da incapacidade do interditando falecido sem sentença de interdição (e depois de produzidos resultado probatórios favoráveis ao decretamento da mesma ou de acompanhamento) em futuras ações anulatórias que se venham a justificar, colocando os titulares dos direitos de anulação destes atos numa situação de absoluta denegação de justiça que a Constituição não admite, nem por si, nem em consequência de sucessão de leis no tempo.»

Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente, declarando-se a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia e decidindo este tribunal a questão da ilegitimidade da apelante com todas as consequências legais; assim como pedindo que sejam reconhecidos os invocados erros de julgamento, revogando-se a decisão do acórdão recorrido.

16. Os Recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.

17. O Ministério Público pronunciou-se pela procedência do recurso.

18. Por acórdão de 9 de Novembro de 2020, o tribunal a quo pronunciou-se pela não verificação da invocada nulidade por omissão de pronúncia.

19. O recurso foi admitido por despacho do relator do tribunal a quo de 19 de Novembro de 2020 e remetido ao Supremo Tribunal de Justiça por ofício de 11 de Dezembro de 2020.


II – Objecto do recurso

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso. Assim, o presente recurso tem por objecto as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a questão da legitimidade dos aqui Recorridos, que não são parte na causa, para interpor recurso de apelação;

- Subsidiariamente, erro de julgamento ao não se declarar a ilegitimidade dos aqui Recorridos para interporem recurso de apelação;

- Apurar se a aplicação aos processos pendentes do disposto no art. 904.º, n.º 1, do CPC, na redacção da Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto, que prevê a extinção da instância no caso de morte do requerido, por via do art 26.º, n.º 1 deste último diploma é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito Democrático na vertente da violação do princípio de protecção de confiança e por violação do direito fundamental de tutela judicial efectiva na sua vertente de direito à prova.


III – Admissibilidade do recurso

Para apreciar da admissibilidade do recurso, importa ter presentes as seguintes normas do Código de Processo Civil (na redacção introduzida pela referida Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, aplicável aos processos pendentes nos termos do respectivo art. 26.º, n.º 1):

Artigo 901.º

«Da decisão relativa à medida de acompanhamento cabe recurso de apelação, tendo legitimidade o requerente, o acompanhado e, como assistente, o acompanhante.»

Artigo 891.º, n.º 1:

«O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.»

Artigo 988.º, n.º 2:

«Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»

Suscitam-se essencialmente duas dúvidas distintas, quais sejam: (i) saber se o actual regime do art. 901.º do CPC tem ou não o alcance de afastar o recurso de revista nas acções de acompanhamento de maiores; (ii) saber se a remissão do n.º 1 do art. 891.º do CPC para o regime dos processos de jurisdição voluntária exclui ou não a regra da irrecorribilidade das decisões proferidas em tais processos segundo critérios de conveniência ou oportunidade, prevista no n.º 2 do art. 988.º do CPC.

Tratando conjuntamente de ambas as questões, Miguel Teixeira de Sousa (“O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais”, in O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro de 2019, pág. 53., disponível em www.cej.mj.pt) afirma o seguinte:

«A remissão que consta do art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária não abrange a irrecorribilidade das resoluções tomadas segundo critérios de conveniência ou oportunidade para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. art.º 988.º, n.º 2). A circunstância de o art.º 891.º, n.º 1, não remeter para esta restrição à recorribilidade obsta a qualquer interpretação do disposto no art.º 901.º quanto à admissibilidade da apelação como significando, a contrario sensu, a inadmissibilidade da revista. Disto decorre que é admissível interpor, nos termos gerais, recurso de revista do acórdão da Relação proferido sobre a decisão da 1.ª instância, o que é, de certo, facilmente compreensível, dado que não se compreenderia que uma decisão relativa a aspectos fundamentais da liberdade pessoal não pudesse ser sindicada pelo Supremo.»

Afigura-se preferível autonomizar as duas questões.

Quanto à questão de saber se o actual regime do art. 901.º do CPC tem ou não o alcance de afastar o recurso de revista nos processos de acompanhamento de maiores, reconhece-se que a redacção equívoca da norma legal (“Da decisão relativa à medida de acompanhamento cabe recurso de apelação...”) permite que se questione se o sentido útil da mesma norma será o de, em tais processos, não se admitir mais do que um grau de recurso.  

Considera-se, porém, que, na interpretação daquele regime normativo, se deve antes atender a que, estando em causa, nas acções de acompanhamento de maiores, o direito à “capacidade civil”, consagrado nos n.os 1 e 4 do art. 26.º da Constituição da República Portuguesa, se justifica plenamente a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça sindicar as decisões da Relação (tanto decisões determinativas de medidas de acompanhamento como outras decisões) em relação às quais não se verifique dupla conforme, tal como sucede, em geral, nos demais processos especiais.

Assim, e uma vez que a letra do art. 901.º do CPC não o exclui, entende-se que não vigora neste tipo de processos um princípio de irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça. Sendo de concluir que o sentido útil da norma legal será o de regular especificamente a legitimidade para recorrer de decisão relativa a medida de acompanhamento de maior, atribuindo essa legitimidade ao requerente, ao acompanhado e ao acompanhante.

Quanto à segunda questão – recorribilidade das decisões proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade – não cabe aqui tomar posição sobre a mesma, pois, no caso dos autos, é manifesto que o acórdão recorrido não se baseou em critérios de conveniência ou oportunidade, consistindo o objecto do recurso em questões de direito relacionadas, por um lado, com a legitimidade para interpor recurso de apelação dos aqui Recorridos e, por outro lado, com a aplicação no tempo do novo regime legal que instituiu o processo especial de acompanhamento de maiores.

Deste modo, e não se verificando dupla conforme entre as decisões das instâncias, conclui-se não existir obstáculo à admissibilidade do presente recurso.


IV – Fundamentação de facto

1. Com relevo para apreciação das questões objecto do presente recurso foi provado o que consta do relatório supra.

2. Quanto à questão da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a falta de legitimidade dos aqui Recorridos para interporem recurso de apelação, alega a Recorrente que a Relação, no acórdão recorrido, não apreciou tal questão apesar de a aqui Recorrente a ter suscitado em sede de contra-alegações ao recurso de apelação. Defende que, nos processos de acompanhamento de maiores, têm legitimidade para recorrer o requerente, o requerido, o Ministério Público ou o acompanhante quando assistente, pelo que, no caso dos autos, só o Ministério Público e a aqui Recorrente, (enquanto requerente e apenas se a decisão lhe tivesse sido desfavorável, que não foi) poderiam recorrer, pois não foi designado acompanhante. Mais sustenta que os terceiros só adquirem legitimidade recursória se alegarem e demonstrarem terem um prejuízo directo e efectivo com a decisão proferida, nos termos do artigo 631.º, n.º 2 do CPC. Entendendo que da apelação não resulta que tenha sido alegado qualquer facto concreto que demonstre que a decisão proferida tenha causado ou ameace causar prejuízo directo e efectivo a qualquer dos terceiros recorrentes.

Como se referiu supra, o tribunal a quo, em acórdão proferido em 9 de Novembro de 2020, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 617.º, aplicável ex vi art. 666.º, ambos do CPC, sustentou não existir qualquer omissão de pronúncia pelas seguintes razões:

«(...)

Suscitada a questão da legitimidade dos recorrentes [viúva e filho do requerido], na resposta às alegações de recurso, o Mº Juiz na 1.ª instância proferiu que se transcreveu no relatório que antecede, no qual conclui:

«Considera-se, assim, que poderão ser os Recorrentes direta e efetivamente prejudicados pela sentença proferida nestes autos, bem como pelo despacho que a antecedeu, pelo que têm legitimidade para recorrer dos mesmos, não obstante não serem partes na ação.»

Subiram os autos a este Tribunal, onde o relator, no uso das competências atribuída pela alínea b) do n.º 1 do artigo 652.º do Código de Processo Civil, se pronunciou, em despacho de 10.07.2020, declarando que «não se verificam quaisquer circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito do recurso».

Nos termos da norma citada, cumpre ao relator, no despacho liminar, averiguar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do mérito do recurso (exceção dilatória), ou seja, verificar se se verifica a ausência de pressupostos processuais, nomeadamente no que respeita à legitimidade do recorrente [vide Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 189].

A posição do relator foi assim de confirmação do despacho exarado pelo Mº Juiz de 1.ª instância, remetendo o processo para julgamento, por considerar que não se verificava qualquer exceção dilatória suscetível de inviabilizar o conhecimento do mérito do recurso, nomeadamente a ilegitimidade dos recorrentes.

A latere se dirá que se nos afigura óbvia tal legitimidade, tratando-se da viúva e filho da pessoa que se pretende interditar. Mal seria se assim não fosse, se a lei processual deixasse completamente desprotegida uma pessoa contra quem é requerida a limitação de direitos.

Revela-se assim manifesta a improcedência da exceção (de nulidade) invocada, não tendo ocorrido qualquer omissão de pronúncia.» [negritos nossos]

Quid iuris?

Constitui jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal que não ocorre nulidade por omissão de pronúncia por não terem sido apreciados os argumentos aduzidos pela parte ao suscitar uma questão, não se podendo confundir “questão” com “argumento” (neste sentido, cfr., a título exemplificativo, o acórdão de 22.02.2018, processo n.º 2317/15.0T8VNG.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt, relatado pela relatora do presente acórdão).

De facto, no caso dos autos, a questão foi conhecida – ainda que sem apreciação dos argumentos aduzidos pela apelada – uma vez que o relator do tribunal a quo proferiu decisão no sentido de considerar que não se verificavam quaisquer circunstâncias que obstassem ao conhecimento do mérito do recurso de apelação, entre as quais se inclui a falta de legitimidade dos apelantes. Sendo de entender que tal matéria está implícita ou tacitamente decidida no acórdão recorrido que apreciou o recurso de apelação. Cfr., neste sentido, exemplificativamente, o recente acórdão deste Supremo Tribunal de 07.09.2020 (proc. n.º 2774/17.0T8STR.E1.S1), consultável em www.dgsi.pt.

O que pode considerar-se é existir falta de fundamentação dessa decisão da Relação, na medida em que, no despacho que admitiu o recurso, não foi feita qualquer remissão para os argumentos utilizados pela 1.ª instância e nada foi dito a respeito das razões justificativas do juízo relativo à legitimidade recursória.

Contudo, tal falta de fundamentação foi, entretanto, suprida pelo referido acórdão da conferência de 9 de Novembro de 2020 ao remeter para o teor do despacho da 1.ª instância e ao acrescentar:

«A latere se dirá que se nos afigura óbvia tal legitimidade, tratando-se da viúva e filho da pessoa que se pretende interditar. Mal seria se assim não fosse, se a lei processual deixasse completamente desprotegida uma pessoa contra quem é requerida a limitação de direitos.»

Concluindo-se que a nulidade por falta de fundamentação se encontra suprida, importa, apreciar, subsidiariamente, a questão do alegado erro de julgamento a respeito da legitimidade para interpor recurso de apelação, o que se passa a fazer em seguida.


3. A 1.ª instância fundamentou a decisão de admissão do recurso de apelação no facto de o processo especial de acompanhamento de maiores não prever regras especiais para recorrer, salvo – como se viu supra – a regra prevista no art. 901.º do CPC a respeito do recurso da decisão relativa à medida de acompanhamento. Considerando que tal não significa que as demais decisões proferidas nestes processos sejam irrecorríveis, mas antes que às mesmas é aplicável o regime geral previsto nos arts. 627.º e segs. do CPC, ex vi art. 549.º, n.º 1, nomeadamente, o disposto no n.º 2 do art. 631.º do CPC:

“As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias”.

Considerou a 1.ª instância, em despacho de 1 de Julho de 2020, que os apelantes CC e DD são, respectivamente, mulher e filho do requerido já falecido, sendo aquela cônjuge meeira de todo o património do requerido, sendo que a apelante e o requerido eram casados em regime de comunhão geral de bens, e sendo ainda a apelante beneficiária do testamento que o requerido outorgou em 07.05.2018, junto aos autos com o recurso.

Entendeu também que ambos os apelantes são herdeiros do requerido, fazendo parte da respectiva herança as quotas e acções de que o requerido era titular em duas sociedades comerciais que o requerido geriu, por si ou por outrem, respectivamente na qualidade de gerente e de administrador, até momento posterior à data que se fixou como de início da conveniência de aplicação das medidas de acompanhamento. Pelo que, por força do disposto no art. 154.º do Código Civil, quer o testamento outorgado pelo requerido, quer os actos que praticou na gestão das referidas empresas, poderiam, face à sentença proferida nos autos, ser objecto de ulteriores acções de anulação, com consequências directas no património dos apelantes.

Ou seja, a 1ª instância concluiu, em termos que não merecem censura e que, por isso, se acompanham, que os apelantes poderiam ser directa e efectivamente prejudicados pela sentença proferida nestes autos, bem como pelo despacho que a antecedeu, pelo que têm legitimidade para recorrer dos mesmos, não obstante não serem parte na acção. Uma vez que está em causa um pressuposto recursório, basta a constatação da possibilidade do prejuízo para os terceiros recorrentes para se dar como verificada a legitimidade para apelar, independentemente do juízo que vier a ser feito acerca do mérito do recurso.

Conclui-se assim pela inexistência de erro de julgamento a respeito da legitimidade dos aqui Recorridos para interporem recurso de apelação.

4. Relativamente à questão da aplicação aos processos pendentes do disposto no art. 904.º, n.º 1, do CPC, na redacção da Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto, que prevê a extinção da instância no caso de morte do requerido, por via do art 26.º, n.º 1 deste último diploma, alega a Recorrente que tal aplicação é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito Democrático, na vertente da violação do princípio de protecção de confiança, e por violação do direito fundamental de tutela judicial efectiva, na vertente de direito à prova.

Sobre esta matéria, não se pronunciou ainda a jurisprudência deste Supremo Tribunal, existindo contudo decisões da Relação do Porto, respectivamente, de 10.09.2019 (processo n.º 12342/18.4T8PRT.P1) e de 21.11.2019 (processo n.º 528/16.0T8VNG.S1.P1), citadas pela Recorrente nas suas alegações, nas quais se decidiu não aplicar o artigo 904.º, n.º 1, do CPC a uma acção proposta antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto, por tal aplicação imediata violar o princípio constitucional da protecção da confiança e da segurança jurídica, devendo o processo prosseguir os seus termos mesmo após o falecimento do requerido ao abrigo do regime legal anterior.

Porém, a primeira dessas decisões da Relação do Porto, datada de 10.09.2019, foi entretanto – e em data posterior à data da prolacção do acórdão recorrido (24.09.2020) – objecto de apreciação por acórdão do Tribunal Constitucional, proferido em 01.10.2020 (acórdão n.º 477/2020, proc. n.º 979/2019, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que decidiu em sentido contrário, ordenando a reforma da decisão da Relação, não julgando inconstitucional o art. 904.º, n.º 1, do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, conjugado com o art. 26.º, n.º 1 do mesmo diploma, no sentido de que a morte do requerido extingue a instância, sem possibilidade de prosseguimento da acção a pedido do requerente, nos processos de interdição pendentes em que venham a ser realizados o interrogatório judicial e o exame pericial antes do falecimento do requerido.

O caso apreciado pelo Tribunal Constitucional reporta-se a situação fáctica idêntica à situação subjacente ao caso dos presentes autos – acção especial de interdição intentada em data anterior à publicação da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, tendo o exame pericial e a audição do requerido ocorrido já após a entrada em vigor de tal diploma (a qual ocorreu em 10.02.2019). Após a realização dessas diligências, o requerido faleceu, tendo sido requerido o prosseguimento dos autos ao abrigo do regime previsto no antigo art. 904.º, n.º 1, do CPC.

O referido acórdão do Tribunal Constitucional seguiu de perto a jurisprudência anterior do mesmo Tribunal, firmada no acórdão n.º 128/2009 de 12.03.2009 (processo n.º 772/2007, consultável em www.tribunalconstitucional.pt), que densificou o princípio da protecção da confiança, considerando que, para haver lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança», é necessária a verificação cumulativa de quatro requisitos:

«Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa [negritos nossos]

Aplicando tal jurisprudência ao caso em apreciação, relativo à aplicação do disposto no novo n.º 1 do art. 904.º do CPC aos processos pendentes, considerou o Tribunal Constitucional, no referido acórdão de 01.10.2020, que, ainda que se possam ter por verificados os dois primeiros requisitos, em relação ao terceiro, existem três razões fundamentais para concluir que não é razoável supor que os destinatários da lei fizeram planos de vida com base na expectativa de continuidade do quadro legal, ou seja, que não ocorreu o investimento na confiança ou, a ter ocorrido, é de importância negligenciável, nos seguintes termos:

«Em primeiro lugar, reitere-se que a finalidade da ação de interdição era a tutela dos interesses do requerido e que o seu efeito principal era de carácter prospetivo. Ao propor a ação, o requerente não tinha em vista o evento – incertus quando – da morte do requerido, e menos ainda a sua ocorrência antes de proferida a sentença e após a realização do interrogatório judicial e do exame pericial. Não há nenhuma razão objetiva para se presumir que, antes da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, o requerente propunha a ação com o fito de exercer a faculdade de exigir o seu prosseguimento nos termos em que o regime anterior o permitia. No momento em que ação era proposta, os pressupostos desse exercício eram de verificação contingente e de relevância lateral no processo, de modo que é abusivo falar-se aqui de um «investimento na confiança»

Em segundo lugar, nada no atual quadro legal impede o requerente, caso tenha a qualidade de sucessor do interditando – e só nesse caso há um interesse digno de tutela –, de impugnar judicialmente a validade de negócios jurídicos celebrados pelo requerido antes da publicidade da ação. A única diferença entre os dois regimes é que agora o requerente não tem forma de se desonerar da demonstração da incapacidade na ação de anulação – no caso de invocar a incapacidade acidental do celebrante – ou, mais amplamente, de todos os pressupostos de qualquer uma das causas de anulabilidade previstas na lei de que se queira fazer valer em juízo. Só que esse é o regime geral que vale para todas as ações desta índole, aliás aplicado desde sempre nos casos em que o interditando falecesse antes da realização do interrogatório judicial e do exame pericial.

Em terceiro lugar, nada parece obstar a que, tendo sido já realizado o exame pericial do interditando, o relatório do mesmo possa ser feito valer como elemento de prova em ação anulatória autónoma que o requerente venha a propor. Com efeito, a solução nova, ainda que aplicável imediatamente aos processos pendentes, não implica o desaproveitamento integral dos atos instrutórios na ação de interdição entretanto extinta, como que gerando uma impossibilidade prática de provar a incapacidade do falecido. Ao invés, tais elementos podem ser usados em eventuais ações de anulação, com efeitos próximos dos gerados pelo regime anterior, ou seja, como prova suficiente de incapacidade a partir de determinada data. Assim sendo, o putativo «investimento» feito pelo requerente na ação de interdição é largamente transferível para outras ações destinadas à tutela dos seus interesses patrimoniais.»

Finalmente quanto ao quarto e último requisito, considerou o Tribunal Constitucional que o mesmo também não se verifica pois:

«[S]empre seria de excluir o juízo de que a norma sindicada ofende o princípio da proteção da confiança, tendo em conta a reduzida intensidade do sacrifício imposto e as razões materiais da opção legislativa.»

Fundamentou tal conclusão em dois aspectos:

«Quanto ao primeiro, note-se que a lesão da confiança admite graus variados consoante se trate de retroatividade em sentido estrito ou de mera retrospetividade (v.g., acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010, 399/2010 e 171/2017) e, no âmbito desta, consoante seja maior ou menor o alcance retrospetivo da lei nova. Há mera retrospetividade – refere o Acórdão n.º 128/2009 − quando se trata da «aplicação da lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas.» Como se afirma na decisão recorrida, a aplicação imediata da nova redação do artigo 904.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, gera esta espécie de «retroatividade inautêntica ou aparente», na medida em que se aplica a um facto novo − a morte do requerido – ocorrido num contexto anterior – a ação pendente. Só que o efeito retrospetivo é particularmente ténue no que respeita à norma sindicada nos presentes autos, porque pelo menos um dos dois factos – a realização do interrogatório judicial e do exame pericial − de que a lei antiga fazia depender a faculdade de exigir o prosseguimento da ação na eventualidade de o requerido vir a morrer, também é «novo» ou «posterior» em relação à entrada em vigor da lei nova. Considerando apenas os casos em que, no momento em que a lei nova entra em vigor, ainda não se verificou a morte do requerido, é diferente a situação daquele que, sendo requerente numa ação de interdição em que o interrogatório e o exame tenham sido realizados, tem a expectativa de que a ação venha a prosseguir se o requerido entretanto morrer; e a daquele que, no momento da entrada em vigor da lei nova, ainda não adquiriu a possibilidade de pedir o prosseguimento da ação na eventualidade da morte do requerido. Nesta última situação, que é o dos presentes autos, a eficácia da lei é essencialmente prospetiva, limitando-se o efeito retrospetivo ou a conexão ao passado ao contexto – a ação pendente – em que os factos relevantes segundo a lei antiga ainda podem vir a ocorrer. O sacrifício da confiança, mesmo que se entenda verificar-se em alguma medida, é aqui necessariamente mínimo.

Quanto ao segundo aspeto, não pode acompanhar-se o entendimento da decisão recorrida de que o novo regime – e, em particular, a sua aplicação aos processos pendentes – é destituído de fundamento material. Pelo contrário, a sua razão de ser pode encontrar-se numa ordem de considerações de primeira grandeza axiológica: a garantia de um processo equitativo. Recorde-se que a vantagem maior que o prosseguimento da ação proporcionava ao requerente era a possibilidade de se fazer valer da data provável do início da incapacidade fixada na sentença que decretava a interdição como base para uma presunção de incapacidade operativa em futuras ações de anulação de negócios jurídicos celebrados pelo requerido. A esta vantagem correspondia uma simétrica desvantagem para as contrapartes nessas ações, que, por não serem partes na ação de interdição, não tinham oportunidade processual para sindicarem a existência da incapacidade ou a data provável do seu início. Ora, terá o legislador ponderado que é mais conforme às exigências de um processo equitativo que as ações de anulação, no caso da morte do requerido, sigam as regras gerais, nomeadamente em matéria de distribuição do ónus da prova e exercício do contraditório. Segundo este raciocínio, é injusto que se sacrifiquem interesses de terceiros normalmente salvaguardados pela lei para que o requerente possa gozar de uma vantagem que tem em vista a posição específica do requerido, vantagem essa possivelmente atribuída em atenção ao imperativo constitucional de proteção das pessoas portadoras de deficiência (artigo 71.º da Constituição). Por outro lado, a aplicação aos processos pendentes da lei  da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.»

Conclui o Tribunal Constitucional:

«Confrontando-se as razões do sacrifício da confiança dos destinatários – de duvidosa existência e, em todo o caso, de intensidade mínima – com as razões que informam a opção do legislador de mandar aplicar aos processos pendentes, mormente aqueles em que ainda não tenha sido realizado o exame pericial, a solução da extinção da instância em caso de morte do requerido, não se encontra o menor vestígio de desequilíbrio na lei. Os efeitos desta, pelo menos no que respeita à dimensão normativa que constitui o objeto do presente recurso, são essencialmente prospetivos, e as razões que a animam são legítimas e ponderosas. Assim, é de concluir que a norma sindicada não viola o princípio da proteção da confiança.»

Sendo a fundamentação deste aresto do Tribunal Constitucional inteiramente válida para o caso dos presentes autos, uma vez que, como se referiu, são similares as situações fácticas em apreciação, conclui-se que a aplicação aos processos pendentes do disposto no art. 904.º, n.º 1, do CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto, que prevê a extinção da instância no caso de morte do requerido, por via da determinação do art 26.º, n.º 1 deste último diploma, não desrespeita os invocados princípios constitucionais da protecção de confiança e da tutela judicial efectiva.


V – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a decisão do acórdão recorrido que determinou a extinção da instância ao abrigo do disposto no artigo 904.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto.

Custas pela Recorrente

Lisboa, 14 de Janeiro de 2021

Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.


Maria da Graça Trigo (Relatora)