Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A398ver acórdão T REL
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
COISA DEFEITUOSA
CUMPRIMENTO IMPERFEITO
Nº do Documento: SJ200403250003986
Data do Acordão: 03/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3703/03
Data: 07/07/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I- O instituto da "excepção do não cumprimento do contrato" opera não só perante o incumprimento total do contrato, mas também perante o incumprimento parcial ou o seu cumprimento defeituoso.
2- Se as fracções prometidas vender enfermam de defeitos de construção, os promitentes compradores podem recusar a outorga da escritura de compra e venda do contrato prometido enquanto a promitente vendedora não proceder à reparação ou eliminação dos defeitos.
3- Não sendo os defeitos insignificantes e não providenciando a promitente vendedora pela sua eliminação, é conforme à boa fé, adequada e justificada a recusa dos promitentes compradores de celebrar a escritura, até que os defeitos sejam reparados, por se destinar a garantir o seu direito de aquisição das fracções, isentas de defeitos.
4- O contraente só não pode invocar a excepção do não cumprimento do contrato se ele próprio se encontrar em mora accipiendi.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 20-5-99, "A, Lda.", instaurou a presente acção ordinária contra os réus B e mulher C, pedindo:
- que seja decretada a resolução do contrato promessa de compra e venda de duas fracções, por incumprimento definitivo dos réus, bem como a perda, a seu favor, de todas as quantias por ele entregues;
- se condenem os réus a reconhecer o seu direito de propriedade sobre as ditas fracções e a entregá-las, livres e desocupadas, bem como a pagar-lhe solidariamente a quantia de 180.000$00 por cada mês de ocupação ilícita, desde 20-2-96 e até efectiva entrega.
Para tanto, alega resumidamente o seguinte:
Celebrou com o réu marido um contrato promessa de compra e venda relativo a duas fracções autónomas de um prédio, sito na cidade do Porto.
Os réus recusaram-se a comparecer no dia, hora e local designados para a respectiva escritura, o que, de acordo com o estipulado na cláusula 5ª do aludido contrato promessa, determina o seu incumprimento definitivo e justifica a sua resolução.
Os réus ocupam ilegitimamente as fracções, causando-lhe prejuízos de que pretendem ser indemnizados.
Os réu contestaram, dizendo que não compareceram no dia 31-1-96, marcado para a realização da escritura, pelo facto das fracções objecto do contrato promessa apresentarem vários defeitos de construção, que a autora não reparou.
Por isso, acrescentam que, no dia 30 de Janeiro de 1996, lhe enviaram uma carta, dando-lhe conhecimento de que não compareceriam na outorga da escritura enquanto os defeitos não fossem reparados e onde declaravam manter o seu interesse no negócio e pretenderem celebrar a escritura logo que as obras de reparação dos defeitos estivessem concluídas ou desde que a autora garantisse o pagamento do seu custo.
Houve réplica.

O processo prosseguiu seus termos e, após a realização do julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.
Apelou a autora, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 7-7-03, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.
Continuando inconformada, autora pede revista, onde conclui:
1 - Os promitentes compradores, apesar de devidamente notificados do dia, hora e local para a outorga da escritura, não compareceram para celebrar o contrato definitivo.
2 - Essa sua atitude significou a recusa em celebrar o contrato definitivo, pois não se revelou que os promitentes compradores tivessem manifestado a sua vontade em sentido diverso.
3 - Com efeito, apesar de várias vezes notificados para a data da escritura de compra e venda, nada disseram, remetendo-se ao silêncio, agindo de forma a criar a expectativa, na recorrente, de que pretendiam celebrar a escritura na data aprazada e de que nada obstava.
4 - Só depois da data designada para a escritura é que os promitentes compradores justificaram a sua atitude.
5 - A falta de comparência à escritura não pode ser considerada justificada, à luz dos ditames da boa fé.
6 - Aos promitentes compradores não assistia o direito de excepcionar o não cumprimento do contrato, por parte da promitente vendedora, por esta não estar em mora, já que os promitentes compradores nunca interpelaram a recorrente, antes da data da celebração do contrato definitivo, para a reparação dos defeitos do imóvel.
7 - Por outro lado, ao analisar a questão da proporcionalidade e inadequação da recusa dos promitentes compradores, o Acórdão recorrido parte apenas da existência de defeitos nas fracções, sem considerar todo um conjunto de outros factores, como a essencialidade da recusa e a proporção entre aquilo que é recusado pelo promitentes compradores e a contrapartida que, com a recusa, os mesmos promitentes pretendem obter.
8 - Consideram violados os arts. 405º, 762º, nº. 2, 805º e 428º do C.C.
Os recorridos contra-alegaram em defesa do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Remete-se para os factos que foram considerados provados no Acórdão recorrido, ao abrigo dos arts. 713º, nº. 6, e 726º do C.P.C..
Destacam-se os seguintes, com interesse imediato para a decisão da revista:
1 - A autora e o réu marido outorgaram, em 16-10-95, o contrato promessa que constitui documento de fls. 19 e 20, através do qual a autora se comprometeu a vender e o réu a comprar as fracções DK e AZ do prédio identificado no mesmo contrato, sito na cidade do Porto, correspondentes ao 4º andar esquerdo, de tipologia T4, e um lugar de garagem, respectivamente, pelo preço global de 40.432.000$00.

2 - Na cláusula 4º do mencionado contrato promessa foi acordado o seguinte:
- 1 - A escritura pública de compra e venda realizar-se-á até ao dia 31 de Janeiro de 1996;
- 2 - A promitente vendedora notificará o promitente comprador do dia, hora e local onde terá lugar o acto da escritura de compra e venda, por carta registada, com aviso de recepção, expedida com, pelo menos, com cinco dias de antecedência, em relação à data estipulada;
- 3 - Desde já se acorda entre ambos os promitentes que, no acto da escritura se fará um desconto de 6.432.000$00, passando o preço das fracções para 34.000.000$00, desde que sejam cumpridas todas as cláusulas do contrato.

3 - Na cláusula 5ª do mesmo contrato, foi estipulado que a falta de comparência do promitente comprador ao acto da assinatura da escritura de compra e venda será tida, para todos os efeitos, como recusa de cumprimento do contrato, acarretando todos os efeitos previstos na lei.
4 - Na data da outorga do contrato promessa, o réu, que já havia pago 100.000$00, pagou mais 1.000.000$00 e comprometeu-se a pagar 4.000.000$00 no dia 15-11-95, sendo a parte restante do preço pago na data da outorga da escritura.
5 - Em 15-11-95, os réus solicitaram à autora a ocupação das fracções, invocando necessidades familiares surgidas.
6 - A pedido e por conveniência dos réus, em 6 de Dezembro de 1995, foi celebrado um aditamento ao contrato promessa, constante de fls. 21 e 22, através do qual a autora entregava, nessa data, a título precário, as chaves das fracções prometidas vender, passando os réus e família a poder usá-las e frui-las como achassem conveniente.
7 - O réus entregaram à autora, nessa data, a quantia de 5.700.000$00, a título de reforço de sinal.
8 - Pela ocupação das fracções, os réus obrigaram-se a pagar à autora, até à data da outorga da escritura definitiva, a quantia mensal de 135.000$00, que seria entregue a título de ocupação das fracções e não amortizável na parte do preço em dívida.
9 - Os réus receberam as chaves das fracções e passaram a ocupá-las a partir de 16-12-95, ainda hoje as ocupando.
10 - Depois de terem ocupado as fracções, os réus verificaram que algumas paredes do prédio e da habitação ficavam impregnadas de águas pluviais, devido a deficiências de execução das juntas, entre elementos de revestimento, e à falta de ventilação e drenagem das paredes exteriores.
11 - O levantamento de parte do soalho deveu-se a deficiências com origem no quarto de banho contíguo ao referido levantamento e as deficiências indicadas em 10 originaram a existência de graus elevados de humidade na habitação e a produção de bolores e fungos diversos.
12 - Era acentuada a existência de cheiros a humidade.
13 - Por causa das infiltrações de água, o estado da fracção degradava-se.
14 - Essas infiltrações tinham origem no andar superior e situam-se no armário da cozinha e na salinha de todos os dias.
15 - A garagem não tinha luzes.
16 - A porta da garagem não estava automatizada.
17 - Havia paredes desalinhadas e sem qualquer aprumo, reveladores de pouco esmero no acabamento das paredes, que, no entanto, assumem pouca relevância.
18 - Não havia impermeabilização nas casas de banho.
19 -Nos tectos e paredes da fracção habitacional, nomeadamente nos cantos das paredes viradas a sul e nas paredes da salinha de todos os dias e quarto de banho contíguo, continuam a aparecer humidades e bolores.
20 - Verifica-se descolagem e empeno do soalho contíguo à porta do quarto de banho do casal e no hall dos quartos.
21 - A fracção não impede as normais condições de habitabilidade, mas ocasiona desconforto, aliado a uma certa insalubridade.
22 - A autora sabia da existência de humidades na fracção.
23 - Em fins de Janeiro de 1996 tudo continuava quase na mesma, tendo a autora enviado dois ou três trabalhadores da construção civil.
24 - Em 16-1-96, a autora enviou ao réu, para a morada das fracções objecto do contrato promessa, a carta registada de fls. 29, comunicando-lhe que a escritura se realizaria no dia 31-1-96, pelas 18 horas, no Cartório Notarial de Matosinhos, mais lhe solicitando informação sobre o estado em que se encontrava o pedido de financiamento destinado à aquisição das fracções.
25 - Em 22-1-96, a autora enviou para o domicílio profissional do réu, sito em Lisboa, a carta registada de fls. 30 a 33, comunicando-lhe que a escritura estava marcada para o dia 31-1-96, pelas 17 horas, no 1º Cartório Notarial do Porto, mais solicitando a presença dos réus, nos seus escritórios, até 25-1-96, a fim de entregar fotocópia do B.I., cartão de contribuinte e termo de pagamento da sisa.
26 - Na mesma data, a autora enviou para a morada das fracções uma carta registada, com aviso de recepção, de igual teor ao constante de 25.
27- O réu enviou à autora a carta registada, com aviso de recepção, datada de 30-1-96, que constitui documento de fls. 57 e 58, cujo teor aqui se dá por reproduzido e onde resumidamente lhe comunicava:
- que as fracções não se encontravam em condições de habitabilidade e que apresentavam vários defeitos, nomeadamente infiltrações de humidade;
- que as obras que a autora ali vinham efectuando, desde há dois ou três dias, nada resolveram;
- que era necessária a realização de um conjunto de obras, conforme peritagem que o réu tinha mandado efectuar;
- que o empréstimo bancário já estava autorizado;
- que não ia comparecer na realização da escritura, marcada para o dia 31-1-96, em virtude da falta de reparação dos defeitos apresentados pelas fracções;
- que mantinha o interesse no negócio e que outorgaria na escritura logo que as obras de reparação dos defeitos se encontrassem concluídas e as fracções aptas para o fim para que foram construídas;
- que, sem prejuízo de todo o exposto, se propunha realizar de imediato a escritura, desde que a autora indicasse um prazo razoável para a finalização das obras e prestasse caução ou garantia bancária do respectivo valor, que estimava em 3.000.000$00
28 - No dia 31-1-96, a autora compareceu no 1º Cartório Notarial do Porto, a fim de ser outorgada a escritura, a qual não se realizou em virtude dos réus aí não terem comparecido, nem se terem feito representar.
29 - Por carta de 5-3-96, que constitui documento de fls. 37, a autora comunicou ao réu a resolução do contrato promessa, por este ter faltado à outorga da escritura marcada para o dia 31-1-96.
30 - Depois de recepcionar a carta da autora de 5-3-96, o réu dirigiu à autora a carta de fls 62, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, onde lhe comunicava:
- não aceitar a resolução do contrato, por considerar justificada a sua falta de comparência à realização da escritura, face aos defeitos que as fracções apresentavam;
- manter o seu interesse no negócio e ficar a aguardar que a autora proceda às reparações necessárias para a eliminação dos defeitos, devendo ser marcada nova data para a outorga da escritura do contrato prometido logo que as reparações se mostrem concluídas.
31 - Desde 26 de Fevereiro de 1996 que a autora não retira qualquer rendimento das fracções.

Vejamos agora o mérito do recurso.
A Relação decidiu haver incumprimento defeituoso por parte da autora, promitente vendedora, e que os réus, como promitentes compradores, podiam recusar-se a cumprir o contrato promessa, ou seja, a celebrar a escritura de compra e venda do contrato prometido, enquanto a autora não reparasse os defeitos das fracções, nos termos do art. 428º, nº. 1, do C.C..
Isto por considerar que a falta da autora não se mostra insignificante e porque a excepção do não cumprimento do contrato, invocada pelos réus, não é inadequada ou desproporcionada relativamente à falta qualitativa de cumprimento da obrigação a que estava adstrita a promitente vendedora.
E com razão.
A excepção de inadimplência consiste na recusa de executar a sua prestação por parte de um dos contraentes quando o outro a reclama, sem que, por seu turno, tenha ele próprio executado a sua contraprestação.
A exceptio non adimpleti contractus a que refere o art. 428º, nº. 1, do C.C. pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra, como acontece no caso em questão.
Trata-se de uma excepção material dilatória, porque corolário do sinalagma funcional que a legitima.
Ao autor que exige o cumprimento, opõe o réu o princípio substantivo do cumprimento simultâneo próprio dos contratos sinalagmáticos, em que a prestação de uma das partes tem a sua causa na prestação da outra.
O excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento, apenas recusa a sua prestação até à realização da contraprestação pela outra parte.
Esta encontra-se numa situação de não ter ainda realizado uma prestação quando já o devia ter feito, ou seja, encontra-se numa situação de incumprimento da sua obrigação.
A exceptio aplica-se quando não estejam fixados prazos diferentes para as prestações.
Mas é evidente que, mesmo estando o cumprimento das obrigações sujeito a prazos diferentes, a exceptio poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro (Vaz Serra, R.L.J. Ano 105-283 e Ano 108-155; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 405, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, pág. 331).
O instituto da "excepção do não cumprimento do contrato" opera não só perante o incumprimento total do contrato, mas também perante o incumprimento parcial ou o seu cumprimento defeituoso.
Para que obstem ao válido exercício da excepção de incumprimento é necessário que o cumprimento ou oferta de cumprimento simultâneo seja feita em termos completos e rigorosos.
De facto, tal meio de defesa pode ainda ser validamente exercido por qualquer um dos sujeitos, quando a contraparte apenas cumprir ou lhe oferecer o cumprimento em termos parciais ou defeituosos.
É a chamada exceptio non rite adimpleti contractus: o demandado pode também recusar a sua prestação enquanto a outra não for completada ou rectificada.
Trata-se de opinião comum, quer na doutrina, quer na jurisprudência (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª ed., pág. 410 e Parecer publicado na Col. Jur. Ano XII, 4º, pág. 21; Vaz Serra, Excepção de Contrato não Cumprido, Bol. 67-37, Meneses Cordeiro, Violação Positiva do Contrato, ROA, Ano 41-181; Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 337; João José Abrantes, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil, pág. 92; Ac. S.T.J. de 31-1-80, Bol. 293-365; Ac. S.T.J. de 9-12-98, Bol. 322-337; Ac. S.T.J. de 30-11-00, Col. Ac. S.T.J., VIII, 3º, 150; Ac. S.T.J. de 18-2-03, Col. Ac. S.T.J., XI, 1º, pág. 103).
Existe cumprimento defeituoso em todos os casos em que o defeito ou irregularidade da prestação causa danos ao credor ou pode desvalorizar a prestação, impedir ou dificultar o fim a que este objectivamente se encontra afectado, estando o credor disposto a usar outros meios de tutela do seu interesse que não sejam a recusa pura e simples da aceitação (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 128).
No mesmo sentido, escreve Baptista Machado (Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, págs. 168/169):
"Por incumprimento inexacto deve entender-se todo aquele em que a prestação efectuada não tem requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e da boa fé, considerando que a inexactidão do cumprimento pode ser quantitativa (prestação parcial a que se seguem os efeitos de não cumprimento no que respeita apenas à parte da prestação não executada: a mora ou incumprimento definitivo) e qualitativa (traduzida numa diversidade da prestação, como numa deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma ou na existência de direitos de terceiros sobre o seu objecto)".
Com efeito, a inexecução das obrigações pode resultar, não só do devedor nada fazer para realizar a sua prestação, como também de ela ser realizada de forma quantitativa ou qualitativamente deficitária, isto é, de o ser apenas parcialmente ou de ser mal executada (José João Abrantes, Obra citada, pág. 93).
Assim, se o contraente que tiver de cumprir primeiro oferecer uma prestação parcial ou defeituosa, a contraparte pode opor-se e recusar a sua prestação até que aquela seja oferecida por inteiro ou até que sejam eliminados os defeitos ou substituída a prestação.
Todavia, impõe-se tomar em consideração o princípio da boa fé - art. 762º, nº. 2, do C.C.
Com efeito, a recusa pode mostrar-se contrária à boa fé, como acontece nas hipóteses em que o que falta prestar é uma pequena parte, que na ocasião não possa ser prestada.
Seria verdadeiramente contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua prestação só porque o outro não cumpriu uma parte insignificante, que não podia de momento cumprir.
Almeida Costa (R.L.J. Ano 119-144), também salienta que, "do princípio da boa fé, resulta o imperativo de uma apreciação, em face das circunstâncias concretas, da gravidade do cumprimento incompleto ou defeituoso, que não deve mostrar-se insignificante.
Seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem relevo suficiente".
E acrescenta, logo a seguir:
"Na mesma linha surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício de uma excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quando se torne necessário para garantir o seu direito".
Pois bem.
À luz dos factos provados, não pode sofrer dúvida que houve um cumprimento defeituoso da promitente vendedora, sendo certo que esta sabia da existência de humidades nas fracções prometidas vender.
Apesar disso, a autora marcou a escritura para 31-1-96, sem proceder à prévia reparação dos defeitos existentes, pois o estado das fracções continuava quase na mesma em finais de Janeiro de 1996, não obstante ter lá mandado dois ou três trabalhadores da construção civil.
Em 30-1-96, na véspera da data marcada para a escritura, os réus enviaram à autora a carta de fls. 57 e 58, justificando a sua não comparência, reclamando a reparação dos defeitos, evidenciando o seu interesse na realização do negócio e mostrando-se dispostos a outorgar a escritura de compra e venda logo que as obras de reparação estivessem concluídas.
Nessa mesma carta, os réus também se propunham celebrar, de imediato, a escritura de compra e venda, desde que a autora indicasse um prazo razoável para a eliminação dos defeitos e prestasse caução, no valor de 3.000.000$00, correspondente ao custo em que, então, estimaram as obras.
Neste circunstancialismo, era lícito aos réus recusar a celebração da escritura de compra e venda, enquanto a autora não reparasse os defeitos, com fundamento na exceptio non rite adimpleti contractus (art. 428º, nº. 1, do C.C.).
É que a falta da promitente vendedora não se mostra insignificante, face à natureza e volume dos defeitos apurados, nem a recusa dos réus, quanto à imediata celebração da escritura naquela data de 31-1-96, é inadequada ou desproporcionada ao cumprimento defeituoso da autora.
Com efeito, apesar de solicitada pela carta de 30-1-96, a autora ainda não procedeu à reparação dos defeitos, nem se dispôs a prestar a caução exigida pelos réus, como garantia da sua eliminação e condição para a outorga imediata da escritura de compra e venda.
A boa fé exigiria que autora reparasse os defeitos e procedesse à marcação de nova data para a outorga da escritura.
Mas ela nada disto fez.
Limitou-se a comunicar aos réus, pela carta de fls. 37, a resolução do ajuizado contrato promessa de compra e venda, com fundamento na falta de comparência daqueles.
Ora, tudo isto permite concluir pela improcedência da resolução do contrato e que a recusa dos réus em celebrar a escritura no dia 31-1-96 se mostra justificada para garantir o seu direito de aquisição das fracções, isentas de defeitos.
Diga-se, por último, que a "excepção do contrato não cumprido não pressupõe a culpa do devedor da contraprestação no seu atraso. A inexecução por parte deste pode ser-lhe imputável ou não, isto é, tanto pode ele constituir-se em mora (art. 804º, nº. 2) como não. Ainda que o cumprimento lhe não seja imputável, antes obedeça a circunstâncias fortuitas, independentes da vontade, a exceptio é invocável pelo outro contraente" (José João Abrantes, Obra citada, pág. 88).
O contraente apenas não pode alegar a excepção se se encontrar ele próprio em mora accipiendi, o que acontece, nos termos do art. 813º do C.C., quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.
Não é o caso, pois não se provou que os réus tivessem recusado a reparação ou a eliminação dos defeitos.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso.

Termos em que negam a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 25 de Março de 2004
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce de Leão