Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
116/16.1T8OLH.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR
ABUSO DO DIREITO
SOCIEDADE ANÓNIMA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS CONCLUSIVOS
PODERES DA RELAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROVA TESTEMUNHAL
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
OBJETO DO RECURSO
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Resulta do disposto nos arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC, bem como do preceituado no art. 46.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26-08, alterada pela Lei n.º 40-A/2016, de 22-12), que o STJ, constituindo um tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito e não de matéria de facto, encontrando-se absolutamente excluída da sua competência a análise e decisão quanto ao acerto ou desacerto na prolação da decisão de facto, bem como a inerente discussão sobre a concreta valoração das provas em que a mesma assentou.
II - Em concreto, o STJ só conhece da modificação do quadro factual definido em 2.ª instância quando dispuser de elementos que lhe permitam, com toda a segurança, concluir pela verificação de ofensa às regras do direito probatório material na definição da decisão de facto; quando entenda necessária a sua ampliação face à insuficiência (nela evidenciada) para fundamentar a decisão jurídica do pleito; quando verifique a ocorrência de contradições na decisão sobre a matéria de facto que, pela sua ilogicidade, tornem inviável a decisão de fundo no plano jurídico.
III - O tribunal da Relação tem a liberdade e o poder para modificar a redacção de pontos de facto fixados na sentença recorrida quando se aperceba que os mesmos encerram indevidamente juízos valorativos e/ou conclusivos e não pura factualidade, tal como é suposto conterem, devendo exigir-se maior rigor e zelo nessa actividade fiscalizadora se a conclusão ou o juízo valorativo enxertado nos factos dados como provados se reconduzir directamente à questão essencial em discussão nos autos, com imediatos reflexos na apreciação jurídica do pleito.
IV - A avaliação da credibilidade do depoimento de determinada testemunha é matéria da exclusiva competência das instâncias inferiores, não podendo o STJ interferir nesse particular.
V - A circunstância da presente acção, instaurada nos termos do art. 77.º, n.º 1, do CSC, sob a epígrafe Acção de responsabilidade proposta por sócios, revestir a natureza de acção social não prejudica a possibilidade de o accionista que a impulsionou ter agido em abuso de direito, integrando-se o seu comportamento na previsão genérica e abrangente do art. 334.º do CC, bastando para o efeito que as razões que presidiram ao exercício desse direito e os fins concretamente prosseguidos exorbitem manifestamente o fundamento axiológico em que o ordenamento jurídico substantivamente assentou quando entendeu conferir-lhe tal possibilidade de actuação judicial.
VI - Foi o que sucedeu na situação sub judice, na qual o autor accionista conformou-se durante mais de uma década, contínua e ininterruptamente, com os actos praticados pelo réu administrador no aproveitamento da actividade económica da sociedade (recebimento de rendas e rendimentos decorrentes da extracção de cortiça) que o beneficiavam exclusivamente, não interferindo nem se insurgindo quanto a este resultado, dispondo-se apenas a vir a usufruir no futuro das mais valias decorrentes da concretização do empreendimento turístico que seria rentabilizado no imóvel (único activo da sociedade), e que, após a verificação de graves dificuldades económicas da sociedade que inviabilizaram o dito projectado empreendimento turístico, vem agora revoltar-se contra tal aproveitamento económico e contradizer todo o propósito, firme e consolidado, que sempre manifestou, contrariando as legítimas expectactivas do réu, numa conduta oportunística e absolutamente desconforme com a sua postura anterior.
Decisão Texto Integral:


Revista nº 116/16.1T8OLH.E1.S1.

 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
Instaurou AA a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB.
Alegou essencialmente:
É accionista da Serrasul, S.A., sendo o R. BB titular de acções ao portador representativas de 80% do capital social desta mesma sociedade, nela exercendo desde a data da constituição as funções de ....
 Em violação dos seus deveres de ... o réu vem praticando, em seu exclusivo benefício, actos lesivos do interesse da sociedade, apropriando-se das rendas e produto da venda da cortiça extraída do prédio rústico denominado Serrasul, S.A., que é o único activo da sociedade, imóvel que intentou já vender, tendo igualmente feito seu o sinal recebido do promitente-comprador.
Tais factos fazem incorrer o R. em responsabilidade civil nos termos do art.º 72, nº 1, do CSC, com a consequente obrigação de indemnizar a Serrasul, S.A., dos prejuízos sofridos, sendo a presente acção instaurada ao abrigo do preceituado no art.s 77º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Conclui pedindo a condenação do réu a pagar à Serrasul, S.A., montante indemnizatório a fixar em valor não inferior a € 1.000.000,00 (um milhão de euros).
Regularmente citado, o R. apresentou contestação.
Essencialmente alegou:
O prédio denominado “Serrasul, S.A.” foi destacado de um outro, apelidado de Monte..., que adquiriu por herança, à semelhança do que antes ocorrera com o prédio denominado “M.....”, este adquirido pela Sociedade Imobiliária Medronheira, S.A., de que o autor é também accionista.
Ambos os prédios resultantes das referidas desanexações destinavam-se a ser afectados a um projecto turístico de grande envergadura, tendo sido acordado entre todos os accionistas que a exploração agrícola seria desenvolvida pelo contestante por intermédio da Sociedade Agrícola dos Cadoços, Unipessoal, Lda., revertendo os resultados obtidos em seu proveito conforme vinha ocorrendo desde 1989, e até que fossem vendidos, altura em que o valor da venda seria repartido pelos accionistas como contrapartida dos investimentos realizados.
Tal acordo de cavalheiros justifica o silêncio do autor e demais accionistas durante mais de 10 anos, motivando a presente acção o conhecimento de que a Serrasul, S.A., - a qual nunca se dedicou à exploração agrícola - enfrenta dificuldades financeiras, actuando o demandante em claro abuso de direito e com a única intenção de obter para si ou para terceiro o controle da sociedade e, consequentemente, do seu valioso activo, o que ihe é vedado pelo disposto no nº 5 do artº 77º do Código das Sociedades Comerciais.
 Concluiu pela improcedência da acção, tendo ainda requerido que por aquele fosse prestada caução, conforme prevê o citado nº 5 do artº 77º do Código das Sociedades Comerciais.
Foi requerida e admitida a intervenção principal provocada da Serrasul, S.A., na sequência do que CC - que fora citada em representação da chamada - veio aos autos declarar que fazia seus os articulados do autor.
Foi proferida sentença que condenou o R. BB a pagar à S..., S.A. a quantia que se viesse a liquidar em execução de sentença referente à extracção de cortiça e rendas auferidas no âmbito de contrato(s) de arrendamento rural, do imóvel denominado Serrasul, S.A., desde a constituição da sociedade até à propositura da presente acção, até ao limite máximo do pedido de €1.000.000,00 (um milhão de euros).
O Réu interpôs recurso de apelação, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação ..., datado de  de 28 de Março de 2019, que julgou procedente a apelação e absolveu o Réu de todos os pedidos contra si formulados.
Interpôs agora o A. recurso de revista contra o referido acórdão, apresentando as seguintes conclusões:
1.ª - A Serrasul - Sociedade Imobiliária, S.A., figura, na acção principal, como sujeito processual, por intervenção provocada, determinada pela 1.ª Instância, da qual é Autor, em nome e interesse da mencionada Sociedade, enquanto seu acionista, o ora Recorrente, que demanda ao abrigo do preceituado no C.S.C. (art. 77.º);
2.ª - A acção principal foi precedida de arresto judicial decretado (sentença de 27 de Julho de 2015), ao qual o Apelante Réu e ora Recorrido então deduziu oposição, que conheceu total improcedência (sentença de 21 de Dezembro de 2015);
3.ª - A contestação à acção principal é cópia fiel do teor e documentação da anterior oposição improcedente;
4.ª - O facto provado 31 pela 1.ª Instância está em directa conexão com os precedentes factos provados 29 e 30, que, por sua vez, estão conectados, respectivamente, com os antecedentes factos provados 9, 10, 11, 16, 17 e 28, constituindo o harmonioso percurso factual do facto provado 31;
5.ª - O facto provado 31 pela 1.ª Instância, face a tal conexão, não envolve considerações ou juízos de valor, mormente na parte em que consagra que o Apelante Réu (e ora Recorrido) “desviou as receitas da exploração da imóvel propriedade da Sociedade Serrasul, S.A., em seu proveito próprio, em detrimento da Sociedade Serrasul, S.A.”;
6.ª - A Veneranda Relação reconhece que não existiu convénio, acordo de cavalheiros, acordo parassocial, nem declaração expressa ou tácita, que tenham permitido ao Apelante Réu (e ora Recorrido) receber, através da sua Sociedade Monte dos Cadoços Unipessoal, o dinheiro das extracções da cortiça e das rendas do arrendamento rural, relativas ao Imóvel Serrasul, S.A.;
7.ª - Os reconhecidos inexistentes convénio, acordo de cavalheiros, acordo parassocial e as reconhecidas inexistentes declaração expressa ou tácita, por um lado, e o depoimento testemunhal de DD, por outro lado, não consentem que as alíneas f), i), l) e m), que consignam os factos não provados pela 1.ª Instância, passem a factos provados, como, infundadamente, decidiu a Veneranda Relação;
8.ª - Igualmente, não consentem os acrescidos factos provados pela Veneranda Relação, sob os n.ºs 43 a), 43 b), 54 a), 54 b), 59 a), 73 a) e 73 b), bem como a eliminação dos factos não provados pela 1.ª Instância, sob as alíneas t), u) e v);
9.ª - Todos os factos provados pela 1.ª Instância estão, também, provados pela Veneranda Relação, que os confirmou, o que importa contradição entre a factualidade provada e confirmada pela Veneranda Relação, e a convertida em provada, eliminada, e acrescida, pela Veneranda Relação.
10.ª - O que subsume o Acórdão prolatado, pela Veneranda Relação, ao n.º 3 do art.682.º e n.º 1 do art. 683.º, ambos do NCPC;
11.ª - As presunções só consentem, nos termos dos arts. 349.º e 351.º do Código Civil, aferir um facto desconhecido, a partir de factos conhecidos e existentes;
12.ª - Ao invés do que estas normas prescrevem, a Veneranda Relação partiu de factos inexistentes, para, ilegalmente aduzir, como facto existente, o consentimento, pelo ora Recorrente e demais accionistas, ao Apelante Réu (o ora Recorrido), para a exploração do imóvel Serrasul, S.A.;
13.ª - A Veneranda Relação, ao lançar mão das presunções judiciais, com base nos inexistentes factos e nas inexistentes declarações, procedeu a uso processual ilegal, violando aqueles arts. 349.º e 351.º do Código Civil;
14.ª - A Veneranda Relação interpretou, indevidamente, os docs. 7 e 8 da p.i., - os únicos que apreciou, de entre os 22 docs. da p.i. - vislumbrando, nos mesmos, um sentido que eles não consentem, o que viola o preceituado no art. 236.º do Código Civil;
15.ª - A Veneranda Relação vislumbrou também, indevidamente, na falta de interpelação, durante 10 anos, por parte do ora Recorrente, ao Apelante Réu (e ora Recorrido), um sentido que a mesma não permite, desconsiderando que aquele viveu, nesse período, sobretudo no estrangeiro, conforme está e foi invocado nos autos (art. 23.º da p.i.);
16.ª - Na resposta à interpelação do ora Recorrente, em 27 de Agosto de 2012 (docs.15 e 16, da p.i.), a Veneranda Relação não atendeu a que o Apelado Réu, pretextando existir um acordo, não procedeu, todavia, à junção desse acordo, nem identificou subscritora alguma do mesmo e, muito menos, que essa fosse a sua Soc. Agrícola Monte dos Cadoços, Unipessoal;
17.ª - A Veneranda Relação conferiu, indevida credibilidade ao depoimento da testemunha DD, filho do já falecido Apelante Réu (e ora Recorrido) e admitiu esse depoimento contra a prova plena, violando, assim, o preceituado no art. 393.º do Código Civil;
18.ª - Ao invés, a 1.ª Instância (sentença de 12-07-2018), caracterizou tal depoimento de não credível, por ser mera versão da contestação do Apelante Réu (e ora Recorrido) e totalmente conforme a esta;
19.ª - O depoimento da testemunha DD não se revestiu, pois, de quaisquer autonomia e conteúdo próprios;
20.ª - A livre apreciação da prova pelo Julgador, consagrada no art. 396.º do C. Civil, não se confunde com apreciação arbitrária, devendo, pelo contrário, ser consistente, razoável e lógica, conforme a mais que abundante Jurisprudência existente;
21.ª - A escritura pública da constituição da Soc. Serrasul (doc. 22, da p.i.) constitui prova plena que se sobrepõe ao que, de contrário, disse a testemunha DD (art. 347.º do Código Civil);
22.ª - Na transcrição da gravação desse depoimento, o Apelante Réu (e ora Recorrido) não apontou, em concreto, qualquer passagem do mesmo, o que contraria a lei (n.º 3 art. 640.º do NCPC) e é exigido pela Jurisprudência;
23.ª - As alíneas g), j) e k) dos factos (não provados) confirmados, como tal, pela Veneranda Relação, contrariam e chocam-se, respectivamente, com as alíneas f), n) e i) dos factos (não provados), eliminados pela Veneranda Relação, contaminando os factos (provados) acrescidos pela Veneranda Relação, pois “estão em linha” com os eliminados;
24.ª - Ao S.T.J. não está vedado aferir a factualidade decidida pela Veneranda Relação, quando esta coenvolve matéria de direito (arts. 662.º, n.º 4, 674.º, n.º 3 e 682.º do NCPC) e são Doutrina (entre outros, Meneses Cordeiro, Anselmo de Castro e Teixeira de Sousa) e Jurisprudência de há muito, bem como quando a 2.ª Instância excede os limites legais do art. 662.º do NCPC – o caso dos autos-;
25.ª - A Veneranda Relação violou, em termos da lei substantiva, os arts. 236.º, 349.º, 351.º, 393.º e 396.º do Código Civil;
26.ª - O Acórdão da Veneranda Relação contém a nulidade constante do n.º 3 do art. 682.º, com os efeitos processuais previstos no art. 683.º, ambos do NCPC, todavia, eventualmente não desencadeáveis, caso o Supremo Tribunal confirme a sentença da 1.ª Instância - como se espera e aguarda, confiadamente -
TERMOS EM QUE:
1.º Deve ser revogado, «in totum», o Acórdão prolatado pela Veneranda Relação ...;
2.º Em conformidade, manter-se, em toda a sua plenitude e conteúdo, a mui douta sentença de 12 de Julho de 2018, proferida pela 1.ª Instância;
3.º Em alternativa, se assim se entender, ser dado cumprimento ao preceituado no n.º 1 do art. 683.º do NCPC;
4.º Ser mantido, na sua literalidade integral, o facto assente 31, provado pela 1.ª Instância;
5.º Serem mantidos como não provados, os factos sob as alíneas f), g), i), j), k) e l), que a 1.ª Instância deu por não provados e que a Veneranda Relação, infundadamente eliminou;
6.ª Não serem acrescidos aos factos provados pela 1.ª Instância,      os      factos,            infundadamente,      considerados provados, pela Veneranda Relação, sob as alíneas 43 a), 43 b), 54 a), 54 b), 59 a), 73 a) e 73 b), todos eles destituídos de base factual e testemunhal.
Contra-alegou o Réu apresentando as seguintes conclusões:
Decisão de facto
1.         O Acórdão, na sua substância, não merece qualquer censura ou reparo.
2.   A matéria de facto em processo civil conhece, regra geral, um duplo grau de jurisdição, primeira instância e relação. O recurso de revista para o STJ, instrumento processual a que o Recorrente lançou mão no caso em análise, não é apto a sindicar eventuais erros na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa, conforme resulta dos art. 674 (3) e 682 do CPC.
3.         Nas suas alegações, incluindo nas respectivas conclusões, o Recorrente limita-se, precisamente, a fazer aquilo que não pode, recorrer tout court da matéria de facto em sede de revista, em violação expressa do quadro normativo aplicável.
4.         As conclusões da motivação definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, contêm necessariamente as questões que o Recorrente quer ver discutidas no tribunal superior.
5.         Todas as questões constantes das conclusões formuladas pelo Recorrente não são mais do que os fundamentos de um pedido de alteração da decisão da matéria de facto, sendo o recurso do Recorrente, ipso facto, totalmente improcedente à luz das normas do CPC supra referidas.
6.         Em sede de recurso de apelação o Tribunal da Relação tem poderes semelhantes ao da primeira instância para decidir sobre a matéria de facto, apreciando, para o efeito, a prova testemunhal produzida, a prova documental, a prova pericial e lançando mão, se necessário, de presunções judiciais.
7.         Salvo casos excepcionais, que não se verificam in casu, o STJ não pode interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como são os depoimentos testemunhais e documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais.
8.   No caso em análise, não há qualquer inobservância das regras de direito probatório material, ou quaisquer contradições sobre a prova, pelo que o Acórdão não pode quanto à decisão de facto ser alterado, sendo que o Acórdão é inteiramente conforme às regras probatórias vigentes no ordenamento jurídico nacional.
Decisão de direito
9.   Como bem se considerou no Acórdão, o Recorrente litiga em manifesto abuso de direito, proibido pelo art. 334 do CC, na forma de venire contra factum proprium.
10. Inequivocamente, havia acordo, ou consentimento, entre o Recorrido e os demais accionistas da Serrasul, S.A., para que o Recorrido realizasse a exploração agrícola do Imóvel até à respectiva venda. Assim era porque os Accionistas Minoritários, incluindo o Recorrente, participaram da sociedade única e exclusivamente com vista à realização de um projecto turístico.
11.      Não se concebe que, desde a data da constituição da sociedade S..., S.A., só agora venha o Recorrente colocar em causa a exploração do Imóvel, e solicitar uma indemnização pelos montantes associados com a mesma, porquanto tal prática já era bem conhecida do Recorrido e por si aceite desde a data da sua constituição, 23 de Outubro de 2001.
12.      O Recorrido adoptou, ao longo dos anos, uma conduta conciliável com o comportamento activo e omissivo do Recorrente (e do outro accionista minoritário), comportamento que originou um conjunto de expectativas legítimas. A posição jurídica agora assumida pelo Recorrente é contrária àquela assumida anteriormente, i.e. de permissão e concordância, colocando em causa o equilíbrio jurídico-material nas relações entre Recorrido e Accionistas Minoritários.
13. O que o Recorrente pretende é, por caminhos ínvios, obter uma compensação às custas do Recorrido pelo insucesso do projecto imobiliário turístico idealizado pelos accionistas da Serrasul, S.A.. Ora, tal não é certamente atribuível ao Recorrido sendo que, como accionista maioritário, foi quem mais perdeu com tal insucesso - no mínimo, se atendermos apenas à participação no capital da Serrasul, S.A., o Recorrido perdeu oito vezes mais que o Recorrente
14. Não obstante a acção ter sido proposta em nome da sociedade Serrasul, a má-fé inerente à actuação abusiva do Recorrente deve comunicar-se à sociedade Serrasul, através da imputação subjectiva de conhecimentos, qualidades ou comportamentos juridicamente relevantes.
15. As únicas pessoas que beneficiariam da procedência da presente acção seriam o Recorrente e o outro accionista minoritário que, conjuntamente com o Recorrido, detêm a integralidade do capital social da Serrasul, uma vez que a sociedade não tem quaisquer dívidas a terceiros.
16.      Conforme se conclui no Acórdão o autor actua em flagrante abuso porquanto, a pretexto de exercer um direito da sociedade, o único interesse que aqui pretende acautelar é, na verdade, o seu (e eventualmente da outra accionista minoritária) o que justifica a desconsideração da chamada e à custa do aqui réu, reclamando uma indemnização depois de, mediante convincente conduta, ter criado nesta a convicção justificada de que os rendimentos provenientes da exploração agrícola lhe pertenciam.
17.      Tendo o Tribunal considerado o recurso do aqui Recorrido procedente com fundamento em abuso de direito, e consequentemente, revogado a Sentença, ficou prejudicado o conhecimento do dos demais fundamentos jurídicos então subsidiariamente aduzidos pelo aqui Recorrido, a saber: a falta de prova do dano e a consequente impossibilidade de liquidação em execução de sentença e a compensação de montantes.
18.      Por razões de economia processual, o Recorrido dá aqui por reproduzidas a argumentação e conclusões expendidas a este respeito nas suas alegações de recurso de apelação.

II – FACTOS PROVADOS.
1. Foi outorgada em 23 de Outubro de 2001, no Cartório Notarial ..., escritura pública de Contrato de Sociedade Anónima entre BB; AA; EE de FF, GG e DD, com a firma Serrasul - Sociedade Imobiliária, S.A., nos termos constantes de fls. 371 a 374, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, tendo o ora réu entrado com o valor de cento e cinquenta e um mil e setecentos euros, realizado em espécie com a transferência para a sociedade do prédio rústico denominado "Serrasul", e os segundo e terceira outorgantes com dezanove mil euros em dinheiro; os quarto e quinto outorgantes com cento e cinquenta euros em dinheiro.
2. A Serrasul - Sociedade Imobiliária, S.A., tem sede na Praça da República, 15, 1.2, Carvoeiro, Lagoa, Faro, com o NIPC 504599644, consta matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número, registada pela insc. 1 Ap. 04/20011213, referente ao contrato de sociedade.
3. A sociedade Serrasul obríga-se pela assinatura de dois administradores, sendo sempre necessária a assinatura do ... ou pela assinatura do ... e de um ou mais mandatários.
4. Na data da constituição da sociedade foram nomeados membros do ...: BB, com o cargo de presidente; HH, com o cargo de vogal; II, com o cargo de vogal.
5. Consta registada pela inscrição 2., ap. 1 de ...13, a designação de FF como vogal, em substituição de HH, mantendo-se os demais membros do ....
6. BB é titular de acções ao portador representativas de 80% do capital social da Soc. Serrasul, S.A., da qual foi ... desde a data da constituição da mesma até ter sido judicialmente suspenso por decisão datada de 05/05/2015, proferida nos autos de processo n.º 457/15...., ..., Juiz ..., Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca ....
7. O ora A. é titular de acções ao portador representativas de 10% do capital social da Sociedade Serrasul, S.A. e o mesmo ocorre com FF, igualmente titular de acções ao portador representativas de 10% do capital social da referida Sociedade, sendo Administradora da referida Sociedade Serrasul, S.A.
8. A Soc. Serrasul, S.A. tem por objecto social a "Compro e venda de prédios urbanos, rústicos, mistos ou lotes de terreno, administração, arrendamento ou exploração de bens próprios ou alheios, construção, urbanização e promoção de imóveis, aquisição, negociação e venda de participações em sociedade com o mesmo objecto social, bem como negócios directamente ligados ao objecto principal".
9. A A Sociedade Serrasul, S.A. tem como único activo o prédio rústico "Serrasul", sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o número ...78 daquela freguesia e inscrito na matriz sob o art...36, secção ..., com a área total de 275,915 hectares, sendo 167 hectares de montado de sobro.
10. Foi outorgado contrato de arrendamento rural entre a Sociedade Agrícola dos Cadoços, Unipessoal, Lda., representada pelo ora réu, na qualidade de senhoria, e JJ na qualidade de arrendatário, datado de 25 de Setembro de 2012, do qual consta:
"A primeira contratante é legítima administradora dos seguintes prédios:
1. Prédio rústico denominado "M.…" com a área de 222,0500 localizado na freguesia e concelho de ..., inscrito na respectiva matriz cadastrai sob o nº... da mencionada freguesia;
2. Prédio rústico denominado "S.…" com a área de 275,9157 hectares, localizado na freguesia e concelho de ..., inscrito na respectiva matriz cadastral sob nº...36 da secção ... e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o nº...78 da mencionada freguesia;
3. Prédio misto denominado "..., com área de 15,2 hectares, localizado na freguesia e concelho de ..., inscrito na respectiva matriz predial quanto à parte rústica sob o art... da secção ... e quanto à parte urbana sob os artigos ...79 e …47 e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o nº...19 da mencionada freguesia.
UM - Pelo presente contrato a primeira contratante dá de arrendamento ao segundo contratante, e este aceita, nas condições de uma regular utilização, os prédios melhor identificados sob os n.gs 1 e 2 da cláusula primeira supra, e uma parcela de terreno com a área de 10,0000 hectares do prédio identificado sob o n.° 3 da mesma cláusula, destinados a culturas cerealíferas de sequeiro e regadio, pastagens melhoradas e pastoreio directo e estabulado em toda a área arrendada;
DOIS - O presente arrendamento abrange todas as dependências agrícolas nos mesmos existentes;
TRÊS - Fica expressamente excluído do presente contrato todo o rendimento da parte florestal;
Cláusula Terceira
O presente contrato tem a duração de 10 (dez) anos, com início em 01-10-2012 e termo em 30 de Setembro de 2022, renovável automática e sucessivamente por iguais períodos de tempo, se não for denunciado por qualquer das partes nos termos legais;
Cláusula quarta
UM - A renda global anual fixada é de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) (...); (documento 5 junto com a petição inicial)".
11. KK, na qualidade de comprador, e Sociedade Agrícola dos Cadoços, Unipessoal, Lda., na qualidade de vendedor, celebraram contrato de compra e venda de cortiça, datado de 25 de Junho de 2012, do qual consta:
"1. O Vendedor, na qualidade de legítimo proprietário da sua cortiça extracção em 2013 e extracção em 2015 da propriedade dos C.… e M.…, freguesia de ..., Concelho de ....
Vende aos compradores nas seguintes condições, aceites por ambas as partes:
a)Cortiça Amadia ao preço de catorze euros por arroba (15 kg);
b)Cortiça virgem e bocados e refugo ao preço de quatro euros por arroba (15 g)
c) A estes valores será acrescido IVA à taxa legalmente em vigor,
2. Compra da cortiça na árvore, a extracção e empilhaçõo serão por conta dos compradores.
3. A pesagem da cortiça será feita em báscula com o desconto de 20% sobre o total do peso.
4. O pagamento da cortiça será efectuada da seguinte forma:
Dois cheques de 13.500,00 € (treze mil e quinhentos euros) como adiantamento (cópias dos cheques em anexo) com data de 25 de Junho de 2012.
Após extracção do ano de 2013 será feito o acerto do valor da mesma, assim como um adiantamento para a extracção de 2015 e o acordo de pagamento do restante valor. (...) doe. 6 junto com a petição;
12. Foi emitida em 30-08-2002 factura pela Sociedade Agrícola dos Cadoços, Lda., relativamente a Union Ibérica Del Cocho, S.A., S.A. referente a cortiça do ano de 2002, no valor de €120.000,00 (doe. 7 da petição).
13. Foi emitida em 06-07-2004 factura pela Sociedade Agrícola dos Cadoços, Lda., relativamente a Union Ibérica Dei Cocho, S.A. referente a cortiça Amadia 2965 Arrobas (15 kg) -valor unitário de €29,928, no valor de €88.736,52. (doe. 8 da petição)
14. Foi proposta pela Sociedade Serrasul - Sociedade Imobiliária, S.A. e Brejo Novo, Sociedade Imobiliária, S.A., acção declarativa de condenação contra JJ peticionando que seja decretado o despejo e condenado o réu a entregar às autoras os prédios arrendados livres e desocupados de pessoas e bens e a pagar as rendas vencidas e as que se vencerem até à restituição.
15. Constituíram fundamentos da acção referida no ponto anterior a ocupação excessiva com animais bovinos com prejuízo para o montado de sobro, bem como no subarrendamento não autorizado, assim como utilização do prédio "P..." para fim diverso do estipulado no contrato;
16. Na referida acção foi alegado no artigo... da petição iniciai que: "(...) a S..., S.A. é uma propriedade afecta essencialmente à produção de cortiça (...)"
17. A Sociedade Agrícola dos Cadoços, Unipessoal, Lda. tem sede na Praça da República, 15, 1.9, Lagoa Carvoeiro, Lagoa, Faroe por objecto a exploração agrícola, pecuária, florestal, silvícola e hortícola de prédios rústicos próprios ou alheios, com o capital social de €5.000,00, sendo ... e sócio único BB (doe. 10).
18. A Sociedade Agrícola dos Cadoços consta inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Grândola, pela insc. 1 - Ap. 06/19890901, a constituição da sociedade e designação de membros de órgãos sociais (doe. 10 junto com a petição).
19.A Sociedade Medronheira, Sociedade Imobiliária, S.A., com sede na Praça da República, 15, l.9, Lagoa Carvoeiro, Lagoa, Faro, tinha por objecto "compra e venda de prédios urbanos, rústicos, mistos e lotes de terreno, ... arrendamento ou exploração de bens próprios ou alheios, construção, urbanização e promoção de imóveis, aquisição, negociação e venda de participações em sociedades com o mesmo objecto social, bem como negócios directamente ligados ao objecto principal, podendo, ainda, dedicar-se a outras actividades comerciais ou industriais complementares ou afins destas."
20.Tinha como membros do ...: BB, com o cargo de presidente, HH, com o cargo de vogal, e LL, com o cargo de vogal.
21. sociedade Medronheira - Sociedade Imobiliária, S.A. foi declarada insolvente por sentença datada de 16 de Setembro de 2013, proferida no âmbito dos autos de processo n.s 2560/13…, que correu termos no l.s Juízo Cível do Tribunal ... e de Comarca ....
22. Por carta datada de 27 de Agosto de 2012, o autor dirigiu ao ...... da sociedade Medronheira - Sociedade Imobiliária, S.A. carta com o assunto: pedido de informações, onde solicitava informações relativamente à extracção de cortiça referente aos anos de 2000 a 2011, porquanto tais valores não apareciam reflectidos nas contas das sociedades, concedendo um prazo de 15 dias.
23. Na mesma data o autor dirigiu pedido de informações ao ... da S..., S.A., nos termos e com o seguinte teor:
"(...) O requerente é titular de uma participação representativa de 10% do capitai Social da Sociedade.
A Serrasul é proprietária de um imóvel, com uma área aproximada de 225 ha de montado de sobro.
Entre os anos de 2000 a 2011, a Sociedade tem vindo a proceder, ano após ano, com eventual excepção dos anos de 2001, 2003, 2005 e 2008, à extracção de cortiça do montado, tendo o ...... procedido à respectiva venda e recebido o preço correspondente.
Não obstante, as contas da Sociedade, salvo qualquer lapso do requerente, não parecem reflectira entrada do produto dessas vendas.
Na sequência do exposto, vem, na qualidade de accionista detentor de uma participação de 10 % no capitai social, ao abrigo do disposto no art... do Código das Sociedades Comerciais, solicitar que a ... lhe preste as seguintes informações, relativamente a cada ano de extracção:
1. A identificação completa (pessoa singular ou colectiva) a quem foi vendida a cortiça extraída do montado;
2. As quantidades de cortiça vendidas.
3. A que preço foi vendida a cortiça extraído do montado;
4.As datas dos pagamentos dos preços.
5. Os meios de pagamentos dos preços (cheque, dinheiro, transferência bancária e outras)
6.   As datas e as contas bancárias da sociedade em que foram creditados tais pagamentos. Para além disto, constando que na presente data estará em curso e/ou perspectiva, a negociação da cortiça a extrair do montado nos próximos anos na modalidade das chamadas “operações de futuros”.
Sendo certo que o requerente vê com preocupação que sejam negociados contratos deste género, tendo receio que isso possa pôr em causa o futuro da empresa requer, ainda, que lhe sejam prestadas as seguintes informações:
7. Se está a ser negociada em preço unitário pré-fixado a venda da cortiça a extrair nos próximos anos;
8. Quem está a acompanhar essa negociação das chamadas "operações de futuros";
9. Sendo esse o caso, qual o preço previsto para os negócios e quem seriam os compradores;
10.Quais as deliberações tomadas pelo conselho sobre este assunto:
11.Quais são as razões que levariam o Conselho a optar pela venda, desde já, da cortiça futura. De acordo com o disposto no número 5 do artigo ... do Código das Sociedades Comerciais, as informações considerar-se-ão recusadas se não forem prestadas no prazo de quinze dias." (doe. 6 junto com a petição inicial)
24. Por carta datada de 12 de Setembro de 2012 foi oferecida resposta ao autor pela Sociedade Medronheira, nos seguintes termos:
"(...) a Medronheira Sociedade Imobiliária, S.A. nunca retirou qualquer cortiça do imóvel em causa. Na verdade, Foi outorgado um contrato há muitos anos atrás, anterior à constituição de qualquer uma das sociedades, sendo que o Sr. BB cedeu a exploração da mesma a uma sociedade, sendo que como contrapartida esta sociedade tem por obrigação fazer a manutenção do prédio misto, nele se incluindo a parte urbana e a rústica, e como contrapartida a cortiça que é retirada da mesma, está incluída.
Cumpre-nos informar que este contrato já existia (ano de 1998), em data anterior ò constituição de qualquer uma das sociedades Anónimas de que V. Exa tem 10 % do capital social (doe. 17).
25. Foi proposta em 29 de Janeiro de 2013 pelo Deutsche Bank - Sucursal em Portugal, na qualidade de exequente, contra Medronheira - Sociedade Imobiliária, S.A., Serrasul - Sociedade Imobiliária, S.A., BB e EE de FF, na qualidade de executados, acção executiva para cobrança do valor de € 1.570.903,77 (cfr. doe. 18 junto com a petição inicial).
26. No âmbito dos autos de insolvência da Sociedade Medronheira - Sociedade Imobiliária, S.A., foi vendido o imóvel propriedade da Sociedade Medronheira pelo preço de um milhão e duzentos e sessenta mil euros { doe. n.s 19 junto com a petição inicial);
27. Por escrito datado de 13 de Agosto de 2014, designado "Contrato Promessa de Compra e Venda" as sociedades Serrasul - Sociedade imobiliária, S.A. e Brejo Novo, Sociedade Imobiliária, S.A., na qualidade de promitentes vendedoras, declararam prometer vender à sociedade Cais dos Oceanos - Gestão de Património, Lda, o prédio rústico Serrasul, sito na freguesia e concelho de Grândola, descrito na Conservatória do Registo Predial de Grândola sob o número 4878/20010808, a que corresponde o artigo ...36, com a área total de 275,9157 ha, que esta, na qualidade de promitente compradora declarou pretender comprar, pelo preço de € 1.300.000,00 relativamente ao imóvel denominado por Serrasul, tendo sido entregue a título de sinal relativamente a tal imóvel a quantia de €70.000,00, prevendo-se a caducidade do contrato caso não fossem cumpridas as condições ali elencadas, tudo conforme doe. 20 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
28. JJ procedeu em Outubro de 2014 ao depósito de rendas na Caixa Geral de Depósitos no valor de €14.153,57, referentes aos prédios constantes dos artigos ...36, identificando como senhorio a Sociedade Agrícola dos Cadoços, Unipessoal, Lda., conforme documento n.9 21 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
29. A Sociedade Agrícola dos Cadoços tem vindo a receber a renda referente à imóvel pertença da Serrasul, S.A.
30.  O dinheiro das vendas de cortiça tem vindo a ser recebido pelo ora Réu BB, através daquela sua Sociedade Agrícola Monte dos Cadoços, Unipessoal, Unipessoal, Lda.
31.O ora Réu é o sócio único da Sociedade Agrícola dos Cadoços, Unipessoal, Lda. e, ao mesmo tempo, ... Sociedade Serrasul- Sociedade Imobiliária, SA.
32.Nos autos de processo n.s 457/15...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., instância ... - Secção de Comércio, Juiz ..., foi pelo ora Autor instaurado procedimento cautelar não especificado de suspensão de cargo de ... contra o ora réu, pedindo a suspensão do requerido do cargo de ... de Serrasul, Sociedade Imobiliária, S.A.
33.Nos autos de processo n.e 457/15...., foi em 5 de Maio de 2015, decidido, sem audição do requerido:
"(...) Julgar procedente, por indiciariamente provado, o presente procedimento cautelar e consequentemente:
a)Determinar a suspensão de BB da sua qualidade de ... da Sociedade "Serrasul - Sociedade Imobiliária, S.A., S.A..";
b)Determinar que a vinculação da sociedade identificada em a), passa a ser obrigatória a assinatura conjunta dos restantes membros do ...;
c) indeferir a requerida nomeação de MM, por falta de fundamento legal.
34.O ora A impugnou, por alegada falsidade, o contrato de cessão de exploração junto pelo ora réu no âmbito da oposição à providência cautelar supra referida, encontrando-se pendente processo criminal para apreciação de eventual falsificação do documento.
35.Nos autos de procedimento cautelar que correu termos sob o n.s 809/15...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Instância ..., Secção de Comércio, Juiz ..., actualmente apenso A dos presentes autos, em que foi requerente o ora autor e requerido o ora réu, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, foi proferida decisão datada de 24-07-2015, onde se decidiu julgar:
"(...) o presente procedimento cautelar procedente, por provado, e, em conformidade, decreto o arresto das acções ao portador, de que o requerido é titular, representativas de 80% do capitai social da Soc. Serrasul - Soc. Imobiliária, S.A., e da quota que o requerido detém na Soc. Agrícola dos Cadoços, Unipessoal, devendo proceder ao competente registo do arresto da quota social na Conservatória do Registo Predial competente, e procedendo-se à apreensão material dos títulos ao portador.
Mais se consigna que o presente arresto se destina a garantir o pagamento do crédito eventualmente existente da Sociedade Serrasul - Soc. Imobiliária, S.A., sobre o requerido, a exercer pelo requerente nos termos do art.g. 77% do CSC, e não para garantia de qualquer crédito pessoal deste último, o.....
36. No âmbito do referido procedimento cautelar foi proferida decisão final no dia 21-12-2015, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, com o seguinte dispositivo:
"(...) O Tribunal julga a presente oposição improcedente, por não provada, e, em consequência, decide manter a providência cautelar de arresto decretada".
37. As decisões proferidas nos autos de providência cautelar n.9 809/15.... transitaram em julgado.
38. Não existiu deliberação dos sócios nem parecer favorável do órgão de fiscalização da Soc. Serrasul, S.A., que conferisse poderes ao réu para celebrar os contratos de extracção de cortiça e dar de arrendamento o imóvel de que é proprietária aquela sociedade;
39. Não constam registadas contabilisticamente na Sociedade Serrasul quaisquer extracções de cortiça ou rendas recebidas referentes ao imóvel denominado S....
40. O ora Réu era o único e legítimo proprietário do prédio misto sito no Monte..., composto por áreas forrageiras, montado de sobro e casa de ... para habitação com a área coberta de 786 m2 e com área de 531,9750 ha, anteriormente inscrito na matriz cadastral rústica sob o artigo ..., secção ..., ... (parte) e na matriz predial urbana sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o número ..., a seguir designado por "Mo...", conforme documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
41. O prédio supra identificado englobava, entre outra, as herdades designadas por "Imóvel S..., S.A." e por "Imóvel M..., S.A.".
42. A exploração agrícola do referido prédio foi sempre realizada pelo Réu, desde a aquisição, por herança, da respectiva propriedade.
43. Em 1989 o Réu constituiu a "Sociedade Agrícola dos Mo..., Lda/', NIPC ....
43 a) A S..., Lda teve como fim proceder à exploração agrícola do prédio "Mo...", incluindo a exploração agrícola dos imóveis "M..., S.A." e "S..., S.A." entretanto destacados daquele prédio.
43 b) Todos os accionistas tinham conhecimento de que a exploração agrícola dos imóveis "M..., S.A." e "S..., S.A." era feita pelo Réu desde data anterior à desanexação dos prédios  M..., S.A. e S..., S.A.  e assim  continuou após a constituição das sociedades e transmissão para estas dos referidos prédios.
44. As sociedades M..., S.A. e S..., S.A. foram constituídas com o objectivo principal de realizar um projecto imobiliário turístico,
45.  Inicialmente, o projecto turístico abrangeu exclusivamente o "Imóvel M..., S.A.".
46. Nesse sentido, o Réu efectuou diversas desanexações no imóvel designado por "Mo...", originando diversos prédios distintos, nomeadamente os imóveis "M..., S.A." e "S..., S.A.".
47. Na prossecução do projecto turístico que pretendia desenvolver, o Réu aceitou que HH (marido de EE de FF, que viria a ser accionista da sociedade "S..., S.A..") participasse como accionista investidor, comprando ao Réu 10% do capital social da M..., S.A.".
48. Tendo o referido HH angariado um outro accionista investidor, o ora Autor.
49. Na sequência dessa angariação, o Autor comprou igualmente 10% do capital social da M..., S.A. ao Réu.
50. Nesse mesmo ano de 1999, de forma concertada entre os accionistas (Réu, Autor e HH) foi apresentada a ideia do projecto turístico à CCDR ... envolvendo apenas o "Imóvel M..., S.A.".
51. A então Arquitecta da CCDR ..., Arqt§. NN, propôs a extensão do projecto ao Imóvel S..., S.A., propriedade do ora Réu.
52. Na expectativa de que a junção de ambas as propriedades ("Imóvel M..., S.A." e "Imóvel S..., S.A.") seria benéfica para a aprovação e financiamento do projecto turístico, foi, posteriormente, criada a sociedade "S..., S.A..", em 23 de Outubro de 2001 (Does. n.^s 3 e 22 juntos com a p.i.).
53. O Réu pretendeu realizar um projecto imobiliário turístico, abrangendo, inicialmente, apenas o "Imóvel M..., S.A." e, posteriormente, o "Imóvel S..., S.A.", com a anuência e conhecimento dos restantes accionistas (Doc. nº 5).
54. Originando a constituição, primeiro da M..., S.A.".
54 a) Com a constituição da "S..., S.A." os accionistas visavam prosseguir a aprovação de um projecto imobiliário turístico, com o intuito de posterior alienação, com repartição das mais-valias.
54 b) Ao participarem nas sociedades S..., S.A. e M..., S.A. os accionistas AA (ora Autor), HH e CC pretendiam apenas participar no lucro das vendas dos imóveis "M..., S.A." e "S..., S.A." como contrapartida dos investimentos realizados e na proporção das suas participações.
55. O projecto turístico viria a ser aprovado, conforme parecer técnico favorável comunicado pelo Município de ... em Abril de 2010 (documento n.s 8 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
56. Para garantir a execução do projecto, foi necessário recorrer ao crédito bancário.
57. Em 29.04.2010, o Deutsche Bank (Portugal), S.A. concedeu à M..., S.A." um empréstimo no montante de €2.560.000,00;
58. Como garantia do pagamento desse empréstimo, entre outras, a sociedade "S..., S.A.." constituiu uma hipoteca voluntária sobre o "Imóvel S..., S.A.".
59. Desde a constituição da sociedade "S..., S.A.." até 27.08.2012, os accionistas da sociedade "S..., S.A.." nunca questionaram, quer o Autor, quer a própria sociedade, acerca do destino do produto da extracção da cortiça existente no imóvel "S..., S.A.".
59 a) Durante mais de uma década nem o autor nem os accionistas CC e HH reclamaram quaisquer valores ao réu, quer para si, quer para as sociedades S..., S.A. e M..., S.A.
60. As contas dos anos de 2001 a 2011 foram devidamente aprovadas, conforme acta constante do livro de actas sob o número dez, datada de 30-03-2012, onde participou apenas o réu.
61. O Autor e a accionista CC alhearam-se desde sempre do destino da S..., S.A., assumindo o papel de meros investidores;
62. O Imóvel "S..., S.A." estava avaliado em cerca de €1.300.000,00 (um milhão e trezentos mil euros).
63. O Autor e a accionista CC investiram €19.000,00 (dezanove mil euros) que aliás nunca chegaram a pagar, pois tal montante -tal como o aumento de capital- foi disponibilizado pela sociedade "M..., S.A..", e não pelos referidos accionistas;
64. Em 13.08.2014 o Réu instaurou, através da S..., S.A., a acção de despejo já referida.
65. Na sequência da referida acção judicial, as rendas referentes aos anos agrícolas de 2014 e seguintes em curso foram depositadas pelo arrendatário na Caixa Geral de Depósitos, S.A.
66. Na sequência da crise financeira e económica mundial surgida em finais de 2008, o projecto imobiliário e turístico levado a cabo pelas sociedades "M..., S.A." deixou de ser viável por falta de investidores, nomeadamente com a desistência do investidor "P...S.A".
67. A falta de liquidez das citadas sociedades originou o incumprimento do pagamento do empréstimo concedido pelo Deutsche Bank e subsequente propositura de acção executiva.
68. Pelo produto da venda do imóvel propriedade da M..., S.A., em 26.06.2015 o Deutsche Bank recebeu a quantia de €1.170.825,15, permanecendo em dívida o valor de €629.288,88, conforme documento 15 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
69. Para evitar o risco da concretização de penhoras e vendas judiciais, o ora Réu diligenciou pela venda do imóvel "S..., S.A.", por forma liquidar integralmente a dívida contraída junto do Deutsche Bank, revertendo o remanescente para a S..., S.A. e, por maioria de razão, para os respectivos accionistas (Autor incluído).
70. Nesse sentido, o ora Requerido contratou os serviços da sociedade imobiliária "R...".
71. No âmbito do contrato de mediação imobiliária celebrado com a imobiliária "R..." o requerido logrou angariar um interessado na aquisição do imóvel, nos termos constantes do documento 20 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
72. O Deutsche Bank cedeu o seu crédito ao Sr. OO, conforme documento número 19 junto com a contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
73. A "S..., S.A." possui exclusivamente o CAE Principal ... ("Compra e Venda de Bens Imobiliários"), nunca assumindo qualquer CAE ligado ao sector agrícola.
73 a) Nem os accionistas nem a S..., S.A. despenderam qualquer quantia com a limpeza e conservação do imóvel.
73 b) A "S..., S.A." nunca adquiriu uma máquina ou ferramenta agrícola, nunca teve quaisquer trabalhadores ao seu serviço, nunca teve qualquer relação comercial com outra sociedade agrícola"
74. A accionista CC requereu a insolvência da sociedade "S..., S.A..", tendo sido tal acção julgada improcedente.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1- Modificação da decisão de facto por via da intervenção fiscalizadora do Supremo Tribunal de Justiça. Contradições entre factos provados e factos não provados constantes do acórdão recorrido, na sequência da procedência parcial da impugnação de facto. Prova testemunhal alegadamente contrária à força probatória de documento autêntico. Invocação de incorrecto uso de presunções na definição dos factos provados. Incumprimento das exigências processuais previstas no artigo 640º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.
2 – Responsabilidade do administrador de sociedade anónima nos termos do artigo 77º do Código das Sociedades Comerciais. Limitação decorrente do âmbito do objecto do recurso, definido e circunscrito pelas conclusões apresentadas pelo recorrente. Da figura do abuso de direito, prevista genericamente no artigo 334º do Código Civil, aplicável aos factos apurados nos presentes autos. 
Passemos à sua análise:
1- Modificação da decisão de facto por via da intervenção fiscalizadora do Supremo Tribunal de Justiça. Contradições entre factos provados e factos não provados constantes do acórdão recorrido, na sequência da procedência parcial da impugnação de facto. Prova testemunhal alegadamente contrária à força probatória de documento autêntico. Invocação de incorrecto uso de presunções na definição dos factos provados. Incumprimento das exigências processuais previstas no artigo 640º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil. 
Resulta do disposto nos artigos 674º, nº 3, e 682º, nº 2, do Código de Processo Civil, bem como do preceituado no artigo 46º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, alterada pela Lei nº 40-A/2016, de 22 de Dezembro), que o Supremo Tribunal de Justiça, constituindo um tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito e não de matéria de facto, encontrando-se absolutamente excluída da sua competência a análise e decisão quanto ao acerto ou desacerto na prolação da decisão de facto, bem como a inerente discussão sobre a concreta valoração das provas em que a mesma assentou.
Tal matéria, relevante no plano da controvérsia sobre a prova produzida e sindicância do juízo emitido pela 1ª instância, é da exclusiva competência dos Tribunais da Relação, que funcionam neste particular como única e definitiva instância de recurso.
Logo, os poderes do Supremo Tribunal de Justiça em termos de alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal da Relação são muito limitados, sendo a sua intervenção neste domínio de natureza excepcional.
Ou seja, e em concreto, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece da modificação do quadro factual definido em 2ª instância quando dispuser de elementos que lhe permitam, com toda a segurança, concluir pela verificação de ofensa às regras do direito probatório material na definição da decisão de facto; quando entenda necessária a sua ampliação face à insuficiência (nela evidenciada) para fundamentar a decisão jurídica do pleito; quando verifique a ocorrência de contradições na decisão sobre a matéria de facto que, pela sua ilogicidade, tornem inviável a decisão de fundo no plano jurídico.
No caso concreto, o recorrente avoca a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nos seguintes termos:
1º - Pedido de alteração ao teor do artigo 31º dos factos dados como provados e que o Tribunal da Relação restringiu com fundamento no seu cariz conclusivo.
2º - Invocação de contradições entre a matéria de facto dada como provada e não provado.
3º -  Alegada inadmissibilidade do depoimento da testemunha DD, que se revelou decisivo para as modificações que o Tribunal da Relação operou na decisão de facto. Entendimento de que a valoração desse depoimento, no sentido perfilhado nas instâncias, violou o disposto no artigo 393º, nº 2, do Código Civil, uma vez que a testemunha pronunciou-se sobre matéria demonstrada, com força probatória plena, através da junção aos autos da escritura de constituição da sociedade S..., S.A..
4º - Referência ao uso inadequado e contrário ao disposto no artigo 349º e 351º do Código Civil, de presunção judicial aquando da apreciação do depoimento da testemunha DD.
5ª – Invocado incumprimento pelo apelante (ora recorrido) das exigências processuais previstas no artigo 640º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Apreciando:
1º - Pedido de alteração ao teor do artigo 31º dos factos dados como provados e que o Tribunal da Relação restringiu com fundamento no seu cariz conclusivo.
O Tribunal de 1ª instância consignou quanto ao ponto de facto em apreço:
"O ora Réu, como sócio único da Sociedade Agrícola dos Mo..., Lda. e ao mesmo tempo ... da S..., S.A., desviou as receitas recebidas da exploração do imóvel propriedade da sociedade S..., S.A. em seu proveito próprio, em detrimento da Sociedade S..., S.A.".
O acórdão recorrido alterou tal matéria, substituindo-a por:
“O ora Réu é o sócio único da Sociedade Agrícola dos Mo..., Lda. e, ao mesmo tempo, ... da S..., S.A.S..., S.A.”.
Justificou tal alteração nos seguintes termos:
“Conforme o STJ vem persistentemente chamando a atenção "Muito embora o art.s 646.º, n.2 4 do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art.s 607º, nº 4, do CPC devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos".
Deverão assim ser eliminadas do elenco factual as expressões e asserções que não revistam natureza fáctica essencialmente quando esteja em causa matéria essencial à decisão a proferir, constituindo o "thema decidendum" Tal ocorre portanto "sempre que um ponto da matéria de facto comporte uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto do recurso ou da acção, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões", caso em que deverá ser eliminado.
No caso que nos ocupa, reconhecendo-se embora que a noção de "desvio de receitas de uma sociedade em proveito próprio" reveste uma dimensão fáctica de fácil apreensão, trata-se, todavia, de afirmação que encerra indubitavelmente uma conclusão a qual é susceptível de decidir, por si só, o destino da acção. Com efeito, aquilo que se discute é precisamente saber se ocorreu um "desvio" das receitas da sociedade, com a carga de ilicitude que a palavra, naquele contexto, comporta, ou se antes, porventura, conforme o réu -que não nega, note-se, ter beneficiado das rendas e do produto da venda da cortiça- defende e sustenta, tais quantias não pertenciam à sociedade mercê do acordo de todos os accionistas.
Deste modo, porque os factos assentes em 29. e 30. reflectem já quanto de relevante a este respeito se apurou, determina-se a eliminação do aludido segmento do ponto 31., subsistindo apenas a l.i parte, com o seguinte conteúdo: "O ora réu é o sócio único da S..., Unipessoal, Lda. e ao mesmo tempo o ... da S..., S.A.".
Apreciando:
Nada há a censurar no acórdão do Tribunal da Relação ... quanto à circunstância de haver restringido a redacção do ponto 31º dos factos provados na decisão de 1ª instância, tal como consta dos termos  indicados.
É sabido que a decisão de facto não pode conter, por sua própria natureza, juízos de natureza conclusiva ou valorativa.
A actividade probatória só poderá incidir sobre factos concretos e não sobre juízos valorativos ou conclusões de direito, sob pena de se colocar a actividade de produção de prova num sistema de ligação directa e automática como interpretação e aplicação da lei – função jurídica exclusivamente reservada ao órgão jurisdicional –, como se não estivessem em causa dois planos rigorosamente distintos que não se confundem nem se sobrepõem.
(Sobre esta temática, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relator Tomé Gomes) de 11 de Março de 2021, proferido no processo nº 1205/18.3T8PVZ.P2.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relator Cura Mariano) de 28 de Outubro de 2021, proferido no processo nº 4150/14.8TBVNG.P1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relator Lima Gonçalves) de 25 de Maio de 2021, proferido no processo nº 1011/11.6TBAGH.L1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relator Pinto de Almeida) de 8 de Setembro de 2021, proferido no processo nº 23543/19.8T8LSB.L1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relator Nuno Cameira) de 10 de Janeiro de 2017, proferido no processo nº 761/13.1TVPRT.P1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relatora Maria da Graça Trigo) de 7 de Abril de 2016, proferido no processo nº 7895/05.0TBSTB.E1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relator Garcia Calejo) de 24 de Março de 2015, proferido no processo nº 10795/09.0T2SNT.L1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relatora Prazeres Beleza) de 1 de Outubro de 2015, proferido no processo nº 2104/05.4TBPVZ.P1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2014 (relator Lopes do Rego), proferido no processo nº 444/12.5TVLSB.L1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2019 (relatora Rosa Ribeiro Coelho), proferido no processo n.º 1333/15.7T8LMG.C1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relator Tomé Gomes) de 27 de Abril de 2017, proferido no processo nº 273/14.1TBSCR.L1.S1; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relatora Ana Paula Boularot) de 15 de Novembro de 2012, proferido no processo nº 20071/1995.E1.S1 todos publicados in www.dgsi.pt).
Uma coisa é a materialidade que resulta da actividade instrutória e que traduz objectivamente um determinado acontecimento da vida que deverá ser, como tal, descrito no âmbito dos factos provados; outra, essencialmente diferente, é a dedução ou a ilação que o observador ou o intérprete entendam retirar, na sua análise e perspectiva pessoais, sobre os factos (tal como efectivamente se verificaram), ainda que justificada e mesmo porventura óbvia.
Neste contexto, a 2ª instância tem naturalmente toda a liberdade e o poder para modificar a redacção de pontos de facto fixados na sentença recorrida quando se aperceba que os mesmos encerram indevidamente juízos valorativos e conclusivos e não a pura factualidade que é suposto conterem.
Deverá exigir-se ainda maior rigor e zelo nessa actividade fiscalizadora quando a conclusão ou o juízo valorativo enxertado nos factos dados como provados reconduz-se directamente à questão essencial em discussão nos autos, com imediatos reflexos na apreciação jurídica do pleito.
Foi precisamente o caso.
Ao contrário do vertido neste ponto pela sentença de 1ª instância, os factos ora modificados pelo Tribunal da Relação consubstanciam verdadeiramente a materialidade sobre a qual indicidirá, ou não, o juízo de valor respeitante ao alegado e discutido conceito de “desvio de verbas”.
Ou seja, esta expressão de índole valorativa, que vai directamente ao encontro da causa de pedir apresentada pelo demandante nos presentes autos, não consubstancia a materialidade que competia ao A. provar, mas a conclusão a que o mesmo pretenderia chegar, uma vez demonstrada a base factual correspondente.
O recurso não pode, assim e naturalmente, ser atendido neste tocante, sendo totalmente irrepreensível a conduta processual assumida pelo Tribunal da Relação ....
Improcede o recurso neste ponto.
2º - Invocação de contradições entre a matéria de facto dada como provada e não provado.
Entende a recorrente que existe contradição entre factos provados e não provados nos seguintes termos:
As alíneas g), j) e k) dos factos (não provados) confirmados, como tal, pela Veneranda Relação, contrariam e chocam-se, respectivamente, com as alíneas f), n) e i) dos factos (não provados), eliminados pela Veneranda Relação, contaminando os factos (provados) acrescidos pela Veneranda Relação, pois “estão em linha” com os eliminados.
Seguidamente, torna extensiva a contradição às alíneas l), m) e l) dos factos dados como não provados em 1ª instância e considerados provados no acórdão do Tribunal da Relação.
Finalmente, refere que a contradição apontada abrange os novos factos provados 43 a), 43 b), 54 a), 54 b), 59 a) e 73 a) e b), conjugados com a eliminação das alíneas t), u) e v) relativas a factos dados como não provados em 1ª instância.
Neste pressuposto, entende exigir-se a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em conformidade com o disposto no artigo 682º, nº 3, “in fine”, do Código de Processo Civil.
Está em causa a seguinte factualidade:
Factos dados como não provados que o Tribunal da Relação confirmou:
“O contrato de cessão de exploração, outorgado pelo Réu com a Sociedade ..., datado de 1 de Abril de 1998 visou manter a exploração de natureza agrícola, silvícola ou pecuária, na disponibilidade do Réu” (facto não provado g);
“Na sequência de tal acordo (de que o único fim da participação dos accionistas seria o de beneficiar do valor de 10% das vendas dos imóveis “M..., S.A.” e “S..., S.A.”, como contrapartida dos investimentos realizados), os accionistas AA (ora Autor), HH e CC abdicaram do valor da exploração de ambos os imóveis, de natureza agrícola, silvícola ou pecuária, durante o período compreendido entre a constituição de ambas as sociedades e a efectiva alienação dos imóveis” (facto não provado j);
“A data do conhecimento de todos os accionistas de que a exploração agrícola dos imóveis “M..., S.A.” e “S..., S.A.” era feita pelo Réu, através da “Sociedade Agrícola dos Mo..., Lda., por referência à data da sua constituição para esse fim, no ano de 1989” (facto não provado k) que foi modificado e ao qual foi conferida nova e diferente redacção pelo Tribunal da Relação no ponto 43º b), dos Factos Provados).
Factos considerados como provados pelo Tribunal da Relação ... na sequência da procedência da impugnação de facto apresentada pelo Réu:
“A S..., Lda., teve como fim proceder à exploração agrícola do imóvel “Mo...”, incluindo a exploração agrícola dos imóveis “M..., S.A.” e “ S..., S.A.” (anterior alínea f) dos factos não provados, em 1ª instância, e ponto 43 a) dos Factos Provados tal como constante do acórdão do Tribunal da Relação).
“Durante mais de uma década nem o autor nem os accionistas CC e HH reclamaram quaisquer valores ao réu, quer para si, quer para as sociedades S..., S.A. e M..., S.A.” (anterior alínea n) dos factos não provados em 1ª instância, e ponto 59º, alínea a) dos Factos Provados tal como constante do acórdão da Relação).
“Ao participarem nas sociedades S..., S.A. e M..., S.A. os accionistas AA (ora Autor), HH e CC pretendiam apenas participar no lucro das vendas dos imóveis "M..., S.A." e "S..., S.A." como contrapartida dos investimentos realizados e na proporção das suas participações” (anterior alínea i) dos factos não provados em 1ª instância e ponto artigo 54º, alínea b) dos Factos Provados tal como consta do acórdão do Tribunal da Relação).
“Com a constituição da "S..., S.A." os accionistas visavam prosseguir a aprovação de um projecto imobiliário turístico, com o intuito de posterior alienação, com repartição das mais-valias” (anterior alínea x) dos factos não provados em 1ª instância, e ponto 54º, alínea a) dos Factos dados como Provados tal como constam do acórdão da Relação).
 “Nem os accionistas nem a S..., S.A. despenderam qualquer quantia com a limpeza e conservação do imóvel” (anterior alínea t) dos factos não provados em 1ª instância, e ponto 73º, alínea a), dos Factos dados como Provados tal como constam do acórdão da Relação).
A "S..., S.A." nunca adquiriu uma máquina ou ferramenta agrícola, nunca teve quaisquer trabalhadores ao seu serviço, nunca teve qualquer relação comercial com outra sociedade agrícola" ( anterior alínea v) dos factos não provados em 1ª instância, e ponto 73º, alínea b), dos Factos dados como Provados tal como constam do acórdão da Relação).
“Todos os accionistas tinham conhecimento de que a exploração agrícola dos imóveis "M..., S.A." e "S..., S.A." era feita pelo Réu desde data anterior à desanexação dos prédios  M..., S.A. e S..., S.A.  e assim  continuou após a constituição das sociedades e transmissão para estas dos referidos prédios” (alteração à anterior alínea k) dos factos dados como provados em 1ª instância e ponto nº 43º, alínea b)dos Factos dados como Provados tal como constam do acórdão da Relação).
Vejamos:
Não assiste manifestamente razão ao recorrente.
Independentemente do acerto ou desacerto da decisão de 2ª instância que incidiu sobre a impugnação de facto e que, como se frisou supra, não compete a este Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, sindicar (cfr. artigos 674º, nº 3, e 682º, nº 2, do Código de Processo Civil), não se vislumbra existir qualquer incongruência lógica que inquine o conjunto dos novos factos provados e não provados e que, por isso mesmo, habilite a sua intervenção excepcional ao abrigo do disposto no artigo 682º, nº 3, do Código de Processo Civil.
A circunstância de não ter sido dado como provado que:
“O contrato de cessão de exploração, outorgado pelo Réu com a Ré A..., datado de 1 de Abril de 1998 visou manter a exploração de natureza agrícola, silvícola ou pecuária, na disponibilidade do Réu” (facto não provado g);“Na sequência de tal acordo (de que o único fim da participação dos accionistas seria o de beneficiar do valor de 10% das vendas dos imóveis “M..., S.A.” e “S..., S.A.”, como contrapartida dos investimentos realizados), os accionistas AA (ora Autor), HH e CC abdicaram do valor da exploração de ambos os imóveis, de natureza agrícola, silvícola ou pecuária, durante o período compreendido entre a constituição de ambas as sociedades e a efectiva alienação dos imóveis” (facto não provado j); “Desde 1989, todos os accionistas tinham conhecimento de que a exploração agrícola dos imóveis “M..., S.A.” e “S..., S.A.” era feita pelo Réu, através da “Sociedade Agrícola dos Mo..., Lda. constituída para esse fim (facto não provado k) cuja redacção veio a ser alterada pelo Tribunal da Relação), não suscita, em termos lógicos e ao nível da compreensão desta narrativa, qualquer verdadeiro e relevante conflito com os factos que o Tribunal da Relação ... considerou agora provados.
Essencialmente, a 2ª instância inverteu a decisão do juiz a quo, nos seguintes termos:
A Sociedade ..., sociedade controlada pelo ora Réu, visava a exploração agrícola dos imóveis “M..., S.A.” e “S..., S.A.”, o que era do conhecimento de todos os accionistas da “S..., S.A.”, bem sabendo o A. daquela mesma exploração pelo Réu, desde data anterior (e não concretamente localizada), à desanexação dos ditos prédios.
Ao invés, a “S..., S.A.” foi criada apenas com o propósito da aprovação de um projecto imobiliário turístico de grande envergadura, para ulterior alienação, sendo certo que os accionistas AA (ora Autor), HH e CC intervieram na dita sociedade tão somente com o objectivo de participarem nos lucros na projectada alienação, não tendo a sociedade quaisquer trabalhadores ao seu serviço, nem relação comercial com outra sociedade agrícola.
Neste contexto específico e por via dele, AA (ora Autor), HH e CC, durante mais de uma década, nada reclamaram do Réu relativamente à exploração agrícola dos imóveis, nem despenderam qualquer quantia com a sua limpeza ou conservação, da qual se alhearam em absoluto.
Ora, nada disto choca, no plano lógico e da sua intrínseca e fácil compreensão, com o facto de não ter sido dado como provado:
- O alcance do contrato de cessão de exploração datado de 1 de Abril de 1989 (o acórdão recorrido considerou que “não resultou provado de forma segura que o contrato de exploração junto aos autos tenha sido celebrado e na data que dele consta”, o que explica a sua manutenção no elenco dos factos não provados);
- A prática concreta de um acto de renúncia assumido pelos accionistas AA (ora Autor), HH e CC quanto ao recebimento do valor da exploração dos imóveis até à sua alienação (o acórdão recorrido frisou especialmente que “não foi produzida prova com consistência bastante que os accionistas tenham acordado com o réu de forma expressa que este continuaria a exploração, fazendo seus os proventos específicos, embora não tenha subsistido dúvida quanto ao facto de terem efectivo conhecimento de que era assim que as coisas se passavam sem nunca o terem questionado, inércia que se manteve por mais de uma década, o que se compreende quando se considere que o objectivo da sua participação era outro, não tendo estado no horizonte de nenhum dos investidores a exploração agrícola dos terrenos”;
- O conhecimento por parte dos accionistas AA (ora Autor), HH e CC relativamente à exploração dos imóveis pelo Réu, através da Sociedade ..., desde o ano de 1989 (tendo o acórdão recorrido fixado o seu início apenas em momento anterior à desanexão dos prédios).
Note-se, ainda, a este propósito, que a desanexação no imóvel “Mo...” que esteve na origem dos prédios “M..., S.A.” e “S..., S.A.” acontece no ano de 1999, sendo constituída a S..., S.A., em 2001, conforme os documentos de fls. 195 a 203 e 76 a 81 insofismavelmente demonstram.
Logo, a prova de que os accionistas AA (ora Autor), HH e CC conheciam a prossecução da actividade agrícola nos imóveis antes da dita desanexação (em 1999), não implica que tivessem necessariamente esse (exacto) conhecimento desde o ano de 1989.
Não existe assim qualquer verdadeira contradição entre os factos agora dados como provados e os que se mantiveram como não provados, não obstante a legítima discordância da recorrente quanto ao mérito da decisão que julgou parcialmente procedente a impugnação de facto apresentada pelo Réu na sua apelação.
Improcede a revista neste ponto.
3º -  Alegada inadmissibilidade do depoimento da testemunha DD, que se revelou decisivo para as modificações que o Tribunal da Relação operou na decisão de facto. Entendimento de que a valoração desse depoimento, no sentido perfilhado nas instâncias, violou o disposto no artigo 393º, nº 2, do Código Civil, uma vez que a testemunha pronunciou-se sobre matéria demonstrada, com força probatória plena, através da junção aos autos da escritura de constituição da sociedade S..., S.A..    
Alega o recorrente:
 A Veneranda Relação conferiu indevida credibilidade ao depoimento da testemunha DD, filho do já falecido Apelante Réu (e ora Recorrido) e admitiu esse depoimento contra a prova plena, violando, assim, o preceituado no art. 393.º do Código Civil;
 Ao invés, a 1.ª Instância (sentença de 12-07-2018), caracterizou tal depoimento de não credível, por ser mera versão da contestação do Apelante Réu (e ora Recorrido) e totalmente conforme a esta;
 O depoimento da testemunha DD não se revestiu, pois, de quaisquer autonomia e conteúdo próprios;
 A livre apreciação da prova pelo Julgador, consagrada no art. 396.º do C. Civil, não se confunde com apreciação arbitrária, devendo, pelo contrário, ser consistente, razoável e lógica, conforme a mais que abundante Jurisprudência existente;
 A escritura pública da constituição da Soc. S..., S.A. (doc. 22, da p.i.) constitui prova plena que se sobrepõe ao que, de contrário, disse a testemunha DD (art. 347.º do Código Civil);
Apreciando:
Cumpre desde logo referir que a avaliação em termos de credibilidade do depoimento de determinada testemunha – in casu, DD, filho do Réu – é matéria da exclusiva competência das instâncias inferiores, não podendo o Supremo Tribunal de Justiça interferir nesse particular.
Havendo o Tribunal da Relação ... decidido conferir prevalência, ao nível da sua decisiva credibilidade, ao depoimento daquela testemunha, nele assentando a razão de ser da procedência da impugnação de facto, isso significa que essa mesma decisão foi proferida pela última instância a quem competia pronunciar-se sobre a valoração conjunta e conjugada da prova.
Diferentemente, a alegação de que terá sido cometida uma violação de norma de direito probatório material, a verificar-se, legitima a intervenção e competência própria do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 674º, nº 3, do Código de Processo Civil.  
Entende o recorrente que o depoimento da testemunha DD contrariou o que consta da escritura de constituição da Sociedade S..., S.A., em que se definiu o seu objecto como “compra e venda de prédios urbanos, rústicos, mistos ou lotes de terreno, administração, arrendamento ou a exploração de bens próprios ou alheios, construção, urbanização e promoção de imóveis, negociação e venda de participações em sociedades com o mesmo objecto social, bem como negócios directamente ligados ao objecto principal”.
Vejamos:
Esta crítica dirigida ao acórdão recorrido não faz obviamente sentido.
Dispõe o artigo 393º, nº 2, do Código Civil:
“Também não é admitida a prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena”.
Ora, a identificada testemunha DD não se pronunciou propriamente sobre qual era, ou não, o objecto social que os accionistas e fundadores entenderam definir, em termos formais, na escritura de constituição com vista à prossecução da actividade da Sociedade S..., S.A., negando-o ou contradizendo-o.
Nem no acórdão do Tribunal da Relação ... ficou consignado qualquer facto que coloque em crise a consignação do mesmo objecto social da referida S..., S.A., tal como no plano puramente formal consta da respectiva escritura de constituição.
Diversamente, o que foi esclarecido pelo testemunha – e o Tribunal da Relação ... aceitou e acolheu como efectivamente demonstrado – foi o desígnio concreto que os mesmos accionistas, por acordo não formalizado, projectaram entre si quanto ao futuro aproveitamento que em conjunto fariam em relação ao destino daquela sociedade, do ponto de vista estratégico, empresarial e económico, para além do que formalmente constava do seu objecto social (objecto social este que ninguém verdadeiramente contestou).
E neste âmbito – vontade e propósito das partes na projecção de um resultado económico futuro, por todos igualmente visado -, estamos no domínio dos factos da vida livremente demonstráveis e objecto de incondicionada análise e dilucidação por parte do tribunal.
A circunstância de uma determinada sociedade ser criada com um determinado objecto social não prejudica a possibilidade real de, segundo a vontade e o plano estratégico dos respectivos sócios fundadores/investidores, a mesma destinar-se a servir, instrumentalmente e no futuro, a prossecução dos seus interesses próprios, em termos de objectivo mediato, que poderá ser completamente diverso e alheio àquilo que ficou expresso na escritura de constituição.
Foi o que aconteceu na situação sub judice em que uma sociedade que formalmente se dedicaria à compra e venda de imóveis administração, arrendamento ou a exploração de bens próprios ou alheios, construção, urbanização e promoção de imóveis, negociação e venda de participações em sociedades com o mesmo objecto social, bem como negócios directamente ligados ao objecto principal, teve verdadeiramente na sua base a implantação  e desenvolvimento futuro, no imóvel que constituía o seu único activo – o prédio “S..., S.A.” –, de um projecto turístico de grande envergadura que, depois de concluído e rentabilizado, permitiria, segundo o idealizado em comum, um compensatório retorno para os accionistas/investidores.
Pelo que não se verifica nesta matéria qualquer violação do direito probatório material, improcedendo a revista neste ponto.
Acresce ainda que não tem o menor cabimento pretender, tal como o recorrente faz, que o Supremo Tribunal de Justiça sindique a forma como o Tribunal da Relação interpretou os documentos nºs 7 e 8, juntos com a petição inicial, fazendo apelo às regras do artigo 236º, nº 1, do Código Civil.
Estão em causa duas facturas emitidas pela S..., Lda, de 30 de Agosto de 2002 e 6 de Julho de 2004, que constituem simples documentos particulares que o Tribunal da Relação valorou dentro dos seus poderes de sindicância da matéria de facto impugnada.
De resto, sobre este ponto limitou-se o acórdão recorrrido a deixar expresso que: “(...) a partir de certa altura (os prédios M... e S..., S.A. foram explorados pelo Réu) através da S... Unipessoal, Lda. Tal facto foi referido pela testemunha e resultou confirmado desde logo pelas facturas juntas pelo próprio autor (documentos 7 e 8, a fls. 89 e 90), decorrendo também das regras de experiência o modo como as coisas de ordinário ocorrem”, não se compreendendo minimamente qual o fundamento legal para a intervenção (sempre excepcional) do Supremo Tribunal de Justiça nesta concreta apreciação da matéria de facto.
 4º - Referência ao uso inadequado e contrário ao disposto no artigo 349º e 351º do Código Civil, de presunção judicial aquando da apreciação do depoimento da testemunha DD.
Alega o recorrente:
As presunções só consentem, nos termos dos arts. 349.º e 351.º do Código Civil, aferir um facto desconhecido, a partir de factos conhecidos e existentes; Ao invés do que estas normas prescrevem, a Veneranda Relação partiu de factos inexistentes, para, ilegalmente aduzir, como facto existente, o consentimento, pelo ora Recorrente e demais accionistas, ao Apelante Réu (o ora Recorrido), para a exploração do imóvel S..., S.A.;
A Veneranda Relação, ao lançar mão das presunções judiciais, com base nos inexistentes factos e nas inexistentes declarações, procedeu a uso processual ilegal, violando aqueles arts. 349.º e 351.º do Código Civil;
Apreciando:
Não se descortina, no âmbito do conhecimento pelo Tribunal da Relação ... acerca da impugnação contra a decisão de facto, em que momento o mesmo se terá socorrido de qualquer tipo de presunção, nos termos dos artigos 349º a 351º do Código Civil, para justificar as alterações pontuais a que procedeu.
Rigorosamente nada é referido no acórdão recorrido, no âmbito da apreciação da matéria de facto, quanto ao uso de presunções judiciais (cfr. fls. 749 a 756).
A figura do “nexo de presunção, juridicamente lógico-dedutivo”, apenas é referida no âmbito do conhecimento do mérito da causa, a propósito do respectivo enquadramento jurídico, e nada teve a ver com a fundamentação da decisão de facto – vide fls. 775 a 776.
Neste sentido, o que aconteceu é que foi dada credibilidade a um depoimento (o de DD), que havia sido desconsiderado pelo juiz de 1ª instância, o que levou à forçosa modificação do elenco dos factos provados e não provados, o que se encontrava aliás suficientemente explicado e desenvolvido no dito acórdão.
Não existe neste tocante qualquer violação do direito probatório material a justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.
Pelo que improcede, igualmente, a revista nesta particular.
5ª – Invocado incumprimento pelo apelante (ora recorrido) das exigências processuais previstas no artigo 640º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Alega o recorrente:
Na transcrição da gravação desse depoimento, o Apelante Réu (e ora Recorrido) não apontou, em concreto, qualquer passagem do mesmo, o que contraria a lei (n.º 3 art. 640.º do NCPC) e é exigido pela Jurisprudência.
Apreciando:
O apelante transcreveu passagens do depoimento da testemunha DD, localizando-as no registo da gravação efectuada durante a audiência de julgamento, por as considerar relevantes para a procedência da impugnação de facto, cumprindo escrupulosamente o exigido no artigo 640º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
Como é evidente, o Tribunal da Relação, para aquilatar do valor deste depoimento e da crebilidade do depoente teve que o ouvir na íntegra, sendo a sua apreciação global e unitária.
Pelo que não se pode cindir, na valoração deste depoimento, uma ou outra frase avulsa que, porventura, não tenha sido objecto de menção expressa e localizada na impugnação de facto, a que o Réu oportunamente procedeu e que obteve êxito junto do Tribunal da Relação.
É manifesto que não havia outra forma de apreciar e valorar, com a profundidade exigível, tal depoimento, sendo que a liberdade do julgamento da impugnação pelo Tribunal da Relação não se encontra limitado ou condicionado pela eventual falta de localização, pelo apelante, no registo da gravação do depoimento de uma ou outra frase proferida pela testemunha e que, sendo considerada relevante, foi legitimimamente aproveitada pela 2ª instância para formar a convicção e emitir o seu veredicto neste particular.
Improcede a revista neste ponto.
2 – Responsabilidade do administrador de sociedade anónima nos termos do artigo 77º do Código das Sociedades Comerciais. Limitação decorrente do âmbito do objecto do recurso, definido e circunscrito pelas conclusões apresentadas pelo recorrente. Da figura do abuso de direito, prevista genericamente no artigo 334º do Código Civil, aplicável aos factos apurados nos presentes autos. 
Dispõe o artigo 77º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, sob a epígrafe “Acção de responsabilidade proposta por sócios”:
“Independentemente do pedido de indemnização por danos individuais que lhes tenham causado, podem ou vários sócios que possuam, pelo menos, 5% do capital social, ou 2% no caso de sociedade emitente de acções admitidas à negociação com mercado regulamentado, propor acção social de responsabilidade contra gerentes ou administradores, com vista à reparação, a favor da sociedade, do prejuízo que esta tenha sofrido, quando a mesma a não haja solicitado”.
Estabele o artigo 72º, nº 1, do CSC:
“Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa”.
Sobre esta matéria de natureza jurídica o recorrente nada disse nas suas conclusões de recurso, limitando-se a referir que:
“A S..., S.A., figura, na acção principal, como sujeito processual, por intervenção provocada, determinada pela 1.ª Instância, da qual é Autor, em nome e interesse da mencionada Sociedade, enquanto seu acionista, o ora Recorrente, que demanda ao abrigo do preceituado no C.S.C. (art. 77.º);
2.ª - A acção principal foi precedida de arresto judicial decretado (sentença de 27 de Julho de 2015), ao qual o Apelante Réu e ora Recorrido então deduziu oposição, que conheceu total improcedência (sentença de 21 de Dezembro de 2015);
3.ª - A contestação à acção principal é cópia fiel do teor e documentação da anterior oposição improcedente”.
Como é sabido, o objecto do conhecimento do recurso pela instância superior é delimitado por via do recorte a que o recorrente procede nas suas conclusões das alegações.
É o que resulta da interpretação conjugada das seguintes disposições legais:
– artigo 608º, nº 2 –“o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
– artigo 609º, relativo aos limites da condenação;
– artigo 635º, nº 4, respeitante à delimitação subjectiva e objectiva do recurso, onde pode ler-se: “Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”;
 – artigo 639º, concernente ao ónus de alegar e formular conclusões, referindo o nº 1, do CPC: “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”;
- e acrescentando o nº 2: “Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: “a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
– artigo 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil, mencionando este último preceito que: “O acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe Recurso. Considerações gerais sobre a figura  35 de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607º a 612º” (normas relativas à elaboração da sentença em 1ª instância. Neste mesmo sentido, vide: Artigo 637º, nº 2, do CPC, onde se refere: “O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento”.
Ora, o recorrente, nas suas conclusões de recurso, praticamente nada disse em contrário do enquadramento jurídico constante do acórdão recorrido.
No fundo, não fundamentou no plano jurídico de forma diversa do que consta nesse acórdão, não obstante a discordância que à partida assumiu, mas que não concretizou minimamente em sede de conclusões do recurso.
O que prejudica, desde logo, a alteração do decidido no acórdão recorrido.
Sempre se dirá, sintecticamente:
A circunstância da presente acção revestir a natureza de acção social, não prejudica a possibilidade de o accionista que a impulsionou ter agido em abuso de direito, integrando-se o seu comportamento processual na previsão genérica e abrangente do artigo 334º do Código de Processo Civil.
Basta que as razões que presidem ao exercício desse direito e os fins concretamente prosseguidos por essa via exorbitem manifestamente o fundamento axiológico em que o ordenamento jurídico substantivamente assentou quando entendeu conferir-lhe tal possibilidade de actuação judicial.
Foi o que sucedeu ostensivamente – perante os factos que foram dados como provados - na situação sub judice.
Com efeito, e segundo os factos definitivamente dados como provados, o A. accionista revelou, há mais de uma década, contínua e ininterruptamente, a sua plena conformação com os actos praticados pelo  administrador Réu no aproveitamento da actividade económica da sociedade (recebimento de rendas e rendimentos decorrentes da extracção de cortiça) que o beneficiavam exclusivamente, não interferindo nem se insurgindo quanto a este resultado, dispondo-se apenas a vir a usufruir no futuro das mais valias decorrentes da concretização do empreendimento turístico que seria rentabilizado no imóvel, o qual constituía o único activo da sociedade.
Perante as vicissitudes entretanto ocorridas, e em especial as que têm com a ver com as dificuldades económicas da sociedade, invabilizando o projectado empreendimento turístico, o A. vem agora, através deste expediente jurídico, insurgir-se e revoltar-se contra o dito aproveitamento e benefício do Réu e contradizer todo o propósito, firme e consolidado, que sempre manifestou, contrariando as legítimas expectactivas deste, numa conduta oportunística e absolutamente desconforme com a sua postura anterior (demonstrada ao longo de anos), o que integra de pleno a figura do abuso de direito tal como foi devidamente explicado no acórdão do Tribunal da Relação, com o qual inteiramente se concorda.
Confirma-se assim o acórdão do Tribunal da Relação ... pelos fundamentos dele constantes.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2022.


Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.